Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3818
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: CODIGO COMERCIAL
ESCRITA COMERCIAL
ARTº 44º DO CÓDIGO COMERCIAL
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ200710180031187
Data do Acordão: 10/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA RÉU; CONCEDIDA PARCIALMENTE AU
Sumário :
1 - Se dois comerciantes se confrontam em juízo em factos do seu comércio a escrituração comercial de cada um deles pode ser exibida como prova por si próprio ou contra o outro, nos termos regulados no art.44º do CComercial.
2 - Mesmo aí, na controvérsia entre comerciantes em factos de seu comércio, os livros de escrituração comercial não fazem prova plena podendo até mesmo o próprio comerciante proprietário dos livros, arrumados produzir prova em contrário dos seus lançamentos.
3 – Quando não é dessa controvérsia que se trata, mas da responsabilidade extra-negocial de um banco que, ao fazer obras nas suas instalações, provoca danos no estabelecimento da sociedade comercial vizinha, por maioria de razão a escrita comercial é apenas mais um meio de prova a valorar em livre convicção probatória.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA, LDA veio, na forma ordinária de processo, deduzir contra
BB, S.A. a liquidação da indemnização dos prejuízos resultantes do encerramento do seu estabelecimento, desde 10 de Outubro de 1992 até à sua reabertura, indemnização em que foi condenado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Novembro de 1998, confirmado por acórdão do STJ de 2 de Junho de 1999, ambos transitados em julgado.
Na sua petição inicial quantificou essa indemnização no montante de 294 732,56 euros.
O BB contestou essa liquidação, oferecendo por si o valor de 32 032,27 euros como o ajustado, dizendo que em tudo o mais os danos quantificados são danos não da requerente mas de terceiros, seus sócios.

Foi proferido a fls.1084 e seguintes despacho saneador-sentença que fixou em 32 032,27 euros o montante indemnizatório, acrescido dos juros legais contados desde a notificação dessa decisão até integral pagamento mas, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto a fls.1150 e segs. foi revogado parcialmente o saneador-sentença e ordenado o prosseguimento dos autos, com elaboração da condensação, para apuramento da matéria de facto controvertida, quanto aos lucros cessantes.
Cumprida esta decisão e seguindo os autos, veio a ser efectuado o julgamento, com respostas nos termos do despacho de fls.1629, após o que foi proferida a sentença de fls.1637 a 1651 que fix|ou| em 32 032,27 euros o valor da indemnização a pagar pelo réu BB à autora AA, à qual acrescem os juros contados à taxa legal desde a notificação desta decisão e até efectivo pagamento.
Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação.
Por acórdão de fls.1708 a 1731, de 4 de Maio de 2006, o Tribunal da Relação do Porto decidiu julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, mantendo-se a sentença de 23 de Fevereiro de 2004 ( que fixou em 32 032,27 euros o valor da indemnização correspondente aos danos emergentes sofridos pela autora apelante, a que acrescem os juros aí fixados – parte daquela decisão sobre a qual nem incidiu recurso ), e fixar em 133 577,00 ( cento e trinta e três mil e setenta e sete euros ) o montante indemnizatório correspondente aos lucros cessantes sofridos pela autora AA, Lda em consequência do encerramento a que se viu forçada pelas obras da ré, que decorreu desde 10 de Outubro de 1992 a 29 de Julho de 2002, sobre este quantitativo incidindo juros legais desde a notificação desta decisão e até efectivo pagamento.
Inconformados ambos, o requerido BB, S.A. e a requerente AA, Lda pedem revista para este Supremo Tribunal.
Alegando a fls.1743, apresenta o BB as seguintes CONCLUSÕES:
1. As sociedades comerciais, enquanto “comerciantes” ( art.13º, nº2 do CComercial ), estão obrigadas a manter uma escrituração mercantil dos seus negócios que “ dê a conhecer fácil, clara e precisamente as suas operações comerciais e a sua fortuna" ( artigo 29° do Código Comercial ).
2. A escrituração mercantil do comerciante, designadamente as contas relativas a cada exercício, cuja obrigatoriedade decorre do disposto no artigo 65° do Código das Sociedades Comerciais, faz prova "em factos do seu comércio" (artigo 44° do Código Comercial).
3. Ainda nos termos do disposto no artigo 44°, nº1 do Código Comercial "os assentos lançados nos livros de comércio, ainda quando não regularmente arrumados, provam contra os comerciantes, cujos são".
4. O Acórdão agora em revista ao reconhecer com base na voz dos "amigos-testemunhas" dos sócios da sociedade Autora, AA, Lda., a existência de lucros e rendimentos da sociedade que a escrituração mercantil revela claramente nunca terem existido, viola o disposto nas disposições do artigo 44° do Código Comercial. Neste contexto "o erro na apreciação das provas e dos factos materiais da causa" é susceptível de alegação e de conhecimento em revista, atento o disposto no artigo 722º, nº2 do Código de Processo Civil.
5. Tendo a sociedade Autora registado nos anos de 1990 e de 1991 receitas que totalizam 42 178,51 e 40 414,21, respectivamente, e tendo suportado, nesses mesmos anos despesas totais de 41 277,05 e de 39 961,27 necessárias à produção daquelas receitas, apresentando um lucro final líquido de impostos de 1 460,36 em 1990 e de 288,46 em 1991, torna-se manifesto que ela não gerava rendimentos ou lucros que permitissem cobrir despesas pessoais dos sócios e de um seu familiar, da ordem dos 12 000 a 15 000 por ano.
6. Verificando-se ainda que nos anos de 2002 e de 2003 os resultados de exercício da sociedade Autora foram negativos, traduzindo prejuízos de 12 729,70 Euros e de 13 543,43 Euros, respectivamente, evidente se torna que a sociedade não produziu rendimentos e lucros que permitissem cobrir as despesas e encargos pessoais dos sócios e de um seu parente pelo que as "testemunhas-amigos" dos sócios da sociedade, em cujo depoimento o Acórdão em revista tanto se louva, estão declaradamente a faltar à verdade.
7. Uma sociedade que apresenta resultados negativos, que dá prejuízo, não gera rendimentos ou lucros para custear despesas pessoais dos sócios e familiares. Nesta matéria, "onde não há não se inventa".
8. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto agora em revista, ao partir das despesas e gastos pessoais dos sócios e seu familiar para determinar hipotéticos e irreais rendimentos ou lucros da sociedade Autora, contra a expressão dos elementos da sua contabilidade, desconsidera os princípios fundamentais da separação de patrimónios das sociedades comerciais, da tutela da confiança, da segurança das relações jurídicas e da credibilidade da personificação das sociedades mercantis.
9. Nas sociedades de responsabilidade limitada, como é o caso das sociedades por quotas, em que os sócios não respondem pessoalmente ( em princípio) pelas dívidas da sociedade, a tutela da confiança e da segurança jurídica impõe como imperativo o princípio da separação de patrimónios que obsta a que os bens ou património dos sócios se confundam com os bens ou património da sociedade e que impede os sócios de retirarem da sociedade, indiscriminada e livremente, os bens ou valores que não se comportem nos limites dos rendimentos e lucros distribuíveis (artigos 31° e 32° do Código das Sociedades Comerciais).
10. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto agora em revista viola as disposições dos artigos 29° e 44º do Código Comercial, 5º, 31º e 32° do Código das Sociedades Comerciais e é contrário aos seguintes princípios fundamentais e estruturantes das sociedades comerciais:
- Princípio da separação de patrimónios entre sócios e sociedade;
- Princípio da tutela da confiança e da segurança jurídica;
- Princípio da proibição de actos contrários à Lei, aos bons costumes e até à ordem pública, ao suportar-se em suposta situação de confusão e promiscuidade entre património da sociedade e património dos sócios.
Por sua vez, alegando a fls.1758, a também recorrente AA, Lda apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
A – Concorda com os fundamentos de facto e direito do acórdão recorrido.
B – De acordo com as respostas dadas aos quesitos 4º, 5º, 6º, 7º e 8º as despesas decorrentes da factualidade ali apurada ascendem ao montante mensal de 184 900$00, mas o acórdão determinou-as em 183 900$00, certamente por simples erro de cálculo ou lapso manifesto.
C – A actualização deste valor, sufragada no acórdão recorrido, com referência aos critérios de correcção monetária, deverá iniciar-se no ano da produção do sinistro conducente ao encerramento do estabelecimento da autora ( 10 de Outubro de 1992 ) e, daí em diante, sucessivamente até ao momento da reabertura do mesmo estabelecimento ( 29 de Julho de 2002 ).
D – Tudo e sempre de acordo com os índices de inflação publicados pelo INE, alguns dos quais ligeiramente superiores aos indicados no acórdão recorrido.
E – Assim equacionados, deverá fixar-se no montante global de 29 839 944$00 ( 148 841, 01 ) euros o montante indemnizatório correspondente aos lucros cessantes sofridos pela autora em consequência do encerramento a que se viu forçada pelas obras do banco réu.
F – Foi violado, por erro de aplicação, o que se dispõe no art.566º, nº2 do CCivil e no índice de preços no consumidor publicado pelo INE, respeitante aos anos de 1992, 1993, 1994, 1995, 1997, 1998 e 2002.
Contra - alegando no recurso do BB, a recorrida AAafirma estar o recurso do BB circunscrito a uma única questão, a de saber se o acórdão da Relação podia decidir « contra a expressão dos elementos da contabilidade » da autora. E acrescenta que essa questão fora já decidida no sentido positivo pelo primeiro acórdão da Relação ao revogar o despacho saneador-sentença e que por isso a 2ª sentença de 1ª instância viola o caso julgado formado com aquele 1º acórdão.
E termina dizendo que o recurso de revista versa apenas questões de direito, não podendo em princípio alterar a decisão de facto, sendo certo que o art.44º do CComercial não tem aplicação ao caso e mesmo que tivesse a escrituração comercial não tem força probatória plena.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
Os factos são que são: a sentença de 1ª instância fixou-os de determinado modo, o Tribunal da Relação importou-os para o acórdão recorrido e introduziu-lhes as alterações que, no uso dos poderes que lhe estão cometidos, maxime pela al. b ) do nº1 do art.712º do CPCivil, julgou adequadas.
E o facto às instâncias pertence, em exclusivo.
O Supremo Tribunal de Justiça – como se sabe e resulta do estipulado nos arts.26º da Lei nº3/99, de 13 de Janeiro ( LOFTJ ) e 722º e 729º, nº1 do CPCivil - como tribunal de revista que é, em regra só conhece da matéria de direito.
Em consequência está-lhe vedado, à partida, sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa por parte da Relação.
Só assim não acontecerá, podendo ser alterada pelo STJ a decisão quanto à matéria de facto
– mas exactamente por aqui passa, cremos, a fundamental questão a constituir objecto do recurso - se houver “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” – art.722º, nº2, 2ª parte.
Ora, o que o recorrente BB pretende é isto mesmo: que a escrituração mercantil do comerciante, que as contas relativas a cada exercício da AA, Lda ( « cuja obrigatoriedade decorre do disposto no art.65º do CSComerciais » ) fazem prova “em factos do seu comércio”.
Na verdade, o invocado art.44º do CComercial dispõe que os livros de escrituração comercial podem ser admitidos em juízo a fazer prova entre comerciantes, em factos do seu comércio ...
Isto diz o corpo do artigo.
Que depois distingue, nos seus vários números, entre livros não regularmente arrumados, regularmente arrumados para definir os ditames da prova de cada livro dentro de si mesmo e dos livros de cada comerciante no confronto com os livros do outro litigante.
Se dois comerciantes se confrontam em juízo em factos do seu comércio a escrituração comercial de cada um deles pode ser exibida como prova por si próprio ou contra o outro, nos termos regulados no art.44º do CComercial.
Mas mesmo aí, na controvérsia entre comerciantes em factos de seu comércio, fica claro da redacção dos vários números do artigo - e como anota Pinto Furtado, CComercial Anotado, vol. I, Almedina 1975, pág.107 - que « o legislador teve sempre o cuidado de ressalvar que a eficácia probatória dos assentos exarados em livros regularmente arrumados pode ser destruída por qualquer prova em contrário ... pod|endo| o próprio comerciante proprietário dos livros arrumados produzir prova em contrário dos seus lançamentos ». Ou seja, mesmo aí os livros de escrituração comercial não fazem prova plena
Ora, in casu, não se trata de uma controvérsia entre dois comerciantes ( que por hipótese registem nos seus livros, de modo diverso, a incidência contabilística dos seus negócios, arrumados ambos, desarrumados ambos, ou desarrumado um e arrumado outro ) em factos do seu comércio.
Trata-se de um banco - o BB - que ao proceder a obras de remodelação de um prédio para instalação de uma sua agência provoca danos numa leitaria - a AA.
Trata-se da responsabilidade extra-negocial de uma instituição bancária que provoca danos que conduziram ao encerramento de uma leitaria desde 10 de Outubro de 1992 a 29 de Junho de 2002.
Ora a verdade é que um negócio ( uma leitaria ) encerrado, ainda que um “boteco” – como do alto da sua sobranceria empresarial o BB qualifica, nas suas alegações de recurso, a AA – deixa de produzir receitas, deixa de gerar lucros, os lucros cessantes que o inicial acórdão da Relação do Porto determinou que se procurassem e que o acórdão ora recorrido veio a quantificar.
E não se trata do milagre da multiplicação dos pães das Escrituras Sagradas ( que o recorrente BB, no seu recurso, traz à colação ). Mas apenas de trazer à luz do dia aquilo que não consta das “escrituras” comerciais: que este “boteco” alimentava directamente os seus dois sócios e a filha deste.
A sociedade autora fez a prova que ( sempre ) lhe estava aberta ( apesar da “escritura” comercial ): esta era uma sociedade familiar que se alimentava directamente da sociedade e que não levava sequer à sua escrita os rendimentos com os quais se alimentava. A sociedade produzia mais lucros do que aqueles que a sua contabilidade traduzia. De algum modo poderá até dizer-se ( confrontados que estamos com a conclusão 6ª da alegação de recurso ) que o encerramento da Leitaria durante quase dez anos está a produzir danos para além da sua reabertura, apresentando agora resultados negativos quando antes do seu forçado fechamento, embora modesto, tinha saldo positivo.
Improcede o recurso do BB.
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E procede parcialmente o recurso da AA, Lda.
Porque o montante indemnizatório a que chegou o acórdão recorrido parte de um evidente e transparente erro de soma: 66 900$00 + 3 100$00 + 14 900$00 + 100 000$00 são 184 900$00 ( e não 183 900$00 ).
E então há que reformular as contas efectuadas a páginas 22 do acórdão recorrido, partindo deste valor de 184 900$00.
O que faz com que se atinja um valor global de 26 925 445$00, ou, na moeda actual, 134 303,55 euros.
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D E C I S Ã O
Na improcedência do recurso do réu BB, S.A. e na procedência parcial do recurso da autora AA, LDA,
revoga-se o acórdão recorrido apenas na parte em que estabelece o « montante indemnizatório correspondente aos lucros cessantes sofridos pela autora » que se fixa em 134 303,55 euros.
No mais mantém-se integralmente aquele acórdão.
Custas do recurso do réu BB, a seu cargo;
do recurso da autora AA ( com o valor fixado na diferença entre o montante indemnizatório antes fixado de 133 577,00 euros e o valor pretendido de 148 841,01 euros ), na proporção de 5% para o réu, 95% para a autora.

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Outubro de 2007

Pires da Rosa (Relator)

Custódio Montes
Mota Miranda