Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
40/21.6PTPRT-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ERRO DE DIREITO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
O erro na qualificação jurídica dos factos apurados, justificando embora um recurso ordinário da decisão, a interpor no prazo legal, não constitui fundamento de um recurso de revisão, não se integrando na al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, nem em qualquer outra al. do mesmo dispositivo legal, sendo certo que a enunciação das causas justificativas da revisão constante do mesmo, é feita de forma taxativa.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


 I. No Proc. sumário nº 40/21... do Juízo local criminal de ... (J...), o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação e com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

    Essa decisão foi proferida em 12 de Março de 2021 e transitou em julgado em 21 de Abril de 2021.

           

   II. 1. E o arguido interpõe, agora, recurso extraordinário de revisão daquela sentença, alegando o seguinte:

«1.° Por sentença proferida em 12 de Março de 2021, já transitada em julgado, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.° 3 n.° 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação sita na Rua..., ... ..., concelho de ... e com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

2.° A factualidade considerada como provada foi a seguinte:

"a) No dia 1 de Fevereiro de 2021, pelas 10h20m o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …... pela ...,

b) Nessa data, a carta de condução de que o arguido fora titular - P-... - encontrava-se na situação de "cassada", devido à perda total de pontos, por decisão da ANSR proferida no processo 2…2/2018, da qual o arguido foi notificado em 15.01.2019, decisão que não impugnou judicialmente, (negrito e sublinhado nosso)

c) O arguido não se encontrava, pois, habilitado com a necessária carta de condução, licença de condução ou documento equivalente, o que sabia, (negrito e sublinhado nosso)

d) O arguido sabia que não podia conduzir o veículo acima identificado na via pública, sem ser titular de carta de condução, e não obstante quis fazê-lo.

e) Actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

f) O arguido, na ocasião referida em a) decidiu conduzir para visitar e levar bens à sua ex-mulher e aos 2 filhos adultos (de 28 e 30 anos, titular este de carta de condução).

g) O arguido vive em união de facto e tem um filho de 1 mês de idade.

h) Explora um ………. sito na Rua... em ... (…....), onde trabalha desde as 9h até às 22h.

i) Habita na Av...., ...° ..., ..., com a companheira, filho de ambos e filhos da companheira, em casa pela qual paga 450€/mès de renda, havendo harmonia familiar.

j) A casa e o ……… distam cerca de 10 minutos a pé.

k) O arguido confessou os factos e declarou-se arrependido

l) É bem visto no seu meio social

m) Aceita cumprir pena de prisão em regime de permanência na habitação, assim como os elementos adultos do seu agregado familiar.

n) Foi condenado anteriormente pelos seguintes crimes:

- Condução em estado de embriaguez e sem habilitação legal, cometidos em 2004, empena de multa

- Condução sem habilitação legal, cometido em 2006, em pena de multa.

- Condução sem habilitação legal, cometido em 2004, empena de multa

- Condução sem habilitação legal, cometido em 2004, empena de multa

- Condução sem habilitação legal e condução perigosa, cometidos em 2001 em pena de multa.

- Condução em estado de embriaguez, cometido em 2007, em 8 meses de prisão substituída por multa.

- Ofensa à integridade física simples, cometido em 2007 em pena de multa

- Condução em estado de embriaguez, cometido em 2010, em 8 meses de prisão suspensa na execução por 1 ano.

- Furto simples, cometido em 2010, em pena de multa

- Desobediência, cometido em 2011, em pena de multa

- Violação de proibições, cometido em 2013 em 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na execução.

- Violência doméstica, cometido em 2015, em 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na execução.

- Desobediência, cometido em 2017, em 4 meses de prisão suspensa na execução

- Condução em estado de embriaguez, cometido em 2014, em 9 meses de prisão suspensa na execução por 1 ano.

- Condução em estado de embriaguez e violação de proibições, cometidos em 2017, em 1 ano e 5 meses de prisão suspensa na execução e 18 meses de proibição de condução."

