Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2384/08.3TBSTS-D.P1.S1-A
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONSUMIDOR
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: DR I SÉRIE, 141, 25.07.2019, P. 22-41
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÓRDÃO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / SINAL / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO / PROMESSA DE CONTRATO.
Doutrina:
- A. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª ed., 2017, p. 193;
- F. Gravato Morais, Promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor, CDP, n.º 29, 2010, p. 3 e ss. ; Tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.4/2014 de 20.03.2014, Proc. n.º 92/05, CDP, n.º 46, 2014, p. 32 e ss.;
- L.M. Pestana de Vasconcelos, Direito de Retenção, par conditio creditorum, justiça material, CDP, n.º 41, 2013, p. 5 e ss. ; Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, CDP, n.º 33, 2011;
- Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão, A Posição Jurídica do Beneficiário de Promessa de Alienação no Caso de Insolvência do Promitente-Vendedor – Comentário ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, de 19 de maio; Julgar Online, setembro de 2016, p. 1 e ss., in http://julgar.pt/a-posicao-juridica-do-beneficiario-de-promessa-de-alienacao-no-caso-de-insolvencia-do-promitente-vendedor;
- Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serra, Insolvência e contrato-promessa, ROA, Ano 70, 2010, p. 395 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, N.º 2, 755.º, N.º 1, ALÍNEA F) E 759.º, N.º 2.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 106.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4, DE 20-03-2014;
- DE 29-05-2014, PROCESSO N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1;
- DE 17-11-2015, PROCESSO N.º 21/10.5TBSPS-C.C1.S1;
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 44/14.5T8VIS-B.C1.S1;
- DE 11-05-2017, PROCESSO N.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 258/13.5TBPTL-C.G1.S1;
- DE 03-10-2017, PROCESSO N.º 212/11.1T2AVR-B.P1.S1;
- DE 17-04-2018, PROCESSO N.º 4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S3;
- DE 11-09-2018, PROCESSO N.º 25261/11.6T2SNT-D.L1.S2;
- DE 18-09-2018, PROCESSO N.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1.
Sumário :  
Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa. 
Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Por apenso aos autos da insolvência de “..., Ldª”, correu o processo de graduação de créditos, o qual, no que ao histórico do presente processo interessa, reconheceu e graduou os seguintes créditos:

- Crédito de €110 000,00 de AA e mulher BB[1], garantido por direito de retenção, sobre duas frações autónomas, para habitação e garagem individual, designadas pelas letras BJ e U do prédio urbano em construção, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...;

- Crédito de € 380 733,98 de CC, DD, Dr. EE, Dr. FF, Dra. GG e Dra. HH[2], garantido por direito de retenção, sobre as frações D e E do prédio constituído em propriedade horizontal, composto de rés-do-chão e cave, com a área aproximada de 800 m2, sito na Rua ..., com a inscrição matricial n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ....

2. Os referidos créditos foram graduados antes dos créditos garantidos com hipoteca existentes sobre os mesmos imóveis, por ter sido reconhecido aos seus titulares o direito de retenção previsto no art.755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, aplicável nos termos do Acórdão do STJ n. º 4/2014 (revista ampliada), publicado no DR, 1ª Série, de 19.05.2014.

3. A sentença de graduação de créditos foi alvo de recurso de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto, interposto pelos credores hipotecários II (contra a graduação dos créditos de CC e Outros) e JJ (contra a graduação de créditos de AA e mulher).

4. O Tribunal da Relação do Porto, revogando a sentença de graduação de créditos, qualificou os créditos dos Recorridos como créditos comuns e não lhes reconheceu o direito de retenção.

5. Contra o acórdão do Tribunal da Relação do Porto foi interposto recurso de revista por CC e Outros (tendo como Recorrida a II) e por AA e mulher (tendo como Recorrido o JJ).

6. A II apresentou contra-alegações. O JJ não contra-alegou.

7. Por acórdão de 24.10.2017, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista, entendendo que os créditos estavam garantidos com o direito de retenção e considerando os respetivos titulares como “consumidores” para efeitos do Acórdão n.º 4/2014.

8. Em 15.11.2017, a II interpôs recurso extraordinário, para o Pleno das Secções Cíveis, pedindo a revogação daquele acórdão e a uniformização de jurisprudência, com base no artigo 688.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Nas suas alegações apresentou as conclusões que se transcrevem:
1. «Vem o presente recurso, para o pleno das secções cíveis com vista à uniformização de jurisprudência, do acórdão que concedeu a revista interposta por CC, DD, EE, FF, GG e HH.
2. O acórdão recorrido, ao considerar como consumidores, para efeitos de aplicação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, os credores CC, DD, EE, FF, GG e HH, que celebraram contrato-promessa de compra e venda de duas fracções autónomas, com o propósito de aí instalarem uma clínica – o que concretizaram -, sendo que, a partir da celebração do mencionado contrato, das fracções em causa tomaram posse e nelas passaram a efectuar diversas consultas, tratamentos e exames médicos, encontra-se em frontal oposição com, pelo menos, outros dois acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, a saber, acórdão de 13.07.2017, proferido no âmbito do processo nº 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2, e acórdão de 14.02.2017, proferido no âmbito do processo nº 427/12.5TBFAF-F.G1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
3. Quanto à problemática que, para os efeitos pretendidos, envolve o conceito de consumidor, o acórdão recorrido, concedendo a revista interposta pelos credores ora recorridos, entendeu que “não será consumidor quem compra (ou promete comprar) com escopo de revenda” e que “é consumidor o não profissional do ramo, isto é, aquele cuja actividade profissional não consiste propriamente na compra e venda de imóveis ou na compra visando outro escopo lucrativo que terá por objecto imediato o prédio ou a fracção (por exemplo, para arrendamento) e que vai ser, assim, o utilizador final do bem.
4. Por seu turno, no acórdão fundamento de 13.07.2017, considerou-se ser “consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável”.
5. No mesmo sentido, no acórdão fundamento de 14.02.2017, entendeu-se que “Não reveste tal conceito (de consumidor) aquele que celebra como promitente-comprador um contrato promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efetivamente instala, constituindo, para o efeito, uma sociedade comercial”, nem aquele que “celebra contrato promessa, como promitente-comprador de três frações prediais, sendo duas lojas comercias e a restante um aparcamento na cave de apoio, lojas essas que o referido credor destina, uma, a nela instalar um estabelecimento comercial que efetivamente veio a instalar, por sua conta, e a outra dá de arrendamento a uma instituição bancária, recebendo as respetivas rendas”.
6. Ora, se no aludido AUJ nº 4/2014 se uniformizou jurisprudência no sentido de que “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil” - negrito e sublinhado nossos -, dúvidas não há de que o próprio conceito de consumidor não foi objecto de uniformização.
7. E assim, temos que no acórdão recorrido se considera serem consumidores os credores que destinaram (e para esse efeito prometeram comprar) as fracções objecto do contrato-promessa por si celebrado ao exercício das suas actividades profissionais, ao passo que nos acórdãos fundamentos entendeu-se o seu contrário, ou seja, que não revestem a qualidade de consumidores.
8. Assim sendo, e atendendo a que nos acórdãos aqui em apreço se discute a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, encontrando-se as respectivas decisões em oposição clara e directa, sem que tenha sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência uniforme sobre a presente vexatia quaestio, deverá o presente recurso ser admitido, nos termos do disposto no art. 688º do CPC.
9. Com efeito, a decisão recorrida, ao aplicar um conceito absolutamente restrito de consumidor, no sentido de que apenas não o é o quem adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis, acha-se em contradição com o que, segundo cremos, vem sendo o entendimento maioritário deste Supremo Tribunal de Justiça, além de que (e fundamentalmente) não encontra suporte no nosso ordenamento jurídico.

