Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4640/11.4TBRG.G2..S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
PROCURAÇÃO
CONTA BANCÁRIA
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
INEFICÁCIA
RISCO
Data do Acordão: 04/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM GERAL ( ATOS BANCÁRIOS EM GERAL ) / ABERTURA DE CONTA - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CRÉDITO.
Doutrina:
- Ana Prata, “Responsabilidade pré-contratual”, O Direito, 43 e ss..
- Antunes Varela, “Depósito Bancário”, Revista da Banca, n.º 21, 47.
- Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, 365.
- Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), III, 1968, 405.
- Catarina Gentil Anastácio, A transferência bancária, Almedina, 123.
- José Maria Pires, Direito Bancário, 2.º Volume – As operações bancárias, Editora Rei dos Livros, 50, 168.
- Menezes Cordeiro, “A representação no Código Civil; sistema e perspectivas de reforma”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Vol. II, Coimbra Editora, 403, 405; Direito Bancário, 5.ª Edição, revista e actualizada, Almedina, 532, 546.
- Paulo Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, 1998, 209.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Volume I, 4.ª Edição.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º 1, 258.º, 259.º, 260.º, 262.º, N. º1, 268.º, N.º 1, 405.º, N.º1, 796.º, N.º 1, 769.º, 770.º, N.º 1, AL. A), 799.º, 1157.º E SS., 1185.º E SS.,
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 344.º E SS..
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 409.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 672.º, N,º 1, AL. A), 682.º, N.º 3.
PORTARIA N.º. 150/2004, DE 13 DE FEVEREIRO, ALTERADA PELA PORTARIA N.º 292/2011, DE 08 DE NOVEMBRO.
REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS (RGICSF), APROVADO PELO D.L. N.º 298/1992, DE 31-12: - ARTIGOS 73.º, 74.º, 76.º, N.º2.
REGIME JURÍDICO RELATIVO AO ACESSO À ACTIVIDADE DAS INSTITUIÇÕES DE PAGAMENTO E À PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE PAGAMENTO, APROVADO PELO D.L. N.º 317/2009, DE 30-10: - ARTIGOS 65.º, N.ºS. 1 A 3, 76.º, N.º 1.
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AVISO DO BANCO DE PORTUGAL N.º 11/2005.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12/6/1974, B.M.J., N.º 238-272; DE 3/10/1995, PROC. N.º 86841, DE 26/3/1996, PROC. N.º 87953, DE 21/5/1996, C.J./S.T.J., ANO IV, TOMO II, 82; E DE 02.03.1999, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 11/11/1992, PROCESSO N.º 003424, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 22/02/2011, PROC. N.º 1561/07.9TBLRA.C1.S1. E DE 24/10/2013, PROC. N.º 27432/02.7TVLSB, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 15/11/2012, PROC. N.º 246/10.3YRLSB.L1.S1 - 7.ª SECÇÃO, IN HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-TEMATICA/DIREITOBANCARIO.PDF,
Sumário :
I - Embora conexos, as transferências bancárias e a elevação do plafond de crédito constituem, no direito bancário, actos jurídicos com origem diferente: ali, no contrato de abertura de conta; aqui, no contrato de abertura de crédito.

II - Os poderes conferidos pela autora, em procuração, a uma terceira, para, entre outros, abrir e movimentar contas bancárias, comporta, para o declaratário normal (art. 236.º, n.º 1, do CC), o sentido de autorizar a celebração de contrato de abertura de conta e a realização de transferências bancárias, e não também a celebração de contrato de abertura de crédito e, no seu decurso, a elevação do respectivo plafond
.
III - Se, no âmbito da relação de confiança entre ambos, aquela terceira ordena ao banco réu, em nome da autora e com base naquela procuração, cuja cópia este tem em seu poder, duas transferências bancárias de valores não integralmente suportados pelo saldo da conta, contextualizando-as em operação internacional do grupo a que pertence a autora, e, em consequência, lhe solicita o aumento do plafond de crédito, não ratificado pela autora, a execução das mesmas pelo banco é, em relação à autora, eficaz na parte da deslocação do saldo preexistente na conta e ineficaz na parte da concessão do crédito (art. 268.º, n.º 1, do CC).

IV - Neste quadro, improcede o pedido de o banco réu restituir à autora o saldo da conta transferido para terceiro, com fundamento em erro da ordenante motivado por fraude, e procede o pedido de que a autora não deve ao banco réu o crédito concedido, visto que este, em execução daquelas transferências, foi entregue ao respectivo destinatário, não tendo representado um acréscimo do património da autora.

V - O disposto no art. 796.º, n.º 1, do CC, só se aplica ao pagamento feito pelo banco a terceiro sem o consentimento do titular da conta, e não também ao pagamento feito em execução de ordem deste mesmo titular.
Decisão Texto Integral:

               ACORDAM OS JUÍZES NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I.

AA, S.A. intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinária, contra BB, S.A., alegando, em suma, que após as partes terem celebrado um contrato de abertura de conta e de depósito bancário, o réu, sem ordem ou autorização da autora, realizou em 2011, a partir dessa conta, três transferências bancárias para empresas estrangeiras, com concessão parcial de crédito não solicitado, no valor global (e com acréscimo das despesas inerentes) de 1.156.850,82 euros.

Pediu, por força da actuação ilícita do réu, que este fosse condenado a reintegrar na conta da autora o valor de 1.156.850,82 euros, acrescido de juros de 3,5% e comissões, ou a reintegrar o valor de 533.044,52 euros, correspondente ao saldo que ali existia, e a reconhecer não ser a autora devedora do valor de 623.805,32 euros, correspondente ao crédito unilateralmente concedido.

Citado, o réu contestou, dizendo,  em suma, que as transferências bancárias foram ordenadas pela procuradora da autora, CC, no limite dos poderes que lhe foram conferidos em procuração, tendo originado um descoberto técnico, por ter na base um pedido de incremento de plafond no crédito por conta corrente concedido em 2006, que a ré cobriu concluindo, assim, pela improcedência da acção.

A autora replicou e deferida a intervenção principal e citada, CC apresentou contestação, justificando as transferências bancárias na convicção de lhe terem sido solicitadas telefonicamente pelo presidente do grupo da autora, o que após veio a revelar-se falso, tendo sido vítima de fraude internacional.

Decorridos demais trâmites e realizado o julgamento, foi a acção julgada improcedente.

Apelou a autora e o tribunal da Relação anulou a sentença, determinando a ampliação da base instrutória . Realizado julgamento relativo à matéria aditada, foi novamente a acção julgada improcedente.

A autora apelou e o tribunal da Relação confirmou o decidido. Inconformada, a autora interpôs recurso de revista excepcional que foi admitido pela Formação.

No termo de sua alegação formulou as seguintes conclusões:

I. A recorrente interpõe o presente recurso de revista excepcional por estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, tratando-se questão especialmente complexa e difícil considerando a integração e interpretação de conceitos indeterminados ou que remetem para diplomas ou conceitos normativos exteriores ao diploma que os consagra, criando um quadro legal que suscita dúvidas profundas na doutrina e jurisprudência - art. 672°, n.º 1, al. a), CPC.

II. O preenchimento de conceitos indeterminados assume relevo determinante nos presentes autos, concretizando-se como exercício jurídico de detalhada exegese e autêntica questão de direito: a determinação do critério jurídico que haverá de orientar e concorrer para fundamentar a solução jurídica do caso decidendo.

III. O acórdão a quo discorre, a p. 25, sobre a interpretação dos actos do banco réu e sobre a questão de saber se este agiu com negligência, porquanto a recorrente alega que se a recorrida tivesse consultado a procuração não teria procedido às transferências, fazendo apelo na sua fundamentação ao conteúdo dos conceitos indeterminados patentes nos arts. 73.º e 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/1992, de 31 de dezembro, com suas sucessivas alterações, nomeadamente, no dever de procedimento dos administradores e empregados das instituições de crédito com a) diligência, b) lealdade e c) respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados, bem como no seu dever de assegurarem aos clientes d) elevados níveis de competência técnica e ainda ao conceito de movimentação da conta por e) motivo justificado.

IV. A interpretação destes conceitos indeterminados implica a consideração dos cânones interpretativos clássicos, bem como a consciencialização de construções empíricas, económicas, filosóficas, tudo atendendo à suma ideia de Justiça, com o fito de apreciar o grau de diligência requerido à actuação bancária norteado pelos conceitos indeterminados referidos, o que para além de mais se pode repercutir em qualquer litígio futuro com instituições bancárias.

V. Sucede que apesar de o Tribunal a quo invocar a diligência na actuação bancária concreta, como tendo respeitado conscienciosamente os interesses confiados exercendo elevados níveis de competência técnica certo é que não tratou o aresto de densificar o conteúdo destes conceitos ou de sequer a eles se referir.

VI. Resulta assim da factualidade demonstrada ao longo do processo e desta consideração do Tribunal uma frontal contradição com o preenchimento do conceito de negligência, entendido como a violação de um dever objectivo de cuidado.

VII. O legislador especificou deveres comportamentais legais que as instituições bancárias devem observar e que se prendem com os deveres de cuidado, diligência e know your costumer que não foram observados no caso concreto e que deveriam fundamentar uma pronúncia de actuação bancária negligente.

VIII. A diligência na sua formulação mais exigente, o cuidado, a lealdade são conceitos indeterminados cujo preenchimento é auxiliado pela constatação do cumprimento ou não do preceituado nos arts. 74°, 75°, n.02, 76, 118°-A do RGICSF, da Portaria n.º 150/2004, Portaria n.º 292/2011, do RJSP, e dos art.º 2, al. a) e b) e art. 4°, do Aviso do Banco de Portugal n.º 11/95.