3.° Na sentença proferida em 12 de Março de 2021, entendeu a Mma Juiz que:

"Decorre do art." 130 n." 3 b) do CE que o título de condução de um cidadão é cancelado quando for cassado nos termos do artigo 148.º do CE ou do artigo 101.º do Código Penal;

Do art.º 130 n.º 5 do mesmo Código resulta que os titulares de título de condução cancelado consideram-se não habilitados a conduzir.

O título de condução do arguido estava cassado, nos termos previstos pelo art.º 148 do CE, quando este conduziu. E se assim era, o título estava cancelado, do que decorre que o arguido se encontrava não habilitado à condução quando conduziu, em 01.02.2021.

Da matéria assente decorre ainda que que quis conduzir, nas condições descritas, apesar de saber que não o poderia fazer, agindo deforma voluntária, livre e consciente.

Pode, pois, e sem necessidade de mais considerações, concluir-se pela verificação dos elementos objectivos e subjectivos de que depende o preenchimento do crime de que vinha acusado."

4.º Constatou o arguido que a sentença foi proferida ao abrigo da redação concedida ao art.º 130º do Código da Estrada pelo DL n.° 138/2012 de 5 de Julho.

5.° Porém, na data de prolação da sentença, a redação do referido artigo 130 do Código da Estrada que vigorava foi a implementada pelo DL n.° 102-B/2020 de 9 de Dezembro.

6.° E, na verdade, de acordo com a nova versão do art.° 130 do Código da Estrada, nunca poderia o arguido ser condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art.° 3, n.°s 1 e 2 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, mas apenas e só na prática de uma contraordenaçao nos termos do n.° 7 do indicado art.° 130 do CE.

7.° Na versão do art.° 130 do CE imposta pelo DL n.° 138/2012 de 5 de Julho, verifica-se que o legislador elencava os motivos que poderiam levar à caducidade e ao cancelamento dos títulos de condução.

8.° Sendo que, no que respeita à cassação do título de condução, o mesmo era entendido como um dos casos que levaria ao cancelamento do título (art.° 130, n.° 3, alínea b) do CE na versão do DL n.° 138/2012 de 5 de Julho)

9.° E, nesta redação, o n.° 7 do art.° 130 do CE apenas teria aplicação em casos de título caducado e já não em casos de cancelamento do título.

10.° Ou seja, apenas a condução de veículo com título caducado prevista no n.° 7 apenas seria sancionada com coima de 120 a 600 euros, o mesmo não acontecendo nos casos de cancelamento do título de condução.

11.° Mas, na versão introduzida ao art.° 130 do CE pelo DL n.° 102-B/2020 de 9 de Dezembro, constata-se que o legislador deixou de fazer a distinção entre motivos que poderiam levar à caducidade ou ao cancelamento dos títulos de condução, referindo-se apenas a situações de caducidade dos títulos de condução.

12.° Sendo que um dos motivos que leva à caducidade do título de condução é precisamente a cassação nos termos do art.° 148 do CE ou do artigo 101 do Código Penal (cfr. art.° 130, n.° 1, alínea d) do CE)

13.° Todavia, o n.° 7 do art.° 130 do CE na atual versão imposta pelo DL n.° 102-B/2020 de 9 de Dezembro refere expressamente que: "7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.° 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600."

14.° E, como acima se referiu, a condução com título de condução cassado encontra-se previsto no n.° 1 do art.° 130 do CE, pelo que deixou de ser considerado crime, apenas sendo punível com contraordenação ao abrigo do n.° 7 deste preceito legal.

15.° Como é sabido, a lei ao impor a habilitação legal para a condução de veículos na via pública, bem como os requisitos para a obtenção de título de condução (artigos 121.° e 126.° do Código da Estrada), pretendeu que os condutores comprovem previamente a sua aptidão para uma actividade comportamental com inegáveis repercussões sociais, dada a perigosidade que envolve quer para os próprios condutores, quer para todos os outros que circulam na via pública ou fazem utilização das suas margens ou proximidades.

16.° O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é, assim, a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.

17.° No caso de cassação de título de condução, verifica-se que tal licença havia já sido previamente concedida e o seu titular demonstrou ter aptidão para a condução de viaturas automóveis.

18.° Ou seja, é muito diferente conduzir viaturas automóveis sem nunca ter sido previamente detentor de licença de condução, ou então conduzir viaturas automóveis com título caducado.

19.° Daí que, no primeiro caso se justifique a condenação da condução como consubstanciando a prática de um crime de condução sem habilitação legal, dada a perigosidade para a segurança, a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais; mas no segundo caso em que já previamente foi atribuída a licença de condução, aquelas razões de segurança e perigosidade não se encontram tão vincadas, pelo que a mera condenação como contraordenação será suficiente.

20.° Assim, face ao supra exposto, entende o arguido verificarem-se fundamentos para o pedido de revisão de sentença transitada em julgado, conforme previsto no art.° 449, n.° 1, alínea d) do CPP, uma vez que o arguido foi condenado ao abrigo de legislação que já não se encontrava em vigor aquando da prolação da sentença, o que torna a condenação injusta».


  2. Respondeu a Exmª Procuradora da República junto do tribunal recorrido, pugnando pelo não provimento do recurso, desta forma argumentando:

«O fundamento invocado (erro na aplicação do direito, decorrente da sucessão de leis – não há factos novos, que sustentassem a invocada alínea d), não é subsumível a nenhuma das causas taxativamente previstas nas diferentes alíneas do n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal, que de seguida se transcrevem:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

Esta taxatividade dos fundamentos da revisão é corolário da natureza absolutamente excecional deste instituto jurídico, por estar em causa a quebra do princípio fundamental da segurança jurídica.

De facto, o recurso de revisão apenas pode ser interposto com base num dos fundamentos supra descritos, que não inclui divergência na interpretação do direito aplicado, conforme pretende o condenado/recorrente; o direito aplicado só pode ser modificado mediante interposição de recurso ordinário, cujo prazo, no presente caso, se encontra largamente ultrapassado (decisão condenatória transitou em julgado a 21-04-2021).

Nesta conformidade, a pretendida revisão da sentença transitada em julgado não é legalmente admissível, razão pela qual deverá ser rejeitada.

De qualquer modo, sempre se dirá o seguinte, tendo presente a redacção do Código da Estrada invocada pelo condenado/recorrente (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 102-B, de 9 de dezembro):

1.º- De acordo com o ofício do IMT de 2021-02-10 (fls. 46), “(…) a carta de condução ..., titulada por AA, encontra-se no estado “Cassada”, por decisão da ANSR, devido à perda total de pontos, proferido no âmbito do Processo de Cassação n.º 272/2018, não sendo, por isso, tal cidadão titular de carta de condução válida no dia 01/02/2021.(…)”;

2.º- Ao condenado/recorrente foi imputada a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 03/01.

Ora, estatui o citado art. 3.º, que:

1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

3.º- Nos termos do art.º 121.º, n.º 1, do Código da Estradas só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito. O documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos pesados e automóveis designa-se «carta de condução» (n.º 4 do cit. art.º 121.º).

4.º- Por seu turno, prescreve o art. 130.º do Código da Estrada, na invocada redação:

1  - O título de condução caduca se:

d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;

5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.ºcaso venham a obter novo título de condução.

4.º- E acrescenta por sua vez o art. 148.º do referido código, na mesma redação, que:

“4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

(…) c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos

todos os pontos ao condutor.

(…)

10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.

11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.

Ou seja, após a referida decisão de cassação, com base nos mencionados preceitos legais, notificada ao condenado/recorrente a 15/01/2019, por perda total de pontos, nem sequer lhe poderia ser concedido novo título de condução, por um período de dois anos; e portanto, ao contrário do alegado, o condenado/recorrente não oferece mais condições de segurança na estrada do que qualquer outro cidadão, a quem nunca tenha sido atribuída carta de condução, pois que a este a lei permite adquiri-la em qualquer momento».


    3. A Mª juíza do Juízo local criminal de ... prestou a informação a que se refere o artº 454º do CPP, nos seguintes termos:

«Na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2009 (Relator Simas Santos, disponível para consulta em www.dgsi.pt), entendemos que não compete ao juiz do tribunal que proferiu a decisão a rever outros poderes que não sejam o de receber o requerimento, proceder à instrução (quando for caso disso) e encaminhar o pedido para o legal destino (o STJ), surgindo assim como uma mera instância intermédia, de passagem, e nada mais, apenas devendo dar andamento ao expediente tal qual o requerente lho apresentou, fazendo-o chegar ao Supremo com a sua informação sobre a viabilidade do pedido (cf. art.° 454.° do Código Processo Penal).

Como tal, nos termos do referido artigo 454.º do Código Processo Penal, passaremos de seguida a proferir informação sobre o mérito do pedido.

Invoca o recorrente, como fundamento do recurso a circunstância de ter sido condenado ao abrigo de legislação que já não se encontrava em vigor aquando da prolação da sentença, o que a torna injusta, pois que os factos dados como provados na sentença recorrida deixaram de ser punidos como crime, passando a constituir ilícito de mera ordenação social, por força da alteração ao Código da Estrada introduzida pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9 de dezembro.

Coloca-se, em termos de mérito do recurso, duas questões: A primeira prende-se com uma questão formal.

Isto porque, o fundamento invocado pelo recorrente de erro na aplicação do direito, decorrente da sucessão de leis, não é subsumível a nenhuma das causas taxativamente previstas nas diferentes alíneas do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal.

Ora, o recurso de revisão constitui um meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, e tem como fundamento principal a necessidade de se evitar uma sentença injusta, de reparar um erro judiciário, por forma a dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal.

Contudo, os fundamentos para a apresentação do recurso estão taxativamente previstos no referido artigo 449.º, n.º 1.

Como se refere no Acórdão do STJ de 12.03.2009, supra mencionado, trata-se um recurso que “assenta num compromisso entre a salvaguarda do caso julgado, que é condição essencial da manutenção da paz jurídica, e as exigência da justiça”. E assim, a taxatividade dos fundamentos previstos para apresentação do mesmo decorre da natureza excecional deste instituto jurídico, por estar em causa a quebra do princípio fundamental da segurança jurídica.

Não prevê o referido normativo legal, que o recurso assente na divergência na interpretação do direito aplicado, conforme pretende o recorrente, uma vez que o direito aplicado só pode ser modificado mediante interposição de recurso ordinário.

E, assim, não pode o recurso extraordinário de revisão, nesta parte, proceder, por falta de fundamento legal.

A segunda questão relativamente ao mérito do recurso, prende-se com a descriminalização da conduta do recorrente, por força das alterações introduzidas no Código da Estrada introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9 de dezembro.

Foi imputada ao recorrente a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 03/01, o qual dispõe que:

1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”

Prescreve atualmente o artigo 130.º do Código da Estrada, que: “1 - O título de condução caduca se:

(…)

d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal.

Por sua vez, da conjugação do nº 5 com o nº 7 do atual artigo 130º do Código da Estrada, parece, claramente, que o legislador quis punir a condução com título caducado como prática de um ilícito contraordenacional, pois, estes condutores, apesar de prevaricadores, já foram sujeitos a exames escritos e práticos, tendo obtido a respetiva aprovação em devido tempo, que lhes permitiu obter um título de condução e que podem obter um novo título, sujeitando-se a um exame especial.

Não obstante o nº 5 referir que “Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido (…)”, a verdade é que o nº 7 é expresso em considerar que “Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima”. Portanto, há uma restrição do termo “para todos os efeitos legais”. E este tem de ser considerado apenas para os casos em que os condutores conduzam com títulos caducados.

Assim, afigura-se-nos que, quanto ao fundamento invocado, assiste razão ao recorrente, uma vez que na data em que foi proferida a sentença, o facto praticado por aquele é passível de ser um ilícito contraordenacional e não um ilícito criminal.

Sendo esta a nossa informação sobre o mérito do pedido, remetam-se os presentes autos de recurso extraordinário de revisão ao Supremo Tribunal de Justiça».


   III. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso:

«(…)

2. A tal recurso respondeu ao Exma. Sra. Procuradora da República em 1ª instância, pugnando pela improcedência do mesmo.

A Exma. Sr. Juiz de Direito prestou a informação prevista pelo art.º 454º do CPP.


3. A exaustividade e pertinência de ambas as peças processuais dispensam-nos de maiores comentários.

Cremos, com efeito, que, in casu, se não verifica o pressuposto do qual depende a admissão de um recurso extraordinário desta natureza.

4. Recordemos que o arguido foi condenado, por sentença proferida em 12 de Março de 2021 e oportunamente transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo art.° 3 nºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação sita na Rua..., ... ..., concelho de ... e com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

Os seus vastos antecedentes criminais – nomeadamente, pela prática de crimes de natureza rodoviária – ditaram a não suspensão da execução da pena; mas, ainda assim, foi-lhe dada a hipótese – que aceitou – de cumprir a sentença em reclusão domiciliária; aliás, muito mitigada, por lhe permitir a saída da sua habitação quase diariamente, por razões profissionais.

O arguido não impugnou esta decisão e, se o não fez em tempo útil… sibi imputet!

Ora, o recurso de revisão não se destina a colmatar estratégias de defesa que, no momento próprio, não obtiveram sucesso ou nem sequer foram tentadas, por inabilidade ou desmazelo; em todo o caso, por culpa própria.

Recorde-se que a revisão, tal como se escreveu no ac. STJ de 14/05/2008, “constitui um meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, e tem como fundamento principal a necessidade de se evitar uma sentença injusta, de reparar um erro judiciário, por forma a dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal.”

E “assenta num compromisso entre a salvaguarda do caso julgado, que é condição essencial da manutenção da paz jurídica, e as exigências da justiça. Trata-se de um recurso extraordinário, de um “remédio” a aplicar a situações em que seria chocante e intolerável, em nome da paz jurídica, manter uma decisão de tal forma injusta (aparentemente injusta) que essa própria paz jurídica ficaria posta em causa.” – cfr. ac STJ de 04-07-2007, Proc. n.º 2264/07 - 3.ª secção”

Ora, “A alínea d) exige, como pressuposto da revisão, por um lado, o surgimento de factos novos (…) factos novos relativamente aos considerados na sentença revidenda e, por outro, que esses novos factos suscitem dúvidas qualificadas «graves» sobre a justiça da condenação, não bastando apenas que haja dúvidas sobre essa realidade. A novidade que se exige terá de sê-lo, não apenas para o tribunal como para o recorrente. (…) Se este os conhecia e não invocou aquando do julgamento faltou, certamente por estratégia de defesa, ao dever de lealdade e colaboração com o tribunal, pelo que, seria iníquo permitir-lhe agora invocar factos que só não foram oportunamente apreciados por mero calculismo” – (Pereira Madeira in Código de Processo Penal Comentado, págs. 1508 e 1509, 2ª edição revista, 2016).

In casu, não ocorre o pressuposto da revisão.

5. Assim, independentemente do acerto da decisão recorrida – o que é aflorado na informação prestada pela Mma. Juiz –, a verdade é que os fundamentos invocados pelo arguido, por manifesta falta de enquadramento legal, não parecem ser suficientemente ponderosos para suscitar graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação; pelo que, em conformidade, nos parece dever ser negada a requerida revisão».


    IV. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência:

   O recorrente estriba a sua pretensão na al. d) do nº 1 do artº 449º do CPP, que admite a revisão de sentença transitada em julgado quando “se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

  A revisão de sentença, com consagração constitucional (artº 29º, nº 6 da CRP), tem natureza excepcional, na pura e exacta medida em que constitui uma restrição evidente ao princípio da segurança jurídica. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do CPP”, 1206, «só circunstâncias “substantivas e imperiosas” (…) devem permitir a quebra do caso julgado, de modo a que este recurso extraordinário se não transforme em uma “apelação disfarçada”».

    Entre essas excepções, a lei consagrou a descoberta de novos factos ou meios de prova que, por si só ou conjugados com os apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

  Não é pacífico na doutrina e na jurisprudência o que há-de ser entendido como “novos factos ou meios de prova”: para uns, essa expressão não significa que tais factos não fossem conhecidos pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar, mas apenas que tais factos ou meios de prova não foram valorados no julgamento, porque então desconhecidos do tribunal – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 388: “A novidade dos factos ou dos elementos de prova deve sê-lo para o julgador; novos são os factos ou elementos de prova que não foram apreciados no processo, embora o arguido os não ignorasse no momento do julgamento”; ainda neste sentido, Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. 29/14.1JALRA-C.S1, da 5ª secção. Para outros, é necessário que não só para o tribunal como, também, para o arguido, tais factos ou meios de prova fossem ignorados ao tempo do julgamento – neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit, 1208, para quem «só esta interpretação é conforme com o conceito de “factos ou meios de prova novos” do direito internacional dos direitos humanos e, nomeadamente, do artigo 3º do protocolo nº 7 da CEDH, segundo o qual o direito a indemnização em caso de erro judiciário é afastado quando se prove que “a não revelação em tempo útil de facto desconhecido lhe é imputável no todo ou em parte” (…)»; ainda neste sentido, Ac. STJ de 11/9/2019, Proc. 355/14.0GBCHV-E.S1 da 3ª secção.

    Opte-se por um ou outro entendimento, certo é sempre que, no caso, não são alegados factos, novos ou antigos, que coloquem em causa a justiça da condenação.

  Aquilo que o recorrente faz, como decorre com clareza da sua motivação de recurso, é afirmar que o tribunal recorrido errou na aplicação do direito, aplicando aos factos apurados (cuja verificação, aliás, ele não discute) legislação que, à data da condenação, já não estaria em vigor. De onde, em seu entendimento, ter sido condenado pela prática de um crime quando, então, a sua conduta se traduzia em mera contraordenação, punível com coima.

    Sem curar de saber do acerto de tal entendimento, certo é sempre que este recurso extraordinário de revisão não é o instrumento próprio para o suscitar.

   O artº 449º do Cod. Proc. Penal enuncia os casos em que é admissível recurso de revisão e, entre eles, não consta a situação descrita pelo recorrente (erro na aplicação do direito, errada qualificação jurídica dos factos apurados), muito menos na invocada al. d) do seu nº 1.

  Como é evidente e dispensa grandes considerações, a natureza extraordinária deste recurso determina uma leitura apertada dos seus fundamentos. Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15/9/2021, Proc. 699/20.1GAVNF-A.S1, rel. Cons. Nuno Gonçalves [1], “traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário e no regime, substantivo e procedimental, especial. Por isso, somente os fundamentos firmados pelo legislador podem legitimar a admissão da revisão da condenação transitada em julgado. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica –art. 11º do Código Civil” [2].

    A errada qualificação jurídica dos factos apurados é, naturalmente, fundamento para recurso ordinário. Recurso que o arguido, devemos dizê-lo, não interpôs, podendo fazê-lo.

     E se o não fez então, não pode agora, a coberto de um recurso extraordinário de revisão, tentar obter aquilo que, por inércia sua, não logrou obter através dos meios próprios.

Como se refere no Ac. STJ de 24/5/2017, Proc. 344/15.7GDCNT-A.S1, através do recurso de revisão «vedado está “corrigir” a qualificação jurídica dos factos, ainda que ela se afigure “injusta” ou “errada”. Para essas situações existe o recurso ordinário. O caso julgado cobre inexoravelmente todos os erros de julgamento. Doutra forma, a certeza e a segurança jurídicas seriam irremediavelmente lesionadas» [3].

   A propósito da superveniência de lei descriminalizadora, o STJ, no seu Ac. de 12/9/2007, Proc. 07P2431, rel. Cons. Maia Costa, já decidiu:

«I - O fundamento de revisão previsto na al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP reporta-se exclusivamente à factualidade do crime, ou seja, às circunstâncias históricas, ao episódio ou evento, circunscrito no tempo e no espaço, que foi considerado na sentença condenatória como integrante de uma determinada infracção. A lei admite a revisão se a descoberta de novos factos ou novos meios de prova (de factos) vier a alterar ou pôr em crise a matéria de facto fixada na sentença condenatória, modificando-a ou invalidando-a, de tal forma que fique seriamente em dúvida a justiça da condenação, isto é, que resulte muito provável, dos novos factos ou meios de prova, que o condenado não cometeu a infracção, devendo assim ser absolvido.

II - É o chamado «erro judiciário», a incompleta ou incorrecta averiguação da verdade material, que determinou a subsunção dos factos a um certo tipo legal, e consequentemente a condenação, que o legislador pretende remediar com a aludida al. d). Só um erro deste tipo pode caracterizar como injusta a decisão condenatória. A injustiça, no contexto daquela alínea, está efectivamente conexa com a descoberta de um erro na fixação dos factos que levaram à condenação.

III - Invocar uma alteração do regime legal como «facto» novo constitui subverter completamente os pressupostos do recurso de revisão. Envolve, antes de mais, uma inaceitável confusão entre matéria de facto e matéria de direito, entre facto e norma. Uma coisa são os factos, os acontecimentos historicamente circunscritos, as situações concretas da vida; outra é o tratamento normativo que esses factos recebem do direito (e que pode sofrer modificação posterior à prática daqueles).

IV - Uma alteração do quadro normativo aplicado na condenação, ainda que a lei nova seja despenalizadora, não é, pois, relevante em termos de recurso de revisão, pelo que pouco importa se a alteração introduzida pela Lei 53-A/2006 no tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal constitui um novo elemento do crime ou uma simples condição de punibilidade, dado que, em qualquer caso, não é um facto novo».

   E se isto é assim quando a alteração do quadro normativo ocorre após a prolação da decisão recorrida, mais evidente se torna que igualmente assim será quando a arguida alteração do quadro normativo já havia ocorrido, no momento em que a decisão foi proferida.

    Em suma: o recorrente não invoca quaisquer factos ou meios de prova novos, limitando-se a reclamar um erro na qualificação jurídica dos factos apurados.

       Tal erro, justificando embora um recurso ordinário da decisão, a interpor no prazo legal, não constitui fundamento de um recurso de revisão, não se integrando na invocada al. d) do nº 1 do artº 449º do CPP, nem em qualquer outra do mesmo dispositivo legal, sendo certo que a enunciação das causas justificativas da revisão constante do mesmo, é feita de forma taxativa.


    V. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida pelo arguido AA, por falta de fundamento legal, considerando o pedido manifestamente infundado.

     Pagará o recorrente as custas do processo, fixando-se no mínimo legal a taxa de justiça (1 UC) e, bem assim, uma quantia correspondente a 6 UC’s, nos termos previstos na parte final do artº 456º do CPP.


Lisboa, 15 de Dezembro de 2021 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)

Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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[1] Acessível em www.dgsi.pt.
[2] No mesmo sentido, Pereira Madeira, “Código de Processo Penal comentado”, 3ª ed. revista, de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, 1437.
[3] No mesmo sentido, Ac. STJ de 10/1/2018, Proc. 63/07.8PBPTM-D.S1.