Vejamos:
10. A qualidade de consumidor está definida no nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96 de 31 de Julho, nos termos do qual “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
11. Por seu turno, no AUJ nº 4/2014 expôs-se que “(…)A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente seletividade na concessão de crédito.
12. Já no relatório do DL 379/86 de 11 de Novembro, na sua nota 4, consignou-se que: “O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito. (…) Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.
13. Afigura-se-nos, pois, claro, que subjaz à interpretação que vingou no AUJ nº 4/2014 a protecção da parte mais débil e com inferiores recursos (técnicos e financeiros), ou seja, o consumidor que adquire (ou promete adquirir) bens para uso privado, a fim de satisfazer necessidades pessoais e familiares.
14. Tal protecção certamente não abrange quem adquire imóveis para neles prosseguir a sua actividade profissional.
15. Ainda que o negócio em si mesmo não se insira no âmbito da actividade profissional do promitente-comprador, se o mesmo se destinar a fins profissionais e económicos, e não à satisfação de suas necessidades pessoais e/ou familiares, não poderá aquele ser considerado consumidor, entendido este em sentido estrito.
16. E dúvidas não se nos oferecem de que o conceito de consumidor adoptado no nosso ordenamento jurídico é estrito. Como ensina o Professor Calvão da Silva - in “Venda de Bens de Consumo”, 4ª Ed. (2010), Almedina, pág. 55 e ss. - “É a consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Directivas Comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico (…) -, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”.
17. Neste exacto sentido se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça datado de 25.11.2014, proferido no âmbito do processo n.7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
18. Ainda no mesmo sentido, e a título de exemplo, atente-se no sumário do acórdão de 29.07.2016, proferido no âmbito do processo n.6193/13.0TBBRG-H.G1.S1, igualmente disponível em www.dgsi.pt, em que consta que “(…) O consumidor contrapõe-se ao profissional: quem compra um edifício para nele instalar máquinas que vai utilizar na sua actividade produtiva – conforme se provou – não age como consumidor, mas sim na sua qualidade profissional, mesmo que não tenha intenção de comprar o prédio para revenda, até porque o conceito de profissão é muito mais lato do que a compra para revenda.
19. Veja-se, por seu turno, a argumentação expendida no acórdão fundamento de 14.02.2017, proferido no âmbito do processo nº 427/12.5TBFAF-F.G1.S1, no sentido de que é “(…) a finalidade do ato em causa que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aquele diploma instituiu – e ainda os que lhe seguiram na senda da mesma proteção do consumidor, como os decretos-leis nºs 67/2003 de 8/04 e 84/2008 de 21/05, operando a transposição de Diretivas da União Europeia”, e ainda que “(…) uma finalidade empresarial ou comercial (…) se não integra no interesse do legislador subjacente à proteção consagrada aos consumidores pelos diplomas legais referidos”.
20. Atento tudo o exposto, não cremos que possa vingar a interpretação do conceito de consumidor propugnada no acórdão recorrido.
21. Cremos até que essa interpretação desvirtua completamente a jurisprudência fixada no AUJ nº 4/2014, em cuja génese esteve, parece-nos que indiscutivelmente, a protecção do elo mais fraco.
22. Nesta matéria seguimos de perto a fundamentação do acórdão fundamento de 13.07.2017, proferido no âmbito do processo nº 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2, em que se realça “(…) que a referida necessidade de protecção, como sublinha Calvão da Silva, tem subjacente a "ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”.(…) O mesmo pode suceder, parece-nos, com aquele que disponha de elevada capacidade financeira e que, por via disso, possa dispor de adequado apoio técnico e profissional na negociação contratual com o profissional fornecedor do bem ou serviço. (…) Nestes casos, como acrescenta Calvão da Silva, seria injustificada e até abusiva a aplicação do direito especial de protecção do consumidor, na medida em que a qualificação técnica e profissional que o adquirente dispõe ou pode normalmente dispor lhe permitem evitar os riscos e abusos a que, nas mesmas circunstâncias, o consumidor normal, mais vulnerável – por debilidade económica ou por impreparação técnica –, está exposto.”
23. Não olvidamos o teor da nota 10 do AUJ n.4/2014, em que, aliás, se baseiam os que defendem um conceito restrito de consumidor. Não cremos, porém, que tal lacónica nota seja de molde a obnubilar toda a fundamentação empregue naquele mesmo acórdão.
24. A verdade é que o AUJ n. 4/2014 não foi explorado o conceito de consumidor, quiçá dado que, no caso ali em apreço, as fracções objecto do contrato-promessa em discussão se destinavam à habitação e arrumos do promitente-comprador. O que é certo é que ali nenhuma apreciação se fez sobre se, caso as fracções se destinassem à prossecução pelo credor reclamante de uma actividade profissional, este seria, ainda assim, considerado consumidor.
25. No caso dos presentes autos, foi dado como provado que os credores CC, DD, EE, FF, GG e HH, com a celebração do contrato-promessa, entraram na posse das fracções objecto daquele contrato, designadas pelas letras “D” e “E”, e desde então aí efectuaram, diariamente, diversas consultas, tratamentos e exames médicos, enfim, prestaram uma série de serviços de saúde a variados doentes.
26. É, pois, manifesto que a finalidade da (promessa de) aquisição dos imóveis não foi a de uso pessoal ou familiar.
27. A adopção de um conceito restrito de consumidor, como o seja o vertido no acórdão recorrido, de que apenas possui essa qualidade “o não profissional do ramo, isto é, aquele cuja actividade profissional não consiste propriamente na compra e venda de imóveis ou na compra visando outro escopo lucrativo que terá por objecto imediato o prédio ou a fracção (por exemplo, para arrendamento) e que vai ser, assim, o utilizador final do bem”, não só não tem qualquer sustento no nosso ordenamento jurídico, como traduzir-se-ia num total desvirtuamento da jurisprudência fixada, ancorada na necessidade de protecção do consumidor, visto como a parte mais fraca e desprotegida, com inferiores recursos e capacidades (financeiros e técnicos).
28. Ao decidir como decidiu - isto é, ao considerar que os credores recorridos, profissionais do ramo da saúde, que prometeram comprar duas fracções autónomas com vista a aí instalar uma clínica – o que concretizaram -, onde passaram a, diariamente, efectuar as mais variadas consultas, tratamentos e exames médicos, são consumidores e, por esse motivo, o crédito que lhes foi reconhecido goza do direito de retenção sobre as referidas fracções – o acórdão recorrido violou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, bem como o disposto no art. 2º, nº 1 da Lei nº 24/96 de 31 de Julho.
29. Deverá, pois, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que, fixando jurisprudência no sentido de que, para efeitos de aplicação do AUJ n. 4/2014, consumidor é a pessoa que adquire (ou promete adquirir) um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as suas necessidades pessoais e familiares, considere não serem os credores recorridos, CC, DD, EE, FF, GG e HH, consumidores e, nessa medida, serem os mesmos detentores de um crédito comum, sem beneficiar de direito de retenção algum.

Termos em que, deverá ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que, fixando jurisprudência no sentido de que, para efeitos de aplicação do AUJ nº 4/2014, consumidor é a pessoa que adquire (ou promete adquirir) um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as suas necessidades pessoais e familiares, considere não serem os credores recorridos, CC, DD, EE, FF, GG e HH, consumidores e, nessa medida, serem os mesmos detentores de um crédito comum, sem beneficiar de direito de retenção algum.»

9. A Recorrente juntou dois acórdãos fundamento: um de 13.07.2017, proferido no processo n.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2 (relatado por Pinto de Almeida), outro de 14.02.2017, proferido no processo n.º 427/12.5TBFAF-F.G1.S1 (relatado por João Camilo). Notificada do despacho de fls. 141 para dizer qual deles devia ser o acórdão fundamento, a Recorrente veio, a fls. 145, optar pelo acórdão proferido em 14.02.2017.

10. Os Recorridos CC e outros apresentaram contra-alegações, das quais se extrai a seguinte súmula:

«O conceito de consumidor que o AUJ acolheu foi o conceito restrito[3], funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transacionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa, sendo este critério que decorre do AUJ que não abrange a noção consagrada na legislação de proteção ao consumidor, até porque, a jurisprudência posterior tem considerado consumidor a pessoa singular ou coletiva que tenha adquirido sem intenção de revenda, ficando, por isso, excluído da noção de consumidor, aquele que adquire ou promete adquirir um bem ou serviço no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis, mas aceitando que seja consumidor o promitente-comprador que exerce o comércio no imóvel»

11. O JJ não interpôs recurso quanto à parte do acórdão que concedeu a revista a AA e mulher (promitentes-compradores das supra referidas frações para habitação e garagem). Todavia, estes vieram aos autos, a fls. 157, na qualidade de interessados, requerer que o futuro acórdão de uniformização de jurisprudência não afetasse a sua situação. Notificada a recorrente, II, veio esta dizer que o segmento do acórdão que concedeu a revista a AA e mulher não é objeto de recurso.

12. Em 01.03.2018, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência foi admitido, por despacho de folhas 149 dos autos.

13. Em 05.06. 2018, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que se encontra a fls. 171-185 dos autos, no qual concluiu como se transcreve:
«Termos em que, com atenção a todo o exposto, se emite parecer no sentido de que, na procedência do presente recurso extraordinário:
 O conflito jurisprudencial entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento seja resolvido através da emissão de proposição uniformizadora do seguinte teor ou equivalente:

  No âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, que goza do direito de retenção previsto no art.º 755º n.º 1 f) do Cód. Civil na dimensão interpretativa do AUJ do STJ n. 4/2014, é, apenas, o que destina o bem ao uso pessoal ou familiar alheio a qualquer finalidade empresarial, comercial ou, simplesmente, lucrativa.