IX. Para aferir do preenchimento dos conceitos indeterminados elencados é necessário analisar, desde logo, se a recorrida cumpriu com os deveres específicos de conduta e cuidado que estão a seu cargo. Se esta o não fez, dificilmente se pode defender ter agido com diligência, lealdade, respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados, elevados níveis de competência técnica, por motivo justificado, e sem negligência. Não o tendo feito, surge a sua responsabilidade nos presentes autos - daí a importância para o caso concreto da questão. Não é possível defender-se que não ocorreu uma actuação negligente sem que tenham sido cumprido os deveres de cuidado especificados pela lei.

X. E isto por uma razão simples: o fundamento da consagração dos deveres de cuidado e procedimentais a cargo do banco é uma ideia de prudência e gestão antecipatória de risco.

XI. Os deveres de cuidado visam evitar comportamentos danosos de terceiro; sendo observados, retiram a potencialidade danosa de comportamentos arriscados de terceiros. O objectivo da consagração de deveres específicos de conduta é precisamente o de afastar o risco do comportamento de terceiros; independentemente deste, se elevados padrões de cuidado forem observados, qualquer resultado danoso será evitado porquanto a lei concentra a tutela da situação fáctica no comportamento devido por quem está obrigado a determinada conduta e não na sua contraparte. É esta integração do conceito de actuação negligente por parte da recorrida que o Tribunal a quo completamente falhou, e cujo rationale serve de igual modo para a integração do conceito de diligência, cuja impossibilidade de preenchimento implica o desrespeito de normas legais que acarretam a afirmação de conduta negligente por parte da recorrida.

XII. Ao banco não se lhe exige só que esteja convicto da legalidade e possibilidade de ordenamento das mesmas: exige-se-lhe que verifique, de acordo com os mais altos princípios de prudência e exigência técnica em obediência aos interesses do cliente se de jure e não só de facto a transferência pode ser ordenada. Caso contrário, reverte a seu favor a sua negligência, imprudência e incompetência técnica. É a integração daquilo que é exigido ao banco que se cura nos presentes autos.

XIII. Há, ainda, uma segunda questão de aturada exegese que se levanta nos presentes autos: a de saber se à responsabilidade do banco pelos fundos confiados ao seu domínio no âmbito da execução de um contrato de depósito e à sua não restituição se deverá aplicar o regime do art. 799.º CCiv. - como fez o acórdão a quo - ou o regime do art. 796.º CCiv. - como o defende variada doutrina e jurisprudência.

XIV. Aplicando o art. 796º CCiv. à situação dos autos afirma-se a assumpção do risco de perda dos fundos dominados pelo banco por este, tenha ou não culpa no evento. Ao considerar a relação recorrente-recorrida como uma relação meramente obrigacional, o Tribunal a quo aplica o art. 799º CCiv. com resultado fatalmente distinto: se a recorrida demonstrar que não teve culpa no desaparecimento da quantia, resulta exonerada de qualquer responsabilização.

XV. A teoria do risco pressupõe que as consequências do evento danoso sejam assumidas por quem suporta o risco mesmo que não tenha culpa, a não ser que esta deva ser excluída por aplicação do princípio do concurso de culpas ou que se demonstre que o resultado é inteiramente imputado à conduta dolosa de outra parte. A teoria da responsabilidade contratual implica que demonstrada a ausência de culpa do devedor, este não tem que assumir as consequências da não produção do evento devido. Implica-se uma latitude probatória completamente distinta. Ali, a demonstração de não culpabilidade não exonera o devedor das consequências de verificação do evento responsabilizante - o desaparecimento do dinheiro. Aqui, a demonstração de não culpabilidade permite que este não seja responsabilizado pelo desaparecimento dos fundos. A solução a dar ao litígio é, portanto, neste particular, frontalmente diferente, porque não tendo sido provado dolo ou negligência grave da recorrente, a recorrida deverá reintegrá-la do saldo mobilizado se se aplicar a teoria do risco.

XVI. Trata-se, ao fim e ao cabo, de aferir se ao contrato de depósito bancário deverá ser aplicada a teoria do risco obrigacional (art. 795° e 799° CCiv.) ou a teoria do risco real (art. 796° CCiv.), pela qual pugna a recorrente.

XVII. Por fim, resta a questão de saber se a actuação de um procurador pode ser de molde a fazer o declaratário da sua declaração negocial interpretar a procuração de um modo amplo ou restrito, contornando os poderes especificados na mesma. Qual o grau de confiança e expectativa que o procurador tem de causar no banco para o que o banco ultrapasse os poderes conferidos ao procurador e vincule o representado, ainda assim? Podem representados estar vinculados a condutas que extravasam as procurações que entregam para defesa dos seus interesses?

XVIII. A recorrente considera também que se encontram reunidos os pressupostos previstos no art. 672°, n.º 1, al. b) porquanto a situação dos autos tem potencial para minar a tranquilidade de uma generalidade de pessoas, colocar em causa a eficácia do direito e a sua credibilidade. O potencial reflexo do litígio concreto é passível de se repercutir em qualquer relação cliente - banco mas, sobretudo e ameaçando a fluência do tráfego jurídico e comercial, as relações de sociedades comerciais com bancos e de qualquer sociedade com uma dimensão que não seja mínima e que implique a descentralização de qualquer competência gestionária através da outorga de poderes de representação.

XIX. A procuração tem duas funções: legitimadora de actuação do representante e limitadora dos seus poderes, nenhuma assumindo prevalência sobre a outra e confiando o representado, quando entrega um instrumento do género a uma entidade bancária altamente diligente e especializada, que esta não permitirá que sejam ultrapassados os poderes concedidos.

XX. O incumprimento dos elevados patrões de diligência e acautelamento consciencioso dos interesses do cliente tem repercussão directa nas funções elencadas, com prevalência para a segunda: porque é através da verificação de quem pode fazer o quê que chegamos à resposta da pergunta até onde pode o agente actuar em nome do representado.

XXI. A falta de verificação de poderes de procurador ou da consagração de tal obrigação a cargo do banco recorrido introduz receio e insegurança no giro comercial, mais reduzindo a eficiência empresarial que obrigará à criação de procedimentos substitutivos e redundantes de confirmação de todas as ordens emanadas por um procurador por parte da administração, derrotando o propósito útil da outorga de um instrumento de representação.

XXII. Não respeita elementares considerações de proporcionalidade e distribuição dos encargos de zelo pelos interesses próprios entre as partes que tenha de ser o representado a suportar a actuação destemperada e que limitou do procurador por incúria da contra-parte - o banco. Mais, retiram por completo a confiança na transacção bancária, sendo sabido à saciedade que a fides é o cerne da confiança negocial e económica, em geral, e fazendo a doutrina e a jurisprudência gala dos elevados padrões de competência técnica e fiduciária da actividade bancária.

XXIII. De igual modo, a possibilidade de utilização de um serviço de homebanking por quem não estava para tal autorizado nos termos do instrumento de representação outorgado levante o problema da utilização de serviços de pagamento despessoalizados que prescindem da presença fisica e de qual deverá ser a densidade de controlo dos mesmos.

XXIV. O exponencial potencial lucrativo a favor da recorrida não pode implicar uma redução das garantias de segurança do cliente considerada a obrigação de dotação de recursos humanos e técnicos do mais alto calibre a cargo das instituições bancárias.

XXV. A possibilidade de acesso sem confirmação absoluta de vontade para tal por parte dos titulares das contas tem reflexo numa pluralidade de situações que largamente extravasam o caso concreto e com um potencialidade danosa ou conflituosa passível de repetição e de incremento litigante.

XXVI. Sobretudo, a redução da confiança na desmaterialização bancária, para lá de abalar a fides concreta no sistema, mais agrava o sentimento de alarme social actual no tocante às relações privadas com os bancos em Portugal, resultando numa descrença da regulação da actividade bancária com reflexos directos no bolso dos contribuintes portugueses, razões pelas quais se encontram também reunidos os pressupostos passíveis de integrar a aI. b) do n." 1 do art. 672° CPC.

XXVII. Dispõe o art. 672°, n." 1, al. c) CPC que cabe recurso de revista excepcional do acórdão da Relação quando em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

XXVIII. O acórdão a quo cita como fundamento de sua decisão, a p. 26, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/03/2012, avalizando, na parte que nos interessa agora, o seguinte dictum: "[a] principal obrigação do depositário no depósito bancário é conservar disponível, em termos contratuais, o valor depositado. Mas dificilmente se poderá dizer aqui que o banco mantém o domínio sobre a coisa, uma vez que estamos perante dinheiro, ou seja, coisa fungível. O depositário não perdeu a possibilidade de pagar ao depositante. Deste modo, não pode ter aplicação o princípio consagrado no art. 796.º n.º 1 do res perit domino, uma vez que não existe coisa que possa perecer".

XXIX. O acórdão a quo funda-se na passagem citada para afastar o regime do art. 796°, n." 1 CCiv. Desde logo, ao citá-la como fundamento da sua decisão, faz a citação seu fundamento próprio, o que se integra na fundamentação do acórdão. Por outro lado fá-lo para abrir caminho à aplicação do regime do art. 799° CCiv. ao contrato de depósito bancário no tocante à responsabilização pelo destino indevido da coisa depositada - in casu, dinheiro - expressamente em substituição do regime do art. 796° CCiv.

XXX. Ora, o acórdão a quo está em contradição frontal com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitado em julgado, disponível por comodidade de leitura em www.dgsi.pt'", datado de 21/05/1996, proc. n.º 088272, relator Exmo. Senhor Conselheiro Miguel Montenegro, cuja cópia se junta, protestando juntar-se certidão do mesmo com menção de trânsito em julgado logo que esta seja disponibilizada por quem de direito, e que menciona, entre outras passagens e em seu corpo de texto e a propósito da relação depositante-depositário bancário que "(o) artigo 796 do Código Civil, cuja aplicação tem inteiro cabimento ".

XXXI. A identidade entre a situação do acórdão a quo e a situação do acórdão- fundamento é total: trata-se de saber se o banco deve assumir a responsabilidade pela movimentação dos fundos a seu cargo independentemente de sua culpa ou apenas se não lograr demonstrar não ter culpa, a solicitação de um terceiro que não directamente o depositante.

XXXII. O acórdão a quo está, aliás, em contradição com jurisprudência variada neste particular, da qual são exemplos o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n." 1910/12.8TBVCT.G1, de 17/12/2014, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/05/2012, (in C.J., Acs. do S.T.J., ano XX, Tomo I1/2012, pág. 80, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/1999 (in C.J., Acs. do S.T.J., ano VII, Tomo I, pág. 134), o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/06/2007,n.º de proc. 308/2007-7, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/03/2012, proc. n.º 19501l1.4YYLSB-C-8.

XXXIII. De igual modo, a recorrente considera que a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo é insuficiente para a apreciação da questão de direito suscitada e por si enquadrada.

XXXIV. Dispõe o acórdão a quo que "face às circunstâncias do caso não era exigível ao recorrido usar de mais cautelas ou zelo".

XXXV. Sucede que toda a factualidade provada até ao facto 21 analisa única e exclusivamente a actuação da recorrente e da chamada, e só no facto 21 é feita referência ao comportamento da recorrida numa situação posterior ao processamento das transferências.

XXXVI. Destarte, o acórdão a quo não analisou nenhuma factualidade - não obstante alegação generosa da mesma demonstrada em corpo de texto da presente alegação e produção de prova a esse propósito - que permita apreciar das cautelas exercidas ou não pela recorrida em face de uma procuração que taxativamente elencava os destinatários possíveis de transferências superiores ao valor de € 5.000,00.

XXXVII. Mesmo sabendo que o Supremo Tribunal de Justiça não decide, em geral, sobre questões de facto, haverá que considerar a situação excepcional prevista no seu acórdão com n." de proc. O5A2704, segundo a qual o Tribunal ad quem poderá intervir na decisão de facto se dever considerar-se adquirido para o processo um facto que as instâncias, todavia, não levaram àquela decisão nem à decisão final e que se mostre com idoneidade para alterar esta, o que sucede da audição do depoimento de DD, gerente do balcão da recorrida à data da realização das transferências, que expressamente afirma não ter o banco conferido a procuração, limites da mesma, assinatura da procuradora ou o que quer que seja, limitando-se a executar as transferências como estas foram requisitadas.

XXXVIII. A matéria de facto provada é base insuficiente para a decisão de direito produzida, o que legitima a tomada em consideração do depoimento cabalmente esclarecedor do gerente de balcão DD ou o reenvio do processo para o Tribunal a quo, nos termos do disposto no ali. 682°, n." 3 e 683° CPC .

XXXIX. O acórdão a quo erra na determinação da norma aplicável e no direito a reger os factos provados porquanto deveria ter aplicado aos mesmos a disciplina do art. 796º CCiv. ao invés da constante do art. 799° CCiv .

XL. É que aqui não há qualquer causa que seja imputável ao alienante (a recorrente) pelo desaparecimento dos fundos. A transferência é ordenada por uma procuradora, sem poderes, determinada por indicações de terceiros, sem que o banco tenha controlado a regularidade dos poderes e do movimento da representante. Bastava que o banco tivesse inserido a procuração da representante no seu sistema informático ou que tivesse observado os limites da mesma para que a transferência não se lograsse realizar.

XLI. O cumprimento dos deveres de cuidado, altíssima diligência e lealdade que conformam a relação depositante-depositário entre a recorrente e a recorrida tomariam irrelevante o comportamento da chamada. É por esta razão que a responsabilidade pelo extravio do dinheiro é do banco recorrido, independentemente de ter agido ou não com culpa, de acordo com o funcionamento o art. 796º CCiv.  responsabilidade objectiva pelo risco.

XLII. Nesta medida, e mais densificando a sistemática que faz impender sobre a recorrida a responsabilidade pela mobilização dos fundos, atente-se nos violados art. 68°, n." 1 RJSP e na disposição do art, 7.º, n. ° 2 RJSP, que só afastará a a responsabilidade do banco em caso de negligência grave do ordenante, ou seja, comportamento grosseiro, de má-fé, paralelo à prática de situação dolosa sem que se logre a prova do elemento subjectivo intencional na produção de efeitos pretendidos pela operação ordenada; mais se atente na falta de prova de elementos integradores da existência de dolo ou negligência grave no incumprimento do disposto no art. 67° RJSP - razão pela qual não pode o banco prestador do serviço de pagamento eximir-se da sua responsabilidade em rectificar a conta do recorrente, reembolsando-o dos montantes em questão indevidamente transferidos - art. 71 ° RJSP.

XLIII. O acórdão a quo mais erra na interpretação da norma aplicável aos autos.

XLIV. O acórdão a quo considera que a chamada tinha poderes para ordenar as transferências que ordenou, o que resulta da interpretação da procuração, fundando-se na fundamentação da sentença recorrida e para a qual remete - p. 26.

XLV. A sentença do Tribunal Judicial de Braga, na sua antepenúltima página, aplica à matéria dos autos o preceituado nos arts. 236° e ss. do CCiv., ou seja, faz valer nos autos como critério interpretativo da procuração a sua visão da teoria da impressão do destinatário.

XLVI. A aplicação do art. 236° CCiv. aos autos é uma tarefa de aplicação de critérios normativos para interpretação de um instrumento de concessão de poderes, o que transforma a questão subsumível à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça conforme jurisprudência vária, da qual são exemplos os acórdãos com n.º de proc. 04B2664 ou 04B2716.  

XLVII. Primeiramente, diga-se que a questão da interpretação justificar-se-ia se a procuração tivesse sido interpretada pelo seu destinatário: não foi o caso, como vimos, porquanto nem sequer foi consultada. Nesta medida, não é reconstruível a posição do declaratário porquanto este não teve qualquer posição perante a procuração uma vez que revelou desconhecimento dos termos da mesma. É matéria que surge conexionada com o cumprimento dos deveres de diligência do banco recorrido e que bem demonstra a instrumentalidade destes face à produção do resultado final pretendido: o objectivo de segurança nas transacções.

XLVIII. A boa-fé e confiança do declaratário só podem ser protegidas se este as demonstrou e provou.

XLIX. Como dizer que a recorrida interpretou a procuração com o sentido de um declaratário normal se a procuração não foi consultada? Está-se a proteger da sua negligência quem tem os deveres de conduta configurados de acordo com o mais elevado padrão de diligência negocialmente consagrado. Naturalmente que o banco estaria convicto dos poderes da procuradora: se tivesse consultado a procuração, já não estaria. Daí a pertinência da aplicação do art. 796º CCiv. aos autos: o risco de não controlar os limites dos representantes que agem perante si tem de recair sobre o banco recorrido.

L. Subsidiariamente, sempre se dirá que aplicando a teoria da impressão real do declaratário ao caso concreto (art, 236º CCiv.), não se pode olvidar que o declaratário não é um declaratário médio mas sim aquele que leva a cabo em exclusivo a lucrativa e especializada actividade bancária, dotada de elevados meios técnicos e humanos, a quem se exige por força da lei e da natureza do seu negócio o mais alto padrão diligencial e comportamental, devendo a interpretação da declaração negocial ser feita por este com o maior rigor técnico que a natureza da profissão o obriga, conforme orientação do Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão com n.º de proc. 05B 1636.

LI. A recorrida não pode dizer-se convencida de que podia enviar o dinheiro para empresas do grupo AA quando tem, por escrito, especificadamente, a firma, sede e NIPC das empresas do grupo que podem ser destinatárias de transferências sem limite de valor.

LII. De igual modo, a recorrida não está autorizada a conceder acesso netbanking à procuradora pelo conteúdo da procuração, nem para celebrar contratos ou aditamentos a contratos de mútuo, como fez, mais sendo evidente que o fez sem poderes ao apor o carimbo de "administração" ao mesmo, algo falso e que a recorrida não pode ignorar considerado o doe. n. o 1 junto com a PI.

LIlI. O texto da procuração é também claro e rigoroso, assim devendo ser interpretado: perante bancos e/ou instituições de crédito, a procuradora tem os já referidos poderes de representação da sociedade, podendo abrir, encerrar e movimentar contas bancárias, a débito ou a crédito.

LIV. A disposição da procuração em questão é clara: a procuradora fica autorizada livremente a proceder a pagamento até cinco mil euros a favor de quaisquer pessoas. Mas ao outro grupo de sociedades taxativamente elencadas, é limitado o valor autorizado a transferir. Há uma vontade clara, inequívoca, de criar dois universos de destinatários comerciais: um geral, que pode receber até cinco mil euros transferidos pela autora através de ordens da sua chamada; outro específico e especificado, que pode receber transferências da autora sem limite de valor através de ordens da sua chamada.

LV. O acórdão a quo, remetendo para a sentença de primeira instância, considera que o poder de abrir e encerrar contas envolve a movimentação irrestrita de valores sendo inconciliável com qualquer limitação. Só que encerrar contas, movimentar contas e contrato de depósito são realidades distintas juridicamente, e cuja diferença o banco recorrido não pode ignorar, no sentido do já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 05B 1636. Se assim não se entendesse, o poder de encerrar contas implicava para a procuradora o poder de dispor ilimitadamente das contas da representada, algo que nem aos administradores isolados é permitido consoante as regras de vinculação da sociedade concreta constantes do doe. n.º 1 junto com a PI ou considerada a proibição de procuração geral de administração pelo art. 391°, n.º 7 CSC que tais poderes implicariam.

LVI. Todos os movimentos a débito na conta da recorrente são ordens de pagamento ao banco, seja a si por entrega do saldo credor seja a terceiros' por si ordenada. Nessa medida, todos os movimentos a débito na conta do recorrente que não os incluídos na cláusula do parágrafo segundo da procuração (contribuições e impostos) e aqueles taxativamente reservados às sociedades elencadas na procuração são pagamentos e, como tal, sujeitos ao limite dos cinco mil euros.

LVII. De igual modo, o contexto de emissão da procuração não permite interpretação diversa: os administradores da recorrente não residem em Portugal, mas sim no estrangeiro, pelo que a outorga da procuração destina-se à gestão de assuntos correntes e quotidianos, excluindo daqui movimentos esdrúxulos ou extravagantes. A recorrida bem sabe disto porquanto dispõe de elementos para tal, assim devendo interpretar a declaração da recorrente por obediência ao disposto no art. 236°, nº 2 CCiv ..

LVIII. O valor máximo dos pagamentos que a recorrida menciona terem sido realizados pela recorrente é de € 15.946,00 - aproximadamente 1,3% do montante global movimentado de que nestes autos se cura - mais de um milhão de euros. Tanto o montante das transferências, sobretudo quando analisado no contexto das movimentações mercantis e contabilistas da recorrente, como os países destinatários das mesmas demonstram, com cristalina clareza, que estamos diante de pagamentos excepcionais e extraordinários, o que devia ter suscitado maior cuidado à recorrida e despoletado uma série de comportamentos diligentes, nomeadamente a verificação dos poderes efectivos da procuradora e a reconfirmação da operação junto da recorrente. Na verdade, não se compreende a afirmação do acórdão a quo a p. 25 quando afirma tratarem-se de movimentos bancários como já anteriormente praticados. Não o são, e a extravagancia dos mesmos releva para o grau de exigência de cuidado oponível à recorrida: o máximo, que foi inobservado.

LIX. Assim, teria a recorrida se apercebido da falta de poderes da procuradora da recorrente, dever incumprido mesmo que actue com mera negligência leve, na esteira de doutrina citada em corpo de texto de presente alegação.

LX. A negligência da recorrida não se afere pela regularidade da relação representante - representado. A negligência da recorrida afere-se pela verificação ou não dos deveres de conduta a seu cargo.

LXI. Deste modo, não tendo demonstrado o uso de todos os cuidados - nomeadamente o cumprimento dos deveres já apontados pela recorrente na presente alegação - a recorrida sofre as consequências previstas no RJSP.

LXII. Na mesma medida, e uma vez que a responsabilidade pela guarda do dinheiro a si confiada é objectiva, não demonstrando ordem da recorrente para movimentação de sua conta considerada a interpretação da procuração aduzida na presente alegação, a recorrida deverá reintegrar a conta da recorrente nos valores indevidamente mobilizados, assim se fazendo correcta interpretação e aplicação do direito aos autos, nomeadamente do art. 796º CCiv.

 O réu apresentou contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                                                             * *

II.

A – Os factos que nas instâncias foram dados como provados, são os seguintes:

1 - A autora tem por objecto a importação, exportação e comércio por grosso e a retalho de artigos de vestuário, calçado e seus acessórios – alínea A) da mat. facto assente;

2 - Por sua vez, o réu tem por objecto o exercício da actividade bancária, recebendo depósitos ou outros fundos reembolsáveis, concedendo crédito por sua conta e praticando toda a universalidade das operações de actos de prestação de serviços permitidos por lei aos bancos – alínea B) da mat. facto assente;

3 - A autora é titular de uma conta de depósitos à ordem na agência do Réu sita na Rua dos …, nesta cidade …, a que foi atribuído o n.º …. e onde são lançados os movimentos a crédito e a débito e registado o saldo final decorrentes dessas operações – alínea C) da mat. facto assente;

4 - A movimentação do saldo dessa conta é efectuada através da assinatura de qualquer membro do conselho de administração da autora, composto por EE e FF – alínea D) da mat. facto assente;

5 - Mediante procuração outorgada em 26 de Março de 2007, de que foi entregue uma cópia autenticada ao Réu, o mencionado EE conferiu à chamada, CC, poderes para, além do mais, representar a autora “perante bancos e/ou instituições de crédito, podendo abrir, encerrar e movimentar contas bancárias, a crédito ou a débito, requerer livros de cheques e assiná-los”, bem como para “proceder a pagamento até cinco mil euros a favor de quaisquer pessoas e a (…) pagamentos sem limite de valor a favor”, entre outras sociedades, do “Groupe AA” – alínea E) da mat. facto assente;

6 - No dia 4 de Maio de 2011, a conta bancária referida em 3) apresentava um saldo credor a favor da autora no valor de €431.388,81 – alínea F) da mat. facto assente;

7 - No dia 4 de Maio de 2011, a chamada CC, através do serviço de GG atribuído pelo réu à autora, efectuou uma transferência da conta bancária desta, que foi debitada pelo montante correspondente, para o banco “HH”, onde foi creditado na conta n.º ... – alínea G) da mat. facto assente;

8 - Nos dias 6 e 10 de Maio de 2011, o réu procedeu, de acordo com instruções recebidas da chamada, à mobilização da aludida conta, debitando-a pelos valores de €385.616,94 e €385.493,00, respectivamente, que foram transferidos para o banco “II”, a fim de serem creditados na conta n.º … – alínea H) da mat. facto assente;

9 - Na sequência dessas operações, a conta bancária da autora junto do réu passou a apresentar um saldo negativo ou descoberto no valor de € 601.676,63 – alínea I) da mat. facto assente;

10 - Por escrito datado de 11 de Abril de 2006, o réu concedeu à autora, para apoio à tesouraria, um financiamento, sob a forma de abertura de crédito em conta corrente, no montante de €250.000,00 – alínea J) da mat. facto assente;

11 - Por escrito datado de 5 de Maio de 2011, a chamada, arrogando-se poderes de representação da autora, obteve o aumento do plafond de crédito de que esta beneficiava junto do Réu de €250.000,00 para €500.000,00 – alínea K) da mat. facto assente;

12 - O réu cobrou a quantia de € 123,94 a título de comissões por cada uma das três transferências realizadas, debitando-as na conta da A. – resp. à base 2ª;

13 - A chamada efectuou as transferências referidas nas alíneas G) e H) (factos 7. e. 8.), uma delas por si e as restantes duas por intermédio do Réu, sem consultar a administração da A., que delas não era conhecedora – resp. às bases 3ª e 4ª;

14 - A chamada solicitou o descoberto que permitiu a realização de tais transferências, incluindo o aditamento corporizado no escrito constante de fls. 127 a 131, igualmente sem consultar a administração da A. – resp. as bases 5ª e 6ª;

15 - A chamada solicitou o aumento da linha de crédito de que a autora beneficiava junto do réu e que veio a consubstanciar-se no mencionado aditamento para dar cobertura parcial às transferências bancárias que pretendia realizar – resp. à base 7ª;

16 - Esse novo limite de crédito implicou a entrega ao réu de cheques pós-datados emitidos à ordem da autora ou de que esta era beneficiária no montante global de €533.000,00, na posse dos quais, aquele, mediante prévio endosso desta, creditou a respectiva conta pelas importâncias correspondentes, deduzidas de juros, imposto de selo e comissões, obrigando-se a cobrá-los junto dos bancos sacados nas respectivas datas de vencimento – resp. às bases 8ª a 10ª;

17 - O diferencial entre o descoberto gerado pelas transferências e o valor do crédito concedido à autora foi suportado por uma transferência no montante de €91.825,37, creditada na conta da autora por ordem da chamada e por débito na conta n.º …, titulada pela empresa “JJ, S.A.” – resp. à base 11ª;

18 - A chamada movimentara anteriormente a conta bancária da A., a débito e a crédito, por valores superiores a € 5.000,00 – resp. à base 12ª;

19 - E sempre procedeu ao pagamento de contribuições e impostos da A. para além desse limite, desiderato que era do conhecimento da A.. – resp. às bases 13ª e 14ª;

20 - A chamada efectuou a transferência via internet e ordenou as duas restantes na convicção errónea de que as mesmas se destinavam a empresas do Grupo AA, convicção essa em que foi induzida por terceiros que se fizeram passar por funcionários do Grupo e contra os quais veio a apresentar participação criminal – resp. às bases 15ª a 17ª;

21 - E foi igualmente imbuído dessa convicção, que lhe foi incutida pela chamada, que o Réu agiu – resp. à base 18ª;

22 - A chamada efectuou movimentos a débito, mediante a utilização do serviço GG, de valor superior a €5.000,00, entre os quais os discriminados no artigo 112º da contestação, cujo teor aqui se dá por reproduzido – resp. à base 19ª;

23 - E, por cheque datado de 6 de Março de 2011, efectuou um pagamento no montante de €11.198,98 a favor da firma “KK” – resp. à base 20º;

24 - Por carta datada de 11 de Maio de 2011, entregue no balcão do réu, a autora solicitou a devolução dos montantes transferidos, por estarem relacionados com uma fraude – resp. à base 21º;

25 - Em face dessa missiva, o réu diligenciou de imediato junto dos bancos destinatários das transferências no sentido destes devolverem os fundos transferidos – resp. à base 22º;

26 - No dia 13 de Maio de 2011, o banco correspondente respondeu ao réu que, relativamente à primeira transferência, o HH o informara que o respectivo beneficiário não autorizara a devolução do montante transferido – resp. à base 23;

27 - No tocante às duas restantes transferências, o II Limites informou o réu que não conseguira contactar o respectivo beneficiário – resp. à base 24ª;

28 - Por carta datada de 18 de Maio de 2011, o ilustre mandatário da autora instou o réu no sentido deste repor os valores ilicitamente retirados da conta da A. no prazo de três dias, uma vez que a transferência de parte do saldo da conta ocorrera “por razão da exclusiva e grave violação, pelo Banco, das regras de competência técnica, do dever de informação e do critério de diligência (…) e dada a inércia e falta de eficácia da acção do BB” – resp. à base 25ª;

29 - Em 20 e 23 de Maio de 2011, o réu efectuou, sem êxito, novas diligências junto do banco correspondente com vista à recuperação dos fundos transferidos da conta da A. – resp. à base 26ª;

30 - A chamada corroborou ao recorrido que os respectivos destinatários das transferências seriam empresas do grupo AA, alegando que recebeu instruções nesse sentido de Barcelona, o que, aliás, já sucedera em ocasiões anteriores para a concretização de certos negócios, que a mesma devia praticar em nome da autora.

B – Vejamos o direito:

B1 - O acórdão proferido pela formação de apreciação preliminar (VI – fls. 1577-1582) concluiu pela relevância jurídica da questão seleccionada e, ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1 al. a) do CPC, admitiu o recurso de revista excepcional.

A questão seleccionada não foi expressamente enunciada no acórdão.

Os trechos do acórdão recorrido e das alegações de recurso transcritos, e as considerações subsequentemente tecidas sobre a necessidade de clarificação da negligência bancária, segmento normativo da responsabilidade, sustenta a conclusão que a questão seleccionada, a resolver, está em saber se o réu, ao aceitar as ordens de transferência bancárias e o pedido de concessão de crédito dadas pela procuradora da autora, agiu com negligência, e se, em consequência, deve responder pelos prejuízos causados à autora.

Não constitui argumento da questão jurídica enunciada, mas questão de facto própria que dela se autonomiza, a da insuficiência da matéria de facto para aplicação do direito e sequente pretensão do seu alargamento (ao concreto facto de a ré não ter conferido a procuração outorgada pela autora antes das transferências ordenadas pela procuradora). Esta questão de facto, suscitada pela recorrente, não foi sequer referida no acórdão que admitiu o recurso de revista excepcional e, dada a natureza diversa que reveste, por um lado, e a não recondução à norma convocada para suportar a sua admissibilidade, o art. 672.º, n,º 1, al. a) do CPC, por outro lado, não se tem por incluída no objecto do recurso admitido.

Dela, por isso, não cumpre também conhecer, salvo se oficiosamente (sem necessidade portanto de a focar se não revestir interesse) o Tribunal concluir infra nesse sentido – art. 682.º, n.º 3, do CPC.

C - A identificação da questão a resolver – repita-se, da problematização da responsabilidade do banco réu na aceitação e execução das ordens de transferência bancária e do pedido de aumento de crédito, e, da negligência da sua actuação – conheceu, no acórdão da Relação, a seguinte posição:

- o banco réu tinha o ónus de provar que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha autorização para o fazer;

 - o banco réu estava autorizado visto que a ordenante CC agiu dentro dos poderes concedidos pela autora em procuração;

 - o banco réu não agiu com negligência, não lhe sendo exigível outra diligência porque quem sempre fez movimentações na conta foi CC e também ele foi induzido em erro por ela, quando lhe reportou operarem as transferências entre empresas do grupo.

Por sua vez, entende a autora, no recurso (como já o sustentou perante as instâncias):

 - se o banco réu tivesse consultado a procuração outorgada pela autora, não teria executado as transferências;

- o banco réu não pode aceitar operações bancárias que extravasem o âmbito da procuração, mesmo que o procurador as pratique;

- a procuração não autorizava a primeira transferência bancária, por homebanking, a segunda e a terceira transferências bancárias, e a concessão do crédito;

 - o banco réu violou os deveres de cuidado e diligência a que estava obrigado resultantes dos arts. 74°, 75°, n.º 2, 76, 118°-A do RGICSF, da Portaria n.º 150/2004, Portaria n.º 292/2011, do RJSP, e dos art.º 2, al. a) e b) e art. 4°, do Aviso do Banco de Portugal n.º 11/95;

 - ao caso aplica-se o disposto no art. 796.º e não o art. 799.º, ambos do C.C..

D - Na resolução da questão enunciada vai fazer-se referência mesmo que breve:

- ao quadro fáctico provado;

- ao contrato de abertura de conta e de abertura de crédito, a relação bancária e os direitos e os deveres das partes;

- às transferências bancárias e concessão do crédito solicitados por CC em nome da autora;

-  à interpretação da procuração outorgada pela autora a favor de CC e autorização para a prática daqueles actos;

 -  às consequências jurídicas para o caso;

 - à conduta da ré à luz dos deveres bancários exigíveis;

 - a aplicação do disposto no arts. 796.º e 799.º, ambos do CC;

 - ao desfecho do recurso em face dos pedidos formulados na acção.

D1 – Relembre-se:

 - a autora exerce a actividade de importação, exportação e comércio por grosso e a retalho de artigos de vestuário, calçado e seus acessórios (facto 1.);

 - a autora é titular de uma conta de depósitos à ordem na agência do banco réu em …, onde são lançados os movimentos a crédito e a débito e registado o saldo final dessas operações (factos 2. e 3.);

- a movimentação da conta da autora era efectuada por qualquer membro do conselho de administração, composto por EE e FF (facto 4.);

 - por procuração outorgada em 26 de Março de 2007, de que foi entregue uma cópia ao réu, EE conferiu a CC, poderes para, além do mais, representar a autora “perante bancos e/ou instituições de crédito, podendo abrir, encerrar e movimentar contas bancárias, a crédito ou a débito, requerer livros de cheques e assiná-los”, bem como para “proceder a pagamento até cinco mil euros a favor de quaisquer pessoas e a (…) pagamentos sem limite de valor a favor”, entre outras sociedades, do “Groupe AA” (facto 5.);

 - apresentando a conta da autora no dia 04 de Maio de 2011 um saldo credor de 431.388,81 euros, nesse dia CC efectuou uma transferência bancária e nos dias 06 e 10 de Maio ordenou duas outras, que foram executadas, para empresas estrangeiras com contas sedeadas em bancos da China e de Hong Kong, pelo valor total de 1.156.849,84 euros (factos 6, 7 e 8);

 - o valor total transferido foi superior ao valor inicialmente existente na conta, porque CC, no dia 05 de Maio de 2011, solicitou ao banco réu o aumento do plafond de crédito - pedido e concedido em 2006 sob a forma de abertura de crédito em conta corrente - , de 250.000 para 500.000 euros, o qual veio a preencher o valor em falta, de 533.000 euros (factos 9. a 11., 14 e 15.);

 - CC não solicitou autorização à administração da autora para realizar as transferências bancárias e solicitar o aumento do plafond de crédito, que delas não tinha conhecimento (factos 13. e 14.).

 - CC efectuou a primeira transferência bancária e ordenou as duas outras na convicção errónea, induzida por terceiros que se fizeram passar por funcionários do Grupo, de que as mesmas se destinavam a empresas do Grupo AA, convicção essa que, por sua vez, incutiu no réu e o determinou a aceitá-las (factos 20. e 21.). 

D2 . A relação bancária estabelecida entre as partes, segundo os factos provados, decorre da conta de depósitos à ordem, onde eram lançados os movimentos a crédito e a débito e registado o saldo final dessas operações, e  do crédito aberto e concedido, sob a forma de conta corrente, cujo limite máximo foi elevado, por pedido da procuradora, em 2011, de 250.000 para 500.000 euros.

A conta e o crédito constituem, no mundo do direito, realidades diferentes.

No direito bancário o facto jurídico mais relevante na constituição e modificação de relações jurídicas é o contrato (José Maria Pires, Direito Bancário, 2.º Volume – As operações bancárias, Editora Rei dos Livros, pág. 50).

A conta implica que entre a autora e o réu foi celebrado um contrato de abertura de conta, ou seja, o contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Trata-se do contrato que marca o início de uma relação bancária complexa e duradoura, fixando as margens fundamentais em que ela se irá desenrolar. A abertura de conta não deve ser tomada como um simples contrato bancário, a ordenar entre outros contratos dessa natureza: ela opera como um acto nuclear cujo conteúdo constitui, na prática, o tronco comum dos actos bancários subsequentes (Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 5.ª Edição, revista e actualizada, Almedina, pág. 532).

Associada à abertura de conta, surge também o depósito bancário, operação a que, genericamente o banqueiro já deu o seu assentimento genérico e que, no caso concreto dos depósitos à ordem, se trata de uma convenção de depósito, por regra anexa à abertura de conta, que obriga o banqueiro a receber, levando à conta, as diversas remessas feitas a título de dinheiro depositado.

O registo dos movimentos, a crédito e débito, na conta, traduz, por sua vez, uma espécie de conta-corrente comum, e é essencial para o andamento das relações bancárias, postulando a prestação de diversos serviços bancários, com relevo para o giro bancário e o serviço de caixa.

Por fim, elemento vital da conta-corrente é o saldo, posição jurídica de relevo, autónoma em relação os lançamentos/movimentos que o antecedem.

Por seu turno, o crédito concedido tem origem, como confessado pelo banco réu, no contrato de abertura de crédito, ou seja, o contrato pelo qual um banco se vincula a ter à disposição da outra parte uma quantia de dinheiro por certo período de tempo ou por tempo indeterminado, obrigando-se esta ao reembolso das importâncias levantadas e pagamento de juros acordados na data do vencimento. Trata-se de contrato consensual por oposição a contrato real quoad constitutionem (Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, pág. 365). Contrato este, acrescente-se, que pode assumir diversas modalidades: abertura de crédito simples, abertura de crédito em conta corrente, abertura de crédito garantida, caucionada ou coberta, antecipação bancária, abertura de crédito a descoberto.

O regime, os direitos e os deveres do contrato de abertura de conta de depósitos à ordem e do contrato de abertura de crédito, decorrem de preceitos legais injuntivos (v.g. regras que impõem identificação pessoal e fiscal dos beneficiários), de cláusulas contratuais particulares e gerais constantes de um e de outro contrato, de disposições legais supletivas (que exigem que se determine a composição típica da abertura de conta e podem envolver, elementos da conta-corrente comercial – arts. 344.º e sgs. do Código Comercial; elementos do giro bancário – D.L. n.º 317/2009, de 30 de Outubro, elementos do depósito – art. 1185.º e sgs. do CC, da convenção do cheque – LUCH, e da prestação de serviço – art. 1157.º e sgs. do CC) e, ainda, de regras da supervisão (como seja o Aviso n.º 11/2005, do Banco de Portugal).

Como refere Menezes Cordeiro, consoante a área concretamente em causa, assim haverá que apelar aos respectivos elementos legais supletivos. Digamos que, na abertura de conta, dominará a teoria da combinação.” (ob. cit. pág. 546).

D3 - Implícita na abertura de conta, há uma “convenção de giro”, pela qual o banqueiro faculta ao cliente um conjunto imediato de operações ou “produtos”, como sejam as transferências bancárias (simples ou internacionais), os pagamentos por conta bancária, as cobranças por conta bancária e a outras operações de transferências de fundos.

As transferências bancárias ordenadas por CC, em nome da autora, comportam algumas especificidades:

a primeira, foi ordenada e executada pela internet e a conta apresentava saldo suficiente para ser executada;

a segunda e a terceira, foram ordenadas ao banco réu, que as executou, sem que a conta apresentasse saldo suficiente para as satisfazer.

Como se sabe, pressuposto da execução de uma ordem de transferência é a existência de provisão. O mesmo é dizer, é a possibilidade de o cliente dispor de fundos que pretende transferir. Essa provisão pode ter origens diversas e não implica necessariamente a existência de um saldo de depósito de igual ou superior à quantia a transferir. Basta que o banco disponibilize ao seu cliente os fundos para tal necessários. Essa disponibilização pode derivar de um contrato previamente celebrado – nomeadamente um depósito bancário ou uma abertura de crédito – ou resultar de um acto de mera tolerância do banco tendente a dar cobertura uma ordem de transferência face a uma insuficiência de saldo. A esta relação (…) chama-se relação de provisão ou relação de cobertura. (Catarina Gentil Anastácio, A transferência bancária, Almedina, pág. 123).

No contexto, factual - de insuficiência de depósito suficiente à segunda e terceira transferências - e jurídico - de necessária relação de provisão à execução das transferências, a ordenante CC teve de solicitar ao banco réu o aumento do plafond de crédito, de 250.000 para 500.000 euros, já antes contratado pela autora em 2006; o banco réu anuiu e concedeu-lhe o crédito de 533.000 euros, instrumental à execução dessas duas transferências.

Cumpre assinalar, neste ponto, que estamos perante dois actos jurídicos conexos mas distintos: um primeiro acto bancário, que são as transferências bancárias, com justificação no contrato de abertura de conta; um segundo acto bancário, que é o pedido de alteamento/elevação do plafond de crédito, com fundamento num contrato de abertura de crédito.

Os actos podem apresentar conexão entre si, mas são juridicamente diferentes, desde logo por buscarem a sua causa em contratos diferenciados.

D4 -  Feita a diferenciação entre os dois actos bancários e os negócios jurídicos que são a sua fonte, a questão a tratar consiste, agora, em saber se a autora autorizou CC a, em sua representação, ordenar/solicitar as transferências bancárias e o pedido de concessão/elevação de crédito ao banco réu.

Como a autora outorgou procuração a favor de CC, ou seja, praticou acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos – art. 262.º, n. º1, do CC, e essa procuração foi entregue ao banco réu, a questão começa por saber se nesta se contêm os poderes suficientes para a prática de tais actos.

Domínio, onde a interpretação da procuração surge inevitável.

Esta não é, contudo, a posição da autora, que afirma não ser caso para tanto se o banco réu, no interstício do recebimento das ordens e da sua aceitação e execução, não conferiu a procuração.

Olvida a autora, que a resposta à questão vai, desde logo, juridicamente ditar ou nortear a eficácia ou ineficácia daqueles actos perante a autora (a seu desfavor ou favor) – arts. 258.º e 268.º, ambos do CC.

E só nesse momento, em caso de eficácia dos actos praticados, surgirá a questão complementar de saber se o banco réu devia ter tomado outras diligências ou cautelas que impedissem o acatamento dos actos ordenados.

Firmou-se na procuração, como já se viu: “EE, (…) na qualidade de presidente do Conselho de Administração da sociedade “AA …, S.A.” (…) declarou constituir bastante procuradora da sociedade que representa, CC (…), a quem confere poderes para representar a referida sociedade perante bancos e/ou instituições de crédito, podendo abrir, encerrar e movimentar contas bancárias, a crédito ou a débito, requerer livros de cheques e assina-los.

Requerer avaliações fiscais, pagar contribuições e impostos e, nas repartições de finanças (…).

Conceder ainda poderes para representar a sociedade em reuniões de condóminos, Câmaras Municipais, Serviços Municipais, Conservatórias ou outras repartições (…).

A procuradora fica autorizada livremente a proceder a pagamento até cinco mil euros a favor de quaisquer pessoas e a proceder a pagamentos sem limite de valor a favor das seguintes sociedades : (…)”.  

A procuração, sendo um negócio jurídico unilateral: implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita com uma declaração de vontade (Menezes Cordeiro, in A representação no Código Civil; sistema e perspectivas de reforma, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 403), é interpretada segundo as regras previstas nos artigos 236.º e sgs. do CC.

Dentre estas regras, a interpretação da vontade expressa na procuração constitui questão de facto, quando consista em apurar se o destinatário conhecia a vontade real do declarante e o seu conteúdo; e, constitui questão de direito sempre que haja de realizar-se, na ignorância de tal vontade, nos termos do artigo 236º, n.º 1, do CC – cfr Acórdão do STJ de 11.11.1992, processo n.º 003424, in www.dgsi.pt.

No caso, não ecoa na matéria de facto provada o sentido atribuído pela autora à procuração e o seu conhecimento pela procuradora ou pelo banco réu. De modo que, o sentido a extrair da procuração deve ser o que um declaratário normal, colocado na posição hipotética do destinatário banco réu, deduzisse do seu texto – art. 236.º, n.º1 do Código Civil (a chamada teoria objectivista da impressão do destinatário, cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, em anotação a este artigo).

Entrando na extracção desse sentido, a concessão à autora de poderes para representar a referida sociedade perante bancos e/ou instituições de crédito, podendo abrir, encerrar e movimentar contas bancárias, a crédito ou a débito, requerer livros de cheques e assiná-los, colhe no declaratário normal o seguinte entendimento:

 - primeiro, os poderes atribuídos à procuradora para representar a autora perante bancos, não são poderes ilimitados e genéricos, mas poderes especiais conferidos para a prática dos actos expressamente previstos de (i) abertura, (ii) encerramento, (iii) e movimentação, a crédito (v.g. depósitos) e a débito (v.g. transferências), da conta; de (iv) requerer livros de cheques e (v) de os assinar. A entender-se de outro modo, não se compreenderia a necessidade de na procuração elencar os actos descritos;

 - segundo, o poder de movimentação da conta não está sujeita a limite de valor algum, visto que, para lá de não referido, também não pode aplicar-se o limite, mais abaixo previsto de 5.000 euros, para os pagamentos a sociedades que não as elencadas.

É que, entre uns e outros poderes (de intervenção junto de bancos e de pagamentos a terceiros), interpõem-se dois parágrafos nos quais se contemplam poderes de representação junto da administração tributária e da administração autárquica e outras instituições, públicas e particulares, entidades que já nada têm a ver com os bancos.

Sempre representaria um embaraço contrário à própria finalidade da procuração conferir poderes de movimentação da conta limitados a esse (contido) valor.

A sistematização e organização dos temas e a redacção da procuração albergam a conclusão inequívoca de que a regulação dos poderes de intervenção junto dos bancos se esgotou totalmente no parágrafo que os antecede. Acresce, a favor deste entendimento, que não se têm por iguais, os movimentos da conta e os pagamentos a terceiros: os movimentos da conta são apenas fluxos de capitais de, e para, a conta, que poderão ter justificações diversas que não apenas pagamentos.

Por fim, cumpre relembrar que a procuração foi redigida pela autora, a qual, caso pretendesse impor limite à procuradora na realização de movimentos da conta poderia, dentro da autonomia privada (na vertente de liberdade de conformação dos negócios jurídicos – art. 405.º, n.º1 do CC) que lhe assistia, tê-lo feito de forma clara, tal como fez quanto aos pagamentos a terceiros; se não impôs esse limite claro, é legítimo concluir que não se tratou de lapso, mas de intenção de não limitar a movimentação da conta, sendo, pelo menos, esse o sentido que da leitura integral da procuração se retira.

Desta interpretação, desde já decorrem para o caso as seguintes conclusões: as transferências bancárias executadas/ordenadas pela procuradora ao banco réu, que este consentiu/executou, continham-se dentro dos poderes da procuração, ou do âmbito da representação voluntária da autora; e o pedido de aumento do plafond de crédito e, antes dele, da concessão de crédito, necessária à execução das duas últimas transferências bancárias, não se atém, antes extravasa, os poderes conferidos pela autora, em procuração, a CC.

Esta segunda conclusão, só por si, não basta.

Ainda é preciso dizer que, a nosso ver, este pedido de concessão de crédito e, depois, de elevação do plafond concedido, não se têm por implícitos nos poderes de movimentação da conta: os actos bancários de transferência bancária e de elevação de plafond de crédito são, como antes já se teve necessidade de assinalar, entre si independentes e colhem a sua fonte em negócios jurídicos diferentes.

Donde, o poder para a prática de uns não abrange o poder para a prática de outros, ainda que estes visem permitir a prática daqueles. A diferente natureza de uns e de outros exigia a concessão de poderes especiais inequívocos pela autora, em concreto inexistentes.

Não se pode ignorar que a abertura de crédito ou a elevação do seu plafond comporta a assunção de obrigações financeiras perante o banco (pagamento de juros, comissões, etc.) que extravasam a mera movimentação da conta e merecem ponderação cuidada, não podendo ficar ao alvedrio do procurador sob o manto dos poderes de movimentação da conta concedidos. 

Acrescente-se um outro argumento: no contexto provado de a empresa autora fazer parte de um grupo empresarial francês, a concessão de poderes a CC, funcionária de nacionalidade portuguesa, para abrir, movimentar, encerrar contas, pedir cheques e emiti-los em balcão sedeado em Portugal, justifica-se, notoriamente, em permitir-lhe o normal giro bancário necessário à gestão corrente do capital e da actividade da empresa no país, a qual, dedicando-se à importação e exportação de peças de vestuário envolve, com certeza, fluxo de capitais constante.

Já a concessão de crédito de 250.000 euros, e concretamente a elevação deste limite para 500.000 euros, por forma a permitir aquelas duas últimas transferências bancárias, de valores significativos note-se, não constitui um acto normal, antes eventual, da vida financeira de uma empresa, a carecer de autorização expressa por parte dela para ser praticado. De resto, a normalidade é a cobertura das movimentações a débito com saldo na conta oriundo de depósito do seu titular e não oriundo da concessão de crédito.

A doutrina (sufragada por Menezes Cordeiro, in ob. cit. pág. 405 e Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), III (1968), 405) de que a distinção feita no artigo 1159.º do CC entre mandato geral e mandato especial é aplicável à procuração, com base em argumentos de ordem histórica (cf. arts. 1323.º e 1325.º do Código de Seabra), sistemática (aponta a unidade natural que deve acompanhar o mandato com representação) e lógica (não faz sentido ter uma lei mais exigente para um mero serviço – o mandato – do que para os poderes de representação), em face do que na procuração com poderes especiais, como seja a procuração em causa, além dos actos nele referidos, estão abrangidos todos os demais necessários à sua execução vale, em concreto, apenas para validar a primeira transferência bancária que se concretizou através de ordem dada pela internet, meio ou serviço disponibilizado pelo banco réu e que não traz onerosidade acrescida para a autora, antes traduzindo mera comodidade e facilidade de concretização dos actos bancários expressamente autorizados.

Por todo o exposto, os poderes conferidos pela autora, em procuração, a CC, para, entre outros actos bancários expressos, movimentar a conta, envolvem, sem limite de valor, as transferências bancárias e os actos ordinários, comuns ou usuais da sua execução, como seja o uso dos serviços de homebanking ou internet, e não envolve, na consideração da sua autonomia e fonte negocial diferenciada, das obrigações e onerosidade que acarretam, e, ainda do carácter extraordinário ou, pelo menos, eventual - ainda que se prefigure necessária, por falta de provisão suficiente, à execução dessas mesmas transferências bancárias - o pedido de concessão de crédito ou elevação de crédito, já concedido, de 250.000 euros para 500.000 euros.

D5 - Que consequência jurídica resulta desta falta de autorização?

No âmbito da representação voluntária, o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado – art. 268.º, n.º1, do CC.

O preceito legal estabelece duas previsões e duas estatuições, a saber:

 - se uma pessoa celebra em nome de outra, sem poderes de representação, um negócio jurídico, o mesmo é ineficaz em relação à segunda;

 - se uma pessoa celebra em nome de outra, sem poderes de representação, um negócio jurídico e a segunda o ratifica, o mesmo é eficaz em relação a ela.

Em concreto:

CC solicitou ao banco réu, em nome da autora, a elevação do plafond de um crédito antes concedido, de 250.000 para 500.000 euros; o banco réu tinha cópia da procuração; no seu teor não se continham poderes para tanto e, não se provou que a autora tenha ratificado o negócio jurídico.

Por consequência, o pedido e a concessão da elevação do plafond do crédito são ineficazes em relação à autora, ou seja, não produzem, quanto a ela, qualquer efeito.

Porque nenhum efeito deles resulta, não merece acolhimento o pedido formulado pela autora de condenação da ré a reintegrar na conta o montante do crédito concedido, visto a ineficácia ser total, estendendo-se quer aos direitos quer às obrigações resultantes do negócio ou das suas vicissitudes.

A autora não tem direito à prestação. 

Mas, já tem direito a que, por via da ineficácia, e na relação bancária entre ambos, o tribunal declare (mais apropriado que condene a ré a reconhecer) que a autora não deve ao banco réu o valor do crédito concedido, como alternativamente pede na acção, precisamente porque quanto a si não produziu efeitos.

Com esta declaração, se resolve futuro litígio que surja entre as partes a tal respeito.

O crédito concedido não se traduziu num acréscimo do património da autora, para efeito de evitar o juízo declaratório peticionado, porquanto foi automática e imediatamente afecto às duas transferências bancárias ordenadas, sem conhecimento e autorização da autora.

Refira-se, também, rebatendo o argumento invocado pela recorrida, que não se aplica aqui o disposto no art. 409.º, do Código das Sociedades Comerciais, que prevê o seguinte:

1 - Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.

2 - A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas.”

O preceito aplica-se aos actos praticados pelos administradores da sociedade e não aos procuradores da sociedade, como seja CC, sendo-lhe antes aplicável o regime da procuração previsto nos arts. 258.º e sgs., com especial enfoque para o art. 259.º, todos do CC.

De todo o modo, sempre se dirá que a disciplina constante do n.º 1, segunda parte, daquele preceito, visa proteger a tutela da aparência ou da confiança, negando-se em geral que o terceiro, no caso o banco réu, tenha a seu cargo o dever de verificar se e em que medida o administrador respeitou os limites internos colocados à sua actividade.

Não se justifica esta tutela quando, como é o caso, a autora outorgou procuração a favor de terceiro, não administrador, para a prática de actos contados, e entregou cópia ao banco réu. 

Surge aqui, apropriadamente, o art. 260º do CC, que dispõe:

“1. Se uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena de a declaração não produzir efeitos.

2. Se os poderes de representação constarem de documento, pode o terceiro exigir uma cópia dele assinada pelo representante”.

Se o banco, em face da insuficiência dos poderes constantes da procuração que tem em seu poder e da configuração objectiva de situação de representação sem poderes, nos termos descritos, não cumpriu o ónus previsto, a consequência natural é sofrer o risco da ineficácia do contrato face ao representado (Ana Prata, em Responsabilidade pré-contratual, 2, “O Direito”, pág. 43 e sgs.).

Esta é, aliás, a única solução compatível com o disposto no art. 65.º, n.ºs. 1 a 3 - consentimento e retirada do consentimento - do Regime Jurídico Relativo ao Acesso à Actividade das Instituições de Pagamento e à Prestação de Serviços de Pagamento, aprovado pelo D.L. n.º 317/2009, de 30-10, que tem o seguinte teor:

“ 1 - Uma operação de pagamento ou um conjunto de operações de pagamento só se consideram autorizados se o ordenante consentir na sua execução.

2 - O consentimento deve ser dado previamente à execução da operação, salvo se for acordado entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento que o mesmo seja prestado em momento posterior.

3 - O consentimento referido nos números anteriores deve ser dado na forma acordada entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento, sendo que, em caso de inobservância da forma acordada, se considera que a operação de pagamento não foi autorizada”.

D5 -  A resposta ao tópico anterior, todavia, ainda não resolve, totalmente a questão da responsabilidade do banco réu.

Relativamente ao acto de pedido de elevação do plafond do crédito concedido, a ineficácia do mesmo perante a autora, em face da actuação de terceira sem poderes de representação, é suficiente na declaração peticionada de que não deve esse crédito ao banco réu.

Relativamente às transferências bancárias ordenadas por CC no âmbito dos poderes conferidos pela autora e executadas pelo banco réu, a primeira  com integral dinheiro e estas com parcial dinheiro depositado pertencente à autora, a questão é agora outra.

Trata-se de saber se o banco devia ter cumprido deveres de diligência acrescidos, impostos pelas circunstâncias do caso, por via dos quais se determinasse a não executar as ordens e evitar, com isso, o prejuízo sofrido pela autora.

A autora entende que tais deveres foram violados, invocando, a seu favor, o disposto nos artigos arts. 74°, 75°, n.02, 76, 118°-A do RGICSF, da Portaria n.º 150/2004, Portaria n.º 292/2011, do RJSP, e dos art.º 2, al. a) e b) e art. 4°, do Aviso do Banco de Portugal n.º 11/95.

Vejamos:

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo D.L. n.º 298/1992, de 31-12, objecto de sucessivas alterações, previa ao tempo das transferências bancárias em questão, no art. 73.º, que as instituições de crédito devem assegurar, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência; no art. 74.º, que os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados; e, por último, no art. 76.º, n.º2 que com vista a assegurar o cumprimento das regras de conduta previstas neste Regime Geral e em diplomas complementares, o Banco de Portugal pode, nomeadamente, emitir recomendações e determinações específicas, bem como aplicar coimas e respectivas sanções acessórias, no quadro geral dos procedimentos previstos no artigo 116.º .

O aviso do Banco de Portugal n.º 11/2005 (por lapso, a autora referiu o aviso n.º 11/95 regulou as condições gerais de abertura de contas de depósito bancário, estabelecendo deveres especiais de cuidado e de informação que não se dizem aplicar-se às transferências bancárias em análise.

A portaria n.º. 150/2004, de 13 de Fevereiro, alterada pela portaria n.º 292/2011, de 08 de Novembro, veio listar os países com regimes de tributação privilegiada para efeitos de combate à fraude e evasão fiscais, quando a questão que tratamos não tem natureza fiscal mas meramente obrigacional ou civil, em razão do que não revestem importância.

Do acervo normativo invocado pela recorrente para estribar a negligência do bando réu, unicamente importam os elevados níveis de competência técnica a que as instituições de crédito estão obrigadas e a diligência dos empregados dessas instituições na relação com os clientes, consagrados naqueles artigos 73.º e 74º do RGICSF.

Relativamente a esses deveres – de elevada competência técnica e de diligência – parece-nos que a sua densificação ou concretização há de ser feita em face do concreto acto bancário solicitado pelo cliente e executado pelo banco. 

Não se crê, como antes já dissemos, que tenha relevância apurar aqui se o banco réu conferiu ou não conferiu a procuração antes de executar as ordens de transferência bancária, por se ter concluído compreenderem-se nos poderes nela concedidos.

Mesmo que se viesse a provar não ter o banco réu conferido a procuração, sempre a mesma autorizava a prática dos actos, tornando a sua conferência um acto inútil e irrelevante.

Até porque da não conferência da procuração não resultaria necessariamente o desconhecimento do seu teor, visto que uma cópia da procuração foi entregue ao banco réu que, pelas operações bancárias anteriores encetadas pela procuradora, podia já estar a par do seu teor, sem cuidar de a consultar.

Antecipe-se, desde já, que os factos provados não permitem concluir por qualquer falta de diligência exigível por parte do banco réu.

Se, objectivamente, CC estava autorizada pela autora a ordenar transferências bancárias sem limite de valor e ordenou três transferências bancárias; se a autora é empresa que se dedica à actividade de importação e exportação de vestuário, sendo do conhecimento comum que o mercado asiático, no que inserem os países destinatários das transferências – Hong Kong e China, é um mercado barato, por ocasião da numerosa mão-de-obra disponível, e vocacionado, entre outras, para a área da produção e comercialização de vestuário e de têxteis, tornando verosímil a propalada operação empresarial em curso, e se, não menos importante, a própria procuradora convenceu o banco réu, no contexto da relação de confiança entre os clientes e os bancos, que as transferências ordenadas se contextualizavam numa operação do grupo, não se pode exigir do banco réu qualquer desconfiança, designadamente quanto aos valores elevados a transferir (e que poderiam justificar-se aparentemente em negócio internacionais do grupo) que levasse a diligência complementar para confirmar o verbalizado.

Até porque, também aqui a diligência do banco réu residia no cumprimento célere das ordens recebidas, em cumprimento do contrato, não podendo a autora, seu favor, exigir cuidado maior se as circunstâncias aparentavam não haver qualquer irregularidade com as operações ordenadas e levaram ao convencimento, antes dele, da própria funcionária e procuradora do grupo AA.

Neste contexto, o art. 76.º, nº 1, do Regime Jurídico Relativo ao Acesso à Actividade das Instituições de Pagamento e à Prestação de Serviços de Pagamento, regula a recusa de ordens de pagamento nos seguintes termos:

“1 - No caso de estarem reunidas todas as condições previstas no contrato quadro celebrado com o ordenante, o prestador de serviços de pagamento do ordenante não pode recusar a execução de uma ordem de pagamento autorizada, independentemente de ter sido emitida pelo ordenante, pelo beneficiário, ou através dele, salvo disposição legal em contrário”.

A regra é, como se vê, a da execução da ordem de pagamento se estiverem reunidas as condições previstas no contrato quadro celebrado entre as partes, que a autora recorrente não coloca especificamente em crise.

D6 - Por fim, resta saber se o disposto no art. 796.º, n.º1, do CC, é aplicável ao caso, posição sufragada pela recorrente e donde estriba a pretensão de o banco réu ser condenado a reintegrar na sua conta os valores que dela foram transferidos, por fraude, para terceiros.

O art. 796.º do CC tem a seguinte redacção:

“1. Nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente”.

A abertura de conta, como se viu, constitui o ponto de partida para o vasto complexo negocial que constitui a relação bancária. Esta figura contratual, tem sido subsumida a nível jurisprudencial e pela maior parte da doutrina na figura negocial de depósito, tal como definida pelos artigos 1185º e 1187º, ambos do CC, através do qual a autora colocou à disposição do réu o seu dinheiro e para que este o guardasse e o restituísse quando fosse exigido, constituindo esta figura um depósito irregular ao qual se aplicam as regras do mútuo, com as necessárias adaptações – Acórdãos de STJ de 22.02.2011, proc. n.º 1561/07.9TBLRA.C1.S1. e de 24. 10.2013, proc. n.º 27432/02.7TVLSB, in www.dgsi.pt.

Independentemente da natureza do depósito bancário, o entendimento de que, porque existe transferência da propriedade da coisa concretamente recebida, o risco pelo destino da coisa depositada (em concreto, dinheiro) há-de correr por conta do banco depositário, nos termos do preceito referido, salvo se for devido a causa imputável ao depositante, é seguido, na doutrina, por Antunes Varela, Depósito Bancário, in Revista da Banca, nº 21, p. 47, Paulo Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, 1998, p. 209; José Maria Pires, ob cit., 2º vol., p. 168, e, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nos acórdãos de 12.6.74, BMJ, nº 238-272, de 3.10.95, proc. nº 86841, de 26.3.96, proc. nº 87953, de 21.5.96, CJSTJ, ano IV, tomo II, p. 82, de 02.03.1999, in www.dgsi.pt.

Acontece que o presente caso apresenta uma particularidade fáctica em relação aos casos tratados naqueles arestos, não despicienda, comprometedora da aplicação do preceito transcrito: as transferências bancárias foram executadas por ordenação da autora (através da procuradora) e não por fraude exercida por terceiros sobre a conta. 

Independentemente de saber se a autora (através da procuradora) agiu com culpa – no sentido de ter sido descuidada na confirmação da legitimidade e da origem das transferências bancárias ordenadas – sempre se segue o entendimento de que no contrato de depósito bancário, o disposto no art. 796.º, n.º 1, do CC – responsabilidade pelo risco decorrente do perecimento ou deterioração da coisa –, só se aplica em caso de pagamento feito a terceiro sem o consentimento do depositante – cf. Acórdão do STJ de 15.11.2012, proc. n.º 246/10.3YRLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, in http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-tematica/direitobancario.pdf, e arts. 769.º e 770.º, n.º1 al. a), ambos do CC. 

Tendo as ordens de transferências bancária emanado do depositante (a autora, através da procuradora), deu esta, bem ou mal, o seu consentimento ao banco réu para as executar, não se justificando, também neste caso, fazer repousar sobre o banco réu, o risco complementar dos vícios na formação da vontade dos próprios depositantes/ordenantes e que, mais distantes, se não equiparam ao risco de fraude directamente exercida por terceiros sobre a conta e os depósitos que o banco tem à sua guarda.

Não cabendo, pelo exposto, a aturada exegese do art. 796.º do CC, anunciada e solicitada pela recorrente, por em concreto se excluir a sua aplicação, mantêm-se as considerações tecidas no acórdão da Relação, e atrás também feitas, sobre o disposto no art. 799.º do CC e sobre a ausência de culpa do banco réu, que por tudo não terá de restituir à autora quaisquer quantias na falta de causa jurídica justificativa.

D7 -  Tratada a questão enunciada sob os pontos de vista ou argumentos trazidos pela recorrente, vejamos o desfecho do recurso em face dos pedidos formulados na acção.

A procuração outorgada pela autora a favor de CC autorizou-a a ordenar as transferências bancárias em causa junto do banco réu, e, na sua execução, o banco réu não faltou ao dever de diligência ou competência técnica impostos por lei.

Improcede o pedido de ser condenado a reintegrar na conta da autora o valor total das mesmas.

Na insuficiência da provisão necessária à execução dessas mesmas transferências bancárias, por a conta ter saldo inferior ao seu valor total, a procuradora CC, extravasando os poderes conferidos pela autora, solicitou a elevação do crédito antes concedido ao banco réu.

O banco, por responsabilidade que lhe é imputável, visto que tinha cópia da procuração em seu poder, aceitou e concedeu o aumento do crédito (sem o que nem a segunda nem a terceira transferências teriam sido realizadas, pois o montante máximo antes concedido se mostrava insuficiente) que, afecto à execução das transferências bancárias, não chegou a representar um aumento efectivo do património da autora.

Em resultado da ineficácia legal do acto de concessão/elevação de crédito perante a autora e do não enriquecimento, por via dele, do património da autora, procede parcialmente o pedido alternativo formulado, a saber, de o tribunal declarar que, a esse título, a autora nada deve ao banco réu, ou seja, e agora entroncando com os factos provados, não deve a quantia de 533.000 euros.

III.

Termos em que se concede, parcialmente, a revista, revoga-se, parcialmente, o acórdão da Relação e declara-se que a autora não deve ao réu a quantia de quinhentos e trinta e três mil euros, mantendo-se o mais decidido.

Custas a cargo da recorrente e recorrida, na proporção do vencido.

              Lisboa, 5 de Abril de 2016

Martins de Sousa (relator)

Gabriel Catarino

Maria Clara Sottomayor