Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1456/15.2T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
DUPLA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO – PROCESSOS ESPECIAIS / PROCESSOS EMERGENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO E DE DOENÇA PROFISSIONAL / PROCESSO PARA DECLARAÇÃO DE EXTINÇÃO DE DIREITOS RESULTANTE DE ACIDENTE DE TRABALHO / PROCESSO APLICÁVEL / PROCESSAMENTO POR APENSO.
Doutrina:
- Vaz Serra, RLJ Ano 111º, p. 327 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGOS 151.º E 153.º.
REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS PROFISSIONAIS: - ARTIGO 31.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-05-2005, PROCESSO N.º 05B592, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-12-2012, PROCESSO N.º 40/08.1TBMMV.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-12-2016, PROCESSO N.º 1255/07.5TTCBR-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
- DE 15-02-2018, PROCESSO N.º 4084/07.2TBVFX.L1.S1.
Sumário :
I – Em caso de acidente de viação e de trabalho, as respectivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário.

II – Na condenação da seguradora no pagamento da indemnização devida por acidente de viação não se deve deduzir a indemnização devida por acidente de trabalho já paga ao sinistrado em processo de acidente de trabalho.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 1456/15.2T8FNC.L1.S1

REVISTA EXCEPCIONAL

            REL. 95[1]

                                                                       *

          ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

AA, residente no Caminho ..., n.º …, ..., ... intentou contra BB, S. A., com sede na Rua ..., à ..., n.º …, Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe quantia não inferior a 184.139,46 €, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de viação de que foi vítima.


A Ré contestou.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, na procedência da acção,  condenou a Ré BB, S. A. a pagar ao Autor a quantia global de 174.000,00 € (cento e setenta e quatro mil euros), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4%, a calcular desde a data dessa decisão e até integral pagamento; a Ré foi ainda condenada a pagar ao Autor as despesas que este vier a efectuar com a aquisição de medicamentos, consulta anual de oftalmologia e psicoterapia.

A Ré BB interpôs recurso de apelação, mas a Relação de Lisboa confirmou, na íntegra, a sentença da 1ª instância.

Ainda inconformada, interpôs a Ré recurso de revista excepcional, que a Formação admitiu, conforme acórdão de fls. 575/576, limitando, no entanto, o seu objecto à questão de saber se devem ser deduzidos imediatamente, ou não, as quantias relativas a danos patrimoniais já asseguradas ao sinistrado no âmbito do processo de acidente de trabalho – cfr. acórdão de fls. 575/576.

As alegações da revista terminam da seguinte forma:
I. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 332 e seguintes, o qual decidiu julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente da decisão proferida pelo douto Tribunal a quo.
II. Com efeito, o Tribunal do ... entendeu condenar a ora Recorrente no pagamento ao Recorrido de uma indemnização no valor de € 184.000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, uma vez que entendeu o Tribunal atribuir a responsabilidade pelo sinistro em 100% ao condutor do veículo seguro na ora Recorrente.
III. Não conformada com a referida decisão, recorreu a Apelante para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual por douto Acórdão proferido a fls. 332 e seguintes, entendeu manter aquela decisão, julgando assim improcedente o recurso interposto pela Ré.
IV. Mantém a ora Recorrente a sua profunda e séria convicção de que a decisão em apreço nos autos configura uma imprecisa/incorreta interpretação das normas legais constantes dos artigos 483º, n.º 1, 487º, 494º, 496º e no n.º 3 do artigo 566º do Código Civil e ainda dos artigos 9º, 562º e seguintes e 473º e seguintes, todos do Código Civil, e do artigo 31º, n.º 2, da Lei 100/97, de 13 de Setembro, sendo, porém, efetivamente complexa e difícil a apreciação jurídica do objeto do litígio.
V. Em primeiro lugar, no que diz respeito à indemnização atribuída ao Recorrido a título de dano biológico e danos não patrimoniais, não concorda o Recorrente com a mesma porquanto considera a mesma desajustada, por manifestamente excessiva.
VI. O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do CC (artigo 496º, n.º 3, 1a parte do CC) atendendo a que o reflexo patrimonial indemnizatório apenas se encontra transferido para a ora recorrente por via do contrato de seguro.
VII. A gravidade do dano se deve medir sempre por padrões objectivos de acordo com a realidade fáctica apurada e não com base em critérios aleatórios e abstractos, não podemos concordar com o montante atribuído pela douta sentença recorrida.
VIII. Pelo que, não deveria o tribunal a quo ter apreciado o dano estético inexistente para apuramento do quantum indemnizatório.
IX. Com base no exposto, é forçoso concluir que a indemnização de € 74.000,00 a título de danos não patrimoniais atribuída ao Autor se mostra manifestamente excessiva face aos concretos danos não patrimoniais sofridos e extravasa a função ressarcitória enunciada no artigo 562º do CC,
X. do mesmo modo que a quantia de € 110.000,00 fixada a título de dano biológico, se demonstra excessiva, face aos motivos supra expostos.
XI. Pelo que, deve a quantia fixada para indemnização por danos não patrimoniais do Autor ser corrigida por um valor não superior a € 25.000,00, devendo a mesma ser reduzida para um valor mais justo e equitativo.
XII. Assim como, deverá ser corrigida a quantia fixada com vista ao ressarcimento do dano biológico por via indemnizatória por um valor não superior a € 50.000,00, tornando-se deste modo num valor justo e equitativo, como o modus operandi que se assiste impõe.
XIII. Não fazendo tal atribuição de indemnização (€ 184.000,00) de modo justo e equitativo, viola a Mma. Juiz do Tribunal a quo, o disposto no art. 496º do CC o que se alega para os efeitos do disposto nos art. 639º, n.º 2, a) do CPC.
XIV. Com efeito, o montante fixado pelo tribunal a quo não se coaduna com tais critérios para ter em consideração aquando da fixação do montante indemnizatório, aliás, como é bom de ver quanto aos montantes arbitrados em situações com características semelhantes à presente ação, nos seguintes Acórdãos:

                         a.         Acórdão   do   Supremo   Tribunal   de   Justiça, processo   n.º
184y04.9TBARC.P2.S1, de 28-03-2012;

                       b.         Acórdão   do   Supremo   Tribunal   de   Justiça,   processo   n.º
220/2001 .L1.S1, de 26-01-2012;

                      c.          Acórdão   do   Supremo   Tribunal   de   Justiça,   processo   n.9
7793/09.8T2SNT.L1.S1, de 28-01-2016;

                      d.         Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2, de 16.06.2016;

                      e.         Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S, de 26.01.2017;

                      f.          Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1, de 13.07.2007;

                      g.         Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 196/12.9TTBRR.L2.S1, de 26.10.2017.

XV.        Assim, a compensação a atribuir ao Recorrido por danos não patrimoniais e pelo dano biológico terá de ser consideravelmente menor, tendo em consideração os danos efetivamente sofridos pelo mesmo e considerando aquela que tem sido a linha jurisprudencial nesse sentido que supra se expôs.

XVI.      Por outro lado, tanto o Tribunal da Relação como o Tribunal de 1ª Instância entenderam que o responsável civil por acidente de viação não tem o direito de abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos.
XVI. Sendo que, no entendimento da Recorrente, no podem ser cumuladas, a indemnização que for atribuída ao Recorrido com base no acidente considerado como de viação, e a que já lhe foi atribuída em sede de processo de trabalho pela respectiva incapacidade, pois tal implicaria uma cumulação de indemnizações pelo mesmo dano, determinante de um locupletamento injusto do Recorrido à custa do património da Recorrente e da entidade patronal, mesmo que a responsabilidade desta última haja sido transferida para Seguradora. Ao contrário, as duas indemnizações apenas se poderão complementar até ressarcimento integral do dano causado, podendo embora o lesado optar pela que entender mais favorável para ele, deduzida dos montantes que já tenha recebido da outra entidade obrigada ao pagamento.
XVII. Aqui, cumpre relembrar que o artigo 672º n.º 1, alínea c) do CPC admite o recurso de revista excepcional de Acórdão da Relação que preencha o artigo 671º, n.9 3, quando: "O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Nesta medida,
XVIII. O douto Acórdão recorrido está, salvo melhor opinião, em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do proc. n.º 555/04.0GTAVR.C1, cuja cópia se junta (…)
XIX. E ainda com o Acórdão proferido Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do proc. nº 1255/07.5TTCBR-A.C1.S1, cuja cópia se junta (…)
XX. De facto, entendeu o Venerando Tribunal da Relação no douto Acórdão do qual se recorre que o responsável civil por acidente de viação não tem o direito de abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos.
XXI. Contudo, no Acórdão proferido pelo mesmo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo n.º 555/04.0GTAVR.C, é professado um entendimento diverso, de que ocorrendo acidente de viação que consubstancie, ao mesmo tempo, acidente de trabalho e tendo o sinistrado recebido da entidade patronal indemnização por danos patrimoniais futuros, apenas pode receber da responsável civil nova indemnização por danos diferentes dos que já foram indemnizados pela responsável laboral.
XXII. Nestes termos, o Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 555/04.0GTAVR.C1 decidiu que à indemnização a pagar pelo responsável civil deveria ser reduzido o montante já indemnizado no âmbito da responsabilidade por acidentes de trabalho pelo responsável laboral.
XXIII. No mesmo sentido entendeu o STJ:" Tendo-se decidido, na ação por acidente de viação, atribuir aos beneficiários uma indemnização por lucros cessantes, destinada a compensar a perda de capacidade geral de ganho do sinistrado, verifica-se uma cumulação de indemnizações, sendo o responsável pela reparação do acidente de viação quem deve responder em primeira linha pelo ressarcimento dos danos sofridos, ficando o responsável pelas consequências de acidente de trabalho desonerado do pagamento das prestações da sua responsabilidade até ao montante do valor da indemnização fixada pelo acidente de viação relativamente àqueles danos."
XXIV. Não pode o Autor cumular indemnizações pelo mesmo dano, motivo pelo qual no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação, deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho.
XXV. Pretende-se desta forma evitar o enriquecimento injustificado do lesado, mediante a acumulação do próprio capital e os respetivos rendimentos.
XXVI. Assim, o entendimento professado no âmbito dos Acórdãos supra mencionados é de que a indemnização por acidente de viação não é acumulável com a emergente de acidente de trabalho, sendo antes complementares, pelo que só na medida em que uma delas seja superior à outra é que o titular da indemnização tem o direito à diferença.
XXVII. A complementaridade das indemnizações emergentes de responsabilidade civil e de responsabilidade por acidente de trabalho traduzir-se-ia, portanto, em que ambas concorreriam na indemnização dos danos sofridos pelo lesado, de forma a que este pudesse exigir da que fosse superior a diferença para o recebido na que fosse inferior.
XXVIII. Assim, a manter-se a decisão recorrida, haveria uma cumulação de indemnizações no que diz respeito ao ressarcimento pelo dano futuro de perda de capacidade de ganho, o que consubstancia um enriquecimento ilegítimo do Recorrido, que dessa forma se vê ressarcido, duplamente, pelo mesmo dano no foro laboral e no foro civil.
XXIX. Pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente conformar-se com o valor arbitrado na douta sentença recorrida, relativamente ao montante devido ao lesado a título de indemnização por danos patrimoniais peticionados.
XXX. Acresce que, o entendimento proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão Recorrido é de que o n.º 2 do artigo 31 .fi da Lei n.º 100/97, confere ao responsável laboral um direito de reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este, e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos, e que, por virtude de este direito ser concedido ao responsável laboral pela disposição normativa em causa, não teria o responsável civil direito a abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago antes ao sinistrado pelo responsável laboral.
XXXI. Pelo que a Recorrente entende que se encontram preenchidos o primeiro e o segundo requisitos para a aplicação do instituto jurídico do enriquecimento sem causa, ou seja, a existência de um enriquecimento e a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem.
XXXII. Por outro lado, também é verdade que o lesado já foi indemnizado pelo dano patrimonial futuro de perda de capacidade de ganho, em sede de responsabilidade por acidente de trabalho, destinado a indemnizar por completo o referido dano.
XXXIII.  A indemnização que a Recorrente deveria pagar ao Recorrido, inclui nova indemnização pelo dano patrimonial futuro de perda de capacidade de ganho, sem ter sido feita a redução da indemnização já atribuída e liquidada em sede de responsabilidade por acidente de trabalho, pelo que se pode dizer, com toda a propriedade que estamos perante uma duplicação de indemnização pelo mesmo dano.
XXXIV. Ora, atento o que ficou supra explanado, a indemnização tem por função e limite a supressão dos danos sofridos em consequência de determinado evento, não podendo assumir qualquer tipo de feição lucrativa para o credor da obrigação de indemnização.
XXXV. Face ao exposto, entende a ora Recorrente que deve ser descontado da indemnização a fixar, caso se entenda que a mesma é devida pela ora Recorrente, o montante já recebido pelo Recorrido a título de indemnização fixada em sede de AT (acidentes de trabalho).
XXXVI. Assim, e por toda a ordem de razões já expostas, deverá o douto Acórdão ser revogado no que concerne ao total do montante que a Recorrente foi condenada a título de dano patrimonial futuro, devendo ser descontado o montante recebido pelo Recorrido no âmbito do direito laboral, por violação substantiva consistente em erro de interpretação e aplicação dos artigos 9.", 562.fi e seguintes e 473º e seguintes, todos do Código Civil, e do artigo 31º, n.º 2, da Lei 100/97, de 13 de Setembro.


O Autor/recorrido contra-alegou, pedindo a improcedência da revista.

                                                                       *


II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos provados com relevo para a decisão da revista são os seguintes:

1.         No dia 26 de Abril de 2007, cerca das 6 h. e 25 min. ocorreu um acidente de viação no cruzamento entre a ...e a Rua ..., no ... em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., com a matrícula ...-UD, conduzido por CC e o veículo automóvel ligeiro, marca ..., com a matrícula -AI-, conduzido pelo autor, AA (artigo 24º da petição inicial).

 2.    À data do acidente, o ...-UD pertencia a “DD, Lda.” (artigo 17º da petição inicial).

 (…)

 19.      À data do acidente, vigorava o contrato de seguro celebrado entre a DD, Lda. e a BB Companhia de Seguros titulado pela apólice n.º ... mediante o qual aquela transferiu para esta a responsabilidade civil decorrente dos riscos da circulação do veículo ...-UD (artigo 42º da petição inicial).

(…)

41.      À data do acidente, o autor era funcionário da empresa EE, S. A., onde exercia a actividade de vigilante e onde se mantém actualmente, mas exercendo funções apenas aos fins-de-semana.

(…)

52.      O acidente referido em 16. foi participado ao Tribunal do Trabalho do ... como acidente de trabalho tendo corrido termos por esse tribunal o processo n.º 215/08.3TTFUN no âmbito do qual foi proferida sentença, em 21 de Outubro de 2009, que fixou em 37,44% o coeficiente de IPP que afecta o sinistrado AA desde o dia imediato ao da alta e condenou a FF, S. A. e a entidade patronal EE, S. A. a pagar-       -lhe, na proporção de 90,63% e 9,37%, respectivamente, uma pensão anual e vitalícia no valor de € 3.573,70 e, bem assim, a condenação da seguradora no pagamento de € 6,60 a título de despesas de deslocações a Tribunal e da entidade patronal no pagamento da quantia de € 1.266,05, a título de indemnização pela incapacidade temporária da sua responsabilidade.

53.       A FF Portugal, S. A., nos autos emergentes de acidente de trabalho referidos em 52., liquidou a AA a quantia de € 32.436,58, a título de pensão anual e vitalícia entre 9-10-2008 e 31-10--2017; € 12.244,97, relativa a indemnizações por incapacidades temporárias; € 14.932,17, a título de capital de remição parcial; e € 1.048,82, relativos a despesas de transportes, médicas e medicamentosas.

 54.      A empresa EE, SA, em observância à condenação referida em 52. pagou ao autor até o mês de Outubro de 2017 o montante de € 3.002,79 referente à pensão anual e vitalícia, € 1.543,80 relativos a capital de remição parcial e € 8.632,01 atinentes a incapacidades temporárias (total e parcial).

O DIREITO

            A questão que se coloca nesta revista excepcional é unicamente a que acima se referiu, ou seja, saber se devem ser imediatamente deduzidos ao montante indemnizatório de 110.000,00 € os valores já satisfeitos ao Autor pela entidade patronal e respectiva seguradora. Com isto, fica logo excluída da análise a matéria das conclusões I. a XV., inclusíve.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, cremos que a questão recursória não é objecto de controvérsia na jurisprudência, pelo menos desde finais de 2012[2].

As mais recentes decisões do STJ e das Relações vão no sentido de que não pode o responsável civil exigir a dedução imediata na indemnização dos valores pagos ao lesado pelo acidente laboral[3].

            O acórdão-fundamento que a recorrente invocou nas alegações da revista (e de que juntou a devida fotocópia), também não diverge do referido sentido, até porque não se pronunciou concretamente sobre tal questão. O que aí se discutiu, em acção própria intentada pela responsável pelas consequências de acidente de trabalho[4], foi a sua desoneração do pagamento das prestações da sua responsabilidade até ao montante do valor da indemnização fixada pelo acidente de viação, relativamente aos mesmos danos.

No ponto XXI. das contra-alegações, o recorrido defende que não se verifica “cumulação de indemnizações, uma vez que os danos indemnizados pelo acórdão recorrido e sentença de 1ª instância são de natureza não patrimonial, biológica e danos futuros, os quais não foram tidos em conta no processo de acidente de trabalho (…)”. E acrescenta: “Mesmo que tivesse havido (duplicação de indemnizações), (…) a seguradora ou entidade patrimonial não exerceram o direito ao reembolso neste caso concreto e não procederam a qualquer intervenção incidental neste processo”.

            É também esse o nosso entendimento.

           
a) Cumulação de indemnizações?

Como se diz no acórdão-fundamento da Secção Social deste STJ, de 14.12.2016[5] quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, as respectivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário.

De facto, a responsabilidade primeira é a que incide sobre o responsável civil.  É essa responsabilidade que vai definir o quadro indemnizatório geral, sendo certo, no entanto, que, quanto ao mesmo dano concreto, não pode haver duplo ressarcimento.

Mantém plena validade o ensinamento de Vaz Serra, em anotação ao acórdão do STJ de 30.05.1978[6]: “A solução de que as indemnizações por acidentes simultaneamente de viação e de trabalho se não cumulam e apenas se completam até ao ressarcimento total do dano causado ao lesado é manifestamente exacta, pois a finalidade da indemnização é reparar o prejuízo causado ao lesado e não atribuir a este um lucro”.

Por isso se diz que as indemnizações fixadas em cada uma dessas jurisdições (civil e laboral) não se sobrepõem, completam-se. As indemnizações são independentes e dessa independência decorre que o tribunal em que for formulado o pedido de indemnização exerce a sua jurisdição em plenitude, decidindo e apurando, sem limitações, a extensão dos danos, e deixando ao critério do lesado a opção pela que melhor lhe convenha, devendo, porém, acrescentar-se que os danos não patrimoniais não entram no cômputo da indemnização laboral[7].

Os danos já ressarcidos ao Autor no processo laboral são os que se mostram descritos nos pontos 52. a 54. dos factos provados. Daí se extrai, para o que interessa, que: a) a FF, S.A. e a entidade patronal do Autor – EE, S.A. foram condenadas a pagar-lhe, nas proporções de 90,63% e 9,37%, respectivamente, uma pensão anual e vitalícia de 3.573,70 €, em virtude da incapacidade parcial permanente (IPP) de 37,44%; b) a FF já liquidou ao Autor a quantia de 32.436,58 € a título de pensão anual e vitalícia entre 09.10.2008 e 31.10.2017, e 14.932,17 €, a título de capital de remição parcial; c) a Securitas já pagou ao Autor, até ao mês de Outubro de 2017, o montante de 3.002,79 €, referente à pensão anual e vitalícia e 1.543,80 €, a título de capital de remição parcial.

A pensão vitalícia assim atribuída corresponde à redução na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado, por incapacidade parcial permanente, conforme resulta do artigo 10º, alínea b), da Lei 100/97 – cfr. sentença do Tribunal de Trabalho do ..., a fls. 242 e seguintes.

Não foi este, todavia, o dano sobre que incidiu a indemnização de 110.000,00 € fixado nesta acção cível. Aqui, do que se tratou foi de uma indemnização pelo chamado dano biológico. E os termos em que a sentença da 1ª instância o atribuiu, confirmados pelo acórdão recorrido, não deixa margem para a mais pequena dúvida:

“De todo o modo, a incapacidade permanente geral com repercussão na perda de capacidade aquisitiva, constitui um dano patrimonial (sem esquecer a vertente não patrimonial que dela decorre), pois que se verifica uma vertente claramente patrimonial expressa no facto de o lesado ficar privado da sua inteira capacidade física, determinante da necessidade de esforço acrescido nas suas actividades produtivas e não produtivas (…).

O sinistrado tem, pois, direito a ser indemnizado pelo dano biológico de que foi vítima e que compromete a sua qualidade de vida, para além de suportar uma limitação funcional e ter de despender esforços acrescidos no desempenho da profissão.

(…)

Os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se limitam à redução da sua capacidade de trabalho pois implicam, desde logo, uma lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física pelo que a indemnização a arbitrar não pode atender apenas àquela redução.

Acresce que a limitação da condição física que a deficiência, dificuldades ou prejuízo de certas funções ou actividades do corpo, o handicap que a incapacidade permanente geral acarreta, colocará sempre, até pelas consequências ao nível psicológico, uma diminuição da capacidade laboral genérica e dos níveis de desempenho exigíveis.

O que releva, pois, é o dano biológico, isto é, o decorrente da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.

(…)

Importa, porém, ter também presente que a acrescer ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada em função do grau de incapacidade permanente fixado, deve ser considerada uma quantia que constitua justa compensação do dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis diminutio de que passou a sofrer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal.

(…)

Em síntese, este Tribunal decide o seguinte:
a) O autor tem direito a obter uma indemnização por dano biológico no valor de € 110.000,00;
(…)”.

Como se vê, a indemnização de 110.000,00 € não incidiu sobre o mesmo dano que levou o foro laboral a atribuir a pensão anual e vitalícia acima mencionada.

Com efeito, servindo-nos do que foi escrito no acórdão deste STJ de 11.12.2012 (identificado na nota de rodapé n.º 2), são de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.

Deste modo, não existe na situação vertente uma duplicação de indemnizações em favor do Autor susceptível, como tal, de provocar um injustificado enriquecimento deste.


b) Dedução dos valores pagos pelo responsável laboral?

           Apesar de se nos apresentar clara a conclusão acabada de tirar (face aos termos em foi atribuído aquele montante indemnizatório) e de essa conclusão prejudicar a questão da eventual dedução dos montantes já satisfeitos ao Autor, não deixaremos de apreciar esse tema, em nome do princípio da exaustividade.

           O regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais que vigorava à data dos factos era o da Lei 100/97, de 13 de Setembro.

            O artigo 31º dessa Lei[8] preceituava o seguinte:

1 - Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.

2 - Se o sinistrado em acidente receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.

3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.

4 - A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.

5 - A entidade empregadora e a seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.

                Resulta destes comandos legais, conforme bem se assinala no acórdão da Relação de Coimbra de 20.03.2012[9], que a indemnização laboral é consumida ou pode vir a ser consumida pela indemnização que venha a ser arbitrada com base em facto ilícito, beneficiando desta consumpção o responsável a título laboral. Pode assim afirmar-se que nestes casos de concurso de responsabilidades para ressarcimento dos mesmos danos existe uma pluralidade de responsáveis, a título solidário, sendo um caso de solidariedade imprópria, porquanto o responsável a título laboral pode fazer repercutir no terceiro responsável a totalidade da responsabilidade que lhe cabe.

                No entanto, por força do disposto no n.º 2 do artigo 31º da Lei 100/97, não se mostra possível fazer o abatimento imediato à indemnização que impende sobre o responsável civil pelo acidente de viação, dos valores pagos ao sinistrado pela entidade patronal e/ou seguradora na sequência da decisão laboral.

            As razões deste entendimento colhem-se do acórdão do STJ já citado (11.12.2012):

“(…) não é controvertida a conclusão segundo a qual a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado.

Desta fisionomia essencial do concurso ou concorrência de responsabilidades (que não envolve um concurso ou acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) pode extrair-se a conclusão que este figurino normativo preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, já que:

- no plano das relações externas, o lesado/sinistrado pode exigir alternativamente a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações;

- no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos obrigados a indemnizar o responsável definitivo pelos danos causados, conduz a que tenha de se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou respectiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, directa ou indirectamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente.

Têm sido, todavia, acentuadas algumas particularidades ou aspectos específicos e peculiares desta relação de solidariedade imprópria. Assim:

- no que toca ao regime das relações externas, acentua-se que (ao contrário do que ocorre na normal solidariedade obrigacional – art. 523º do CC ) o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente de viação: é que, se a indemnização paga pelo detentor ou condutor do veículo extingue efectivamente a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não será exacto, na medida em que a indemnização paga por esta entidade não extinguiria a obrigação a cargo do responsável pela circulação do veiculo que causou o acidente (cfr., por exemplo, o Ac. de 19/10/10, proferido pelo STJ no P. 696/07.2TBMTS.P1.S1); e daí que se qualifique como sub-rogação legal (e não como direito de regresso) o fenómeno da sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, referentemente à parcela da indemnização que tiver satisfeito ( cfr. Acs. de 9/3/10, proferido pelo STJ no P. 2270/04.6TBVLG.P1.S1, e de 11/1/01, proferido no P. 4760/07.0TBBRG.G1.S1);

- no plano das relações internas, tem sido acentuado que o quadro normativo aplicável é o que resulta estritamente do disposto na lei dos acidentes de trabalho em vigor (actualmente, o art. 31º da Lei 100/97), sendo esse direito ao reembolso do responsável laboral efectivado necessariamente por uma de três formas:
- substituindo-se ao lesado na propositura da acção indemnizatória contra os responsáveis civis, se lhe pagou a indemnização devida pelo sinistro laboral e o lesado não curou de os demandar no prazo de 1 ano a contar da data do acidente;
- intervindo como parte principal na causa em que o sinistrado exerce o seu direito ao ressarcimento no plano da responsabilidade por factos ilícitos, aí efectivando o direito de regresso ou reembolso pelas quantias já pagas;
- exercendo o direito ao reembolso contra o próprio lesado, caso este tenha recebido (em processo em que não haja tido lugar a referida intervenção principal) indemnização que represente duplicação da que lhe tinha sido outorgada em consequência do acidente laboral”.

Terá de ser, portanto, o responsável laboral a promover qualquer uma dessas iniciativas processuais para lograr a efectivação do direito de regresso ou o reembolso das quantias que tiver pago ao sinistrado.

Não faria, de facto, sentido que o lesante no acidente de viação – responsável primacial pelas consequências do facto ilícito – se desvinculasse unilateralmente da obrigação a seu cargo de suportar a integralidade da indemnização pelos danos que causou, sem que o verdadeiro titular do interesse protegido (entidade patronal e/ou seguradora) houvesse tomado qualquer iniciativa no sentido de garantir ou assegurar o direito ao reembolso das quantias pagas.

Assim, mesmo que se entendesse que a indemnização de 110.000,00 € se reportava ao mesmo dano ressarcido no processo laboral (o que, conforme vimos, não sucede), não era possível proceder ao abatimento naquela dos valores pagos a esse título pela entidade patronal do lesado e pela seguradora FF.

                                                           *


III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se a revista.

                                                                       *

Custas pela recorrente.

                                                                       *


                    LISBOA, 11 de Julho de 2019

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

_______________________
[1] Relator:    Henrique Araújo
 Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                     Raimundo Queirós
[2] De facto, em 11.12.2012, no âmbito de uma revista excepcional, o STJ decidiu que “não assiste ao lesante o direito de, no seu próprio interesse, se desvincular unilateralmente de uma parcela da indemnização decorrente do facto ilícito com o mero argumento de que um outro responsável já assegurou, em termos transitórios, o ressarcimento de alguns dos danos causados ao lesado” – processo n.º 40/08.1TBMMV.C1.S1 (Conselheiro Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
[3] Importa referir, contudo, que o acórdão deste STJ de 15.02.2018, no processo n.º 4084/07.2TBVFX.L1.S1 (Conselheira Fátima Gomes), considerou possível a dedução na indemnização civil dos montantes pagos a título de acidente de trabalho, mas numa situação muito peculiar, em que a Ré demonstrou que já havia liquidado a indemnização pelo acidente de trabalho, relativa ao mesmo dano.
[4] Acção para declaração de suspensão de direito a pensões, nos termos dos artigos 151º e 153º do CPT.
[5] No processo n.º 1255/07.5TTCBR-A.C1.S1 (Conselheiro Pinto Hespanhol), em www.dgsi.pt.
[6] RLJ Ano 111º, páginas 327 e seguintes.
[7] Cfr. acórdão do STJ de 07.05.2005, no processo n.º 05B592, (Conselheiro Custódio Montes), em www.dgsi.pt.
[8] Que corresponde, com ligeiríssimas alterações na redacção, ao artigo 17º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, que viria a revogar a Lei 100/97.
[9] Que viria a dar origem ao acórdão deste STJ de 11.12.2012, referido na nota 2.