Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
535/11.0TYVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: GERENTE
RESPONSABILIDADE CIVIL
FACTOS
CONFISSÃO
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MEMBROS DA ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 72.º, N.º1, 77.º, N.º1.
Sumário :

1. No âmbito do recurso de apelação, a Relação, confrontada com uma confissão que porventura não tenha sido considerada, deve explicitar os factos que considera provados por via da confissão.

2. A responsabilidade civil do gerente de sociedade por quotas pressupõe a prova de todos os pressupostos constantes do art. 72º da CSC, designadamente a ilicitude e o dano.

3. Para demonstrar a ilicitude ou o dano revela-se insuficiente a prova de que o gerente, a quem é imputada a responsabilidade, sacou um cheque da sociedade que depois foi depositado na sua conta bancária.

A.G.

Decisão Texto Integral:

I - AA, na qualidade de sócio da sociedade comercial B e B, Ldª, instaurou acção declarativa contra CC, pedindo a sua condenação na devolução à referida sociedade da quantia de € 38.250,00€, com juros de mora desde 2-4-09 até pagamento.

Requerendo simultaneamente a intervenção principal da sociedade como sua associada, o A. alegou que a R., na condição de gerente da aludida sociedade, sacou um cheque de € 38.250,00, o qual, apesar de ser à ordem do A., acabou por ser embolsado pela R. em violação das obrigações de gerente.

A R. contestou e alegou que o A. autorizou a entrega à R. da quantia de € 38.250,00 a título de rendas devidas pela sociedade pela ocupação de imóveis que pertenciam ao A. e à R., então casados um com o outro, o que foi mutuamente ponderado no âmbito de partilha de bens comuns que o casal se encontrava a fazer no âmbito do processo de divórcio.

Na réplica, o A. alegou que ainda que aparentemente o cheque se destinasse ao pagamento de rendas devidas ao A., a sociedade sempre lhe pagou as rendas, não tendo servido efectivamente para qualquer pagamento.

Procedeu-se ao julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido.

O A. apelou e a Relação julgou a acção totalmente procedente, condenando a R. a pagar à sociedade interveniente a quantia de € 38.250,00, com juros de mora desde 2-4-09.

A R. interpôs recurso de revista e concluiu essencialmente que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil e que, além disso, a acção é reflexo de uma actuação do A. em abuso de direito.

O A. contra-alegou.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Factos provados:

1. A sociedade interveniente tem por objecto social a indústria, comércio, importação e exportação de móveis, decorações e similares, encontrando-se registada na CRC de Gondomar.

2. O capital social da sociedade é de € 498.797,89, dividido em duas quotas, estando a de € 374.098,42 registada a favor do A. e a de € 124.699,47 a favor da R.

3. A gerência da sociedade é actualmente composta pelo A. e pela R. e ainda por DD e EE.

4. Consta a fls. 19 cópia do cheque ..., com data de 31-3-09, no valor de € 38.250,00, emitido à ordem do A. e sacado sobre a conta bancária ... do B..., SA, da qual a sociedade é titular.

5. Em 2-4-09 o cheque foi depositado pela R. na conta bancária ..., domiciliada no Banco ..., SA, conta essa titulada pela R. e por FF.

6. O cheque foi assinado pela R.

III – Decidindo:

1. O acórdão recorrido revela a correcta análise teórica dos pressupostos legais da responsabilidade civil dos gerentes de sociedade por quotas. Todavia, aquilo que verdadeiramente interessa, ou seja, a conclusão que foi extraída a partir dos factos apurados e que se traduziu na condenação da R. no pagamento de uma indemnização à sociedade de que é gerente, não encontra em tal factualidade o menor apoio.

Qualquer decisão judicial jamais pode desgarrar-se da realidade que importa apreciar, não sendo a sua prolação o momento mais oportuno para a exposição de argumentos jurídicos que, de forma estéril ou inconsequente, não tenham préstimo para a resolução do caso concreto. De nada vale a apreciação teórica, no âmbito de uma decisão judicial, de uma qualquer questão jurídica que não encontre reflexo na matéria de facto provada ou noutras circunstâncias do caso concreto.

Pese embora as considerações e os argumentos jurídicos empregues no acórdão recorrido, no caso concreto revela-se mais acertada a decisão da 1ª instância que julgou a acção improcedente.

2. A acção de responsabilidade civil do gerente sub-rogatoriamente iniciada por algum dos sócios que detenha mais do que 5% do capital social da sociedade, ao abrigo do art. 77º, nº 1, do CSC, pressupõe a demonstração de todos os pressupostos que constam do art. 72º, nº 1.

A matéria de facto provada revela lacunas quanto aos factos necessários ao preenchimento dos diversos pressupostos normativos da responsabilidade civil do gerente de uma sociedade.

A começar pela ilicitude a pressupor uma actuação da R. que constituísse violação de deveres legais ou contratuais enquanto gerente da sociedade comercial. Continuando quanto à afirmação da ocorrência de um dano de natureza patrimonial, dependente da existência de um prejuízo designadamente correspondente a uma perda patrimonial da sociedade em resultado do desrespeito pelas regras sobre a distribuição de dividendos ou sobre a atribuição de bens do património societário.

Tendo-se provado apenas na presente acção que a R., enquanto gerente da sociedade, sacou a favor do A. um cheque sobre uma conta bancária da sociedade, o qual acabou por ser descontado e depositado numa conta de que aquela era titular, tal factualidade isoladamente considerada é insuficiente para sustentar a verificação dos referidos pressupostos do direito de indemnização que o A. veio exercer.

O facto de a representante legal de uma sociedade subscrever em nome desta o saque de um cheque que, a final, acaba por ser depositado na sua conta bancária não permite afirmar a existência de uma apropriação ilegítima da sacada (ilicitude e dano), o que torna totalmente desnecessária a apreciação da culpa (ou da culpa presumida).

3. Para atingir a solução declarada a Relação teve de ultrapassar o leque de factos que foram considerados provados pela 1ª instância. Afirmou então que da petição inicialse extrai (sic) que os € 38.250,00 não eram lucros da sociedade ou um qualquer bem social que pudesse ser adjudicado aos sócios” e que “a sociedade nada devia à R., não existindo qualquer título legítimo para a R. se apropriar dos € 38.250,00”.

Trata-se de argumento sem qualquer valor jurídico para sustentar uma decisão judicial.

Com efeito, de uma petição inicial com que se inicia a instância numa acção declarativa e que precede a fase em que o réu pode exercer o contraditório nada se pode “extrair”, a não ser a lapalissiana afirmação de que corresponde à versão unilateralizada do A., a qual apenas ganha relevo ou consistência quando confrontada com a versão descrita pelo R., dentro dos limites da admissão dos factos por acordo, ou então, quando, uma vez contrariada, seja objecto de um juízo probatório positivo formulado pelas instâncias.

No caso concreto a versão descrita pelo A. foi contrariada pela R. E depois de ter sido submetida a julgamento, foi considerada “não provada”, de modo que se revela totalmente imprestável o referido argumento “extractivo” que foi invocado pela Relação.

4. Todavia no acórdão recorrido a Relação foi ainda mais longe. Não se limitando a “extrair” infundadamente aquela conclusão fora das regras sobre a modificação da matéria de facto fixada pela 1ª instância, concluiu ainda que a R. confessou um facto que lhe era prejudicial.

Descobriu para o efeito na contestação uma confissão de factos que se traduziria na assunção por parte da R. de que o saque e o posterior desconto do cheque sobre uma conta bancária da sociedade revelaria a transferência ilegítima do respectivo quantitativo da esfera jurídica da sociedade para a esfera da R., em violação dos deveres de gerência, dizendo-se no aresto recorrido que a R. confessou ter embolsado a quantia inscrita no cheque, fora das regras legais sobre a distribuição de dividendos ou de bens sociais.

Se acaso pudesse ser confirmada uma tal conclusão o rumo do processo poderia alterar-se, ainda que para o efeito não bastasse, como fez a Relação, a mera invocação de uma confissão judicial feita nos articulados, exigindo-se que fosse explicitamente assumida como plenamente provada a factualidade tida por confessada, antes de fazer recair sobre o conjunto a sua apreciação jurídica.

Tal como já anteriormente se disse a respeito do outro argumento empregue pela Relação, também não seria suficiente a invocação da alegada confissão, impondo-se que em algum momento se firmasse no acórdão um juízo preciso sobre a factualidade que, com base em tal elemento de prova material, fosse considerada plenamente demonstrada.

Todavia, também esta via está prejudicada, uma vez que, contra o afirmado pela Relação, não existiu qualquer confissão capaz de determinar um tal resultado.

Na contestação a R. apenas afirmou que a quantia inscrita no cheque era relativa ao pagamento de rendas devidas pela sociedade relativas à ocupação de imóveis do casal (art. 4º), sendo tal cheque sacado e depositado no âmbito da partilha de bens inserida no processo de divórcio (art. 5º).

Tal alegação em si não significa que a R., com ou sem a colaboração do A. (também sócio-gerente da sociedade), se tenha apropriado ilegitimamente de dinheiro que pertencia à sociedade, podendo existir outras razões legítimas para a referida transferência.

Diga-se ainda que a afirmação da existência, por aquela via, de uma apropriação ilegítima de dinheiro se revelaria contraditório com o facto de ter recebido resposta negativa o ponto 2º da base instrutória onde se perguntava especificamente se “a R. se apropriou da quantia inscrita no cheque, utilizando o dinheiro para fins sociais”.

Ora, esta resposta, além de não ter sido impugnada pelo recorrente, não foi modificada pela Relação, nem sequer depois de afirmar que a mesma contrariava a existência de uma confissão sobre tal matéria.

5. Apreciando a matéria de facto que foi apurada – e só desta podemos tratar – da mesma não resulta a razão do saque ou do desconto do cheque sobre a conta bancária da sociedade, de modo que a conclusão extraída pela Relação no sentido de que houve um desvio ilegítimo de dinheiro que pertencia à sociedade ultrapassou claramente o que seria permitido pela análise dos factos objectivamente provados.

Atenta a falta de demonstração da razão do saque e do depósito do cheque na conta bancária da R., com o correspondente desconto na conta bancária da sociedade, podem, em abstracto, enunciar-se diversas explicações para tais actos, sem que seja legítimo afirmar que lhes subjaz uma conduta da R. determinante da sua responsabilidade enquanto gerente da sociedade.

De entre as diversas possibilidades que poderiam em abstracto conjecturar-se, encontram-se as duas que foram invocadas pelas partes: uma, alegada pelo A., no sentido de que houve um desvio ilegítimo de dinheiro das contas da sociedade para a esfera da R.; outra, alegada pela R., no sentido de que a sociedade era devedora de rendas pela ocupação de bens imóveis e de que o valor inscrito no cheque correspondia ao valor dessas rendas que, no âmbito da partilha dos bens do casal, reverteu a seu favor.

Uma conclusão é segura: questionando-se unicamente nesta acção se a R. pretendeu apropriar-se ilegitimamente de uma determinada quantia, a resposta que decorre da matéria de facto apurada revela-se inconclusiva, tendo em conta que tal facto foi considerado “não provado” e que, por outro lado, inexistiu qualquer confissão.

Neste contexto, revela-se com bastante transparência a ausência de elementos que permitam imputar à R. uma actuação determinante da sua responsabilidade civil no exercício da gerência societária, maxime a ilicitude da actuação, o dano patrimonial da sociedade e, claro, o nexo de causalidade entre aquela e este.

6. Existe ainda um aspecto circunstancial a considerar e acaba por fazer luz sobre o litígio instalado entre o A. e a R.

Afinal, por detrás da “angélica” postura do A. de prosseguir, através da interposição da presente acção, a tutela dos interesses patrimoniais da sociedade de que ele e a R. são sócios-gerentes esconde-se, ainda que deixando assomar o felino apêndice, o verdadeiro objectivo que o mesmo procura atingir.

Não podendo ignorar-se que o mesmo foi casado com a R., de quem entretanto se divorciou, parece evidente que, através da presente acção sub-rogatória, no suposto interesse patrimonial da sociedade, procura obter uma eventual alteração do resultado que terá sido assumido ou que deverá ser alcançado através do accionamento de mecanismos específicos do divórcio e da partilha de bens do casal, não parecendo curial que se instrumentalize aquela acção para um tal objectivo.

Esta circunstância permite uma melhor compreensão dos factos apurados e, acima de tudo, realça ainda mais as lacunas quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil que integram a causa de pedir desta acção, permitindo reforçar a inadequação do resultado que foi decretado pela Relação.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando o acórdão recorrido, subsistindo a sentença de 1ª instância que absolveu a R. do pedido.

Custas da revista e nas instâncias a cargo do A.

Notifique.

Lisboa, 3-7-14


Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

João Bernardo