Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P4324
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
TESTEMUNHAS
MOTIVAÇÃO
CULPA
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
DETENÇÃO ILEGAL
ARMA
PENA DE MULTA
REFORMATIO IN PEJUS
TRIBUNAL SUPERIOR
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200502170043245
Data do Acordão: 02/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J CARRAZEDA DE ANSIÃES
Processo no Tribunal Recurso: 50/01
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Sumário : 1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.
2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso.
3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente.
4 - Não é de optar pela pena de multa nos crimes de violação de domicílio e detenção ilegal de arma, quando o agente entra na casa do ofendido sem autorização, armado e dispara contra aquele, só não o matando por circunstâncias alheias à sua vontade.
5 - Deve entender-se que o n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade; é essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre. Depois, ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2).
6 - Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2. De concluir é, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não se verifique qualquer daqueles indicadores.
7 - Para impugnar a qualificação da conduta como constituindo homicídio qualificado, deve o arguido afirmar e demonstrar que a morte não foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, designadamente o índice do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal que tiver sido invocado, pois que, independentemente da verificação de qualquer circunstância prevista naquele n.º 2 do art. 132.º, sempre se poderia considerar incluso na previsão do n.º 1 do mesmo artigo.
8 - Decorre do princípio da proibição da reformatio in pejus que, se em recurso só trazido pelo arguido, for ordenada a devolução do processo, não poderá a instância vir a condenar o recorrente em pena mais grave do que a infligida anteriormente. Mas a compreensão daquele princípio integra o processo justo, o processo equitativo, tributário da estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente e do princípio da acusação, que impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem limitados os parâmetros da decisão e condicionado no processo o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido.
9 - Aceita-se que seja de esperar que o Tribunal Superior, que "desqualificou" um determinado crime, entendendo que a conduta do arguido corporizava antes o tipo simples correspondente, diminua a pena aplicável, agora numa moldura penal abstracta mais favorável. Mas tal não se impõe inevitavelmente, mesmo que a pena aplicada pelo crime mais grave, se mostre justa e adequada na nova moldura, recorrendo-se então, para baixar a pena a uma "proporcionalidade formal" com base na diferença das molduras, e uma ficção sobre o que faria o tribunal recorrido, em vez do Tribunal Superior aplicar, como lhe compete, autonomamente a lei.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.

O Tribunal Colectivo de Carrazeda de Ansiães (proc. 50/01.0GACRZ) condenou o arguido MFS na pena de 4 anos de prisão, por 1 crime de homicídio na forma tentada dos arts. 131°, 132°, n.°1 e 2, al. h), do C. Penal, 6 meses de prisão, por um crime de violação de domicílio do art. 190°, n.° 1, do C. Penal, 9 meses de prisão, por um crime detenção ilegal de arma do art. 6°, da Lei n.º 22/97, ou 275°, n.º 3, do C. Penal, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão.

Condenou-o, ainda, a pagar a AAP a quantia de € 7.500, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento à taxa de legal, bem como a pagar ao Hospital Distrital de Mirandela a quantia de € 13.176, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento à taxa de legal.

2.

Inconformado, o arguido recorreu para a Relação do Porto (proc. n.º 1.899/04) impugnando a matéria de facto, a violação do princípio in dubio pro reo, a sua condenação, a medida concreta da pena pelo crime de homicídio tentado, a opção por penas não privativas da liberdade, para os crimes de violação de domicílio e de detenção ilegal de arma, a não suspensão da execução da pena e a indemnização cível.

Esse Tribunal Superior, por acórdão de 2.6.04, negou provimento ao recurso, mas alterou a incriminação para homicídio tentado simples, confirmando no restante o acórdão recorrido.

2.1.

Ainda inconformado, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:

I - O Arguido continua a clamar a sua inocência (sendo certo que dos factos considerados provados nenhum consta que permita esclarecer a eventual causa ou motivo da conduta que lhe é imputada)

II - A impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto quando, como é o caso, se impugnam as provas, ainda que de natureza testemunhal, que a fundamentam, implica que o Tribunal de Recurso possa e deva proceder à análise crítica dessas provas no sentido de infirmar ou confirmar o julgamento que delas foi feito na primeira instância

III - Ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido o entendimento acima exposto não colide com o princípio da livre apreciação da prova pelo Tribunal previsto no art. 127° da CPP pois que só assim se mostrará completamente preenchido e verificado o dispositivo constitucional que assegura ao arguido todas as garantias de defesa incluindo o recurso (n.º 1 do art. 32° da CRP) e o dele decorrente principio do duplo grau de jurisdição em matéria de direito e em matéria de facto (arts. 410°n 1, al.s a) e b) do no 3 do art. 412° e no 1 do art. 428°, todos do CPP)

IV - Ao abster-se de analisar e reapreciar, conforme lhe foi solicitado, os meios de prova em que o Tribunal da primeira instância fundou o julgamento da matéria de facto o Alto Tribunal ora recorrido não cumpriu e/ou não interpretou devidamente os referenciados preceitos legais aplicáveis.

V - Assim, e salvo melhor opinião, deverá ser ordenado o reenvio do processo ao Tribunal da Relação do Porto para, de conformidade com o então requerido, nele se proceder à apreciação e reanálise da prova em causa e daqui se extraírem todas as legais consequências.

Sem Prescindir e para o caso de assim se não entender

VI - Uma vez que só o arguido recorreu da decisão que lhe foi desfavorável a verificada procedência da requerida desqualificação da conduta do agente que, por isso, passou a subsumir-se apenas na previsão do art. 131° do C. Penal, na forma tentada, não pode deixar de, contrariamente ao decidido, conduzir à aplicação de uma pena concreta inferior à cominada e com uma redução, pelo menos, proporcional à que a moldura penal abstractamente aplicável sofreu.

VII - Ao manter a pena cominada na primeira instância, com a justificação de que esta foi de grande benevolência, o Tribunal "a quo" alterou de forma mais desfavorável para o arguido os critérios por aquela adoptados na determinação em concreto da medida da pena pelo que, ao assim procederem, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores violaram o principio da "reformatio in pejus" consagrado no n° 1 do art. 409° do CPP na sua formulação mais adequada.

VIII - Pelo que, e de facto, da decisão ora recorrida resulta inequivocamente para o Arguido uma pena mais grave do que aquela que lhe foi aplicada na primeira instância.

IX - Por outro lado, e com o devido respeito, erraram as Instâncias no que concerne à opção que fizeram pela pena privativa de liberdade no caso dos crimes de violação do domicilio e de detenção ilegal de arma em detrimento da legalmente prevista alternativa pena de multa já que in casu e contrariamente ao decidido, não se verificam circunstâncias relevantes seja em termos de prevenção geral ou de prevenção especial que justifiquem aquela opção pela prisão pelo que, ao decidirem como decidiram, não interpretaram e/ou aplicaram devidamente o estatuído no art. 70º do C. Penal.

X - Porque assim é, atentos os critérios legalmente estipulados, os fundamentos supra e o mais aduzido e não impugnado no douto acórdão da Primeira Instância, mostra-se claramente excessiva e desajustada a pena que lhe foi cominada nas Instâncias pois deveria o arguido ter sido punido, pela prática de um crime de homicídio na sua forma tentada p.p. nos arts. 131º, 22°, 73°, no 1, alínea a) e b) do C. Penal, com uma pena não superior a 2 anos e quatro meses de prisão, pela prática do crime de violação de domicílio p.p. no art. 190º do C. Penal com a pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária mínima legalmente fixada e pelo crime de Detenção ilegal de arma p.p. no art. 6° da Lei 27/97 na pena de 80 (oitenta) dias de multa a igual taxa.

XI - Relativamente à punição dos crimes de Violação de Domicilio e Detenção ilegal de Arma, a entender-se que é necessária a opção pela pena privativa de liberdade - o que não se concede - mostram-se perfeitamente ajustadas e adequadas, vistos os acima aduzidos fundamentos, respectivamente a prisão por três meses e por seis meses.

XII - Feito o respectivo cúmulo de conformidade com o disposto no art. 77°, nos. 1 e 2 do C. Penal, deveria o arguido ser condenado numa pena única não superior a dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos, e cem dias de multa com taxa fixada no mínimo legal ou, contemplando a hipótese prevista na conclusão anterior na pena única de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução.

XIII - Isto porque a personalidade e condições de vida do arguido, o seu comportamento e as circunstâncias em que ocorreram os factos descritos consubstanciam os pressupostos de que a censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena que lhe vai cominada realizam de forma adequada, suficiente e eficaz as finalidades da punição no caso sub judice e a pena de prisão cominada se contém dentro do (imite indicado no art. 50°, n°1, do C. Penal.

XIV - Ao não decidir de conformidade com o que acima vai aduzido o Ilustre Tribunal Recorrido violou, não aplicou e/ou não interpretou devidamente as já referidas disposições legais aplicáveis e designadamente os arts. 410.º, n.º l als a) e b) do n° 3 do art. 412° e n° 1 do art. 428°, todos do CPP e os arts. 131°, 1900, 700, 710, 77°, e 500, n°1, do Código Penal, para alem do art. 6° da Lei 27/97.

2.2.

Respondeu o Ministério Público junta da Relação que concluiu:

4.1. Não cabe nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça a cognição de impugnação de decisões proferidas pelo tribunal colectivo sobre matéria de facto - artigo 432.°, al. d), do Código de Processo Penal.

4.2. Não visando o recurso um novo julgamento da questão fáctica submetida à apreciação do tribunal, mas tão-só a detecção de eventuais erros de julgamento, que terão de ser inequívocos, nada há de censurável na decisão do tribunal de 2.ª instância que, em matéria de credibilidade da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, e sem que algum desses erros seja detectado, opta por respeitar o processo de formação da convicção alcançada pelo tribunal de 1.ª instância, mantendo a decisão recorrida.

4.3. O princípio da reformatio in peius consagrado no n.° 1 do artigo 409.° do Código de Processo Penal não impõe necessariamente que, em caso de alteração da qualificação jurídica em favor do arguido, a espécie ou a medida da pena anteriormente aplicada tenham de ser atenuadas na proporção da desqualificação jurídica verificada.

4.4. Em caso de a pena anteriormente aplicada ser considerada excessivamente benevolente, nada impede que essa pena se mantenha imodificada, apesar da alteração da qualificação jurídica em favor do arguido.

4.5. Não é admissível recurso de decisão proferida, em recurso, pela Relação, em processo por crimes a que são aplicáveis penas de prisão não superiores a cinco anos, bem como de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que confirma, nesta parte, decisão da 1.ª instância, em processo por crimes a que são aplicáveis penas de prisão não superior a oito anos de prisão, mesmo que aqueles crimes estejam em concurso efectivo com outro crime que excede aquelas penas.

4.6. Em suma, negando-se provimento ao recurso interposto, deverá manter-se e confirmar-se o douto acórdão recorrido.

3.

Neste Supremo Tribunal de Justiça teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos legais teve lugar a audiência. Nela o Ministério Público, em alegações orais retomou o conteúdo do seu visto preliminar, e pronunciou-se depois sobre a qualificação do homicídio, acompanhando a Relação quando afastou a circunstância qualificativa da al. h) do n.º 2, pois não se vê como a arma de fogo que o arguido empunhou, desde o primeiro momento, possa ter constituído um meio insidioso, mas salientou que, sendo o homicídio qualificado (também) pelo n.º 1 do art. 132.º, mesmo que excluída a qualificativa daquela alínea, ainda assim a incriminação era a do n.º 1, pois se não podia esquecer que o arguido disparou a arma a cerca de 1 metro, sem qualquer provocação, utilidade e sem qualquer relação com o ofendido.

E a Relação podia então reafirmar, mesmo na ausência da qualificativa "meio insidioso", a qualificação jurídica, por constituir matéria de direito de conhecimento oficioso, se bem que não extraísse daí quaisquer consequências. E sendo qualificado o crime cai pela base a pretensão de ver reflectir-se na pena concreta a desqualificação.

Aceitou o Ministério Público, neste Supremo Tribunal de Justiça, a pena aplicada pela Relação, mesmo no crime de homicídio simples, dadas as consequências para ofendido, que referiu detalhadamente.

A defesa manteve a posição assumida na motivação.

Cumpre conhecer e decidir.

E conhecendo.

3.1.

São as seguintes as questões colocadas no presente recurso:

- Tratamento dado à impugnação da matéria de facto pela Relação;

- Culpabilidade do recorrente

- Escolha da pena nos crimes de violação de domicílio e detenção de ama;

- Medida das penas parcelares e única;

- Suspensão da execução da pena.

O Ministério Público, em alegações orais, suscitou ainda a questão da qualificação jurídica da conduta do arguido.

3.2.

Vejamos, antes, a matéria de facto estabelecida pela primeira instância e que a Relação não alterou.

Factos provados:

No dia 06 de Maio de 2001, cerca das 18.30 horas, o arguido dirigiu-se à residência de AAP, sita em Besteiros, freguesia de Fontelonga, do concelho de Carrazeda de Ansiães

Aí chegado, empunhando uma pistola calibre 6.35 mm, que não foi possível apreender e examinar, perguntou pelo cunhado do ofendido de nome MP, com quem a sua companheira, AMR, mantinha um relacionamento amoroso nessa data.

Porque AAP lhe respondeu que o seu cunhado já tinha ido embora, o arguido subiu ao primeiro andar da dita residência e, sem autorização daquele, introduziu-se no seu interior, tendo percorrido as de pendências da mesma.

Ante esta atitude AAP subiu também de imediato ao referido andar tendo-se dirigido ao quarto onde se encontravam os seus filhos CNP, MEP e NAP, a ver televisão a fim de os proteger.

Acto continuo o arguido assomou à ombreira da porta do aludido quarto, que se encontrava aberta, empunhando a referida a arma, apontou-a na direcção de AAP, visando-o e quando se encontrava a cerca de um metro de distância deste disparou um tiro, tendo-o atingido na região do flanco esquerdo, após o que abandonou a residência do ofendido e fugiu.

Com esta conduta o arguido provocou a AAP hematoma peri-renal esquerdo, fractura da apófise transversa esquerda em L4 e projéctil alojado nos músculos peri-vertebrais esquerdo a nível de L3, que lhe determinaram directa e necessariamente 30 dias de doença com incapacidade total para o trabalho.

Tais lesões colocaram em perigo a vida de AAP, porque não foi, nem é, possível extrair o projéctil face à probabilidade de produzir uma hemorragia não controlável; lesão vascular que levaria à nefrectomia esquerda e provável lesão neurológica.

Em consequência das mencionadas lesões AAP sofre de dor muscular permanente, determinante de incapacidade parcial permanente para o trabalho, sendo ainda certo que poderá ser desencadeado processo infeccioso, determinado pelo agravamento das lesões sofridas.

No quarto onde se encontravam os filhos de AAP foi encontrada um invólucro detonado de calibre 6,35 mm.

Agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que ao disparar um tiro à distância a que se encontrava do AAP e a região do corpo visada lhe poderia provocar a morte, e só não ocorreu face à rápida assistência médica hospitalar a que este foi submetido e pelo facto de não ter sido atingido nenhum órgão vital, bem sabendo que sua conduta era proibida e penalmente punida.

Ao efectuar o disparo na direcção do flanco abdominal esquerdo de AAP o arguido previu a possibilidade de, com tal conduta, lhe causar a morte e actuou conformando com esse resultado.

Agiu ainda o arguido deliberada, livre e conscientemente ao entrar na residência de AAP, contra a vontade deste, bem sabendo que tal entrada nas referidas condições lhe estava vedada por lei.

Agiu ainda deliberada, livre e conscientemente ao deter e usar a pistola 6.35 mm sem ser portador de licença que legalmente o habilitasse à sua detenção e uso, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

O arguido vive em união de facto com LMR e uma filha de ambos com 12 anos, estudante.

É reformado, auferindo € 231 por mês. Faz trabalhos de construção civil auferindo € 40, por dia de trabalho.

A companheira faz serviços de limpeza, no que aufere € 300 por mês.

Não tem antecedentes criminais.

No momento em que foi atingido pela bala disparada pela arma que o arguido empunhava, AAP sentiu dores e acreditou que ia morrer.

A localização do projéctil no interior do corpo de AAP - alojado nos músculos peri-vertebrais esquerdos - determina-lhe dor muscular constante e angústia por ter dentro de si um corpo estranho.

AAP nasceu a 3 de Outubro de 1941. É agricultor.

Para agricultar as suas terras recorria, por vezes, a trabalho de outrem. Como meio de pagamento dos trabalhos que lhe prestavam AAP trabalhava, por sua vez, nos campos dessas pessoas.

Devido à dor muscular constante a capacidade de trabalho de AAP diminuiu. Em consequência desta diminuição da capacidade de trabalho, AAP não pode devolver, integral mente, os trabalhos que lhe prestam, pelo que, actualmente, tem de proceder ao pagamento de 30 jeiras por ano, no valor de € 25, a jeira.

Em consequência das lesões que lhe causou a conduta do arguido, AAP foi assistido no Hospital Distrital de Mirandela, onde permaneceu internado entre os dias 06 e 20 de Maio, foi submetido, entre outros tratamentos, a uma cirurgia e a laparotomia.

Nos tratamentos efectuados a AAP despendeu o Hospital Distrital de Mirandela a quantia de € 13.176.

Factos não provados:

No dia 6 de Maio de 2001, o arguido tenha desferido um tiro que atingiu o corpo de AAP, apenas pelo facto deste ser cunhado de MP.

Antes do dia 6 de Maio de 2001, o arguido trabalhava à jeira, não trabalhando menos de 250 dias por ano.

Devido às lesões sofridas em consequência da conduta do arguido, AAP não voltou a trabalhar por conta de outrem.

3.3.

Tratamento dado à impugnação da matéria de facto pela Relação

O recorrente refere que dos factos considerados provados nenhum consta que permita esclarecer a eventual causa ou motivo da conduta que lhe é imputada, para aí fundar a pretensão da sua absolvição (conclusão I.ª) e sustenta que o Tribunal da Relação devia proceder à análise crítica das provas indicadas no sentido de infirmar ou confirmar o julgamento que delas foi feito na primeira instância (conclusão II.ª), o que não colide com o princípio da livre apreciação da prova, só assim se mostrando completamente preenchido e verificado o dispositivo constitucional que assegura ao arguido todas as garantias de defesa incluindo o recurso (n.º 1 do art. 32° da CRP) e o dele decorrente principio do duplo grau de jurisdição em matéria de direito e em matéria de facto (arts. 410°n 1, als. a) e b) do no 3 do art. 412° e no 1 do art. 428°, todos do CPP) (conclusão III.ª).

Ao abster-se de analisar e reapreciar os meios de prova em que o Tribunal da primeira instância fundou o julgamento da matéria de facto, a Relação não cumpriu e/ou não interpretou devidamente os referenciados preceitos legais aplicáveis (conclusão IV.ª), pelo que deverá ser ordenado o reenvio do processo para nele se proceder à apreciação e reanálise da prova em causa e daqui se extraírem todas as legais consequências (conclusão V.ª).

Sobre essa questão escreve-se na decisão recorrida:

«1 - A impugnação da matéria e facto

Nesta parte, a questão fundamental do recurso está em saber se no julgamento foi feita prova de que foi o recorrente quem praticou os factos.

A motivação parece pressupor o entendimento de que, em caso de impugnação da matéria de facto, o tribunal da relação pode fazer um novo julgamento, indicando, mediante a leitura das transcrições feitas, os factos que considera provados e não provados.

Porém, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, "o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância" - Forum Justitiae, Maio/99.

Não concretiza aquele Professor a que vícios se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.

Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que, bateu em com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha afirmar que A bateu em souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação.

O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal" - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, ed.1974, pág. 204.

Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal". E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que "ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar" - Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss.

O art. 127 do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

A referência a este limite quase se afigura desnecessária face às exigências do n° 2 do art. 374 do CPP quanto à fundamentação da matéria de facto. A sentença há-de conter "os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido" - cfr. ac. Trib. Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99.

Na verdade, não é concebível que uma correcta exposição sobre os «critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão» colida com as regras da experiência.

Tudo o que ficou dito está em harmonia com as normas processuais que regulam o recurso em matéria de facto.

Dispõe o art. 412 n°3 do CPP:

Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar.

a) Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; e

b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida.

c)...

Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

O recorrente, na sua motivação, expressamente reconhece que no julgamento foi produzida prova susceptível de sustentar a decisão do tribunal. Mas contesta esta não só pela via da credibilidade dos depoimentos (o que, pelas razões já indicadas é insindicável por esta relação), mas também através da invocação de declarações prestadas no inquérito, que não foram lidas no julgamento. Esta pretensão contende frontal mente com a norma do art. 355 n.º 1 do CPP, nos termos da qual "não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito deformação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tivessem sido produzidas em audiência".

Argúi, ainda, a nulidade do reconhecimento feito na audiência por testemunhas, sem ser observado o formalismo previsto no art. 147 do CPP.

O nosso mais Alto Tribunal, sem divergências conhecidas, vem afirmando que o reconhecimento em audiência de certa pessoa como autora de determinado facto não está sujeito aos requisitos exigidos no art. 147 do CPP, os quais apenas são referentes à prova por reconhecimento em inquérito ou instrução. Na verdade, quando no inquérito ou na instrução se faz o reconhecimento, é necessária a observância do formalismo ali previsto, com a correspondente redução a auto, para que a diligência possa vir a ser usada no julgamento. Diferentemente, quando o reconhecimento é feito no julgamento pela testemunha, ele é indissociável do conjunto do depoimento, que é livremente apreciado pelo julgador, nos termos do já citado art. 127 do CPP. Aliás, o uso no julgamento do formalismo em causa seria totalmente despropositado, porque, nesta fase, "o arguido, como tal, já se encontra suficientemente conhecido, identificado e reconhecido, motivo pelo qual um possível reconhecimento da sua pessoa feito nela por uma testemunha é, fundamentalmente, uma forma de determinar se esta última se encontra a depor com verdade" - ac. STJ de 1 -2-96 CJ STJ tomo 1, pág. 199, a título de mero exemplo, pois em qualquer código anotado pode ser encontrada abundante citação de jurisprudência no sentido indicado.

Finalmente, temos a violação do princípio in dúbio pro reo.

Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador (e não, naturalmente, de outros sujeitos processuais) só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido - ac. STJ de 24-3-99 CJ STJ tomo 1, pág. 247.

Ora no texto do acórdão não se vislumbra que os srs. juízes tenham tido dúvidas sobre a prova de qual quer dos factos que considerou provado, pelo que improcede a invocada violação.

Tem-se, assim, por definitivamente assente a matéria de facto assente na primeira instância.»

Merecerá censura esta decisão?

Entendemos que não. Na verdade, o recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente.

Antes se deve entender que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.

O Tribunal Superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (e quanto ao segmento indicado, se for o caso) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (art. 431.º do CPP).

Ora, o recorrente, como se viu, sustenta que o Tribunal da Relação devia proceder à análise crítica das provas indicadas no sentido de infirmar ou confirmar o julgamento que delas foi feito na primeira instância (conclusão II.ª) só assim se mostrando completamente preenchido e verificado o dispositivo constitucional que assegura o principio do duplo grau de jurisdição em matéria de direito e em matéria de facto (conclusão III.ª). E pede o reenvio «do processo para nele se proceder à apreciação e reanálise da prova em causa e daqui se extraírem todas as legais consequências (conclusão V.ª)», dado ter-se a Relação abstido de analisar e reapreciar os meios de prova em que o Tribunal da primeira instância fundou o julgamento da matéria de facto (conclusão IV.ª).

Mas, o recorrente parte de uma noção de duplo grau de jurisdição - apreciação pelo Tribunal Superior de todos os meios de prova conhecidos em audiência de julgamento em 1.ª Instância - que não tem acolhimento constitucional e legal, como se viu.

Por outro lado, o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez. O que questiona é a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida. Mas não indica elementos objectivos que imponham a atribuição de uma credibilidade diferente àqueles depoimentos.

Ora, se há sector especialmente dependente da imediação do Tribunal é exactamente a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos. Então, só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso.

E é igualmente um domínio em que a mera discordância da posição do Tribunal da 1.ª Instância, por parte do recorrente, não pode fundar a afirmação de erro na apreciação da prova (cfr. sobre este ponto o Ac. de 29.1.05, proc. n.º 3785/04-3 deste Tribunal).

Finalmente, a referência de que não consta dos factos provados o esclarecimento da eventual causa ou motivo da conduta do arguido (conclusão I.ª) não envolve, nesta sede, qualquer crítica à matéria de facto que devesse ser analisada pela Relação, pois que se não diz que tal tinha sido alegado e era susceptível de ser apurada, caso em que se poderia configurar insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

Daí que não merece censura o decidido pela Relação sobre a impugnação da matéria de facto.

3.4.

Culpabilidade do recorrente

Clama o arguido que está inocente, salientando que «dos factos considerados provados nenhum consta que permita esclarecer a eventual causa ou motivo da conduta que lhe é imputada» (conclusão I.ª).

E assenta esta sua pretensão na crítica que faz da matéria de facto provada (conclusões I.ª a V.ª) e da posição sobre ela assumida pela Relação.

Mas, como se viu já, não merece censura a posição da Relação sobre a questão de facto.

E dada a factualidade apurada pelas instâncias dúvidas não se colocam, nem em boa verdade o suscitou o recorrente, sobre a bondade da qualificação da sua conduta como constituindo um crime de homicídio tentado do art. 131.º do C. Penal.

Com efeito, a 6.5.01, pelas 18.30 horas, na residência de AAP, em Carrazeda de Ansiães, o arguido empunhando uma pistola calibre 6.35 mm perguntou àquele pelo MP, com quem a sua companheira mantinha então um relacionamento amoroso. Tendo o AAP respondido que o seu cunhado já tinha ido embora, o arguido introduziu-se no interior da residência seguido pelo AAP e apontou a arma na sua direcção, visando-o e quando se encontrava a cerca de 1 metro disparou um tiro, tendo-o atingido na região do flanco esquerdo e fugindo de seguida. Provocou, assim, ao AAP hematoma peri-renal esquerdo, fractura da apófise transversa esquerda em L4 e projéctil alojado nos músculos peri-vertebrais esquerdo a nível de L3, que colocaram em perigo a sua vida, porque não foi, nem é, possível extrair o projéctil face à probabilidade de produzir uma hemorragia não controlável; lesão vascular que levaria à nefrectomia esquerda e provável lesão neurológica.

Agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que ao disparar um tiro à distância a que se encontrava do AAP e a região do corpo visada lhe poderia provocar a morte, e só não ocorreu face à rápida assistência médica hospitalar a que este foi submetido e pelo facto de não ter sido atingido nenhum órgão vital, bem sabendo que sua conduta era proibida e penalmente punida. Ao efectuar tal disparo o arguido previu a possibilidade de, com tal conduta, lhe causar a morte e actuou conformando com esse resultado.

Estão, pois, presentes todos os elementos do tipo legal de homicídio simples tentado, o que, em boa verdade, não é sequer contestado pelo recorrente.

Nenhuma dúvida sugere, pois, a sua condenação como autor material de tal crime.

3.5.

Escolha da pena nos crimes de violação de domicílio e detenção de arma.

Sustenta o recorrente que erraram as Instâncias quanto à opção pela pena privativa de liberdade nos crimes de violação do domicílio e de detenção ilegal de arma em detrimento da multa já que não se verificam circunstâncias relevantes seja em termos de prevenção geral ou de prevenção especial que justifiquem aquela opção, pelo que não aplicaram devidamente o art. 70º do C. Penal (conclusão IX.ª).

Pretende, pois, o recorrente que o Tribunal deveria ter optado pela pena de multa à luz do dispositivo do art. 70.º do Código Penal.

Prevê-se aí que, sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Essas finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal).

Sobre essa questão escreveu-se na decisão recorrida:

«Quanto aos crimes de violação de domicílio e de detenção ilegal de arma, pugna o recorrente pela opção pela pena de multa. Mas as finalidades da punição impedem a aplicação de penas não privativas da liberdade. A prática destes crimes está indelevelmente ligada à tentativa de homicídio, sendo que, a final, no cúmulo jurídico, há que fixar uma pena única que tenha em consideração, em conjunto todos os factos e a personalidade do agente - art. 77.º, n° 1 do Cod. Penal. Isso só se consegue plenamente com penas da mesma espécie.

No caso de se manter a opção pela pena de prisão para estes dois crimes, não vêm questionadas as medidas concretas, nem o cúmulo jurídico das três penas.»

Ora, como aí se entendeu, e resulta da matéria de facto provada, são acentuadas as exigências de prevenção geral positiva pela gravidade da conduta em causa, a gratuitidade da conduta do arguido. Ele, agiu com dolo eventual mas intenso, não para se defender, mas aceitando matar outrem, em relação a quem nem tentou enunciar qualquer razão de queixa.
O mesmo se diga quanto à entrada do domicílio do ofendido armado para localizar o amante da sua companheira, e não o tendo encontrado percorreu a casa assustando o ofendido e seus filhos e acabando por atingir este, no interior da casa, com a arma de fogo que empunhava.
O que vale por dizer que a pena não privativa da liberdade não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Por outro lado, como se decidiu no Ac. de 04/12/2003 (proc. n.º 3267/03-5, do mesmo Relator) deste Tribunal, quando a arma detida ilegalmente foi usada para cometer um homicídio a que deve corresponder pena prisão efectiva, não faz sentido optar pela pena de multa, sabido que as finalidades desta última espécie de pena ficam então comprometidas.

Referiu-se neste aresto que o Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar, a propósito de questão diversa, sobre as penas compósitas de prisão e de multa (Ac. 28.6.2001, proc. n.º 1567/01, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e também subscrito pelo aqui Relator, que se seguirá de perto neste ponto), historiando a evolução legislativa e o pensamento do legislador sobre esta questão, desde a versão originária do C. Penal. Como aí se cita, o Prof. Figueiredo Dias sobre a pena complementar de multa refere: "Uma tal pena «mista» é, numa palavra profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão! O desaparecimento da pena complementar de multa (e portanto da pena mista de prisão e multa) impõe-se, pois, numa futura revisão do CP, como forma de restituir à pena pecuniária o seu sentido político-criminal mais profundo e de aumentar a sua eficácia penal." (Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, § 192)

E mostrando-se sensível a esta apreciação crítica, o legislador deu-lhe guarida já que, segundo o preâmbulo do DL n.º 48/95, de 15 de Março, expressamente se aceitou «o abandono da indesejável prescrição cumulativa das penas de prisão e multa na parte especial».

É que, sendo a pena "compósita", isto é, abrangendo ela duas vertentes distintas da condenação - prisão e multa - em embora se possa ter tal pena como uma pena única ou única pena, de resto, como acontece nos casos de concurso - art.º 77.º, n.º 1, do Código Penal - o certo é que não pode abstrair-se da pluralidade de imposições que, para mais, com segmentos de diferente natureza, a mesma encerra.

Na verdade, tal como nos casos de concurso em que, operando a combinação das penas parcelares, estas não perdem a sua natureza de fundamentos da pena conjunta final, também aqui, no caso de crime singular, punido simultaneamente com penas de prisão e multa, cada uma delas conserva os seus fundamentos específicos e autónomos de ponderação. Até porque, como se viu, visando cada uma delas finalidades diferenciadas, se os critérios gerais de doseamento concreto são os mesmos - art.ºs 47.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1, do Código Penal - como não podia deixar de ser, há especificidades próprias de cada uma, como por exemplo a do artigo 47.º, n.º 2, para a multa.

É que, visando a multa atingir os seus fins - mormente aquele de «colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira» torna-se lógico que a lei demonstre claramente a sua preocupação de, para tal fim, atingir efectivamente o património respectivo e garantir efectivamente o pagamento, como resulta nomeadamente dos artigos 47.º, n.ºs 3, 4 e 5 e 49.º, n.º 2.

Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida, ao não optar pela pena de multa, quanto aos crimes de detenção de arma e de violação de domicílio.

3.6.

Qualificação jurídica da conduta do arguido.

Sustentou o Ministério Público em audiência que a Relação, mesmo tendo afastado a circunstância agravativa a que atendeu a 1.ª Instância, não estava dispensada de verificar se, apesar disso, se mantinha a verdadeira agravação do homicídio: a do n.º 1 do art. 132.º do C. Penal também invocada na 1.ª Instância.

E assiste-lhe razão.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência (Ac. nº 4/95 de 7.6.95, DR IS-A de 6-7-95 e BMJ 448-107) no sentido de que «o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus».

Assente que a Relação podia (ou devia) verificar qual a qualificação jurídica adequada face à improcedência do "meio insidioso" invocado, obviamente sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus», importa ver se a conduta do arguido integra a o crime de homicídio simples, como decidiu a Relação, ou se integra antes o homicídio qualificado.

Deve entender-se que o n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade; é essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre. Depois, ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2).

Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2. De concluir é, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não se verifique qualquer daqueles indicadores.

Para impugnar a qualificação da conduta como constituindo homicídio qualificado, deve o arguido afirmar e demonstrar que a morte não foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, designadamente o índice do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal que tiver sido invocado, pois que, independentemente da verificação de qualquer circunstância prevista naquele n.º 2 do art. 132.º, sempre se poderia considerar incluso na previsão do n.º 1 do mesmo artigo, o caso em que se verifica:

- a futilidade da actuação dirigida contra pessoa estranha à razão que levou o arguido àquela casa: frustração por não encontrar o seu alvo;

- a deslealdade com que desferiu o ataque (disparando uma arma de fogo, sem qualquer aviso, contra o ofendido que se encontrava indefeso e vulnerável a tentar pateticamente proteger os seus filhos de mãos nuas);

- o tipo de arma usada e a forma como o foi (a arma de fogo usada de forma a não deixar qualquer hipótese ao ofendido e a não fazer qualquer risco ao arguido);

- a frieza com que a conduta foi desencadeada, conduzem à qualificação do crime de homicídio por revelarem especial perversidade e censurabilidade (Cfr. neste sentido o Ac. de 10.10.02, proc. n.º 2577/02-5, do mesmo Relator).

A conduta do arguido corporiza, pois, o crime de homicídio qualificado e não de crime de homicídio simples (tentado), não podendo, no entanto, ter tal circunstância, qualquer efeito sobre a sanção respectiva, por via da proibição da reformatio in pejus.

3.7.

Medida das penas parcelares e pena única

Sustenta o recorrente que só tendo ele recorrido, a desqualificação da sua conduta, que foi subsumida apenas à previsão do art. 131° do C. Penal, não pode deixar de conduzir à aplicação de uma pena concreta inferior à cominada e com uma redução, pelo menos, proporcional à que a moldura penal abstractamente aplicável sofreu (conclusão VI.ª). Mantendo a pena da 1.ª instância, com a justificação de que esta foi de grande benevolência, o Tribunal recorrido alterou de forma mais desfavorável para o arguido os critérios por aquela adoptados na determinação em concreto da medida da pena pelo que, violou o principio da reformatio in pejus - n.º 1 do art. 409° do CPP (conclusão VII.ª), pelo que da decisão recorrida resulta inequivocamente para o arguido uma pena mais grave do que a aplicada na 1.ª instância (conclusão VIII.ª)

Assim, atentos os critérios legais e os fundamentos da 1.ª Instância, mostra-se claramente excessiva e desajustada a pena cominada pois deveria o arguido ter sido punido, pela prática de um crime de homicídio na sua forma tentada dos art.ºs 131º, 22°, 73°, n.º 1, als. a) e b) do C. Penal, com uma pena não superior a 2 anos e 4 meses de prisão, pela prática do crime de violação de domicílio do art. 190º do C. Penal com a pena de 100 dias de multa à taxa diária mínima e pelo crime de detenção ilegal de arma do art. 6° da Lei 27/97 na pena de 80 dias de multa a igual taxa (conclusão X.ª), ou, a entender-se necessária a opção pela pena privativa de liberdade, respectivamente a prisão por 3 meses e por 6 meses (conclusão XI.ª)

E, em cúmulo deveria o arguido ser condenado em pena única não superior a 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa por 2 anos, e 100 dias de multa com taxa mínima ou na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão suspensa (conclusão XII.ª), pois a sua personalidade e condições de vida, o seu comportamento e as circunstâncias dos factos permitem concluir que a censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena realizam de forma adequada, suficiente e eficaz as finalidades da punição (conclusão XIII.ª).

A primeira questão que vem colocada no domínio da dosimetria penal prende-se com a alegada violação do princípio da proibição da reformatio in pejus.

Dispõe o art. 409.º do CPP, sob tal epígrafe, que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes (n.º 1).

Ora, a interpretação literal de tal preceito não permite afirmar, no caso, a sua violação.

Com efeito, o arguido foi condenado na pena de 4 anos de prisão, por 1 crime de homicídio na forma tentada dos arts. 131°, 132°, n,°1 e 2, al. h), do C. Penal, pena que foi mantida, no recurso por si interposto, pela Relação no acórdão aqui recorrido. O que significa que a pena não foi agravada pelo Tribunal Superior em recurso interposto no exclusivo interesse da defesa, em contravenção do disposto naquele art. 409.º, n.º 1.

Mas impor-se-á a interpretação sugerida pelo recorrente, de que a desqualificação do crime de homicídio qualificado tentado para homicídio simples tentado simples impõe necessariamente a diminuição da pena, no quadro da nova moldura penal?

A questão já vem sendo ponderada pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo-se começado a desenhar, designadamente na 5.ª Secção, uma tendência para uma resposta positiva.

Assim, no Ac. de 29.4.03 (proc. n.º 768/03-5, relatado pelo Conselheiro Carmona da Mota, com uma declaração de voto) decidiu-se que "na sequência de recurso interposto pelo arguido, sempre que a Relação desagrave o ilícito criminal em que aquele foi condenado em 1.ª instância, deve - sob pena de reformatio in pejus - reformular (in melius) as penas aplicadas na medida exacta da implicação, na sua graduação, da(s) agravante(s) «desaparecida(s)»".

Nos Acs. de 6.11.03 (proc. n.º 453/04-5) e de 6.504, , proc. n.º 3392/03-5, relatados pelo Conselheiro Pereira Madeira) entendeu-se que: "1 - Se a condenação em 1.ª instância assentava na existência de um certo grau de ilicitude baseado, nomeadamente, na existência de duas agravantes modificativas típicas, e o tribunal superior revogou parcialmente a decisão recorrida considerando verificar-se apenas uma daquelas circunstâncias agravantes, não lhe era lícito, no âmbito do recurso do arguido, sob pena de violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, não obstante, manter inalterada a pena aplicada, assentando nos mesmos demais parâmetros da condenação recorrida, mormente a culpa e as outras circunstâncias de que aquela lançou mão."

No mesmo sentido vai ainda o Ac. de 26.2.04 (proc. n.º 267/04-5, Relator: Conselheiro Pereira Madeira): "5 - Ao aplicar, sem mais, à nova factualidade (a anterior, deduzida da uma circunstância típica qualificativa), uma pena igual à aplicada à anterior, a Relação acabou por agravar, ainda que implicitamente, a pena que a 1.ª instância virtualmente teria aplicado se não tivesse pressuposto - como erradamente pressupôs - a presença daquela agravante, afinal ausente, das circunstâncias consideradas.

6 - Essa agravação a que a Relação assim levou a cabo sem alteração dos parâmetros concretos da condenação envolveu - ostensivamente - uma proibida reformatio in pejus (art.º 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). E isso porque a Relação, desse modo (ou seja, reeditando, num contexto mais brando, uma pena aferida em mais gravosos contornos), não mais fez que corrigir, in pejus (no quadro, embora, de um recurso interposto somente pelos arguidos), a decisão da 1.ª instância para com os arguidos recorrentes."

Esta tendência insere-se numa preocupação recente do Supremo Tribunal de Justiça com as consequências processuais do princípio da proibição da reformatio in pejus, que também nos tem movido. E teve a sua génese na consideração dos poderes da 1.ª Instância quando o Tribunal Superior anula o julgamento ou a sentença em recurso trazido só pela defesa, concluindo-se que não deverá terá mais poderes dos que assistiam a este último Tribunal no recurso (no que não foi acompanhada pelo Ac. de 17.3.04, proc. n.º 4415/04-3, relatado pelo Conselheiro Pires Salpico).

Insere-se aí o Ac. de 27.11.03 (proc. n.º 3393/03-5, do mesmo Relator), com o seguinte sumário do Relator:

«(14) - Decorre do princípio da proibição da reformatio in pejus que, se em recurso só trazido pelo arguido, for ordenada a devolução do processo, não poderá a instância vir a condenar o recorrente em pena mais grave do que a infligida anteriormente. (15) - Mas a compreensão daquele princípio integra o processo justo, o processo equitativo, tributário da estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente e do princípio da acusação, que impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem limitados os parâmetros da decisão e condicionado no processo o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido. (16) - O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente, mesmo se o arguido tenha pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal, por se postularem as mesmas razões, sendo que a solução contrária se traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento ou da devolução) poderes que não estavam cometidos ao tribunal de recurso.»

Dessa preocupação dá, aliás, conta com cópia de informação, o artigo Proibição de Reformatio in pejus, Consequências processuais (Jorge Dias Duarte, Maia Jurídica, n.º 2 de 2003, pág205-221), em que se concluiu:

«I - a actual compreensão do processo penal como um processo equitativo, em que está constitucionalmente consagrada o estruturo acusatório do processo, com pleno relevo do princípio da acusação, implica o entendimento da proibição de reformatio não, apenas, como um princípio dos recursos, mas como um princípio de todo o processo;

- de tal compreensão resulta nítida o conclusão de que, interposto recurso apenas pelo arguido, (ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido), tal recurso estabelece um limite à actividade jurisdicional do tribunal ad quem, que, assim, não poderá alterara decisão em desfavor do arguido (repete-se, único) recorrente;

tal limite será plenamente operante mesmo paro os casos em que o arguido tenho suscitado uma questão que implique a anulação do julgamento ou o reenvio paro outro tribunal, que não poderá(ão) condenar em pena mais grave do que aquele que é posta em causa no recurso, pois esta é, aliás, a única forma a obviar à possibilidade da reformatio indirecta, isto é, consiste na única forma de impedir que o tribunal do novo julgamento ou de reenvio tenho mais poderes que o tribunal de recurso não tinha;

II - em caso de condenação por um crime qualificado e de, subsequente, convolação pela tribunal de recurso para um (mesmo) crime não qualificado, sendo ordenado o reenvio dos autos para determinação da pena face ao (novo) enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido recorrente, o tribunal de reenvio pode manter a pena anteriormente fixada, (ainda que à luz de molduras penais distintas), sem que tal implique, necessariamente uma violação do princípio da proibição de reformatio in pejus;

- para que tal possa suceder torna-se essencial que, nesses casos, o tribunal de reenvio fundamente de forma particularmente cuidada aquela manutenção depena;

II - quando, em resultado de convolação par ele efectuada para um crime menos grave (maxime, o "mesmo" crime mas desqualificado), o tribunal de recurso fixe novas penas aos arguidos recorrentes, deve encontrar as novos penas única e exclusivamente à luz dos critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal;

- não é, assim, de todo legítimo que, para efeito de "desagravação" de tais penas, o tribunal de recurso aplique, acriticamente, o critério anteriormente utilizado (nomeadamente em 1ª instância) para proceder à agravação das penas em que o(s) arguido(s) recorrente(s) vinha(m) condenado(s).»

Por nós mantemos a posição assumida pelo aqui Relator no voto de vencido lavrado no mencionado Ac. 29.4.03 (proc. n.º 768/03-5):

«Tem este Supremo Tribunal de Justiça começado recentemente a considerar explicitamente as implicações processuais do princípio da proibição de reformatio in pejus, como se pode ver, v.g. de outros arestos do mesmo Ilustre Relator e do voto de vencido lavrado no acórdão de 9.4.03, processo n.º 4628/02-3 do Conselheiro Henriques Gaspar.

Embora aderindo ao essencial dessas preocupações, só perante cada caso concreto se podem percepcionar as eventuais ultrapassagens daquela proibição, pelo que não acompanho a afirmação do acórdão de que, no caso se trate "ostensivamente" de uma proibida reformatio in pejus, face à desagravação do crime. Seria eventualmente de esperar uma diminuição da pena pela relação, mas daí a ter tal como inexorável vai um passo que não nos atrevemos (ao menos, ainda) a dar. Resolvida a questão da qualificação jurídica, colocava-se também a questão de saber se a pena infligida (agora no quadro de uma nova moldura) era justa e adequada aos fins das penas e à culpa dos agentes. E tem de admitir-se, em tese, que a Relação tivesse as penas aplicadas por justas, mesmo no novo quadro, o que imporia reforçada argumentação que, de algum modo, a Relação desenhou.

Assim, afigura-se excessivo o automatismo configurado no acórdão, em que, além do mais, se utiliza uma "medida" usada na 1.ª instância, sem escrutínio crítico autónomo do Supremo, para de algum modo ficcionar a decisão que a 1.ª instância tomaria no caso de ter ponderado o enquadramento jurídico encontrado pela Relação.

Penso que, no quadro dado, o Supremo Tribunal de Justiça deveria ponderar autonomamente os elementos a que manda atender o art. 71.º do C. Penal e então sindicar a medida da pena, mantida pela Relação, no quadro de moldura penal diversa da considerada pela 1.ª instância.»

Com efeito, aceita-se que seja de esperar que o Tribunal Superior, que "desqualificou" um determinado crime, entendendo que a conduta do arguido corporizava antes o tipo simples correspondente, diminua a pena aplicável, agora numa moldura penal abstracta mais favorável.

Mas rejeita-se a ideia de que tal se imponha inevitavelmente, mesmo que a pena aplicada pelo crime mais grave, se mostre justa e adequada na nova moldura, recorrendo-se então, para baixar a pena a uma "proporcionalidade formal" com base na diferença das molduras, e uma ficção sobre o que faria o tribunal recorrido, em vez do Tribunal Superior aplicar, como lhe compete, autonomamente a lei.

Assim, entende-se que a nova qualificação efectuada pela Relação no acórdão recorrido não impõe inelutavelmente uma diminuição da pena aplicada pelo crime de homicídio simples.

Se tal deve acontecer, ver-se-á de seguida a propósito das penas parcelares concretas.

Nas conclusões da motivação do recurso para a Relação, o recorrente não impugna a medida concreta das penas parcelares de prisão infligidas, salvo no que se refere ao crime de homicídio tentado. Na verdade, na conclusão XII daquela peça, além de uma pena de prisão (suspensa) menos grave para o homicídio, pede a aplicação de penas de multa pelos crimes de violação de domicílio e detenção ilegal de arma.

E na conclusão XIII só se refere genericamente: «para além de se mostrarem desadequadas, desajustadas e excessivas as penas parcelares e única com que o Tribunal recorrido cominou o arguido sempre (...)», sem quantificar especificamente o exagero e como argumentação tendente a obter uma pena única de 2 anos de prisão com a execução suspensa por 2 anos.

Daí que a Relação tenha entendido que não vinham questionadas as penas parcelares referentes a tais crimes e tenha escrito na decisão recorrida: «no caso de se manter a opção pela pena de prisão para estes dois crimes, não vêm questionadas as medidas concretas, nem o cúmulo jurídico das três penas.»

Ora, o recorrente não questionou tal entendimento (que a ser incorrecto inquinaria com a nulidade de omissão de pronúncia a decisão recorrida) e veio subtilmente dar corpo, nas conclusões X a XIII da motivação de recurso para este Supremo Tribunal, à discordância quanto a tais penas.

Só que não tendo sido colocada tal questão à Relação e não se tendo esta debruçado sobre ela, não pode agora o Supremo Tribunal de Justiça conhecer da mesma, limitado que está ao reexame das questões apresentadas (à) e apreciadas pela 2.ª Instância.

Resta, assim, a pena única do crime de homicídio tentado e, no caso da sua alteração, a pena única.

Ao crime de homicídio simples tentado corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 ano 7 meses e 6 dias até 10 anos e 8 meses.

Encontrada a moldura penal abstracta, é nela que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);
- A intensidade do dolo ou negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
O arguido está inserido familiarmente, vivendo em união de facto com AMR e uma filha de ambos com 12 anos, estudante. É reformado, auferindo € 231 por mês. Faz trabalhos de construção civil auferindo € 40, por dia de trabalho, a companheira faz serviços de limpeza, no que aufere € 300 por mês. Não tem antecedentes criminais.

O arguido não revela sentimento de arrependimento em relação aos factos descritos, dos quais não ressarciu a vítima.

O dolo é eventual mas de certa intensidade, atentas a região visada e a distância a que foi efectuado o disparo e a gratuitidade da conduta.

Com efeito, entrou na casa do ofendido sem a sua autorização à procura do amante da sua companheira e percorreu-a e sem motivo aparente na ombreira da porta do quarto onde se encontrava o ofendido e 2 filhos disparou a arma de fogo na direcção de AAP, visando-o a cerca de 1 metro de distância, tendo-o atingido na região do flanco esquerdo, após o que abandonou a residência do ofendido e fugiu.

Mas também releva a ilicitude da sua conduta, se atendermos às consequências para o ofendido: lesões que colocaram em perigo a vida do ofendido, porque não foi, nem é, possível extrair o projéctil face à probabilidade de produzir uma hemorragia não controlável; lesão vascular que levaria à nefrectomia esquerda e provável lesão neurológica. Em consequência dessas lesões sofre ele de dor muscular permanente, determinante de incapacidade parcial permanente para o trabalho, sendo ainda certo que poderá ser desencadeado processo infeccioso, determinado pelo agravamento das lesões sofridas. A localização do projéctil no interior do corpo do ofendido determina-lhe dor muscular constante e angústia por ter dentro de si um corpo estranho.

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97).

A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
A decisão recorrida ponderou a propósito:
«3 - As penas concretas

A pena concreta achada pelo tribunal recorrido para a tentativa de homicídio qualificado, considerando a moldura abstracta e as circunstâncias concretas do caso (4 anos de prisão), foi de grande benevolência.

Quanto à tentativa de homicídio, agora «simples», dir-se-á o seguinte:

Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa - art. 40 n.° 2 do CPP.

A «culpa» é o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso - cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316.

A culpa concreta do recorrente é muito superior à média, pois ele disparou contra quem aparentemente nada tinha a ver com as questões que o preocupavam.

Por outro lado, a pena tem, sempre, o fim de servir para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. É o instrumento, por excelência, destinado a revelar perante a comunidade que a ordem jurídica é inquebrantável, apesar de todas as violações que tenham lugar - cf. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, pags. 74 e ss. É a chamada prevenção geral positiva ou de integração, que dentro dos limites da medida da culpa determina a pena. Esta, em caso algum, deverá pôr em causa o limite inferior constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. A pena não pode questionar a crença da comunidade na validade da norma violada e, por essa via, o sentimento de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.

Ao tentar matar outra pessoa, sem causa justificativa, o arguido quis violar o principal bem tutelado pelo direito criminal. Porém, a gravidade dessa violação já está contemplada na moldura penal acima indicada.

Por outro lado, lendo-se os factos provados, neles não se detectam quaisquer circunstâncias que atenuem o comportamento do arguido.

É certo que não lhe são conhecidos antecedentes criminais, mas isso é o normal no comum dos cidadãos.

Sendo a culpa superior à média e as exigências de prevenção, pelo menos próximas da média, tudo aponta para a fixação de uma pena concreta próxima do meio da moldura penal, isto é, próxima dos cinco anos de prisão.

Como, porém, o arguido foi condenado na primeira instância em 4 anos de prisão, por força da proibição da reformatio in pejus (art. 409.º do Cód. Penal), mantém-se aquela pena, apesar da alteração da qualificação jurídica.

Quanto aos crimes de violação de domicílio e de detenção ilegal de arma, pugna o recorrente pela opção pela pena de multa. Mas as finalidades da punição impedem a aplicação de penas não privativas da liberdade. A prática destes crimes está indelevelmente ligada à tentativa de homicídio, sendo que, a final, no cúmulo jurídico, há que fixar uma pena única que tenha em consideração, em conjunto todos os factos e a personalidade do agente - art. 77.º n° 1 do Cód. Penal. Isso só se consegue plenamente com penas da mesma espécie.

No caso de se manter a opção pela pena de prisão para estes dois crimes, não vêm questionadas as medidas concretas, nem o cúmulo jurídico das três penas.

Finalmente, mantendo-se a pena única fixada pela primeira instância, está prejudicada a questão da sus pensão da execução, visto o disposto no art. 50.º n.° 1 do Cód. Penal - não pode ser suspensa a execução de penas superiores a 3 anos de prisão.»

Este Tribunal tem fixado em casos de homicídio tentado as seguintes penas:
- 3 anos, suspensa por 5 anos em caso de homicídio simples, em que se perfilavam muitas circunstâncias atenuantes (Ac. de 6.11.85, BMJ 351-189);
- 3 anos, em caso de homicídio simples (Ac. de 23.4.87, BMJ 366-305);
- 4 anos (BMJ 397-315);
- 3 anos suspensa por 5 anos, em caso de homicídio simples, tendo o jovem delinquente uma incapacidade parcial e tendo decorrido 8 anos decorridos (Ac. de 30.6.93, proc. n.º 44493);
- 3 anos, suspensa por 5 anos, em caso de homicídio simples ocorrido no meio familiar e relacionado com uma situação de toxicodependência (Ac. de 1.3.00, proc. n.º 1165/99-3, BMJ 495);
- 3 anos e 6 meses, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 17.10.91, BMJ 410-360);
- 4 anos, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 28.11.01, proc. n.º 3127/01-3);
- 4 anos e 6 meses, (Ac. de 6.2.02, proc. n.º 4456/01-3);
- 3 anos, em caso de homicídio simples (Ac. de 13-2-02, proc. n.º 4261/01-3)
- 5 anos, em caso de homicídio qualificado, uxoricídio (Ac. de 15.10.03, proc. n.º 2409/03-3)
- 9 anos, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 12.11.03, proc. n.º 3257/03-3, crime sem motivo, salvo a nacionalidade da vítima)
- 4 anos e 4 anos e 6 meses - homicídio qualificado tentado (Ac. de 14.10.2004, proc. n.º 3220/04);

- 3 anos (Ac. de 14.10.2004, proc. n.º 3232/04-5)

- 5 anos e 6 meses (Ac. de 4.11.04, proc. n.º 4502/04-5, sendo extremamente graves as consequências físicas para o ofendido)

A esta luz, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que o recorrente contesta, se situa dentro da sub-moldura a que se fez referência.
Mas se é certo que, como se disse e a decisão recorrida retoma, a culpa concreta do recorrente é elevada, pois disparou contra quem aparentemente nada tinha a ver com as questões que o preocupavam, também é certo que, além de ser o dolo menos grave - dolo eventual, actuação num quadro emotivo, ao que tudo indica numa atitude de frustração pela inconclusão das diligências para encontrar o amante da sua companheira.

Assim, atendendo à análise que efectuou, aceita-se que a pena pelo crime de homicídio tentado simples se fique pelos 3 anos de prisão.

Efectuando o cúmulo jurídico dessa pena com as penas de 6 meses de prisão, por um crime de violação de domicílio do art. 190°, n.° 1, do C. Penal e 9 meses de prisão, por um crime detenção ilegal de arma do art. 6°, da Lei n.º 22/97, considerando todos os factos e o que eles traduzem da personalidade o agente, elemento aglutinador do concurso, aplicando um critério muito próximo daquele de que se socorreram as instâncias, fixa-se a pena única em 3 anos e 7 meses de prisão.

3.6.

Suspensão da execução da pena.

A pena única aplicada prejudica, face ao teor do n.º 1 do art. 50.º do C. Penal, o conhecimento da suscitada questão da suspensão da execução da pena de prisão.

4.

Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso do arguido e condená-lo na pena parcial de 3 anos pelo crime de homicídio tentado e na pena única de 3 anos e 7 meses de prisão, no restante mantendo o acórdão recorrido.

Custas no decaimento, com a taxa de justiça de 3 UCS.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005
Simas Santos (Relator)
Santos Carvalho
Costa Mortágua
Quinta Gomes