    Nessa conformidade, seja o Acórdão Recorrido revogado e substituído por outro em que, não lhes reconhecendo a apontada garantia real, qualifique como comuns sobre a insolvência, nos termos do art. 47º n.os 1, 2, 3 e 4 c) do CIRE, os créditos reclamados pelos Recorridos CC e Outros.»

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Questão prévia: a existência de contradição de julgados e a admissibilidade do recurso

           1.1. Por decisão do relator (Júlio Gomes), de 01.03.2018 (a fls.149), foi reconhecida a existência de oposição de julgados e admitido o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, sintetizando-se a razão da oposição nos termos que se transcrevem:

  «O Acórdão recorrido adota uma conceção ampla de consumidor com o significado comum do termo, como sendo aquele que promete adquirir bens como utilizador final dos mesmos e que utiliza os prédios ou frações para seu uso próprio e não com escopo de revenda. Caberia neste conceito, por conseguinte, quem (pelo menos tratando-se de uma pessoa física) promete adquirir uma fração autónoma para nela instalar um estabelecimento.

O Acórdão fundamento adota uma conceção mais restrita, lendo-se no seu sumário que “não reveste tal conceito aquele que celebra como promitente-comprador um contrato-promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efetivamente instala, constituindo para o efeito uma sociedade comercial”».

            O Acórdão recorrido, proferido em 24.10.2017, tendo como relator Júlio Gomes, está efetivamente em oposição com o Acórdão fundamento, proferido em 14.02.2017, tendo como relator João Camilo.

            1.2. Confrontando os dois Acórdãos constata-se que, perante equiparável tipologia factual, se tomaram decisões diferentes (quanto ao reconhecimento do direito de retenção e à graduação dos créditos dos promitentes-compradores), por se terem adotado diferentes entendimentos quanto ao âmbito do conceito de consumidor subjacente ao Acórdão n. º 4/2014. 

     1.2.1. A similitude da realidade contratual no contexto dos dois processos de insolvência:

Conclui-se, a partir da factualidade provada, que em ambos os casos:

- Foram celebrados contratos-promessa de compra e venda de imóveis (no caso do acórdão recorrido, em 2000);

- Houve entrega de quantias pecuniárias pelos promitentes-compradores aos promitentes-vendedores, que, no caso do Acórdão fundamento, corresponderam à totalidade do preço do contrato-prometido e, no caso do Acórdão recorrido, a parte desse preço (€199,366.99 de €260,000,00);

- Houve entrega dos imóveis objeto do contrato-prometido (traditio) pelos promitentes-vendedores aos promitentes-compradores (no caso do acórdão recorrido, a entrega ocorreu em 2000);

- Esses imóveis passaram a ser usados pelos promitentes-compradores para fins não habitacionais, tendo, no caso do Acórdão fundamento, sido destinados a loja de pronto-a-vestir e a arrendamento a uma instituição bancária e, no Acórdão recorrido, a local de prestação de serviços médicos, traduzidos na realização de consultas de cirurgia, saúde dentária, fisiatria, execução de meios complementares de diagnóstico, etc.;

- Os promitentes-vendedores (empresas de construção civil) foram declarados insolventes, sem que os contratos prometidos tivessem sido cumpridos;

- Os respetivos administradores de insolvência optaram por não celebrar os contratos-prometidos, no âmbito dos poderes próprios para o efeito, e reconheceram aos promitentes-compradores os créditos reclamados em consequência do incumprimento dos contratos (no caso do acórdão recorrido, foi reconhecido aos promitentes-compradores um crédito de €380,733,98);

- Existiam credores hipotecários (entidades bancárias) com garantias sobre os imóveis objeto de traditio, cujos créditos foram reclamados e reconhecidos.

            1.2.2. A diversidade do tratamento jurídico:

 I) O Acórdão fundamento, proferido em revista excecional, confirmou o entendimento das instâncias, qualificando os créditos reclamados como comuns e não reconhecendo aos promitentes-compradores o direito de retenção, previsto no art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC.

  Os créditos dos promitentes-compradores ficaram, assim, graduados depois dos créditos dos credores hipotecários com garantia sobre os imóveis objeto de traditio (por não se aplicar o art.759.º, n.º 2, do CC).

            O Acórdão fundamento não aplicou a doutrina do Acórdão n. º 4/2014 por ter entendido, em síntese, que a finalidade das aquisições não era o uso pessoal ou familiar dos imóveis, mas sim a sua afetação a usos empresariais ou comerciais.

 II) O Acórdão recorrido reconheceu aos promitentes-compradores o direito de retenção dos imóveis objeto de traditio, com a consequente graduação preferencial dos respetivos créditos face aos credores hipotecários, revogando o Acórdão da segunda instância, que não tinha reconhecido aquele direito e que, por sua vez, tinha revogado a decisão da primeira instância (que o havia reconhecido), como supra exposto no Relatório do presente acórdão. 

            O Acórdão recorrido aplicou, assim, o Acórdão n. º 4/2014, interpretando-o no sentido de que os promitentes-compradores, que prestavam serviços médicos no imóvel prometido comprar, deviam ser considerados consumidores por serem utilizadores finais desses imóveis.

  1.3. Face à exposta oposição de entendimentos jurisprudenciais, verifica-se a necessidade de clarificar o conceito de consumidor que a jurisprudência seguirá na aplicação da doutrina do Acórdão n. º 4/2014, pelo que o recurso deve ser admitido e conhecido o seu objeto.   

 2. O Objeto do recurso e a factualidade relevante

           

2.1. O objeto do recurso:

Considerando que o n.º 4/2014 do STJ não uniformizou o conceito de consumidor, colocam-se as seguintes questões:

- Saber se os Recorridos, promitentes-compradores que obtiveram a traditio de um imóvel onde prestam serviços de saúde, têm a qualidade de consumidores para efeitos do disposto no Acórdão n.º 4/2014 do STJ;

 - Saber como devem ser qualificados e graduados os créditos dos Recorridos;

- Fixar, para efeitos de uniformização de jurisprudência, o conceito de consumidor pressuposto pelo Acórdão n.º 4/2014 do Supremo Tribunal de Justiça.

2.2. A factualidade relevante
Para além do supra referido, a propósito da similitude factual dos acórdãos em confronto, bem como no relatório, resume-se a factualidade relevante para os presentes autos, transcrevendo-se da base de facto do acórdão recorrido o seguinte:
 «OOOOOO. Em 18 de Setembro de 2000, a Insolvente (LL, Lda.) prometeu vender aos aqui Reclamantes/Requerentes (que prometeram comprar), CC (na proporção de 30%), DD (na proporção de 30%), Dr. EE (na proporção de 10%), Dr. FF (na proporção de 15%), Dra. GG (na proporção de 7,5%) e Dra. HH (na proporção de 7,5 0/0), as Frações D e E do Prédio constituído em regime de Propriedade Horizontal, sob o Lote 5, composto de R/Ch. e Cave, área de aproximada de 800 m2, com inscrição matricial n.5193 e descrição na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n. 1410, sito na Rua ...: pelo preço de 52.000.000$00 (€260,000.00) (resposta ao quesito 99º  da base instrutória).
PPPPPP. Provado apenas que os reclamantes já pagaram à Insolvente, entre o ano de 2000 e 2002, pelo menos o valor de €190.366,99 (resposta ao quesito 100º da base instrutória),
QQQQQQ. Os Reclamantes, com a celebração do contrato-promessa no ano 2000, entraram de imediato, na posse das Fracções D e E e desde então aí, nas referidas frações, se efectuam, diariamente, tratamentos de fisioterapia, se realizam consultas de cirurgia, consultas de otorrinologia, consultas e tratamentos de saúde dentária, consultas de fisiatria, diversos exames de Tac, Ressonâncias, Raio X, Cardio e outros serviços de saúde a diversos doentes (resposta ao quesito 103º da base instrutória).
RRRRRR. O que o fazem á vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de qualquer pessoa, estando convictos de que exercem um direito próprio o de propriedade e de que não lesam direitos alheios (resposta ao quesito 105º da base instrutória).»


**

3. O direito do caso concreto:

1. A resposta às questões supra enunciadas, de saber se os Recorridos têm a qualidade de consumidores para efeitos do disposto no Acórdão n.º 4/2014 e de como devem ser qualificados e graduados os seus créditos, pressupõe a definição do que deve entender-se por consumidor, em termos genéricos, para efeitos daquele acórdão. Deste entendimento resultará, de igual modo, a uniformização da jurisprudência que atualmente se encontra dividida.   

2. Antes do Acórdão n.º 4/2014, a questão de saber se o direito de retenção, previsto no art.755º, n.º 1, al. f), do Código Civil, devia ter aplicação no âmbito do processo de insolvência suscitava diferentes opiniões, encontrando-se na doutrina quem admitisse essa solução em termos amplos[4], quem a admitisse apenas na hipótese de o promitente-comprador ser um consumidor[5] e quem excluísse tal aplicação[6].

            Na jurisprudência, as opiniões também não eram unânimes e, por isso, veio a verificar-se a necessidade de uniformização, que conduziu ao Acórdão n.º 4/2014.

 O teor do segmento uniformizador deste acórdão, reconhecendo o direito de retenção apenas ao promitente-comprador que tivesse a qualidade de consumidor, não granjeou a unanimidade do Pleno das Secções Cíveis.  

Com a publicação do Acórdão n.º 4/2014, os diferentes entendimentos quanto ao alcance da solução não ficaram pacificados. Parte da doutrina continuou a defender uma solução mais ampla, quanto ao âmbito de aplicação do direito de retenção do promitente-comprador[7].

  A jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, posterior àquele acórdão, pronunciou-se no sentido de um conceito restrito de consumidor, do qual ficavam excluídos aqueles que destinassem o imóvel a um fim profissional, vindo, depois, a admitir também o conceito de consumidor num sentido amplo, no qual cabe a hipótese de o bem prometido-comprar, e objeto de traditio, ser destinado ao exercício de uma atividade profissional.

 A jurisprudência dos Tribunais da Relação interpretou o conceito de consumidor, previsto no Acórdão n.º 4/2014, maioritariamente, num sentido restrito, ou seja, dele excluindo o uso do imóvel, objeto de traditio, para fins profissionais[8].

3. Analisando, de forma mais detalhada, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, posterior ao Acórdão n.º 4/2014, que se pronuncia sobre o âmbito de aplicação deste acórdão, identificam-se decisões que interpretaram o conceito de consumidor em sentido restrito, decisões que o interpretam em sentido amplo e decisões que não são elencáveis nessa dualidade interpretativa.

 3.1. Cabem nesta última categoria casos nos quais os promitentes-compradores eram profissionais que se dedicavam a atividades de construção e/ou intermediação imobiliária, ou seja, hipóteses excluídas do conceito de “consumidor” tanto pela interpretação restritiva como pela interpretação ampla do conceito. Veja-se, a título exemplificativo, o acórdão de 17.04.2018 no proc. n.º 4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S3 (relator Henrique Araújo)[9].

          São também comportáveis nesta categoria de decisões que não relevam naquele debate interpretativo, aquelas onde se concluiu que o incumprimento definitivo do contrato-promessa já se tinha verificado antes da declaração de insolvência, pelo que o promitente-comprador tinha adquirido direito de retenção nos termos do regime geral do incumprimento do contrato-promessa, sem necessidade de questionar a sua qualidade de consumidor. Neste sentido, por exemplo, acórdão de 11.09.2018, no proc. n.º 25261/11.6T2SNT-D.L1.S2 (relatora Graça Amaral)[10] e acórdão de 27.04.2017, no proc. n.º 44/14.5T8VIS-B.C1.S1 (Relator Pinto de Almeida)[11].

3.2. Entre as decisões que sustentam uma interpretação restrita do conceito de consumidor (para além do acórdão fundamento) identificam-se, por exemplo:

- Acórdão de 18.09.2018, no proc. n.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1 (relator José Rainho)[12];

- Acórdão de 13.07.2017, no proc. n.º 258/13.5TBPTL-C.G1.S1 (relator Pinto de Almeida)[13];

- Acórdão de 11.05.2017, no proc. n.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1 (relatora Ana Paula Boularot)[14];

- Acórdão de 17.11.2015, no proc. n.º 21/10.5TBSPS-C.C1.S1 (relator Fonseca Ramos)[15].

3.3. Entre as decisões que sustentam uma interpretação ampla do conceito de consumidor (para além do acórdão recorrido) identificam-se:

- Acórdão de 03.10.2017, no proc. n.º 212/11.1T2AVR-B.P1.S1 (relator Júlio Gomes)[16].

- Acórdão de 29.05.2014, no Proc. n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1 (relator João Bernardo)[17]

 4. Dado que o art.106.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) não se refere, de modo expresso, à hipótese de o administrador da insolvência não cumprir o contrato-promessa, dotado de sinal, mas sem eficácia real, no qual exista traditio do objeto prometido vender, o Acórdão n.º 4/2014 admitiu a aplicação de regras do regime civilístico previsto para tal tipo de situação.

  Deste modo, estendeu-se a aplicação das soluções indemnizatórias, previstas no art.442.º, n.º 2, do CC, ao incumprimento do contrato promessa resultante de decisão do administrador da insolvência, bem como a aplicação do direito de retenção da coisa objeto do contrato-prometido, previsto no art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC, com a consequente hierarquização de créditos resultante do art.759.º, n.º 2, do CC, que estabelece a prevalência deste direito sobre a hipoteca.     

  Tal solução civilística não foi, porém, convocada para o domínio da insolvência com o âmbito de aplicação que tem nas relações contratuais em geral, mas sim com um âmbito limitado à hipótese de o promitente-comprador, que obteve a traditio do bem prometido-comprar, ter a qualidade de consumidor.

   Esta qualidade do promitente-comprador assumiu, assim, a função de instrumento delimitador, ou de recorte normativo, da aplicabilidade do regime civilístico, e em particular do art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC no âmbito de um processo de insolvência. 

            Saber se o âmbito de convocação desta norma devia ter sido esse ou se tal restrição aplicativa não devia ter existido é questão que está fora do âmbito presente acórdão.

  Em análise está apenas o problema, suscitado pela divergência jurisprudencial que deu causa a este acórdão, de saber qual a noção de consumidor subjacente à jurisprudência do Acórdão n.º 4/2014, porquanto da noção que se adote decorrerá uma aplicação mais ampla ou mais restrita da solução prevista no art.755.º, n.º 1, alínea f), com as consequências previstas no art.759.º, n.º 2, do CC.

  A jurisprudência que acabou por conduzir ao Acórdão n.º 4/2014, percecionando a ausência de uma clara tutela específica do promitente-comprador em contrato sem eficácia real, que entrega sinal (ou antecipa parte ou a totalidade do preço da compra e venda) e obtém a traditio do imóvel prometido vender, quando o administrador da insolvência opta por não celebrar o contrato-prometido, foi estendendo a tutela civilística a tal situação por uma razão de justiça material, baseada na (pelo menos, parcial) equiparação valorativa das hipóteses.

 A especificidade e a complexidade do processo de insolvência, no qual não relevam apenas os interesses do promitente-vendedor (que vem a tornar-se insolvente) e do promitente-comprador, mas também os interesses de todos os credores do insolvente chamados ao processo, tornam legítima a dúvida de saber se a melhor realização da justiça material é a que convoca a aplicação da tutela civilística em termos mais amplos ou mais restritos.

 No caso decidendo, o alcance de tal opção encontra-se recortado pelo conceito de consumidor, o qual cabe, agora, definir.

   Como supra referido, e atento o objeto do recurso, não é possível, neste momento, regressar à discussão subjacente ao Acórdão n.º 4/2014, de saber se apenas o promitente-comprador consumidor deve beneficiar do direito de retenção. Tal como não é possível introduzir qualquer discussão sobre diferentes critérios aplicativos, como, por exemplo, o de equacionar a aplicação daquele regime apenas ao promitente-comprador que destine o imóvel a habitação e onde, efetivamente, tenha passado a habitar (o que encontraria algum suporte na tutela constitucional do direito à habitação).

   A solução ideal passaria pela existência de uma intervenção legislativa que definisse, com clareza literal, os direitos daquele promitente-comprador.

  Na ausência de tal solução, importa definir o conceito de consumidor para efeitos do Acórdão n.º 4/2014.

5. O conceito de consumidor

  O Acórdão n.º 4/2014 não definiu, de modo explícito, o conceito de consumidor pressuposto pela sua formulação, e também não remeteu diretamente para uma noção de consumidor legalmente formulada.

     Assim, importa atender aos fundamentos desse Acórdão, no contexto do seu alcance teleológico, para se concluir qual o conceito de consumidor que lhe poderá ter estado subjacente. Porém, tal análise não pode limitar-se à interpretação histórica do pensamento vertido naquele Acórdão; deverá, sim, no âmbito da autonomia valorativa do caso decidendo, definir o sentido teleologicamente mais coerente com a função específica de um acórdão de uniformização de jurisprudência.

5.1. O relevo da nota de rodapé n.º 10 do Acórdão n.º 4/2014:

   A nota de rodapé n.º 10 desse Acórdão tem sido invocada como reveladora da adoção de um conceito amplo de consumidor.

 Nessa nota parece subscrever-se o entendimento doutrinal[18] que considera “consumidor” aquele “que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”.

            Todavia, tal nota de rodapé não é suficiente para sustentar, em termos definitivos, nenhum dos conceitos de consumidor em equação.

Se a doutrina citada em tal nota se referisse apenas ao promitente-comprador que utiliza os andares “para seu uso próprio”, tal constituiria uma provável indicação de que se pensava num conceito restrito de consumidor, considerando-se “uso próprio” enquanto sinónimo de “uso pessoal”. Se, pelo contrário, se tivesse referido apenas àquele que utiliza os bens “não com escopo de revenda”, estaria, muito provavelmente, a revelar uma noção ampla de consumidor.

  Constata-se, assim, que a citação da nota de rodapé n.º 10 contém dois segmentos literais que, quando interpretados de modo conjugado, não fornecem uma indicação definitiva em favor de qualquer dos sentidos interpretativos. 

5.2. Outros aspetos da fundamentação do Acórdão n.º 4/2014:

Ao eleger o conceito de consumidor como elemento delimitador do âmbito de aplicação do regime civilístico do contrato-promessa no domínio da insolvência, o Acórdão n.º 4/2014 revela ter-se inspirado no preâmbulo do DL n.º 236/80, de 18-07, e no do DL n.º 379/86, de 11-11, que modelaram o estatuto do contrato-promessa e conferiram o direito de retenção ao promitente-comprador [inscrito na alínea f) do n.º 1 do art.755.º do CC por este último diploma]; diplomas que tiveram como referência típica o promitente-comprador de habitação, visto como parte contratual mais fraca (embora na formulação literal das normas que introduziram e alteraram não tivessem feito essa restrição).

  Na fundamentação daquele Acórdão lê-se: “A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre …”.

   Tais considerações parecem apontar mais para um conceito restrito de consumidor (do qual se exclui quem destina o imóvel ao exercício de uma atividade profissional) do que para um conceito amplo. Todavia, este argumento não permite, por si só, formular conclusões em nenhum dos sentidos da discussão.

5.3. Conceito legal de consumidor:

  Não se encontra, no direito positivo português, um conceito de consumidor legalmente formulado para a generalidade das relações contratuais. Diferentemente de outros países, Portugal não adotou um código do consumidor, nem incorporou no Código Civil um conceito de consumidor com vocação de abrangência geral em tal matéria.

  O conceito de consumidor, enquanto conceito normativamente operativo, não se reconduz, assim, no sistema jurídico vigente, a uma noção prevista com vocação de aplicação geral, mas sim a uma pluralidade de noções legalmente formuladas para contextos delimitados.

A Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31-07) fornece uma noção de consumidor que se apresenta com vocação de aplicação supletiva, sempre que o conceito não seja especificamente formulado por outro diploma para determinada área temática. Dispõe o art. 2.º, n.º 1, deste diploma: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

  É abundante o número de diplomas legais (em regra, transpondo Diretivas europeias) que fornecem a noção de consumidor destinada a vigorar nos correspondentes âmbitos normativos.

   Para além de pequenas diferenças de formulação, tais noções, apesar de válidas para contextos diversos, têm em comum as caraterísticas típicas que se identificam na supra referida noção do art. 2.º da Lei de Defesa do Consumidor.

            Assim acontece com os seguintes diplomas: Lei n.º 67/2003, de 23-08 (Sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas), art.1.º-B, alínea a)[19]; DL n.º 24/2014, de 14-02 (Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial), art. 3.º, alínea c)[20]; DL n.º 57/2008, de 26-03 (Práticas comerciais enganosas) art. 3.º, alínea a)[21]; DL n.º 133/2009, de 02-06 (Crédito a consumidores), art. 4.º, alínea a)[22]; DL n.º 74-A/2017, de 23-06 (Regime dos contratos de crédito relativos a imóveis): art. 4.º, alínea d)[23].

No quadro normativo traçado por estes diplomas, o legislador não deixou a composição dos interesses das partes no puro domínio da liberdade contratual. Estabeleceu regras de tutela de um dos contratantes – aquele que tiver a qualidade de consumidor – tomando como padrão o adquirente médio e atendendo à típica inferioridade do seu poder negocial, decorrente da inferioridade económica, informacional ou técnica, bem como à tipicamente menor experiência contratual. Reequilibrando, desta forma, as posições negociais, o legislador (e remotamente o legislador europeu) teve em vista também um funcionamento mais saudável, porque menos litigioso, das relações contratuais em geral (com vantagens para o funcionamento do mercado europeu).

  Adotando-se uma conceção ampla de consumidor, como no acórdão recorrido, os adquirentes de bens imóveis que não teriam a qualidade de consumidores para a generalidade dos diplomas supra referidos, teriam essa qualidade para efeitos do direito de retenção previsto no art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC.

            Adotando-se uma conceção restrita de consumidor, teria esta qualidade, para efeitos daquele direito de retenção, o promitente-comprador que também a tiver para a generalidade daqueles diplomas.

   Trata-se, porém, de quadros normativos distintos, pois o legislador do art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC, ainda que possa ter tido como padrão o promitente-comprador de habitação, ou seja, um típico consumidor, não transferiu esse pensamento legislativo para a letra da lei.

          6. Os sentidos possíveis da uniformização:

   Com o enquadramento supra exposto, há que solucionar a questão de saber se se deve optar por um conceito amplo de “consumidor”, especifica e jurisprudencialmente desenhado para efeitos de aplicação do direito de retenção, no âmbito de um processo de insolvência, ou se se deve convocar e adaptar um conceito restrito legalmente pré-definido.

          1. De um ponto de vista da argumentação técnico-normativa, podem alinhar-se as seguintes razões:

  Aquele conceito amplo de consumidor pode sustentar-se no argumento sistemático de que não se está no âmbito de típicas relações de consumo (nomeadamente de contratação em massa), como as pressupostas pelas normas que disciplinam as tradicionais matérias de direito do consumo (sobretudo decorrentes da adoção de regras de direito europeu), pelo que daí não resulta qualquer obstáculo à construção de um conceito que se afaste das definições legais de “consumidor” previstas nesse tipo de normas. Por outro lado, pode acrescentar-se que tal conceito amplo potenciará maior flexibilidade na realização da justiça material ao nível do caso concreto, podendo o direito de retenção ser reconhecido a um maior número de promitentes-compradores (particularmente se se pensar em pequenos comerciantes ou profissionais liberais sem grandes recursos económicos para facilmente encontrarem instalações alternativas).

  A favor da adoção de um conceito restrito de consumidor, integrado pelas notas típicas que se colhem nas definições legais formuladas no âmbito do direito do consumo, podem apontar-se, essencialmente, razões de segurança conceitual e de certeza na aplicação do direito. Valores, estes, que são da maior importância quando se trata de uniformizar jurisprudência. 

 

            2. Do ponto de vista do controlo valorativo da opção técnica que se adote, chegar-se-á às seguintes conclusões:

            I - Aplicando um conceito restrito de “consumidor”, o corte valorativo será estabelecido entre, por um lado, o promitente-comprador que destina o bem a uso particular (não profissional), que corresponde dominantemente ao sujeito que pretende adquirir habitação; e do outro lado todos os demais, ou seja, os promitentes-compradores de bens destinados a revenda, a uso comercial ou a qualquer outra finalidade lucrativa ou profissional. Apenas ao primeiro tipo de contratantes seria reconhecido o direito de retenção.

   II - Aplicando um conceito amplo de “consumidor”, colocar-se-ão de um lado tanto os promitentes-compradores que destinem o bem a um fim particular (maxime habitação), como os que o destinem a um fim profissional (em sentido amplo), exceto aqueles que pretendem adquirir o bem para revenda ou para o destinarem a locação. Apenas a esta última categoria de promitentes-compradores não seria reconhecido o direito de retenção.

            3. Balanço:

 O conceito amplo de consumidor, quando aplicado em concreto, não é isento de dificuldades interpretativas, pois para efeitos de exclusão do direito de retenção nem sempre será fácil saber quando é que o bem prometido comprar se destina a revenda ou a locação, e em que momento essa intenção deve ser aferida.

  Por outro lado, incluir no conceito de consumidor todos os promitentes-compradores com exceção dos que adquirem para revenda ou para locação, corresponde a uma delimitação do conceito que revela discriminação de um tipo de atividade em face de outras atividades económicas. 

    De um ponto de vista da identidade valorativa das soluções jurídicas, não se compreenderá muito bem a razão pela qual o promitente-comprador que pretenda destinar o imóvel prometido-comprar ao mercado do arrendamento ou do alojamento de turistas, fazendo disso a sua atividade económica, não possa beneficiar do direito de retenção, mas qualquer outro que destine o imóvel a uma diferente atividade profissional já beneficie desse direito.

               Adotar um conceito de consumidor tão amplo que coincida com o de qualquer promitente-comprador que não destine o bem a revenda ou locação seria consagrar, por esta via interpretativa, um âmbito de aplicação do direito de retenção quase tão abrangente como aquele que não foi acolhido pelo Acórdão n.º 4/2014.  

Se a função primordial de um acórdão de uniformização de jurisprudência é a de conferir segurança à jurisprudência, dando expressão à previsibilidade decisória enquanto valor relevante do sistema judicial, então a opção que melhor serve este desiderato é a que defende um conceito restrito de “consumidor” que incorpore as notas tipológicas consagradas no art.2 º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31-07).

III. DECISÃO:

Acorda-se, com base no artigo 695.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em revogar parcialmente o acórdão recorrido no segmento decisório que respeita aos agora Recorridos, alterando a qualificação e a graduação dos seus créditos, que passam a ser créditos comuns, a serem pagos pelo remanescente do valor das frações prometidas comprar.

Custas pelos Recorridos.

O Acórdão n.4/2014 uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

«No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, n.1, alínea f) do Código Civil».  

Face à exposta oposição de decisões, uniformiza-se, agora, jurisprudência no seguinte sentido:

  Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa. 

Lisboa, 12 de fevereiro de 2019

Maria Olinda Garcia (relatora)

Helder Almeida

Acácio das Neves 

Oliveira Abreu

Fernando Samões

Maria João Vaz Tomé (Votei vencida de acordo com declaração que anexo) *

Ilídio Sacarrão Martins

João Bernardo (Vencido nos termos do «voto» que junto) **

Fonseca Ramos

Garcia Calejo

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

Tomé Gomes (Concordo conforme declaração junta) ***

José Raínho

Maria da Graça Trigo (Vencida, conforme declaração de voto junta) ****

Olindo Geraldes

Alexandre Reis (vencido conforme declaração do Exmo. Conselheiro João Bernardo)

Pedro de Lima Gonçalves (Vencido. Acompanho a declaração do Exmo. Senhor Conselheiro João Bernardo)

Rosa Tching (Vencida nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro João Bernardo, que subscrevo)

Maria do Rosário Morgado (Vencida nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro João Bernardo que subscrevo)

Sousa Lameira

Fátima Gomes (Vencida pelos fundamentos expostos nos votos de vencido dos Conselheiros João Bernardo e Maria João Vaz Tomé, que subscrevo)

Rosa Ribeiro Coelho (Vencida nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro João Bernardo, que subscrevo)

Graça Amaral

Henrique Araújo

António Joaquim Piçarra (Presidente)

------------------------


* Declaração de voto de vencida
1. I. Não me parece adequada a restrição operada no AUJ nº 4/2014, de 19 de março - proferido na sequência da nulidade do AUJ de 22 de maio de 2013 -, no sentido de reconhecer o direito de retenção (ius retentions), em processo de insolvência, apenas ao promitente-comprador que seja considerado “consumidor”.
II. O CC (art. 755.º, n.º 1, al. f)) e o CIRE (art. 106.º)  não estabelecem, a este respeito, qualquer distinção ou restrição, sendo o direito de retenção conferido a qualquer pessoa – singular ou coletiva - que assuma a posição de promitente-comprador que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, independentemente de ser ou não “consumidor” - em sentido amplo (acórdão recorrido) ou em sentido estrito (acórdão fundamento).
III. As razões que justificam a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador, nos moldes previstos no art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, podem verificar-se em situações em que o promitente-comprador não é “consumidor”, em sentido amplo ou estrito.
IV. Creio não haver valoração ou ponderação de interesses que permita tratar diferentemente o promitente comprador que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido num processo de execução singular e num processo de execução universal.
V. Existe consenso apenas sobre o fundamento da tutela do consumidor - a sua vulnerabilidade ou fragilidade -, não sobre o respetivo conceito.
VI. Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
VII. Não me parece poder afirmar-se que o legislador, no art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, disse mais do que o que pretendia. Por isso, não pode recorrer-se ao argumento cessante ratione legis cessat eius dispositivo.
VIII. De acordo com o art. 9.º, n.º 2, do CC, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha ressonância, ainda que mínima, no enunciado verbal da norma (teoria da alusão) – o que, in casu, não se verifica.
IX. O conhecimento da occasio legis (conjuntura político-económica-social que motivou a atribuição do direito de retenção ao promitente comprador que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido – vide preâmbulos do DL nº 236/80, de 18/07, e do DL nº 378/86, de 11 de novembro), apesar de constituir um subsídio relevante para determinar o sentido do preceito, não pode, por si só, descurando-se os outros fatores hermenêuticos, determinar o resultado da sua interpretação.
X.  “As condições específicas do tempo em que a lei é aplicada” (elemento atualista) podem ser muito diferentes das “circunstâncias em que a lei foi elaborada” (occasio legis) (art. 9.º, n.º 1, do CC).
XI. Os problemas - que são muitos - suscitados pela norma do art. 755.º, n-º 1, al. f), do CC, - que pode revelar-se “injusta e injustificada” - devem ser resolvidos pelo legislador.
2. No recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência em apreço, a credora hipotecária contesta o critério adotado para a delimitação do conceito de “consumidor” (conceito amplo), pretendendo que seja considerado como tal exclusivamente o promitente-comprador que pretenda destinar o bem ao seu uso privado (conceito restrito), de acordo com o art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31 de julho, e com a al. a), do art. 1.º-B, do DL 67/2003, de 8 de abril.
3. Se, porventura, se entender manter o segmento uniformizador do AUJ nº 4/2014, de 19 de março, não se julgando o recurso improcedente, deveria adotar-se o conceito amplo de “consumidor”.

Lisboa, 12 de fevereiro de 2019

(Maria João Vaz Tomé)

-----------------------

** Voto de vencido

1. Continuo a pensar que a inserção do “consumidor” no texto uniformizante do AUJ n.º4/2014 não tem a mínima correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, em qualquer texto legal, nomeadamente nos relativos ao direito de retenção, ao contrato-promessa ou ao direito falimentar.

O que determina um extremo cuidado – pelo menos cuidado – por parte deste Tribunal em não prosseguir com a fixação do conceito fora do domínio puramente interpretativo do AUJ anterior.

Sob pena de invasão – ou intensificação da invasão anterior – do poder legislativo.

2. O conceito de “consumidor” não é unívoco e daí a preocupação dos diversos diplomas sobre direito de consumo em defini-lo para os seus próprios efeitos.

Em sentido lato consumidor será aquele que “adquire, possui ou utiliza um bem ou um serviço, quer para uso pessoal ou privado, quer para uso profissional” (Calvão da Silva, A Responsabilidade do Produtor, 58).

Em sentido estrito não abrange a utilização para necessidades profissionais.

Mas, dentro deste sentido estrito – seguindo de perto o texto do Acórdão deste Tribunal de 29.5.2014, processo n.º1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt – haverá ainda que distinguir os casos em que a aquisição, posse ou utilização se insere na própria atividade profissional da pessoa (compra dum livro por um alfarrabista para o revender) daqueles em que tais atos não constituem elemento integrante, mas apenas acessório ou indireto da atividade profissional (compra dum computador para desempenho das funções dum profissional do foro).

A distinção está, nomeadamente, desenvolvida em Carlos Ferreira de Almeida, Direito ao Consumo 33.

3. No seguimento do referido em 1, importaria, pois, determinar qual destes sentidos se encontra implícito no AUJ anterior.

Atentando no respetivo conteúdo integrado com a razão de ser do sentido uniformizante.

4. Para o que aqui nos importa, o texto fundamentante do AUJ deve ser seccionado entre:

A parte em que se justifica a delimitação do preferente àquele que seja consumidor;

A parte em que se justifica a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca.

5. Aquela consiste fundamentalmente na afirmação de que “a alínea f) do artigo 755.º n.º1 seja entendida restritivamente de molde a que se encontra coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor.” (ponto 2.2.2).

Estando inserida no final deste texto a chamada para a nota 10.ª referindo expressamente que:

“Não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não como escopo de revenda.”

Parece-nos concludente este texto.

6. Além disso, a alusão – na parte justificativa da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca – à “parte mais débil, o promitente-comprador” e à “crise económica que atravessamos, inesperada para a generalidade dos consumidores…” (ponto 2.2.5) inculca a ideia de proteção, não só do que promete comprar o imóvel para seu uso particular, como daquele que o promete comprar, por exemplo, para ali instalar uma atividade comercial, deixando de fora apenas os casos – muito vulgares e não vistos como partes débeis – em que o promitente-comprador visa apenas fazer negócio com futura transação do mesmo imóvel.

7. Do referido em 4, 5 e 6 emerge o que já se adivinha face ao contexto em que vivíamos e ainda vivemos.

A parte débil não é só o que compra para uso pessoal ou particular.

Também é, por regra, aquele que promete adquirir o imóvel para nele exercer uma atividade económica.

Decerto que este entendimento pode conduzir à proteção de empresas com enorme dimensão e boa situação económica, mas coisa semelhante também pode ocorrer relativamente ao que promete adquirir um imóvel de luxo para fins pessoais, até para passar férias.

Aqui não se pode distinguir.

8. Na sequência do que vem sendo dito e apoiando-me ainda, quer no Acórdão referido em 2, quer no, também deste Tribunal, de 3.10.2017, processo n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, com texto disponível, de igual modo, em www.dgsi.pt, confirmaria o acórdão recorrido e uniformizaria jurisprudência nos seguintes termos:

De fora do conceito de “consumidor” do AUJ n.º4/2014, de 20.3.2014, fica apenas o promitente-comprador que pretende adquirir o imóvel para, no exercício da sua atividade profissional, o transacionar.

João L M Bernardo


----------------------

*** Voto de vencido

Antes de mais, ressalvo que não perfilho a orientação adotada no AUJ do STJ n.º 4/2014, de 20/03, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 19/05/2014, antes me revendo nas posições dos votos de vencido nele expressos, no sentido de que o artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 379/86, de 11-11, não permite uma interpretação restritiva daquele normativo que confine o seu âmbito de aplicação ao promitente-comprador consumidor.


Das considerações preambulares dos Decretos.-Leis n.º 236/80, de 18-07, e n.º 379/86, de 11-11, parece decorrer que, muito embora se tenha atentado sobretudo nas promessas de venda destinadas a habitação, a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador, tal como consta da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, na redação dada por aquele último diploma, não se circunscreveu a tais situações nem, muito menos, aos casos em que ele detenha a posição de consumidor. Com efeito, da previsão ali configurada - o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real (…) – não se depreende qualquer elemento literal que exprima ou indicie, ainda que imperfeitamente, um tal pensamento redutor, pelo que a interpretação restritiva desse preceito, sem um mínimo de correspondência verbal, atentará contra o cânone hermenêutico do artigo 9.º, n.º 2, do CC.

  Ademais, afigura-se que, de acordo com o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 379/86, o equilíbrio pretendido com a atribuição daquela garantia foi entre: por um lado, as instituições de crédito, que reunirão melhores possibilidades, enquanto profissionais, de se precaverem do infortúnio da cobrança dos seus créditos sobre as empresas construtoras, nomeadamente, “através de critérios ponderados de seletividade” na sua concessão; por outro lado, os particulares com menor facilidade de se precaverem da eventual insolvabilidade das empresas construtoras que intervenham como promitentes-vendedoras.

              É certo que, a dado passo do ponto 4 do mesmo preâmbulo, se afirma que a tutela prioritária desses particulares vem “na lógica da defesa do consumidor”, mas tal não significa, por si só, que essa tutela se confinasse a este domínio, antes inculcando a ideia de que se situaria para além dela, ou seja, alcançando situações daqueles ditos particulares dignas do mesmo nível de proteção.

              Haverá que reconhecer a dificuldade prática em segmentar, numa previsão legal, as diversas categorias de promitentes-compradores que se pretendeu ali contemplar, em função do tipo de interesses em jogo, dada a diversidade de situações que poderão ocorrer em concreto. Por exemplo: pessoas singulares que pretendam a aquisição do bem para uso estritamente pessoal ou para mero uso profissional; pessoas coletivas, incluindo sociedades comerciais, que pretendam a aquisição do bem para o utilizar como infraestrutura ou equipamento da sua atividade social ou então para lhe dar destino de bem transacionável (v.g. para revenda ou locação).

             Nesse espectro, casos haverá em que, fora do universo das pessoas singulares ou da órbita de destinação do bem para uso pessoal, se justificará a atribuição do direito de retenção, à luz do objetivo pretendido, como, por exemplo, quando o bem se destine ao uso profissional de pessoa singular ou a utilização como infraestrutura ou equipamento de uma associação ou de uma mediana sociedade comercial. Noutros casos, já tal atribuição pode parecer menos justificada, mormente quando o bem se destine a ser transa-cionado no âmbito da atividade profissional ou empresarial do promitente-comprador. 

    Seja como for, o que parece excessivo é restringir a mens legislatoris ao universo subjetivo dos consumidores em sentido restrito, posto que o objetivo tido em vista dirige-se à tutela dos “particulares” em situação de desequilíbrio, de algum modo, equiparada às dos consumidores, ou seja, como se refere no sobredito preâmbulo, na “lógica da defesa do consumidor”.

   Nesta linha, procurar segmentar por via jurisprudencial os núcleos de casos cobertos pela atribuição do direito de retenção conferida no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC envolve um elevado risco de invasão da esfera legislativa, mormente mediante a limitação do seu âmbito de aplicação aos consumidores.

No entanto, não foi esse o entendimento adotado no AUJ n.º 4/2014, ao unifor-mizar a orientação de que:

 No âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promi-tente-comprador, em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos ter-mos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.       

  E assim foi considerado num caso em que a questão era saber se determinado promitente-comprador, pessoa singular, em contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional relativamente a frações imobiliárias, com traditio e prestação de sinal, gozava do direito de retenção em sede da insolvência da promitente-vendedora.

Nesse contexto, procedeu-se a uma interpretação restritiva do segmento subjetivo da previsão do citado normativo, fundamentalmente estribada no argumento de que a razão subjacente ao Dec.-Lei n.º 379/86, para a atribuição do direito de retenção, era a proteção dos “particulares consumidores” ante os credores hipotecários.

Todavia, da respetiva fundamentação não se colhe qualquer referência, pelo menos expressa, a conceito técnico-jurídico de consumidor, constando apenas, nesse particular, a nota de rodapé 10, em que, sob a citação de Miguel Pestana de Vasconcelos, se afirma que:

«Não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda.»

 Perante isto, é certeira a afirmação feita no acórdão recorrido e nos outros acórdãos do STJ ali citados de que, para tais efeitos, “não se uniformizou o próprio conceito de consumidor”, para mais quando é sabido que tal conceito não é unívoco, podendo ter diversos alcances consoante os sectores económicos tidos em vista, como se dá conta no acórdão do STJ, de 29/05/2014 (proc. n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1), relatado pelo Exm.º Juiz Cons. João Bernardo, e também no presente acórdão.

Quando muito, o que se pode ter por certo é que, como se concluiu no acórdão aqui recorrido, o AUJ n.º 4/2014 aponta para uma ideia sócio-económica comum de “consumidor final”, diremos que ali tida por suficiente para justificar a sobredita interpretação restritiva. Ou seja, tal via interpretativa não teve como alicerce elementos propriamente de ordem sistemática, mas antes de cariz sociológico e teleológico.

Acresce que a problemática do alcance daquele segmento uniformizador não se fica por aqui, podendo questionar-se se o mesmo se circunscreve ao âmbito do processo de insolvência, conforme o caso em espécie ali versado, ou se abarcará todos os casos contemplados no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, mesmo fora desse âmbito, como por exemplo, no domínio da execução singular.

Neste aspeto, com o devido respeito por opinião diferente, não encontro argumento ponderoso para confinar tal alcance à especificidade do processo de insolvência, em que os créditos providos de garantia real se encontram salvaguardados nos termos dos artigos 47.º, n.º 4, alínea a), e 140., n.º 2, 2.ª parte, salvo nas hipóteses previstas nos artigos 97.º, n.º 1, e 140.º, n.º 3, todos do CIRE.

Pese embora a referência feita à insolvência no anterior segmento uniformizador, o certo é que a interpretação restritiva constante da respetiva fundamentação se centrou, nesse particular, somente na órbita do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), em especial nas razões extraídas do preâmbulo do Dec.-Lei n.º 379/86. Salvo erro, de nenhum passo dessa fundamentação se respiga qualquer argumento específico do regime da insolvência que deponha no sentido dessa interpretação restritiva.

De notar que, no ponto 2.2.2 daquela fundamentação, sob a epígrafe direito de retenção e hipoteca; razões de uma atribuição e prevalência, em que a questão foi ana-lisada, se concluiu nos seguintes termos:

«Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755.º n.º 1 seja entendida restritamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tra-dição da coisa seja simultaneamente um consumidor.»  

Daí haver quem sustente que tal restrição valerá para todos os casos em que seja aplicável o preceituado no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) - como, por exemplo, se encontra claramente manifestado na declaração de voto anexa ao AUJ n.º 4/2014 do Exm.º Juiz Cons. Salazar Casanova -, sob pena de se abrir caminho a uma injustificada interpretação bifurcada ou dual do disposto naquele normativo.  

De resto, no processo de insolvência, até mais se justificará o direito de retenção, quando o promitente-comprador não disponha sequer da alternativa de optar pela execução específica, encontrando-se assim numa situação de desequilíbrio ante os credores hipotecários, e que foi precisamente o que se pretendeu precaver com a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador.

Ora o caso de que se ocupa o presente recurso de uniformização versa sobre uma situação em que os promitentes-compradores de frações imobiliárias prometidas vender pela sociedade insolvente as têm vindo a utilizar para ali efetuarem, “diariamente, tratamentos de fisioterapia, consultas de otorrinologia, consultas e tratamentos de saúde dentária, consultas de fisiatria, diversos exames de Tac, Ressonâncias, Raio X, Cardio, e outros serviços de saúde a diversos doentes” (ponto QQQQQQ dos factos provados constantes do acórdão recorrido).

Sucede que o acórdão recorrido, perfilhando o entendimento de que o AUJ n.º 4/2014 adotou uma noção comum de “consumidor final” concluiu que aqueles promi-tentes-compradores detinham essa qualidade e que, por isso, beneficiavam do direito de retenção conferido pelo art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do CC.

O que agora pretende a Recorrente, como credora hipotecária, é obter uma uni-formização no sentido de confinar o alcance daquela disposição, na interpretação dada pelo indicado AUJ, ao universo dos consumidores em sentido restrito, sendo também esta a solução do presente acórdão.

Não obstante discordar da anterior orientação uniformizadora, considero que o seu alcance deveria ser traçado com a maior amplitude possível, de modo a evitar que, por essa via, se acentue ainda mais a sua desconformidade que, em meu entender, apre-senta com o disposto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, atendendo, em suma, a que:

a) - A interpretação restritiva assim dada pelo AUJ n.º 4/2014 se ancorou, como já ficou dito, em argumentos de cariz sociológico e teleológico e não pro-priamente de ordem sistemática com apelo ao conceito técnico-jurídico de con-sumidor, como agora se procede;

b) – Neste quadro, o nível problemático que aqui se suscita mostra-se qualitativamente diferente do ocorrido no contexto daquele AUJ;

c) – As implicações que a uniformização agora pretendida para um alcance ainda mais restritivo do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC são de molde a reavivar a divergência latente quanto a saber se tal uniformização deve valer pa-ra todos os casos ali previstos ou se só no âmbito das situações de insolvência, para mais quando, a meu ver, não existe argumento ponderoso para o confinar a estas situações.            

              Por tais razões, confirmaria o acórdão recorrido e, perante a emergência de fixar o sentido da norma do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, com o recorte que lhe foi dado pelo AUJ n.º 4/2014, propenderia para uma formulação uniformizadora na linha ampla constante da declaração de voto do Exm.º Juiz Conselheiro João Bernardo ou, quando muito, nos seguintes moldes:  

No âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador, em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional, devidamente sinalizado, com a “traditio” da coisa destinada ao uso próprio daquele, mesmo que em contexto profissional ou empresarial, e que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.

  Termos em que expresso o meu voto de vencido no presente acórdão uniformizador.

            Lisboa, 12 de fevereiro de 2019

    Tomé Gomes

------------------

**** Declaração de voto de vencida

Votei vencida:

1º) Antes de mais porque, pelas razões enunciadas nas declarações de voto de vencidos do Senhor Conselheiro Manuel Tomé Gomes e da Senhora Conselheira Maria João Vaz Tomé, votei pela alteração da decisão do AUJ nº 4/2014, no sentido de excluir que, em processo de insolvência, o direito de retenção seja reconhecido apenas ao promitente-comprador considerado “consumidor”.

2º) Em segundo lugar porque, tendo feito vencimento a posição de não alteração da decisão do AUJ nº 4/2014, votei pela adopção de um sentido amplo de “consumidor”, na linha da proposta constante da declaração de voto de vencido do Senhor Conselheiro João Bernardo.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2019

 Maria da Graça Trigo

------------------------
[1] Doravante, por facilidade de expressão, designados por AA e mulher.
[2] Doravante, por facilidade de expressão, designados por CC e Outros.
[3] A imprecisão terminológica usada pelos Recorridos, ao designarem como sentido restrito de consumidor o que, em rigor técnico, corresponde ao sentido amplo, não prejudica, porém, a compreensão da posição que defendem.
[4] F. Gravato Morais, “Promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor”, Cadernos de Direito Privado, n.29 (2010), pág.3 e seguintes.
[5] L.M. Pestana de Vasconcelos, “Direito de Retenção, par conditio creditorum, justiça material”, Cadernos de Direito Privado, n.41 (2013), pág.5 e seguintes.
[6] Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serra, “Insolvência e contrato-promessa”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 70 (2010), pág.395 e seguintes. Estes autores pronunciaram-se também neste sentido, no Parecer que deram à II no Proc. n. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, no qual veio a ser proferido o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.4/2014. 
[7] F. Gravato Morais, “Tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.4/2014 de 20.03.2014, Proc. n. 92/05”, Cadernos de Direito Privado, n.46 (2014), pág.32 e seguintes; A. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed. (2017), pág.193; Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão, os quais entendem mesmo que a solução consagrada naquele acórdão constitui uma violação da separação de poderes, “A Posição Jurídica do Beneficiário de Promessa de Alienação no Caso de Insolvência do Promitente-Vendedor – Comentário ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.4/2014, de 19 de maio”; Julgar Online, setembro de 2016, pág.1 e seguintes: http://julgar.pt/a-posicao-juridica-do-beneficiario-de-promessa-de-alienacao-no-caso-de-insolvencia-do-promitente-vendedor/

[8] A título exemplificativo, pode ver-se, no sentido restrito: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.09.2015, proc. 2806/11.6TBVIS-C.C1 (Relatora Maria Domingas Simões), que adota o conceito de consumidor consagrado na Lei 24/96; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25.05.2016, proc. 472/12.5TBFAF-F.G1 (Relatora Maria Cristina Verdeira), que adota o conceito de consumidor consagrado na Lei 24/96; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23.11.2017, proc. 35/13.3TBMUR-C.G1 (Relator José Cravo), que exclui do conceito de consumidor uma sociedade que presta serviços de hotelaria. Adotando um sentido amplo de consumidor, pode ver-se: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.03.2017, proc. 614/07.8TYVNG-C.P1 (relator Rodrigues Pires), que exclui do conceito de consumidor apenas aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.

[9] Lê-se no sumário deste acórdão: «A recorrente, pessoa colectiva do ramo imobiliário que confessadamente, em relação à fracção predial apreendida, havia promovido “a venda a terceiros, potenciais clientes, na prossecução do seu objectivo comercial”, não tem a qualidade de consumidora, pelo que não se pode qualificar de garantido o seu crédito – AUJ do STJ n.º 4/2004, de 20-03-2004»

[10] Assim sumariado: «A aplicação do segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014, de 20-03, mostra-se limitada às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência. Este confinamento retira da alçada do AUJ os contratos-promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência, uma vez que não se pode configurar a situação de o administrador não os cumprir».  

[11] Lê-se no sumário deste acórdão: «Tendo sido operada a resolução do contrato-promessa em data anterior à da declaração de insolvência, não estamos perante um negócio jurídico em curso, para efeitos do disposto nos arts.102.º e ss. do CIRE»

[12] Identifica-se no sumário deste acórdão a seguinte afirmação: «É consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa atividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável».

[13] Lê-se no sumário deste acórdão: «Tem a qualidade de consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada/profissional, regular e estável».

[14] Aí se afirma: «Estando face a um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção para o exercício do comércio, a promitente-compradora não poderá ser considerada como consumidora, se o objectivo final da compra é o exercício de uma actividade profissional comercial».

[15] Lê-se no sumário do citado acórdão: «O conceito de “consumidor” que o AUJ de 4/2014, de 19-05-2014, adoptou, foi o conceito restrito, funcional, acolhido no art.2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31-07, alterado pelo DL n.º 67/2003, de 08-04, segundo o qual, consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa».

[16] Lê-se no sumário deste acórdão: «Do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis. Agem como consumidores, na acepção de utilizadores finais, e não como profissionais do ramo imobiliário, os recorrentes que instalaram nas respectivas fracções que prometeram comprar uma agência de seguros e um salão de cabeleireiro»

[17] Afirma-se no sumário deste acórdão: «Para efeitos do Acórdão proferido em revista ampliada em 20.3.2014, no processo n.92/05.6TYVNG-M.P1.S1, deve ser considerado consumidor o promitente-comprador que, na fração prometida comprar, tem um estabelecimento de venda ao público de artigos para o lar, que explora através duma sua sociedade com sede na mesma fração».

[18] Citando-se, nesse sentido, M. Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, in Cadernos de Direito Privado, n.33 (2011).

[19] «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.

[20] «Consumidor», a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.

[21] «Consumidor» qualquer pessoa singular que, nas práticas comerciais abrangidas pelo presente decreto-lei, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;

[22]  «Consumidor» a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente decreto-lei, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional;

[23] «Consumidor», a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente decreto-lei, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional.