Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
136/12.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE HOSPITALAR
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
DEVER ACESSÓRIO
NEXO DE CAUSALIDADE
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO RÉU HOSPITAL; CONCEDIDA A REVISTA DO RÉU CC
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR / RESPONSABILIDADE DO DEVEDOR PELOS ACTOS DOS AUXILIARES ( RESPONSABILIDADE DO DEVEDOR PELOS ATOS DOS AUXILIARES ) / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO BIOMÉDICO - RESPONSABILIDADE MÉDICA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / PARTES / LEGITIMIDADE DAS PARTES - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, p. 763.
- Álvaro Gomes Rodrigues, “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, in Direito e Justiça, 2000, T.3, p. 209.
- André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, 2015, p. 684 e ss..
- Carlos Ferreira de Almeida, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in Direito e Saúde e da Bioética, 1996, p. 75 e ss..
- Carlos Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, 1982, p. 337 e ss..
- Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, 1994, pp. 44 e ss..
- Henriques Gaspar, “A responsabilidade civil do médico”, in C.J., 1978, T.I, p. 344 e ss..
- Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil delitual por facto de terceiro, 2009, p. 242 e ss., 688.
- Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Vol. II, 1984, p. 586 e ss; Tratado de Direito Civil, Vol. VI, 2012, p. 498 e ss..
- Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, p. 80.
- Sónia Fidalgo, Responsabilidade penal por negligência no exercício da medicina em equipa, 2008, p. 196 e ss..
- Vaz Serra, “Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos responsáveis legais ou dos substitutos”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 72, p. 270.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º1, 494.º, IN FINE, 496.º, N.ºS 1 E 4, 563.º, 762.º, N.º 2, 799.º, N.º1, 800.º, N.º1, 1154.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 26.º, N.º3, 30.º, N.º1, 566.º, Nº 3, 634.º, N.º 2, AL. C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 25/11/2010, PROC. N.º 896/06.2TBPVR.P1.S1, DE 15/11/2007, CIT., E DE 1/7/2010, CIT., TODOS EM WWW.DGSI.PT.
-DE 4/3/2008, PROC. N.º 183/08, WWW.DGSI.PT .
-DE 1/7/2010, PROC. N.º 623/09.2YFLSB, WWW.DGSI.PT .
-DE 6/4/2015, PROC. N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, E DE 28/10/2010, PROC. N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 16/2/2012, PROC. N.º 1043/03.8TBMCN.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 12/3/2015, PROC. N.º 1212/08.4TBBCL.G2.S1, DE 1/7/2012, PROC. N.º 398/1999.E1.S1, DE 30/6/2011, PROC. N.º 3252/05TVLSB.L1.S1, DE 15/12/2011, PROC. N.º 209/06.3TVPRT.S1.S1, DE 27/11/2007, PROC. N.º 3426/07, E DE 17/12/2002, PROC. N.º 4057/02, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 15/5/2013, PROC. 6297/06.5TVLSB.L1.S1, WWW.DGSI.PT; EM GERAL, VER, POR EXEMPLO, OS ACÓRDÃOS DE 1/7/2010, PROC. N.º 2164/06.OTVPRT.P1, DE 6/5/2010, PROC. N.º 11/2002.P1.S1, E DE 15/11/2007, PROC. N.º 07B2998, TODOS EM WWW.DGSI.PT.
-DE 7/5/2014, PROC. N.º 1070/11.TBVCT.G1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 7/5/2014, PROC. N.º 436/11.1TBRGR.L1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 1/10/2015, PROC. N.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, DE 2/6/2015, PROC. N.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, DE 11/6/2013, PROC. N.º 544/10.6TBSTS.P1.S1, DE 15/12/2011, PROC. N.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, DE 15/9/2011, PROC. N.º 674/2001.P1.S1, DE 17/12/2009, PROC. N.º 544/09.9YFLSB, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 1/10/2015, PROC. Nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 7/10//2010, PROC. N.º 370/04.1TBVGS.C1, WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Numa prestação de serviços médicos por hospital privado, com escolha de médico-cirurgião pela autora, existe um vínculo obrigacional tanto entre o hospital e a autora como entre o médico e a autora.

II. Ocorrendo, durante uma cirurgia ortopédica com anestesia por epidural, uma lesão medular de que resultou paralisia em membro inferior e outras sequelas, ocorre uma situação de cumprimento defeituoso das obrigações contratuais, e, simultaneamente, a violação de um direito absoluto, a integridade física da autora. Verifica-se concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, aplicando-se o regime daquela por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.

III. O juízo de causalidade é tanto um juízo de facto como de direito. Não cabe a este Supremo Tribunal sindicar o juízo de facto feito pela Relação, mas apenas pronunciar-se acerca do respeito pelo critério normativo da causalidade.

IV. Relativamente à responsabilidade civil do hospital, os pressupostos aferem-se a partir da conduta dos auxiliares de cumprimento, dependentes ou independentes, da obrigação de prestação de serviços médicos, que são todos os agentes envolvidos (cirurgião, anestesista, enfermeiros e outros). A conduta dos auxiliares imputa-se ao devedor hospital “como se tais actos tivessem sido praticados pelo próprio devedor” (art. 800º, nº 1, do CC).

V. Quanto à responsabilidade civil do médico-cirurgião, os pressupostos aferem-se pela sua conduta pessoal, assim como pela conduta daqueles que sejam auxiliares de cumprimento, dependentes ou independentes, da sua prestação, i.e. enfermeiros e outro pessoal auxiliar da equipa cirúrgica, por aplicação do art. 800º, nº 1, do CC.

VI. É do conhecimento geral que, do ponto de vista científico e técnico, o médico anestesista não está subordinado ao cirurgião. Contudo, não seria de excluir, em absoluto, a possibilidade de responsabilizar o cirurgião pela conduta da anestesista se se apurasse que esta última era, em concreto, uma auxiliar, ainda que independente, de cumprimento das obrigações de que aquele é devedor. Não tendo tal prova sido feita, o médico-cirurgião não é responsável pela conduta da anestesista.

VII. Provando-se que a violação da integridade física ocorreu durante e por causa da execução do contrato é de convocar a doutrina dos deveres acessórios de protecção que têm “uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato”.

VIII. Provada a ilicitude pelo desrespeito do dever de protecção da integridade física da autora, ocorrida durante a execução do contrato, deve aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual e, nos termos do art. 799º, nº 1, do CC, presume-se a culpa do devedor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA instaurou acção contra BB Hospital, S.A., e CC, pedindo que os réus fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe as quantias de €159.970,05 e de €443,05, a título de renda mensal vitalícia, desde 1 de Janeiro de 2012, anualmente actualizada, todos os gastos que a autora vier a efectuar por efeito da intervenção cirúrgica a que foi submetida no R. BB Hospital, e ainda as quantias despendidas, a partir de 1 de Janeiro de 2012, com os custos de ajuda de terceira pessoa, a liquidar ulteriormente.

Contestou o R. BB Hospital, por excepção, invocando ilegitimidade, e impugnando. Em reconvenção pediu a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de €5.883,72, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a citação, pelos cuidados de saúde prestados à autora. Contestou o R. CC, por impugnação. Requereu a intervenção acessória de DD.

Replicou a A., pronunciando-se pela improcedência da excepção de ilegitimidade passiva e impugnando a reconvenção.

Admitida a intervenção acessória, contestou também a Interveniente DD, por excepção, invocando a ilegitimidade para intervir, e impugnando. O R. CC respondeu à contestação da Interveniente.

Foi proferido despacho saneador de fls. 562, julgando improcedente a excepção de ilegitimidade passiva arguida pelo R. BB Hospital. A sentença, de fls. 881, condenou os RR., solidariamente, a pagar à A. a quantia de €94.752,82, e absolveu a A. do pedido reconvencional.

Os RR. recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, assim como a Interveniente. A Relação negou provimento aos recursos, confirmando a sentença recorrida, sem prejuízo da sua rectificação material, quanto à condenação na quantia de €95.022,82: €65.022,82 por danos patrimoniais e €30.000 por danos não patrimoniais.


2. Os RR. recorrem para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso do R. BB Hospital foi admitido como revista excepcional com fundamento no art. 672º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, e o recurso do R. CC foi também admitido como revista excepcional com fundamento no art. 672º, nº 1, alínea b), do CPC.

Nas alegações de recurso o R. BB Hospital, SA, apresenta as seguintes conclusões (excluem-se as conclusões respeitantes à revista excepcional):

“E - O Réu recorrente é uma unidade de saúde privada, e o médico co-réu é um seu prestador de serviços, sendo que a A. não alegou factos, nem os mesmos vieram a ser dados como provados, que possam preencher os requisitos da responsabilidade civil do aqui recorrente, pelo que deveria ter sido considerado, parte ilegítima na ação, em respeito pelos artigos 26.°, n.º 3, 493.°, n.º 2 e 494.° alínea e) do CPC, na redação aplicável, e também respeitando decisão com a qual está em contradição, proferida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.12.2011, processo n.? 209/06.3TVPRT.P1.S1;

F - O Douto Acórdão envereda por considerar que está em causa nos presentes autos responsabilidade contratual dos RR., por recair uma obrigação de resultado sobre o médico, exigindo dos RR. o ónus da prova do cumprimento defeituoso, da inexistência de culpa no ocorrido e que outro tratamento não alteraria as consequências, contrariando frontalmente o decidido por este STJ, Acórdão de 18-09-2007 - Revista n.? 2334/07 - 1.a Secção - Alves Velho (Relator), Moreira Camilo e Urbano Dias;

G - Também no tocante ao nexo de causalidade, o Acórdão recorrido contraria uma decisão anterior, proferida pelo STJ, Acórdão de 01.07.2010, processo n.º 398/1999.E1.S1;

H - Todos os Acórdãos-Fundamento cujas cópias se juntam, foram proferidos sobre as mesmas questões sub judice no Acórdão recorrido, e no domínio da mesma legislação aplicável, pelo que se encontra, igualmente, verificado o requisito e fundamento de revista excecional previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 672.° do CPC;

I - Pelo que deve o presente recurso de revista excecional ser admitido.

J - Entende o recorrente que o Douto Acórdão Recorrido, julgando o Réu ora recorrente parte legitima, violou as normas dos artigos 26.°, n.º 3, 493.°, n.º 2 e 494.° alínea e) do CPC, na redação anterior, impondo-se antes a absolvição do Réu da Instância;

K - Porquanto, apesar de reconhecer "a escassez de factos alegados por parte da Autora de forma a imputar responsabilidade" ao ora recorrente, vem a julga-lo parte legitima, quando, tratando-se de unidade privada de saúde, sendo o co-réu um prestador de serviços (sem relação comitente-comissário), que lhe requisitou serviços de bloco operatório e internamento, não lhe sendo imputado qualquer incumprimento nesta sua prestação, o Réu não faz parte da relação controvertida conforme alegada pela A.;

L - Termos em que, deve a decisão recorrida ser anulada e substituída por outra que julgando procedente a exceção de ilegitimidade invocada pelo Réu, o absolva da instância;

M - O Douto Acórdão recorrido faz igualmente uma errada interpretação e aplicação das normas substantivas aplicáveis à responsabilidade civil, no âmbito da prestação de serviços médicos, nomeadamente dos artigos 483.°, 487.°, 490.°, 799.° e 800.°, todos do CC;

N - O aresto em analise considera o Réu ora Recorrente como devedor da prestação do ato medico, vindo a condena-lo no pagamento da indemnização à Autora porque não ilidiu a presunção de culpa pelo cumprimento defeituoso da prestação, e que não demonstrou ter praticado todos os atas necessários e inerentes à intervenção cirúrgica na Apelada. Mais refere que não bastava ao Réu que a cirurgia decorrera sem intercorrências ou complicações;

O - Aderiu pois o Douto Acórdão recorrido à tese de que em qualquer prestação de atas médicos estamos perante uma obrigação de resultado, e no domínio da responsabilidade contratual que impõe uma presunção de culpa do Réu no cumprimento defeituoso da prestação, e que, em consequência, impende sobre o Réu, devedor da prestação, o ónus da prova quer do cumprimento defeituoso quer da respetiva culpa na sua ocorrência;

P - Conforme resulta da melhor doutrina e da jurisprudência firmada no douto acórdão fundamento, não estando em causa a prestação de um resultado, como não está no presente caso, incumbe à Autora a prova do cumprimento defeituoso, provando a desconformidade objetiva entre o ato praticado e a legis artis e só depois funcionando a presunção de culpa, que é única que presume e não o ato ilícito em si mesmo. Tem assim que ser provado pelo paciente que na intervenção foram omitidos atos ou que os meios utilizados foram deficientes ou errados e por tal ter acontecido se produziu o dano;

Q - A Autora não logrou provar o cumprimento defeituoso, não constando factos dados como provados que permitam tal conclusão, pelo que, e sem mais, não chegou a verificar-se a presunção de culpa e como tal nenhum ónus de prova pendeu sobre o Réu, não ficando provado um requisito do qual depende a efetivação da responsabilidade civil;

R - Termos em que, e caso não venha a ser julgada procedente a exceção de ilegitimidade, deve o douto acórdão ser anulado e substituído por outro, que fazendo uma correta interpretação das normas aplicáveis à responsabilidade civil, absolva o Réu dos pedidos formulados pela Autora.

S - O douto Acórdão recorrido, e sobre outro dos requisitos da responsabilidade civil - o nexo de causalidade - voltou a fazer uma incorreta aplicação, agora do artigo 563.° do CC;

T - O Acórdão em crise para além de considerar que a prova do nexo causal compete ao devedor da obrigação, aderiu o douto acórdão recorrido à formulação negativa da causalidade adequada, tomando-a corrente maioritária, de acordo com a qual só deixará de ser considerado causa adequada quando se mostre de todo indiferente para a verificação do dano ou este resulte apenas de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas;

U - Porém, quer o Acórdão fundamento quer a correta interpretação das normas do Código Civil imporiam antes que fosse considerado que cabe ao paciente a prova de que um certo tratamento ou intervenção foi omitido e conduziu ao dano, quando se outro ato médico tivesse sido praticado teria levado à cura ou evitado a doença ou o seu agravamento. É assim necessário estabelecer uma ligação positiva entre a lesão e o dano através da previsibilidade deste em face daquela;

V - Não tendo sido dados como provados quaisquer factos que permitissem o juízo de causalidade nesta formulação positiva, impunha-se decisão diversa da proferida.

X - Termos em que deve a decisão ser anulada, substituindo-se por outra que absolva o Réu do pedido pela não verificação de um critério obrigatório para a existência de responsabilidade civil;

Z - Nestes termos o Acórdão recorrido violou as normas dos artigos 26.°, n.º 3, 493.°, n.º 2 e 494.°, alínea e) do CPC na sua redação anterior, ao não julgar procedente a exceção de ilegitimidade, incorreu errada aplicação dos artigos 483.°, 487.°, 490.°, 799.° e 800.° do CC, uma vez que estes não eram aplicáveis e fez uma errada interpretação do artigo 563.° também do CC;

AA - Em consequência do acima alegado e concluído, e em qualquer das suas hipóteses subsidiarias deve ainda ser proferida decisão, qua anulando aquela que absolveu a A. do pedido reconvencional, a substitua por outra que condene a A. no pagamento das quantias devidas ao R., de acordo com as faturas juntas aos autos.


Nas alegações de recurso o R. CC formula as seguintes conclusões:

“I. No âmbito da responsabilidade médica por factos associados ou decorrentes de efeitos secundários ou intercorrências referentes à anestesia não podem ser imputados ao cirurgião, mas apenas ao médico anestesista, na medida em que se tratam de profissionais médicos especialistas, em posição de estrita paridade - não sendo por isso o cirurgião responsável perante o paciente por actos danosos realizados pelo médico anestesista.

II. A Autora celebrou um contrato com a Ré Hospital, Ré essa que actua em representação de todos os seus auxiliares e de todos os médicos, de qualquer especialidade, que actuam no âmbito do Hospital.

III. Se se pretende atribuir a alguém a responsabilidade pela "escolha" da Interveniente como anestesista apta a intervir nesta cirurgia, então essa responsabilidade por via de actos dos seus comissários ou auxiliares cabe apenas à Ré BB Hospital.

IV. A prestação de serviços médicos, nomeadamente de cirurgia, consubstancia obrigação de meios, e não de resultado, não se verificando o incumprimento ou o cumprimento defeituoso apenas pela verificação de que o paciente não melhorou com a cirurgia ou mesmo de que ficou pior ou passou a apresentar outras patologias.

V. A formulação negativa do nexo de causalidade, segundo a qual um facto, sendo condição típica de um dano, só deixará de ser considerado causa adequada desse dano, quando se mostre de todo indiferente para a sua verificação não dispensa a alegação e prova de que o facto é condição típica desse dano;

VI. Sendo certo que nos presentes autos não foi feita qualquer prova minimamente credível e científica que sequer indicie que a realização de uma anestesia por via epidural é condição típica para a ocorrência de uma paralisia permanente dos membros inferiores.

VII. Subsiste assim no âmbito da responsabilidade médica, a necessidade e o ónus de o demandante alegar e fazer prova dos factos que constituem pressuposto da responsabilidade civil do demandado.

VIII. Não se pode pois afirmar como provado, nem presumi-lo, o nexo causal entre os actos anestésicos e cirúrgicos e os danos descritos.

IX. Existiu nulidade da sentença da 1.a instância, sendo errado a sua não declaração por parte do acórdão recorrido, por contradição entre a fundamentação e a decisão, no que diz respeito ao Recorrente

X. De facto, a sentença em sede de 1.a instância de todo exclui a responsabilidade do Recorrente por via do art.º 800.° do Código Civil.

XI. Porém e em manifesta contradição com aquela fundamentação, a sentença afirma que tal não exclui que o médico ora 2.º R responda, perante a A.) pelos danos decorrentes da actuação do médico anestesista. De facto, tendo sido ele (o ora 2.º R) quem tomou a iniciativa de incluir a médica anestesista na equipa médica ou cirúrgica que se ocupou da realização da cirurgia a que foi submetida a Autora, sempre lhe poderão ser imputados os danos provocados por aquele membro da sua equipa. "

XII. Assim, existe contradição na fundamentação da sentença, com consequente nulidade da mesma quanto à condenação do Recorrente

XIII. Ainda que, por alguma via se chegasse à co-responsabilização do Recorrente pelos actos praticados pela Interveniente DD, seria necessário que a própria Interveniente estivesse obrigada a indemnizar, como estabelecem, quer o art.° 500.°, n.º 1, quer o art.º 800.° do Código Civil; ou seja, em qualquer uma destas soluções, é necessário que se construa, previamente à imputação da responsabilidade, neste caso objectiva, ao Recorrente, a responsabilidade da Interveniente - o que o Acórdão recorrido não faz.

XIV. Sucede que, como se expôs já, mostra-se provada a realização quer da cirurgia, quer da anestesia, sem qualquer desconformidade com as boas práticas médicas.

XV. Não pode tão-pouco ser imputada ao Recorrente qualquer culpa pelas sequelas de que padece a Autora, com base numa presunção que emerge da sua mera verificação, de que o Recorrente não assegurou a observação médica da Autora na fase subsequente da cirurgia, uma vez que tais sequelas são do for neurológico, estranho à especialidade do Recorrente e a sua observação médica em nada teria evitado as ditas sequelas.

XVI. Ainda que se viesse a julgar o Recorrente responsável, nunca a sentença o poderia condenar a indemnizar a Autora pelo valor que se lhe impõe. De facto,

XVII. Só a Ré Hospital poderia ser condenada a pagar à Autora a quantia recebida por ela a título de caução.

XVIII. No que tange ao valor por perda de capacidade de ganho, supra, afigura-se que a sentença parte do pressuposto meramente especulativo de que a Autora preservaria a sua capacidade de ganho intacta até à idade da reforma.

XIX. O que quanto muito o circunstancialismo descrito nos autos originou foi a perda de uma chance ao ganho em questão.

XX. Assim sendo, a reparação da perda de uma chance deve ser medida, em relação à chance perdida, e não pode ser igual à vantagem que se procurava.

XXI. Consequentemente, a indemnização não pode ser nem superior nem igual à quantia que seria atribuída ao lesado caso se verificasse o nexo causal entre o facto e o dano final, devendo, assim, corresponder ao valor da chance perdida.

XXII. Afigura-se que o valor compensatório adequado, caso existisse prova que justificasse a responsabilização de algum dos Réus, o que não se concede, dadas as circunstâncias concretas, não poderia ser superior a € 10.000,00.

XXIII. O Acórdão recorrido contradiz assim o disposto nos art.º 342.°, 358.°, 483.° a 510.°, 800.°, todos do Código Civil, bem como o artº 2.° da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto e os art. 34.° e 36.° do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de Janeiro, que aprova do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e encontra-se em oposição directa com diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação de Lisboa.

XXIV. Deve, assim, ser julgado procedente o presente recurso, absolvendo-se o Recorrente do pedido ou, assim não se entendendo, reduzindo-se o valor da condenação que sobre ele impende.”


A A. contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

A. “Para além da manutenção da decisão recorrida, é inequívoca a existência de coincidência entre a fundamentação empregue pelo Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal da Relação de Lisboa para o mesmo efeito.

B. Existe dupla conforme entre as duas pronúncias judiciais, que, nos termos do art. 671.°, n.º 3, do Código de Processo Civil, impede liminarmente a apreciação do recurso interposto pelo Recorrente CC, sendo essa a lição da jurisprudência, nomeadamente, do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10.02.2015 (Relator: ABRANTES GERALDES), do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 08.01.2015 (Relator: JOÃO TRINDADE), do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2014 (Relator: ABRANTES GERALDES), do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2014 (Relator: ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES), do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2014 (Relator: ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES), e, na doutrina, por todos, de ABRANTES GERALDES.

C. Não se verifica qualquer dos fundamentos de revista excepcional consagrados no art. 672.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, a qual, como o próprio nome indica, é, relevando-se o pleonasmo, excepcional.

D. O disposto no art. 672.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, pressupõe, consoante ensina, uma vez mais, ABRANTES GERALDES, e contrariamente à actividade processual desenvolvida pelos Recorrentes, a existência de um (e não de vários) acórdão-fundamento, bem com a identificação da mesma questão fundamental de direito (e não de Várias), sendo certo, ainda, que os acórdãos identificados pelos Recorrentes não versam, mesmo remotamente, a situação jurídica objecto de recurso de revista.

E. Deverá ainda verificar-se (i) oposição frontal e não apenas implícita ou pressuposta entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, bem como (ii) essencialidade da questão de Direito sobre a qual existe controvérsia para determinar o resultado num e noutra das decisões, o que, uma vez mais, não é o caso dos autos.

F. Aliás, o acórdão proferido pela Relação de Lisboa objecto de Recurso de Revista segue, no essencial, a orientação de anterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.11.2007 (Relator: RUI MAURICIO), sendo assim ficcional a contradição de julgados.

G. Por outra via, não existe no caso dos autos, consoante ensinam ABRANTES GERALDES, TEIXEIRA DE SOUSA e RIBEIRO MENDES, e resulta dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.05.2012, de 10.07.2012, de 05.07.2012 e de 05.06.2012 enumerados pelo primeiro, qualquer "questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".

H. Por fim, são ilusórios os "interesses de particular relevância social invocados pelos Recorrentes, não bastando, na lição de ABRANTES GERALDES, "o mero valor económico dos interesses presentes no processo"; in casu apenas se vislumbra uma tentativa de satisfação dos interesses egoísticos dos Recorrentes, nada mais.

I. Em suma, não se verificam os pressupostos legais, nem (i) para a admissão de Recursos de Revista Ordinários, atenta a existência de dupla conforme com fundamentação coincidente, nem (ii) para a admissão de Recursos de Revista Excepcional, por não preenchimento de qualquer um dos fundamentos de que esta Revista depende.

J. A Recorrida pronuncia-se sobre os putativos fundamentos dos Recursos apresentados enquanto simples exercício de raciocínio e por motivo de patrocínio, maxime a respeito (i) da consideração de uma obrigação de resultado e não de meios a que supostamente se encontraria obrigado o Recorrente CC; (ii) da suposta ilegitimidade da Recorrente BB HOSPITAL, SA; (iii) da confusão - aparentemente intencional - existente entre prova do cumprimento defeituoso e prova da culpa dos actos dos Recorrentes; e (iv) do estabelecimento do nexo de causalidade entre os ilícitos cometidos pelos Recorrentes e os danos suportados pela Recorrida.

K. Nenhumas das Instâncias, e, desde logo, o Tribunal da Relação de Lisboa, no douto acórdão por si proferido, considerou, quer a obrigação do Recorrente CC enquanto médico-cirurgião, quer a obrigação da Recorrente BB HOSPITAL, SA enquanto centro hospitalar, enquanto obrigação de resultado.

L. Tal argumentação parte aliás de uma falácia: é que, consoante salientam GOMES DA SILVA, MENEZES CORDEIRO E MENEZES LEITÃO, não existe sequer base no nosso Direito para o estabelecimento de uma distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultado, sendo análogo o ensinamento de ROMANO MARTINEZ e de CALVÃO DA SILVA.

M. No que respeito à (i)legitimidade da Recorrente BB HOSPITAL, SA é fantasioso pretender, que a Recorrida não alega "qualquer incumprimento contratual, bem como que não existe qualquer contrato: é inequívoca a existência de uma relação contratual entre o Recorrente BB HOSPITAL e a Recorrida, bem como que a mesma é uma prestação de serviços médicos, sujeita à regra da liberdade de forma. Por essa razão foi deduzido - e mantido nas alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça - um pedido reconvencional formulado contra a Recorrida por esta Recorrente, que manifestamente litiga no limite da má-fé processual.

N.  Segundo o enquadramento realizado por ambas as instâncias, apenas a culpa - e não o incumprimento ou o cumprimento defeituoso - é legalmente presumida, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 799.° do Código Civil, sendo esta também a orientação da doutrina, bem como do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2007 (Relator: RUI MAURíCIO) e do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2009 (Relator: RODRIGUES DOS SANTOS).

O. A responsabilidade do Recorrente cirurgião. e. necessariamente. da Recorrente centro hospitalar, em situações jurídicas como a dos presentes autos ex vi o disposto no art. 800.°, n.º 1, do Código Civil, ou, no limite, através do disposto no art. 490.° da mesma codificação, é objecto de expresso acolhimento doutrinal, nomeadamente por JOÃO ÁLVARO DIAS e CARNEIRO DA FRADA, havendo ainda que ponderar as circunstâncias do caso concreto, em que o Anestesista foi escolhido pelo cirurgião, e em que a Paciente foi completamente alheia aos métodos empregues no mesmo âmbito, desde logo não lhe sendo prestada a informação que lhe era devida para uma decisão informada por sua parte.

P. A teoria da causalidade adequada foi a sufragada, em sede de determinação do nexo de causalidade, quer pelo Tribunal de 1.a Instância, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sendo a que resulta liminarmente do disposto no art. 563.° do Código Civil, consoante ensinamento da doutrina (cfr., nomeadamente, ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, MENEZES LEITÃO ou ROMANO MARTINEZ), e ainda da jurisprudência [cfr., por todos, os recentes ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2010 (Relator: ÁLVARO RODRIGUES), e o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2010 (Relator: MÁRIO REIS)].

Q. Para além da clarividente inadmissibilidade legal de qualquer um dos recursos de revista, falecem, assim, todos os argumentos jurídicos avançados no mesmo âmbito, havendo o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa realizado uma idónea aplicação do Direito aos factos dados como provados, não merecendo qualquer censura.”


Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte:

1. A A. nasceu no dia 14 de maio de 1957.

2. A A., antes da cirurgia, tinha autonomia nos gestos e actos da sua vida corrente, que iam desde a alimentação e cuidados de saúde e beleza e de locomoção, mas esta já com limitações, mas sem necessidade de recurso à ajuda de terceiras pessoas (resposta ao quesito 24.º da base instrutória).

3. A A., à data da cirurgia, era portadora de uma condição de paralisia cerebral, que afectava em parte a sua capacidade de coordenação motora.

4. A A., já antes da intervenção cirúrgica padecia, por vezes, de um quadro depressivo (resposta ao quesito 64.º da base instrutória).

5. A A., antes da intervenção, apresentava uma fractura mal consolidada do pé direito, que lhe causava dores e desconforto, quando se mantinha em pé durante períodos mais longos.

6. A intervenção cirúrgica foi sugerida pelo R. CC e o mesmo fez a A. assegurar que, após a intervenção, seria transferida para um local onde fosse acompanhada na recuperação do pós- operatório, nada tendo oposto à indicação da Clínica EE, tendo em vista a recuperação fisioterápica da A.

7. A cirurgia realizada à A. foi marcada nas instalações do BB (resposta ao quesito 56.º da base instrutória).

8. A A. informou o R. de que não pretendia a intervenção cirúrgica fosse efectuada com anestesia geral, opção anestésica que a apavorava.

9. O R. contactou com a Interveniente, médica anestesista que presta serviço regular junto do BB, a qual é experiente, nomeadamente em cirurgias ortopédicas, para a mesma realizar a anestesia à A., informando ainda a mesma do seu quadro clínico e da pré-existência da paralisia cerebral, bem como da escolha pela A. da anestesia dita epidural (resposta ao quesito 70.º da base instrutória).

10. A A. foi admitida nas instalações do BB para a realização da intervenção cirúrgica no dia 23 de Janeiro de 2009 (resposta ao quesito 58.0 da base instrutória).

11. A A., antes da cirurgia, não teve qualquer consulta pré-anestésica, sendo a anestesista contactada pelo R. dado que, nessa data, a mesma prestava habitualmente serviços no BB (resposta ao quesito 13.º da base instrutória).

12. Momentos antes da cirurgia, a A. foi submetida a um questionário médico em ambiente hospitalar pela Interveniente.

13. A Interveniente identificou à A. a existência de paralisia cerebral, com consequentes deformações múltiplas nos membros inferiores e hipertensão arterial não medicada (por causa terapêutica), bem como a medicação crónica com morfex 15 mg (cujo princípio activo é o fluorazepan, agente psicotrópico indicado como ansiolítico) (resposta ao quesito 72.º da base instrutória).

14. Da observação da Interveniente não resultaram quaisquer alterações relevantes para a anestesia, tendo as análises realizadas, o eletrocardiograma e o RX torácico apresentado resultados normais (resposta ao quesito 74.º da base instrutória).

15. A A. foi submetida a uma intervenção cirúrgica no dia 23 de janeiro de 2009 no BB Hospital.

16. A cirurgia foi efectuada pelo R. CC, ortopedista, a qual consistiu no alongamento do tendão de aquiles a céu aberto, osteotomia do primeiro metatarso e alongamento tendinoso.

17. A intervenção cirúrgica foi realizada pelo R., sob anestesia loco regional, administrada pela Interveniente.

18. A cirurgia e a anestesia decorreram sem intercorrências, tendo a A. apresentado apenas dois episódios de ligeira hipotensão para valores de 100mmHg de tensão sistólica e 40mmHg de tensão diastólica, que foram normalizados de imediato por administração de 10 mg de efedrina endovenosa.

19. No dia 23 de Janeiro de 2009, pelas 10 horas, a Interveniente iniciou o processo de anestesia sequencial no espaço L2-L3, com administração intra-raquidiana, de 12,5 mg de bupivacaína pesada e de 0,005 de sufentaneste, tendo sido colocado cateter epidural de mais ou menos 3 cm.

20. E a anestesia decorreu sem complicações ou dificuldades e a doente foi posicionada em decúbito dorsal e a perna direita foi então elevada pelo R. e pela sua equipa, tendo sido realizadas compressões destinadas ao esvaziamento vascular do membro.

21. Tendo, de seguida, sido colocado o garrote no membro inferior direito, ao nível da raiz da coxa, junto à virilha, com 350 mmhg.

22. A A. foi depois colocada em posição de decúbito lateral esquerdo, para a execução da primeira parte da cirurgia e foi colocado cateter nasal para administração de oxigénio, mas a A. recusou a sedação, pedindo somente que lhe fosse permitido manter os auriculares que levava e ouvir música.

23. De seguida, foi feita a desinfecção do membro inferior direito, e o R. procedeu então a uma incisão na face posterior do tornozelo direito, ao nível do tendão de Aquiles.

24. Procedeu então o R. ao corte e posterior sutura do tendão de Aquiles do membro direito, com o objectivo de conseguir o seu alongamento, e, concluída essa intervenção, a incisão foi fechada e suturada.

25. A A. foi colocada novamente em posição de decúbito dorsal e o R. passou, de seguida, a realizar uma incisão, de cerca de 4 ou 5 cm, na face anterior interna do pé direito, tendo procedido à osteotomia distal do primeiro metatarso, isto é, ao corte do osso metatársico e à sua estabilização, com fios metálicos de Kirschner interno e externo ao segundo espaço.

26. Bem como à capsulotomia da primeira metatarsofalangica direita, seguida do alongamento do extensor do hallux e do adutor do hallux, mediante a secção dos tendões e posterior sutura.

27. E procedeu o R. depois ao fecho da incisão e à sua sutura, tendo o membro inferior direito sido imobilizado, por gesso cruropodálico, desde o pé até à parte mais alta da coxa.

28. Cerca das 12.30 horas, a A. saiu da sala operatória com DIB (infusor elastométrico de 24 horas, preenchido com bupivacaína 100 mg, sufetanil 0,005 e 41 cc de soro fisiológico) e encontrava-se hemodinamicamente estável e com bloqueio motor e sensitivo, entrando no recobro.

29. A A., depois da alta do recobro, ficou a padecer da falta de sensibilidade na perna esquerda (resposta ao quesito 86.º da base instrutória).

30. No dia 24 de Janeiro, a A. manifestou queixas álgicas na região lombosagrada e dor apalpação das apófises espinhosas lombares e da região glútea direita, tendo-lhe sido prescritos analgésicos pelo médico residente do BB.

31. Nos registos de enfermagem refere-se que a doente urinou espontaneamente em todos os turnos até à tarde do dia 28 de Janeiro de 2009, referindo-se ainda que o DIB – dispositivo de aplicação anestésico – foi retirado durante o dia 25 de Janeiro de 2009.

32. A A. continuou internada, após a intervenção cirúrgica, no BB, até 3 de Fevereiro de 2009, tendo nessa data dado entrada na Clínica EE, em Lisboa.

33. No dia 23 de Fevereiro de 2009, a A. foi transferida da Clínica EE para o Hospital FF (serviço de nefrologia), com grave infecção do “trato urinário” e insuficiência renal, tendo aí permanecido até 8 de Março de 2009.

34. Aquando da alta do Hospital FF, a A. manifestou ao R. que não desejava regressar à Clínica EE, pelo que o R. solicitou à administração do R. BB a readmissão da A. (resposta ao quesito 90.º da base instrutória).

35. A A. regressou, em 8 de Março de 2009, ao BB, onde permaneceu até 23 de Junho de 2009, a fim de ser sujeita a cuidados continuados de reabilitação (resposta ao quesito 4.º-A da base instrutória).

36. No relatório elaborado, no dia 23 de Junho de 2009, junto a fls. 24 e 25, o R. CC fez constar, além do mais, que “no pós operatório entre as 24 e as 48 horas detectou-se um quadro de parésia do membro inferior esquerdo e défice sensitivo do mesmo”, e que “foram excluídas outras causas, pensando que se tratou de uma reacção excessiva da anestesias e/ou DIB epidural”.

37. A 23 de Junho de 2009, a A. foi transferida para o Centro de Medicina e Reabilitação Alcoitão.

38. Os motivos do internamento da A. em Alcoitão relacionavam-se com redução motora e funcional, reeducação de esfíncteres e estudos e ajudas técnicas, decorrente de sequelas de lesão medular iatrogénica pós cirurgia ortopédica, com um diagnóstico de sequela de lesão iatrogénica e paralisia cerebral.

39. A A. permaneceu em Alcoitão até 9 de Novembro de 2009.

40. No dia 9 de Novembro de 2009, a A. regressou a casa, mantendo o esvaziamento vesical diário, o programa de reabilitação e apoio domiciliário para higiene pessoal.

41. A A. teve alta com as seguintes indicações: manter treino vesical com um esvaziamento diário no período nocturno, com sonda nelaton n.º 12; apoio domiciliário para o banho e manter programa de reabilitação em ambulatório, por períodos.

42. A A. perdeu a capacidade motora após a regularização cirúrgica, perdendo a capacidade para subir/descer escadas, que conseguia realizar anteriormente (resposta ao quesito 9.º da base instrutória).

43. A A., após a intervenção cirúrgica, apresentou um deteriorar de função motora, com parésia do membro inferior esquerdo (resposta ao quesito 11.º da base instrutória).

44. A A. exercia a profissão de professora de música e a paralisia motora de que sofre decorrente da cirurgia, embora lhe permita alguma autonomia doméstica com ortótese, impede a continuidade das suas funções docentes, de modo regular, no Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).

45. A A., após a cirurgia, passou a necessitar de ajuda de terceira pessoa para os actos normais da vida corrente.

46. A situação clínica da A., após a cirurgia, teve ainda como consequência infecções urinárias de repetição (resposta ao quesito 16.º da base instrutória).

47. Da cirurgia resultou para a A. uma lesão medular após anestesia epidural e a intervenção determinou para a A. um período de incapacidade genérica e profissional temporária absoluta de 23 de Janeiro de 2009 a 9 de Novembro de 2009 (resposta aos quesitos 17.º e 18.º da base instrutória).

48. Na sequência da intervenção cirúrgica, a A. é portadora de sequelas anátomafuncionais que lhe conferem uma incapacidade geral parcial e permanente de 50 %, sendo esta incompatível com o exercício da sua profissão de professora de música e, actualmente, a A. é portadora de uma incapacidade permanente de 85 %, sendo portadora, à data da cirurgia, de uma IPP de 70 % (resposta ao quesito 19.º da base instrutória).

49. A A. apenas se pode deslocar na via pública com o auxílio de cadeira de rodas.

50. A A. auferia mensalmente no exercício das funções de professora de música, a quantia de € 900,27 (resposta ao quesito 23.º da base instrutória).

51. A A., após a intervenção cirúrgica, vive na dependência de terceiras pessoas, com uma empregada ou vigilante doméstica a tempo inteiro (resposta ao quesito 25.º da base instrutória).

52. E a A. tem dificuldade para se sentar ou levantar da cadeira de rodas e para preparar as refeições e tratar dos cuidados de higiene pessoal (lavar-se e vestir-se).

53. A A. teve que adquirir, a expensas suas, a cadeira de rodas mecânica, onde se desloca, no valor € 540,75 (resposta ao quesito 28.º da base instrutória).

54. A A. teve ainda de adquirir uma plataforma elevatória, que foi instalada na entrada do prédio onde reside, a que correspondeu um gasto de € 7 524,94 (rectificação da resposta ao quesito 29.º da base instrutória).

55. Teve ainda de adquirir um aparelho longo para membros inferiores, a que corresponde a quantia de € 536,61 (resposta ao quesito 30.º da base instrutória).

56. A partir de 10 de Dezembro de 2011, a A. passou a auferir o montante mensal, a título de pensão da Caixa Geral de Aposentações, de € 546,89 (resposta ao quesito 47.º da base instrutória).

57. A A. perdeu toda a sua autonomia e independência, encontrando-se, presentemente, confinada normalmente à sua própria casa, uma vez que não tem meios para abandonar, por si só, o seu domicílio (resposta ao quesito 48.º da base instrutória).

58. A A. necessita da intervenção do corpo de Bombeiros Voluntários de … ou de terceiros para se poder deslocar ao exterior (resposta ao quesito 49.º da base instrutória).

59. A A. perdeu também a capacidade para realizar as suas funções fisiológicas, sendo obrigada a usar pensos e fraldas (resposta ao quesito 50.º da base instrutória).

60. A A. deixou de poder realizar as mais básicas actividades de higiene, lida da casa e deslocar-se ao exterior para comprar bens alimentícios, vestuário ou passear.

61. A A., decorrente da situação, deixou de poder desfrutar actividades, tais como estar com a sua família, amigos, jantar fora e frequentar o cinema, o teatro e eventos musicais e de canto, nos quais era frequentemente intérprete (em Portugal e no estrangeiro), os quais lhe propiciavam uma profunda realização pessoal (resposta ao quesito 52.º da base instrutória).

62. E tal também impede a A. de se sentir socialmente útil, independente e realizada com o trabalho que vinha desempenhando, há mais de vinte anos, com crianças com paralisia cerebral (resposta ao quesito 53.º da base instrutória).

63. A A. apresenta um quadro psicológico depressivo, também resultante do quadro clínico decorrente da intervenção cirúrgica, o que causa uma profunda tristeza e depressão (resposta aos quesitos 54.º e 55.º da base instrutória).

64. O R. BB é um estabelecimento de saúde privado cujo objecto social consiste na prestação de cuidados de saúde e no âmbito do referido internamento foram prestados à A. os cuidados de saúde, administrados os medicamentos e realizados os exames complementares de diagnóstico e terapêutica melhor discriminados nas facturas n.º s …92, de 25.06.2009, e …54, de 28.07.2009, que totalizam o valor de € 7 883,72.

65. O valor referido no ponto anterior é relativo ao período de internamento da A. no BB de 08.03.2009 a 23.06.2009.

66. A A., para o internamento, prestou caução no valor de € 2 000,00.

67. A A. foi interpelada para pagamento das referidas facturas mediante ofícios de 14.7.2009 e 7.10.2009.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa neste recurso as seguintes questões:

- Nulidade da sentença de primeira instância por contradição entre a fundamentação e a decisão;

- Legitimidade do R. BB Hospital;

- Fundamento da responsabilidade civil dos RR. e seu regime;

- Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil;

- Fixação da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.


5. Quanto à questão da nulidade da sentença de 1ª instância por contradição entre a fundamentação e a decisão, alega o R. CC que “a sentença em sede de 1.a instância de todo exclui a responsabilidade do Recorrente por via do art.º 800.° do Código Civil. Porém e em manifesta contradição com aquela fundamentação, a sentença afirma que tal não exclui que o médico ora 2.º R responda, perante a A. pelos danos decorrentes da actuação do médico anestesista. De facto, tendo sido ele (o ora 2.º R) quem tomou a iniciativa de incluir a médica anestesista na equipa médica ou cirúrgica que se ocupou da realização da cirurgia a que foi submetida a Autora, sempre lhe poderão ser imputados os danos provocados por aquele membro da sua equipa. "

      Entende-se que, a existir, tal contradição não releva, porque não teve qualquer reflexo no acórdão recorrido. Na verdade, a Relação afirma a responsabilidade do cirurgião tanto pela sua própria conduta, como – com fundamento no art. 800º, nº 1, do Código Civil, que considera aplicável ao caso dos autos – pela conduta das pessoas que o auxiliam, nelas se incluindo a médica anestesista: “Por isso, ambos os Apelantes atuaram também com culpa, nomeadamente sob a forma de negligência, sendo certo ainda que são também responsáveis perante a Apelada pelos atos das pessoas utilizadas no cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor, como decorre do disposto no art. 800.°, n." 1, do CC”.


6. Quanto à questão da eventual ilegitimidade do R. BB Hospital, há que ter presente que o nº 1, do art. 30º, do CPC dispõe que “o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”. A averiguação da legitimidade não se confunde – como faz o R. BB Hospital – com a discussão das razões de mérito ou demérito da pretensão da A. Necessário é que as partes tenham um interesse directo, positivo ou negativo, na procedência da acção. Esta concepção de legitimidade, atribuída a Barbosa de Magalhães, e aceite pacificamente no direito português, encontra tradução na afirmação de que a legitimidade se afere pela titularidade da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor na petição inicial. Concepção que se encontra consagrada no nº 3 do art. 26º, do CPC: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.


7. O tratamento das questões substantivas exige uma atenção mais aprofundada. Antes de mais, há que clarificar o fundamento da eventual responsabilidade civil dos RR., o que exige que se apure qual a natureza das relações jurídicas estabelecidas: (i) entre a A. e o R. BB Hospital; (ii) entre a A. e o R. CC; (iii) entre o réu BB Hospital e a Interveniente.

Para a compreensão da natureza das relações jurídicas entre a A., por um lado e, os RR., por outro lado, há que ter em conta a tipologia, que a doutrina mais recente propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados (ver André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, 2015, págs. 684 e segs., desenvolvendo a proposta de Carlos Ferreira de Almeida, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in Direito e Saúde e da Bioética, 1996, págs. 75 e segs.), tipologia que aqui se indica: (i) contrato total, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)”; (ii) contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”; (iii) contrato dividido, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).

Os factos provados permitem afirmar que estamos perante um caso de “contrato total com escolha de médico (com contrato de médico adicional)”. Com efeito, a A. escolheu pessoalmente o R. CC como seu médico, foi por ele acompanhada por período de tempo indeterminado, e, seguindo a sua orientação, decidiu submeter-se a uma cirurgia no BB Hospital. Deste modo, a relação entre o R. BB Hospital e a A. tem a natureza de contrato de prestação de serviços médicos globais (enquadrando-se na noção do art. 1154º, do Código Civil), sem prejuízo de a relação entre o R. CC e a A. corresponder também a um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos (segundo o previsto no art. 1154º, do CC). Ambas as relações (hospital/paciente) e médico-cirurgião/paciente) configuram relações de natureza contratual, tendo como objecto uma cirurgia ortopédica ao pé direito da A. de forma a corrigir “uma fractura mal consolidada” e a evitar as dores e desconforto daí resultantes.

Não se sabe se o desiderato da correcção ortopédica foi alcançado; certo é que, no final do processo cirúrgico, a A. ficou em muito pior estado de saúde do que anteriormente, passando a sofrer de paralisia total do membro inferior esquerdo, com impossibilidade definitiva de andar, sendo, além disso, afectada na “capacidade para realizar funções fisiológicas”.

Estamos perante uma situação típica de cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos de que são devedores o R. BB Hospital e o R. CC. Sem prejuízo de se poder convocar a responsabilidade extracontratual, uma vez que foi violado o direito à integridade física da A., direito absoluto tutelado pelo princípio geral de responsabilidade civil delitual do art. 483º, nº 1, do CC.

Verifica-se, afinal, uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por actos médicos. A orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal (acórdãos de 1 de Outubro de 2015, proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, de 2 de Junho de 2015, proc. 1263/06.3TVPRT.P1.S1, de 11 de Junho de 2013, proc. nº 544/10.6TBSTS.P1.S1, de 15 de Dezembro de 2011, proc. nº 209/06.3TVPRT.P1.S1, de 15 de Setembro de 2011, proc. nº 674/2001.P1.S1, de 17 de Dezembro de 2009, proc. 544/09.9YFLSB, todos em www.dgsi.pt) é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.

A responsabilidade civil do hospital pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros, e outros) regula-se pelo regime do art. 800º, nº 1, do CC, eixo central da responsabilidade por facto de outrem no domínio contratual. Conforme dispõe esta norma “O devedor é responsável perante o credor pelos actos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”. Deve salientar-se que, diversamente do que se passa no regime do art. 500º, do CC, que se aplica à responsabilidade extracontratual, no art. 800º do CC se abrange tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes (como desenvolvido pela relatora deste acórdão em Responsabilidade civil delitual por facto de terceiro, 2009, págs. 242 e segs.). Quer isto dizer que, no caso concreto, é indiferente determinar qual o vínculo existente entre o R. BB Hospital e cada um dos médicos envolvidos na operação – cirurgião e anestesista – porque, quer se trate de contratos de trabalho quer se trate de contratos de outra natureza, o regime de responsabilidade do R. BB Hospital é o mesmo. Nas palavras de André Dias Pereira, “no contrato de internamento com escolha de médico (contrato médico adicional), a clínica também assume a responsabilidade por todos os danos ocorridos, incluindo a assistência médica e os danos causados pelo médico escolhido” (cit., pág. 688). A responsabilização do R. BB Hospital funda-se na razão de ser do regime do art. 800º, nº 1, do CC, a qual, segundo Vaz Serra (“Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos responsáveis legais ou dos substitutos”, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 72, pág. 270) é a seguinte: “O devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles”.


8. Em seguida, há que verificar os pressupostos gerais da responsabilidade civil: facto ilícito, culpa, dano, e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Quanto ao R. BB Hospital, os pressupostos da responsabilidade civil aferem-se a partir da conduta dos auxiliares de cumprimento da obrigação de prestação de serviços médicos, que são todos os agentes envolvidos (cirurgião, anestesista, enfermeiros e outros). A conduta dos auxiliares imputa-se ao devedor (o hospital) “como se tais actos tivessem sido praticados pelo próprio devedor” (art. 800º, nº 1, do CC).

Quanto ao R. CC, devedor da prestação de serviços médico-cirúrgicos, tais pressupostos aferem-se pela sua conduta pessoal. E ainda pela conduta daqueles que sejam auxiliares de cumprimento da sua prestação, i.e. enfermeiros e outro pessoal auxiliar da equipa cirúrgica, por aplicação, também aqui, do art. 800º, nº 1, do CC.

Não havendo dúvidas acerca da ocorrência de danos, apenas acerca da sua dimensão, são os pressupostos da ilicitude, culpa e nexo de causalidade que temos de apreciar, relativamente a um e outro dos RR. No caso sub judice convém começar por analisar a verificação do nexo causal.


9. O juízo de causalidade é tanto um juízo de facto como de direito. Não cabe a este Supremo Tribunal sindicar o juízo de facto feito pela Relação, mas apenas pronunciar-se acerca do respeito pelo critério normativo da causalidade (cfr., a respeito da responsabilidade por actos médicos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2013, proc. 6297/06.5TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt; em geral, ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2010, proc. nº 2164/06.OTVPRT.P1, de 6 de Maio de 2010, proc. nº 11/2002.P1.S1, e de 15 de Novembro de 2007, proc. nº 07B2998, todos em www.dgsi.pt).

As instâncias deram como facto provado que “Da cirurgia resultou para a A. uma lesão medular após anestesia epidural”. E, no acórdão recorrido, afirma-se que “na fase imediatamente subsequente à cirurgia, a Apelada ficou a padecer de lesão medular, perdendo capacidade motora, com parésia do membro inferior esquerdo, e também capacidade para realizar funções fisiológicas”.

Deste modo, está dado como provado que a lesão medular com paralisia da perna esquerda da A. foi causada pelo tratamento cirúrgico. O acórdão recorrido atribui relevância à ministração da anestesia por epidural, sem afirmar que foi ela, especificamente, a causa da lesão.

Reafirme-se que o juízo positivo de relação causal no plano fáctico não pode ser reapreciado pelo Supremo. Dá-se como assente que, durante a cirurgia, foi causada a lesão na medula da A., ainda que não esteja dado como provado qual foi a conduta concreta que a causou e, portanto, quem foi o autor da mesma lesão. Mas, por definição, sabe-se que foi um ou mais dos agentes que intervieram na cirurgia.

No plano do juízo normativo de causalidade, que compete a este Supremo Tribunal, há que ter em conta que os RR. alegam não ter sido feita prova do nexo causal entre a cirurgia e os danos sofridos pela A., designadamente por não bastar, para o efeito, utilizar o critério da causalidade adequada na sua formulação negativa.

Recorrendo-se à teoria da causalidade adequada, aceite pela jurisprudência deste Tribunal (cfr., por exemplo, os acórdãos de 25 de Novembro de 2010, proc. nº 896/06.2TBPVR.P1.S1, de 15 de Novembro de 2007, cit., e de 1 de Julho de 2010, cit., todos em www.dgsi.pt) na interpretação do art. 563º do CC, “É necessário, portanto, não só que o facto tenha sido, em concreto, condição ‘sina qua non’ do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção” (Almeida Costa. Direito das Obrigações. 2009, pág. 763).

Não oferece dúvidas ser causa adequada da paralisia da A. uma cirurgia com ministração de anestesia epidural. Que seja adequado a causar o dano não se confunde com qualquer exigência de demonstração de que uma cirurgia com anestesia por epidural cause tipicamente estados de paralisia, como alegam os RR. É “normal” que uma cirurgia com anestesia por epidural decorra sem problemas, mas também é “normal” e adequado que, ocorrendo uma lesão medular (com paralisia total do membro inferior esquerdo) durante uma cirurgia ortopédica com anestesia por epidural, tal lesão tenha sido causada por algum dos actos praticados na operação. Possivelmente, pela administração da anestesia, mas o acórdão recorrido não deu como provado (ou não provado) que tivesse sido essa a causa da lesão. E não pode este Tribunal substituir-se às instâncias nesse juízo.

O acórdão recorrido considera que, além do nexo causal entre a cirurgia e a lesão na medula, houve da parte dos RR., desrespeito pelos deveres de cuidado na fase pré-operatória e na fase pós-operatória. Contudo, não tendo sido feita prova, designadamente prova pericial, acerca da existência e conteúdo de tais deveres de cuidado, não é admissível que, a partir dos factos dados como comprovados (pontos 11., 12., 14., 30., 31. e 32.), se conclua, por presunção natural, primeiro, que foram violados, e, segundo, que, a serem respeitados, se teria impedido ou revertido a lesão medular, ou ainda diminuído a sua gravidade.


10. Em síntese, dá-se como provado que a cirurgia foi causa dos danos. Esta conclusão não tem, porém, relevância idêntica para efeitos da determinação da responsabilidade do R. BB Hospital e do R. CC.

Com efeito, o R. BB Hospital é, como se disse, responsável pela conduta de todos os envolvidos no processo cirúrgico, que são auxiliares de cumprimento das obrigações a que se encontra adstrito (art. 800º, nº 1, do CC). Viu-se já que nesta categoria se compreendem tanto os médicos como os enfermeiros e demais profissionais envolvidos.

    Assim, dando-se como provado que a cirurgia foi a causa dos danos, o R. BB Hospital é responsável desde que se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil.

   Quanto ao R. CC é ele responsável pelas consequências da sua própria conduta quanto à cirurgia em sentido estrito (isto é, a intervenção no pé direito da A.), assim como pela conduta dos seus auxiliares de cumprimento das obrigações emergentes do contrato (art. 800º, nº 1, do CC), isto é, enfermeiros e outro pessoal auxiliar da equipa cirúrgica

E quanto à conduta da anestesista? É do conhecimento geral que, do ponto de vista científico e técnico, o médico anestesista não está dependente do cirurgião, nem se encontra sujeito às ordens deste (cfr., por exemplo, Sónia Fidalgo, Responsabilidade penal por negligência no exercício da medicina em equipa, 2008, págs. 196 e segs.). Não é de excluir, em absoluto, a possibilidade de responsabilizar o cirurgião pela conduta da anestesista se se apurar que esta última era, em concreto, uma auxiliar, ainda que independente, de cumprimento das obrigações de que aquele é devedor. Contudo, no caso em apreciação, os factos provados (sabe-se apenas que R. CC “contactou com a Interveniente, médica anestesista que presta serviço regular junto do BB, a qual é experiente, nomeadamente em cirurgias ortopédicas, para a mesma realizar a anestesia à A.”) são insuficientes para definir com clareza e rigor a relação entre o R. CC e a Interveniente DD, de modo a qualificar a segunda como auxiliar de cumprimento da prestação do primeiro.

Assim, o R. CC é responsável, desde que se prove que os danos foram causados pela sua conduta ou pela conduta daqueles que são seus auxiliares de cumprimento. Mas não é responsável pela conduta da Interveniente anestesista, por não ser esta sua auxiliar de cumprimento.

Ora, se as instâncias deram como facto provado que “Da cirurgia resultou para a A. uma lesão medular após anestesia epidural”, e se, no acórdão recorrido, se afirma que, “na fase imediatamente subsequente à cirurgia, a Apelada ficou a padecer de lesão medular, perdendo capacidade motora, com parésia do membro inferior esquerdo, e também capacidade para realizar funções fisiológicas”, então está dado como provado que a lesão medular com paralisia da perna esquerda da A. foi causada pela cirurgia.

O juízo de causalidade de facto feito pelas instâncias, que – reafirma-se mais uma vez – não pode ser sindicado pelo Supremo Tribunal, permite concluir que a lesão medular da A. pode ter emergido da anestesia, ainda que as instâncias não tenham dado como provado (ou não provado) que assim fosse. O mesmo juízo de causalidade de facto permite concluir que, se não tiver sido a anestesia a causar a lesão, terá forçosamente de ter sido a intervenção do próprio cirurgião ou a conduta de algum dos membros da equipa cirúrgica pelos quais ele é responsável.

Em concreto, não se sabe qual foi a causa directa e imediata da lesão medular. Em abstracto, e segundo o curso normal das coisas, é mais provável (art. 563º, do CC) que tenha sido causada pela anestesia com epidural do que por outra conduta, positiva ou negativa, ocorrida durante a intervenção cirúrgica.

Em conclusão, não se provando qual a causa directa e imediata da lesão, se ela se deveu ao médico-cirurgião, ou a algum dos seus auxiliares, ou se se deveu à anestesista, não pode o R. CC ser responsabilizado.


11. A cirurgia ortopédica a que a A. se submeteu tinha como objectivo corrigir uma deficiência no pé direito. Aceitando-se a classificação tradicional entre obrigações de meios e obrigações de resultado, a prestação de serviços médico-cirúrgicos com função curativa como aquela configura uma obrigação de meios.

Contudo, na determinação da ilicitude não está aqui em apreciação a obrigação de correcção ortopédica, mas sim o facto de, na execução da cirurgia contratada, ter sido causada uma lesão na medula da A.

Estamos perante o problema da relevância da lesão de direitos absolutos no decurso do cumprimento de uma obrigação contratual de prestação de serviços médicos, problema que foi identificado por este Supremo Tribunal no acórdão de 1 de Outubro de 2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, www.dgsi.pt), em termos aplicáveis aos autos. A respeito de uma situação de perfuração do intestino de uma doente submetida a uma colonoscopia, diz-se que “poder-se-á questionar se essa perfuração deve ser considerada como que desligada do contrato em execução (…), e tratá-la como uma agressão à integridade física da autora e, por esse facto, como geradora de responsabilidade civil extracontratual”. Mas, “Na verdade, a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico; independentemente de encontrar a construção juridicamente mais correcta, a verdade é que objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada.” Acrescentando-se: “Poder-se-á sustentar que não se tratará (ou não se tratará apenas) de um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, mas da lesão do direito à integridade física da autora, ocorrido no âmbito e por causa da execução do contrato; no entanto, esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual. Aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos.”

Estas considerações aplicam-se ao caso sub judice: na execução de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, foi causada uma lesão medular à A., o que corresponde a uma violação do seu direito à integridade física. Estamos no âmbito da concepção que Carlos Mota Pinto Cessão da Posição Contratual, reimp, 1982, págs. 337 e segs.) importou para a doutrina nacional como deveres de protecção, acessórios ou laterais, do contrato (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas), caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato”.

A doutrina dos deveres acessórios da prestação – deveres fundados na exigência do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações, consagrado no art. 762º, nº 2, do CC, e agrupados nas categorias de deveres de informação, deveres de lealdade e deveres de protecção – tem tido acolhimento e desenvolvimento na doutrina nacional (cfr. Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Vol. II, 1984, págs. 586 e segs., Tratado de Direito Civil, Vol. VI, 2012, págs. 498 e segs.). No que respeita aos deveres de protecção da pessoa e do património da contraparte, deve-se tal desenvolvimento a Carneiro da Frada (Contrato e deveres de protecção, 1994, págs. 44 e seg.), que assim sintetiza a doutrina dos deveres de protecção, acessórios em relação ao contrato: “Ao lado da relação de prestação dominante e dos deveres conexos”, o contrato “fundaria ainda entre as partes uma ordem especial de protecção dos seus bens pessoais ou patrimoniais (…). Na verdade, o contrato potencia inquestionavelmente riscos acrescidos de danos nas esferas dos intervenientes, riscos esses que seriam compensados pela decorrência daquele dos correspondentes deveres destinados a evitar a sua concretização. Por isso, a sua violação representaria a violação de um regulamento radicado no contrato e geraria uma autêntica responsabilidade contratual subordinada às especificidades de regime próprias desta forma de responsabilidade.”

Em suma, entende-se que, a par do interesse essencial que o credor visa satisfazer com o cumprimento da prestação debitória, existe, simultaneamente, um interesse de salvaguarda da integridade da sua pessoa e do seu património relativamente a danos que o contacto negocial pode causar.

A doutrina dos deveres de protecção, acessórios em relação ao deveres principais do contrato (seguida por este Tribunal a respeito da violação de outro direito absoluto, a propriedade , no acórdão de 1 de Julho de 2010, proc. nº 623/09.2YFLSB, www.dgsi.pt), tem especial acuidade quando aplicada ao contrato de prestação de serviços médicos, no qual “a protecção dos ‘danos concomitantes’ é incorporada no vínculo contratual, na medida em que, ao lado da obrigação principal – a de curar, a de minorar o sofrimento, a de aumentar a expectativa de vida – existe uma obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais do doente, diferentes daquele que constitui o objecto do negócio jurídico.” (Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, pág. 80).

No caso em apreciação, a obrigação principal – a função curativa do defeito ortopédico no pé direito – era acompanhada do dever de não afectar qualquer outro bem da A. A lesão da medula causada pela operação constitui o desrespeito de um tal dever. Há, por isso, ilicitude.

O afastamento de responsabilidade do R. BB Hospital só poderia ser feito ao nível do pressuposto da culpa.


12. Sabe-se que que toda e qualquer cirurgia comporta riscos, em especial uma cirurgia com ministração de anestesia epidural, ainda que sejam adoptados os procedimentos devidos. Não vem provado, nem que esses procedimentos foram (ou não) respeitados, nem que tenha ocorrido qualquer facto que, apesar de o réu ter actuado em conformidade com as boas práticas e com toda a diligência e cuidado, possa justifica a lesão, designadamente força maior, facto do lesado ou qualquer outro facto explicativo.

Na dúvida, uma vez provada a ilicitude pelo desrespeito do dever de protecção da integridade física da A, durante a execução do contrato, deve aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual e, nos termos do art. 799º, nº 1, do CC, a culpa do R. BB Hospital presume-se. Presunção que vale tanto para obrigações de resultado como para obrigações de meios, conforme tem sido decidido por este Tribunal a respeito de responsabilidade civil por actos médicos (acórdãos de 12 de Março de 2015, proc. nº 1212/08.4TBBCL.G2.S1, de 1 de Julho de 2012, proc. nº 398/1999.E1.S1, de 30 de Junho de 2011, proc. nº 3252/05TVLSB.L1.S1, de 15 de Dezembro de 2011, proc. nº 209/06.3TVPRT.S1.S1, de 27 de Novembro de 2007, proc. nº 3426/07, e de 17 de Dezembro de 2002, proc. nº 4057/02, todos em www.dgsi.pt). Cfr. Henriques Gaspar, “A responsabilidade civil do médico”, in CJ, 1978, T.I, págs. 344 e seg., e Álvaro Gomes Rodrigues, “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, in Direito e Justiça, 2000, T.3, pág. 209).

Quanto à aplicação da presunção de culpa à ilicitude por violação de deveres de protecção da integridade física da A., valem aqui as palavras do acórdão de 1 de Outubro de 2015, cit.: “A conclusão a que se chegou quanto ao ónus da prova da culpa, no caso concreto, não significa, nem o desrespeito das regras legais de repartição do ónus da prova, nem a adopção de um método semelhante ao que é defendido pelos defensores de uma ‘repartição dinâmica do ónus da prova’, que o direito português não consente.” Significa sim a aplicação de um conjunto de normas definidas para a responsabilidade contratual, justificada pela conexão existente entre a execução do contrato e a afectação da integridade física da A.

Em síntese, verificam-se todos os pressupostos necessários para responsabilizar o R. BB Hospital.


13. Há que reapreciar o problema da avaliação dos danos e da fixação da indemnização à A.

Quanto ao montante de €2.000, recebido pelo R. BB Hospital a título de caução relativo ao segundo período de internamento (entre 08/03/2009 e 23/06/2009), deve ser devolvido pois esse internamento de destinou à tentativa de minorar os danos causados pelo devedor.

Relativamente aos danos patrimoniais por perda de rendimentos do trabalho da autora, recorre o R. CC – que aproveita ao R. BB Hospital pelo art. 634º, nº 2, al. c), do CPC – da utilização pelo acórdão recorrido, para efeitos do art. 566º, nº 3, do CC, de um cálculo matemático baseado na diferença para menos entre a remuneração que a autora recebia antes da operação e o valor da pensão por invalidez, que passou a receber após a operação, multiplicada pelos anos entre a idade à data da operação e a idade previsível em que se reformaria. Afirma-se nas alegações de recurso que se “parte do pressuposto meramente especulativo de que a Autora preservaria a sua capacidade de ganho intacta até à idade da reforma”, e que esse critério devia ser substituído por uma avaliação baseada no dano de perda de chance.

Esta posição confunde a fixação de indemnização por danos certos mas indeterminados (art. 566º, nº 3, do CC) com a fixação da indemnização por danos incertos. Tendo ficado provado que “A A. exercia a profissão de professora de música e a paralisia motora de que sofre decorrente da cirurgia, embora lhe permita alguma autonomia doméstica com ortótese, impede a continuidade das suas funções docentes, de modo regular, no Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian”, não se limitou ela a perder a oportunidade de eventualmente vir a obter um ganho futuro como renumeração do seu trabalho. Perdeu a remuneração que recebia na profissão que exercia e que, se não fosse a lesão sofrida, continuaria a exercer.

Confirma-se a indemnização por danos patrimoniais no montante de €63.022,82.


14. Quanto à compensação por danos não patrimoniais, admitida por este Tribunal no domínio da responsabilidade contratual (cfr., no domínio da responsabilidade médica, os acórdãos de 11 de Junho de 2013, cit., de 15 de Maio de 2013, cit., e de de 4 de Março de 2008, proc. nº 183/08, www.dgsi.pt), a Relação fixou-a em €30.000, e que o R. CC – em recurso que aproveita ao R. BB Hospital pelo art. 634º, nº 2, al. c), do CPC – pretende ver reduzida para €10.000, há quer ter em conta as coordenadas segundo as quais o Supremo Tribunal se deve orientar nesta matéria.

A indemnização por danos não patrimoniais cuja gravidade merece a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do CC) deve, nos termos do nº 4, primeira parte, deste preceito, ser fixada segundo juízo de equidade, tendo em conta as circunstâncias do caso (art. 494º, in fine, do CC). Cabe a este Tribunal “a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias” (cfr., os acórdãos de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, e de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt).

A aplicação de critérios equitativos não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Tal decorre do respeito pelo princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição, assim como da exigência plasmada no art. 8º, nº 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2014, proc. 436/11.1TBRGR.L1.S1, www.dgsi.pt).

Na jurisprudência deste Tribunal, encontramos as seguintes decisões:

- Manteve-se a indemnização por danos não patrimoniais, de €50.000 relativamente a lesado com os seguintes danos: Sofreu várias fracturas e um traumatismo crâneo-encefálico, com inerentes dores (de grau 5 numa escala até 7); Esteve hospitalizado duas vezes, foi sujeito a intervenções cirúrgicas e a tratamento em fisioterapia; Teve de se deslocar, por longo tempo, com o auxílio de canadianas; Ficou, como sequelas permanentes, com cicatrizes na perna, claudicação da marcha, dificuldade em permanecer de pé, em subir e descer escadas e, bem assim, impossibilitado de correr e praticar desporto que antes praticava; Passou, de alegre e comunicativo, a triste, desconcertado e ansioso (acórdão de 07 de Outubro de 2010, proc. 370/04.1TBVGS.C1, www.dgsi.pt);

- Fixou-se em €60.000 a indemnização de lesado que: Sofreu lesões graves, que exigiram cerca de um mês de internamento hospitalar em regime de acamamento; Ficou com perdas de memória, necessidade de orientação de terceira pessoa fora do trajecto normal, parestesias na região malar esquerda e pé esquerdo, síndrome subjectivo pós comocional, com insónias, irritabilidade e perturbação com o barulho, sem crises epiléticas, cicatriz na região malar esquerda de 3 cm e limitação na elevação do braço esquerdo. Devendo o montante ser reduzido em 1/3 devido a culpa do lesado (acórdão de 7 de Maio de 2014, proc. 1070/11.TBVCT.G1.S1, www.dgsi.pt);

- Atribuiu-se o montante de €80.000,00 a lesada que: Ficou com paralisia parcial, com parestesias nos dedos da mão esquerda, na metade esquerda dos lábios, hemilíngua e hemiface esquerda; Passou a sentir dormência na cara e ponta dos dedos do lado esquerdo; Passou a ter dificuldades em comer e mastigar, principalmente do lado esquerdo; Perdeu força na mão, braço e perna esquerda; Sente desequilíbrios na perna esquerda (acórdão de 7 de Maio de 2014, cit.);

- Ficando o lesado definitivamente dependente de terceira pessoa para o que constitui o mais elementar da vida, como movimentar-se – com necessidade de cadeira de rodas – comer, vestir-se, calçar-se, tratar da sua higiene e efectuar as necessidades fisiológicas e tendo ainda ficado com dificuldade em articular palavras e incontinente, seria adequado o montante de €200.000 relativo à compensação pelos danos não patrimoniais. Pretendendo ele, em sede de recurso, apenas € 50.000 é de conceder tal quantia, considerando-a já depois do que seria de abater em 20% devido a culpa do lesado (acórdão de 16 de Fevereiro de 2012, proc. nº 1043/03.8TBMCN.P1.S1, www.dgsi.pt).

Tendo presente os valores compensatórios por danos não patrimoniais nas situações indicadas, conclui-se relativamente ao caso dos autos: perante a gravidade dos sofrimentos físicos suportados pela A. durante o longo processo de internamento e de tratamento, perante as limitações motoras de que ficou a padecer até ao fim da vida, com a consequente cessação da sua actividade profissional, assim como das actividades sociais e culturais anteriores, perante a dependência em relação ao auxílio de outras pessoas dentro e fora de casa, justificar-se-ia a elevação da indemnização fixada. Hipótese excluída por falta de recurso nesta parte. Mantém-se, por isso, o montante de €30.000 como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela A. Reduzir este valor seria enveredar pelo caminho de indemnizações miserabilistas, atentatórias da dignidade da pessoa humana.


15. Nega-se a revista do R. BB Hospital. Dá-se provimento à revista do R. CC, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido, e absolvendo o réu do pedido.

Confirma-se a condenação do R. BB Hospital no montante de €95.022,82, sendo €65.022,82 por danos patrimoniais e €30.000 por danos não patrimoniais.


Custas pelo recorrente BB Hospital.


Lisboa, 28 de Janeiro de 2016


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo