Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4349/20.8T8LRS-C.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS
CONDENAÇÃO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I – Para justificar a condenação por litigância de má fé não é necessária a prova da consciência da ilicitude do comportamento do litigante e da intenção de conseguir um objetivo ilegítimo, bastando tão só que, à luz dos concretos factos apurados, seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela sua atuação.

II – Constitui má fé processual a apresentação de sucessivos requerimentos com pedidos que não se enquadram na tramitação processual regular, com o único objetivo de evitar o prosseguimento do processo ordenado pela Relação, que rejeitou a exceção de prescrição invocada pelos réus.

Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA e BB, réus no presente processo, em que é autor e recorrido, CC, não se conformando com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, vieram interpor recurso do mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça, peticionando que o recurso seja admitido como revista ordinária, a subir nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.

2. Foi proferido despacho singular da Relatora que não admitiu recurso de revista e condenou os réus-recorrentes como litigantes de má fé, com o seguinte conteúdo, que se passa a transcrever.

«1. Notificadas as partes, pela Relatora, para se pronunciarem ao abrigo do artigo 655.º, n.º 1, do CPC, sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso, vieram dizer o seguinte:

a) Os réus, AA e BB, vieram expor o seguinte:

«1. O recurso foi intentado para o Tribunal da Relação de Lisboa e não para o Supremo Tribunal de Justiça.

2. O mesmo foi ordenado pelo tribunal da 1ª instância: “Subam os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa.”

Pelo que, os recorrentes desconhecem e não são responsáveis pelo eventual lapso da secretaria na remessa do recurso para V. Exas».

b) O autor, CC, veio dizer que o recurso de revista não deve ser admitido e, simultaneamente, pedir a condenação dos réus por litigância de má fé, ao abrigo do artigo 542º, nº 1 e 2, alíneas b) e d), do CPC, a quem imputam uma conduta ofensiva da dignidade das Instituições Judiciais, tentando por todos os meios alterar a verdade dos factos e fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável a fim de conseguir obstaculizar e protelar as decisões judiciais, reportando-se também à «conduta falsa e vexatória transmitida pelos réus a esse Tribunal pelo requerimento de 22/05/2023, brincando objectivamente com a Justiça», devendo também este Supremo Tribunal arbitrar uma indemnização nos termos do artigo 543º, nºs 1 e 2, nos termos e condições a definir.

c) Notificados deste pedido do autor, os réus vieram dizer o seguinte:

«1º.

Foi o A. notificado, para querendo, responder ao douto despacho de V. Exas.

2º.

Destarte, veio o A. através do seu mandatário, estropeliar completamente o âmbito da resposta que poderia dar, que apenas se resumia a um lapso da secretaria na remessa do recurso para o STJ.

Assim, veio o A., em conluio com o seu mandatário reproduzir o seguinte:

3º.

“Além de mentirem despudorada e vergonhosamente sobre as prácticas processuais que os mesmos deram azo, instruíram e apresentaram junto do Tribunal da Relação de Lisboa, vide Doc. 1”

-- Assim, o A., em conluio com o seu mandatário apelidaram os RR. junto do STJ, como mentirosos e sem vergonha. Inclusivamente, confessando e estupidificando os presentes autos, zombando de seguida com a confirmação que os RR. na realidade apresentaram o recurso junto do TRL e não do STJ.

4º.

“de que se apresenta parte e que se junta em anexo, os mesmos réus, desrespeitam, abusam

e ofendem a dignidade das Instituições Judiciais e o tempo da Justiça e de V. Exas.”

-- » Assim, o A., em conluio com o seu mandatário apelidaram os RR. junto do STJ, como

desrespeitadores, abusadores e ofendedores da dignidade das instituições judiciais, do

tempo e do próprio STJ.

5º.

“Esta conduta dos réus que é continuada e reiterada desde o início dos presentes autos em sede de primeira instância é notoriamente detratora e ofensiva como de má-fé, tentando por todos os meios alterar a verdade dos factos e fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável a fim de conseguir obstaculizar e protelar

as decisões judiciais que sobre eles impendem como aquelas que aqui se responde e que

os réus vêm contestar nos termos do seu requerimento supra referido.”

-- » Assim, o A. em conluio com o seu mandatário apelidaram os RR. junto do STJ, como

detractores, ofensivos, de má-fé, que tentam alterar a verdade dos factos e fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável. Mais, apesar do A. estar representado por mandatário aquele não se inibe de reproduzir que o recurso apresentado pelos RR. para o TRL é, afinal, uma contestação.

6º.

“Posto isto e sem mais considerandos, deve V. Exa. não admitir o recurso pelos obstáculos e pressupostos processuais já referidos e, adicionalmente, condenar os réus ao abrigo do art. 542º, nº 1 e 2, alíneas b) e d) do CPC, pela conduta falsa e vexatória transmitida pelos réus a esse Tribunal pelo requerimento de 22/05/2023, brincando objectivamente com a Justiça. “; “Sem prejuízo deste facto, deve V. Exa. arbitrar uma indemnização nos termos do art. 543º, nºs 1 e 2 nos termos e condições a definir.”

-- » Assim, o A. em conluio com o seu mandatário apelidaram os RR. junto do STJ, como

praticantes de condutas falsas e vexatórias devido a terem exercido o direito de recurso sobre despacho da 1ª instância. Ainda não satisfeitos, apelidam os RR. como “brincalhões” da justiça.

7º.

Com as condutas mencionadas, pretenderam, mais uma vez, injuriar a honra e o bom

nome dos RR. (nem sequer tendo em consideração que o R. é advogado). O que nunca se

olvidaram de fazer desde 2013, perdendo TODAS AS INSTÂNCIAS JUDICIAIS.

Mais se acrescenta:

8º.

o comportamento do A. e do seu mandatário (que na realidade é quem reproduz as

injúrias), para com os RR. tem sido sempre este desde 2013, data em que criaram uma tese totalmente mal alicerçada, em factos e direito, para iniciaram litígios com vista a

extorquirem dinheiro aos RR.. Tendo obviamente, perdido todas as instâncias de natureza civil e criminal (processos nº 163/14.8...; 286/15.6...; 34/14.0... e 3659/13.5...), chegando ao ponto do A. ter sido condenado criminalmente pelo

Tribunal da Comarca de ....

9º.

Desta vez, viram-se na necessidade durante a pandemia, de intentarem mais uma acção

judicial, criando até um novo vendedor e local de venda, um tal A... em ...

, quando a viatura foi prometida vender na “Aviatura” em ...,

conforme consta em todos os autos judiciais transitados em julgado e nos inquéritos do

MP, que também se encontram finalizados à muitos anos.

10º.

Assim, as injúrias reproduzidas no requerimento apresentado pelo A. em conluio com o

seu mandatário (este último, estando obrigado às regras deontológicas e à legalidade) não são um caso isolado, mas sim, sempre frequentes sem qualquer remorso e

arrependimento.

Face ao reproduzido:

Nestes termos e nos demais de DIREITO, requer-se que os Srs. Venerandos Conselheiros

do Supremo Tribunal de Justiça, se dignem ordenar a extracção das respetivas certidões,

tal como, a remessa aos Serviços do MP competentes e ao Conselho de Deontologia de

Lisboa da Ordem dos Advogados, por conhecimento oficioso dos respectivos ilícitos, que

no entender dos RR. se encontram claramente praticados».

d) Em 20 de junho de 2023, AA e BB, responderam a este Supremo Tribunal, afirmando que «(…) os requerimentos com as referências do citius ...13 e ...83 se tratou de manifesto lapso da nossa parte pela qual nos penitenciamos. Na verdade, era parte de um requerimento truncado a enviar a outro processo. Pelo exposto, requerer-se a V. Exa que se digne determinar o desentranhamento dos autos dos dois aludidos documentos».

2. Em 20 de junho de 2023, os réus, AA e BB, vieram apresentar novo requerimento, nos seguintes termos:

«(…) tendo sido notificados de douto despacho de V. Exa. com a referência ...60, vêm expor o seguinte:

1. O recurso foi intentado para o Supremo Tribunal de Justiça, porque no

entender dos recorrentes, seria a instância apropriada para corrigir o erro de

apreciação factual do TRL.

No entanto,

2. dúvidas subsistem, se o plenário do TRL poderia ser suficiente para tal.

3. Ou até mesmo, no âmbito de simples rectificação do acórdão.

Nesse sentido e sempre com o douto suprimento de V. Exas. requer-se que seja ordenado

a respectiva remessa para apreciação do erro de leitura do TRL, completamente percebível, porque a PI é inepta e os próprios RR. não entendem quais os factos que estão em causa.

3. Sucedem-se outros requerimentos das partes, em que reiteram, o autor, o pedido de condenação por litigância de má fé e pagamento de indemnização, e os réus, o pedido de envio de certidão ao Ministério Público e ao Conselho Deontológico de Lisboa da Ordem dos Advogados, para conhecimento de alegadas injúrias reproduzidas nas peças.

II - Fundamentação

4. Para o que aqui importa, decide-se, desde já, que o recurso de revista não é admissível por falta de valor da ação e por estarmos perante uma decisão intercalar.

5. Constata-se, pela leitura dos requerimentos dos réus que o comportamento processual dos réus é insólito e desrespeitoso de regras processuais básicas:

- o requerimento em que afirma ser a interposição do recurso de revista um lapso não tem qualquer fundamento, pois da leitura das alegações bem se vê que o recurso é de revista e foi interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, no presente processo, cujo número aparece corretamente indicado.

- o requerimento em que pede o desentranhamento de outros requerimentos, por serem parte truncada de outro processo também não tem qualquer fundamento – esses requerimentos dirigem-se ao STJ e o número de processo neles aposto é o do presente processo – e é temerário, sem qualquer correspondência aos factos, e desprovido de qualquer lógica que não seja lançar confusão e dar o dito por não dito;

- a tentativa, completamente extemporânea e infundada, de pedido de reenvio do processo à Relação para que proceda a uma retificação do acórdão recorrido ou à modificação da matéria de facto, questões que nem sequer são peticionadas nas conclusões do recurso de revista, e ainda a invocação da ineptição da petição inicial, questão já conhecida e para a qual já se tinha esgotado o poder jurisdicional da Relação, demonstra também a natureza patológica da forma como os réus intervêm no processo.

- Quanto à questão das alegadas injúrias cometidas pelo autor na peça processual entregue no Supremo, decide-se que sendo a injúria um crime particular e não tendo este Supremo informação para contextualizar as afirmações feitas pelo autor e aferir da sua gravidade, uma vez que não conheceu do mérito do caso, desconhecendo, por isso, a conduta das partes quando o processo se encontrava nas instâncias, caberá aos réus procederem às respetivas queixas no Tribunal Penal e no Conselho Deontológico da Ordem dos Advogados, se assim o entenderem.

6. Por agora, este Supremo pronuncia-se apenas sobre o comportamento processual dos réus quanto à questão da admissibilidade do recurso de revista e nos requerimentos que se sucederam. E, se a interposição de um recurso sem pressupostos não constitui, em regra, uma situação de litigância de má fé, nem merecedora de uma taxa sancionatória, o mesmo não se poderá dizer dos requerimentos apresentados pelos réus, que denotam um comportamento processual sinuoso, contraditório e obscuro, merecedor de um juízo de ilicitude e de culpa processual.

Considera-se que os réus tiveram oportunidade de exercer o contraditório em relação à litigância de má fé, cumprindo, desde já, tomar uma decisão a este respeito.

Assim, condena-se os réus por violação grave do dever de cooperação e por utilizarem os meios processuais de modo reprovável para entorpecer a ação da justiça e protelar a decisão final do caso, ao pagamento de 6 UCs.

Entende-se não haver motivos para o pagamento de indemnização à outra parte, devendo uma eventual indemnização ser calculada pelas instâncias, se peticionada, tendo em conta a análise do comportamento processual global dos réus.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) não admitir o recurso de revista;

b) condenar os réus ao pagamento de multa por litigância de má fé no valor de 6 UC’s;

c) não enviar certidão da peça processual apresentada pelo autor aos Serviços do MP nem ao Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados.

Custas pelos réus».

3. AA e BB, Réus no presente processo, não se conformando com a decisão singular da Relatora, datada de 13/07/2023 que não admitiu o recurso de revista e que condenou os réus como litigantes de má-fé, vêm apresentar reclamação para a conferência, na qual formularam as seguintes conclusões:

«I – O recorrido não poderia apresentar contra-alegações encobertas em dois requerimentos para se furtar ao pagamento da taxa de justiça devida.

II – A interposição de recurso não admitido não pode ser sancionada como litigância de má-fé.

III – Os lapsos das partes, desde que não prejudiquem o andamento dos autos (in casu) não consubstanciam litigância de má-fé.

IV – Quando o TRL entende mal os factos, gerando vícios de simples leitura, o STJ deve ordenar a baixa do processo aquele Tribunal superior para os fins tidos como convenientes ou ordenar a nulidade do acórdão.

PEDIDO:

Nestes termos e nos demais de Direito, que Vossas Excelências doutamente se dignarão suprir, deverá a REVISTA dos recorrentes ser julgada procedente e, consequentemente o douto despacho de que se recorre, ser revogado e substituído por douto Acórdão que ordene a baixa para o TRL ou declare a nulidade daquele acórdão e absolva os réus da condenação de litigância de má-fé, de acordo com o que ficou alegado pelos recorrentes.

FARÃO ASSIM, OS EXCELENTÍSSIMOS SENHORES JUÍZES

DESEMBARGADORES DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, A

COSTUMADA JUSTIÇA!».

4. Os reclamados não apresentaram qualquer resposta.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Os reclamantes na presente reclamação pedem o seguinte: «a REVISTA dos recorrentes ser julgada procedente e, consequentemente o douto despacho de que se recorre, ser revogado e substituído por douto Acórdão que ordene a baixa para o TRL ou declare a nulidade daquele acórdão e absolva os réus da condenação de litigância de má-fé»

O pedido feito é, mais uma vez, descabido para o que deve ser o objeto de uma reclamação para impugnar uma decisão de não admissibilidade do recurso.

Em primeiro lugar, deve notar-se que os réus nada dizem na reclamação que impugne ou de algum modo questione as razões em que a Relatora baseou a inadmissibilidade do recurso: falta de valor da ação e natureza intercalar do acórdão recorrido. Por fim, terminam pedindo, não que a revista seja admitida, mas que seja julgada procedente e que seja proferido acórdão que ordene a baixa do processo à Relação ou declare a nulidade do acórdão proferido pela Relação, ou seja, reiteram o pedido apresentado em requerimentos juntos ao processo, o qual não pode constituir objeto da presente reclamação, dirigida apenas a discutir a não admissibilidade do recurso, questão sobre a qual nas conclusões da reclamação os réus nada dizem. Pelo que, confirma-se desde já o segmento do despacho reclamado que não admitiu o recurso de revista pelas razões nele expostas.

2. Das pretensas questões suscitadas pelos réus só duas podem ser conhecidas: 1) saber se o autor apresentou o pedido de condenação por litigância de má fé nas contra-alegações para se furtar ao pagamento da taxa de justiça; 2) saber se o comportamento processual dos réus pode ou não ser sancionado como litigância de má fé.

2.1. A condenação por litigância de má fé pode ser decretada oficiosamente pelo tribunal ou ser pedida por qualquer das partes, em qualquer momento do processo e em qualquer peça processual, inclusive numa resposta a um requerimento que a parte considere abusivo.

Resulta do disposto no artigo 542.º, nº1, do CPC que a condenação em multa como litigante com má fé não depende de pedido da parte, podendo e devendo o Tribunal efetuá-la, ex officio, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos. Como afirma Menezes Cordeiro (Abuso do Direito de Ação e Culpa in Agendo, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2014), a litigância de má fé é um instituto processual de tipo público, que visa o imediato policiamento do processo. Segundo o autor citado, não se trata de uma mera manifestação de responsabilidade civil, que visa a reparação de danos, mas antes de um subsistema sancionatório próprio, com um objetivo punitivo e que pode funcionar oficiosamente.

No presente processo o autor pediu a condenação dos réus, como litigantes de má fé, em dois requerimentos apresentados como resposta a sucessivos requerimentos dos réus, considerados abusivos.

Como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-04-2009 (processo n.º 10773/2008-1), «O pedido de condenação como litigante de má fé não constitui um incidente estranho à normalidade do processo, mas tão-só um pedido de responsabilização processual da parte inserido no desenvolvimento normal da acção.

Pelo que, o pedido de condenação por litigância de má fé não constitui qualquer expediente para se furtar ao pagamento de taxa de justiça, mas um contraditório legítimo e enquadrado dentro da tramitação normal do processo.

2.2. Para impugnar a sua condenação, os réus invocam que a mera interposição de recurso de revista inadmissível, por lapso, não pode constituir litigância de má fé.

Vejamos:

No caso vertente, o acórdão recorrido confirmou uma decisão do tribunal de 1.ª instância, que julgou improcedente a exceção perentória de prescrição do direito indemnizatório peticionado pelo Autor, e ordenou o prosseguimento do processo. Estamos perante uma decisão que não põe termo ao processo nos termos do n.º 1 do artigo 671.º do CPC e perante uma ação à qual foi atribuído um valor de 23,700,00 euros, manifestamente inferior à alçada de 30.000,00 euros.

Em regra, entende-se que interpor um recurso de revista sem que os seus pressupostos de admissibilidade estejam reunidos não constitui litigância de má fé, mas uma tentativa de a parte demonstrar a valia da sua pretensão, esgotando todas as possibilidades e graus de jurisdição, na esperança de conseguir ganho de causa.

Todavia, a decisão de condenação por litigância de má fé não resultou da mera interposição do recurso de revista fora dos requisitos legais, mas do comportamento subsequente dos recorrentes, que importa analisar, pois só uma análise global da conduta permite a certificação dos requisitos legais da condenação por litigância de má fé.

Após a Relatora ter notificado as partes para se pronunciarem sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso e ter advertido os recorrentes que, por falta de valor e pela natureza intercalar do acórdão recorrido, existiam obstáculos à admissibilidade do recurso, os recorrentes apresentaram sucessivos requerimentos ininteligíveis e fora da tramitação normal do processo.

No primeiro requerimento, datado de 22-05-2023, apresentado após a notificação para se pronunciarem sobre os obstáculos à admissibilidade da revista, os réus sustentam ter-se tratado a interposição do recurso de revista de um lapso, pois apenas queriam apresentar um recurso para o Tribunal da Relação, noutro processo, que, por lapso, foi entregue, pela secretaria, no Supremo:

O requerimento tem o seguinte teor:

«AA e BB, réus nos autos supra identificados, tendo sido notificados de douto despacho de V. Exa. com a referência ...60, vem expor o seguinte:

1. O recurso foi intentado para o Tribunal da Relação de Lisboa e não para o

Supremo Tribunal de Justiça.

2. O mesmo foi ordenado pelo tribunal da 1ª instância: “Subam os autos ao

Tribunal da Relação de Lisboa.”

Pelo que, os recorrentes desconhecem e não são responsáveis pelo eventual lapso da secretaria na remessa do recurso para V. Exas».

Sobre o alegado lapso, não se deteta, conforme já afirmado pelo despacho singular, qualquer indício de que a interposição da revista se tenha tratado de um equívoco ou de um engano. Pelo contrário, o requerimento de interposição de recurso e as alegações de revista (referência n.º ...37) apresentam o número do presente processo e dirigem-se aos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, sendo evidente que não se trata de qualquer lapso.

A este requerimento sucedem-se outros em que os réus pedem o desentranhamento das alegações de revista (requerimento de 21-06-2023) e em que colocam ao Supremo questões que já tinham sido conhecidas pelo Tribunal da Relação (questões de facto e a ineptidão da petição inicial) e um pedido de retificação do acórdão recorrido extemporâneo (requerimentos de 07-06-2023 e de 20-06-2023), em relação ao qual já se tinha esgotado o poder jurisdicional da Relação, revelando condutas contraditórias e processualmente “desordenadas”, desprovidas de qualquer enquadramento jurídico- processual.

Estes requerimentos incidem em questões sobre as quais o Supremo não tem qualquer competência para se pronunciar, como a ineptidão da petição inicial, questão já decidida no recurso de apelação, e a baixa do processo à Relação para modificação da matéria de facto e retificação do acórdão recorrido. Ou seja, nos requerimentos subsequentes, os recorrentes, após tomarem conhecimento que o recurso de revista não ia ser admitido, apresentaram requerimentos manifestamente infundados, contraditórios, e extemporâneos, incidindo sobre questões que sabiam não poder ser discutidas, com um objetivo que não pode deixar de ser o de entorpecer a ação da justiça e de atrasar a baixa do processo.

A presente reclamação reforça esta constatação, pois os reclamantes, terminando a reclamação pelo pedido de procedência do recurso de revista, estão afinal a reconhecer que não se tratou de um lapso, mas de uma tentativa de entorpecer ou atrasar o decurso do processo. É a inevitável conclusão que se retira da circunstância de, por um lado afirmarem no primeiro requerimento que a interposição de recurso de revista era um lapso, e, por outro, pedirem agora a procedência do recurso de revista alegadamente “interposto por lapso” ou suscitarem, em requerimentos subsequentes, questões suscetíveis de integrar o objeto de um recurso de revista.

2.3. A participação, como parte ou mandatário, em processos judiciais, exige a lisura do comportamento processual. As partes têm o dever de não colocar questões, que sabem de antemão que não podem ser conhecidas ou que são extemporâneas. Têm o dever de não adulterarem os argumentos e de não escreverem de forma ininteligível e de não assumirem um comportamento processual contraditório e temerário. As teses jurídicas que defendem devem ser portadoras de um mínimo de razoabilidade e de coerência, e terem, pelo menos, um aparente ou formal fundamento, que possa ainda assim ser inserido no sistema e na tramitação processual regular. A introdução no processo de elementos patológicos e estranhos ao sistema sobrecarrega os tribunais com questões impertinentes, totalmente desprovidas de fundamento racional, servindo apenas para arrastar o processo e adiar a decisão final.

Os tribunais têm de reagir contra este tipo de postura, cobrando taxas sancionatórias ou condenando por litigância de má fé, quando as partes fazem do processo um uso patológico.

O DL n.º 320-A/95, de 12 de dezembro, passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária, quando o comportamento da parte viola regras de boa fé com culpa grave ou erro grosseiro.

Como se afirma no Preâmbulo do diploma, «Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagram-se expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos, e o dever de recíproca correcção entre o juiz e os diversos intervenientes ou sujeitos processuais, o qual implica, designadamente, como necessário reflexo desse respeito mutuamente devido, a regra da pontualidade no início dos actos e audiências realizados em juízo».

Desde então, a lei não exige o dolo, bastando-se com a negligência grosseira. Não se torna, pois, necessário a prova da consciência da ilicitude do comportamento do litigante e da intenção de conseguir um objetivo ilegítimo, bastando tão só que, à luz dos concretos factos apurados, seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela sua atuação.

O Código de Processo Civil, no artigo 542.º, passou a adotar o aforismo tradicional que equipara a culpa lata ao dolo com o intuito de atingir uma maior responsabilização das partes. A litigância temerária, nas palavras de Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Coimbra, 2019, p. 456), «(…) é mais do que a litigância imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve».

Não tem feito parte da nossa tradição judiciária combater a conduta processual desonesta das partes, o que explica que o número de condenações efetivas seja diminuto, embora com tendência a crescer após a entrada em vigor do CPC de 2013. Um inquérito a operadores judiciários (juízes, procuradores e advogados) demonstrou a escassa aplicação prática que tinha o instituto da litigância de má fé, que os tribunais consideravam reservado para as condutas processuais inequivocamente inadequadas, fazendo uma interpretação restritiva dos seus requisitos (cf. Regime Jurídico da Litigância de Má Fé. Estudo de Avaliação de Impacto, novembro de 2010, DGPJ, Direção-Geral da Política da Justiça, disponível in http://www.dgpj.mj.pt/sections/politica-legislativa/anexos).

O espírito do novo Código de Processo Civil de 2013, inspirado na ideia de celeridade e no princípio da cooperação, implica uma maior atenção da função judiciária à falta de lisura do comportamento processual das partes.

Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2022, «Tanto age de má-fé o sujeito processual que sabe que não tem razão quando pede como aquele que não devia ignorar que não tem razão. Está em causa o respeito devido aos Tribunais e às suas decisões transitadas em julgado, assim como à parte contrária» (processo n.º 1246/20.0T8STB.E1.S1). No mesmo sentido, no Acórdão de 12-11-2020 (processo n.º 279/17.9T8MNC-A.G1.S1), o Supremo Tribunal de Justiça afirma que «A condenação como litigante de má fé assenta num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito».

2.4. Em face do exposto, a alegação dos réus de que não tiveram qualquer intenção de atrasar a marcha do processo não assume relevância, pois sempre seriam responsabilizados por negligência grosseira e abuso das formas processuais para nelas colocar questões insuscetíveis de ser objeto dos instrumentos processuais utilizados. A necessidade de celeridade na justiça não se compadece com o tempo que este tipo de condutas – suscitação de questões manifestamente improcedentes e ininteligíveis – faz perder aos tribunais.

Está em causa o comportamento processualmente assumido pela parte nos requerimentos que se seguiram à interposição de um recurso de revista que sabia não reunir requisitos de admissibilidade.

Entendemos, pois, que, em face da lei, os réus-recorrentes, e agora reclamantes, deduziram pretensão cuja falta de fundamento não ignoravam (artigo 542.º, n.º 2, al. a), do CPC), alteraram a verdade dos factos (artigo 542.º, n.º 2, al. b), do CPC) e praticaram omissão grave do dever de cooperação (artigo 542.º, n.º 2, al. c), do CPC), tendo feito do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de entorpecer a ação da justiça e protelar, sem fundamento sério, a prossecução do processo ordenada pelo Tribunal da Relação, estando também preenchida a al. d) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC.

A condenação como litigante de má fé deve ser precedida de discussão contraditória, em obediência ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC. No caso vertente, o contraditório foi respeitado, nas alegações que precederam a decisão singular agora impugnada.

2.5. Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 542.º do CPC, confirma-se o despacho reclamado e condena-se os réus ao pagamento de uma multa de 6 UC’s, montante pouco acima do valor mínimo legal, que se considera adequado, nos termos do artigo 27.º, n.º 3 e do n.º 4, do Regulamento das Custas, tendo em conta, não só a perturbação provocada no processo, mas também a circunstância de litigar em causa própria e a situação económica do agente, tendo sido ponderado que litiga com apoio judiciário.

3. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Para justificar a condenação por litigância de má fé não é necessária a prova da consciência da ilicitude do comportamento do litigante e da intenção de conseguir um objetivo ilegítimo, bastando tão só que, à luz dos concretos factos apurados, seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela sua atuação.

II – Constitui má fé processual a apresentação de sucessivos requerimentos com pedidos que não se enquadram na tramitação processual regular, com o único objetivo de evitar o prosseguimento do processo ordenado pela Relação, que rejeitou a exceção de prescrição invocada pelos réus.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se, em Conferência, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, indeferir a reclamação.

Custas pelos reclamantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.

Lisboa, 31 de outubro de 2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)