Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3922/17.6JAPRT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
VIOLAÇÃO
AGRAVANTES
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TENTATIVA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 02/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / NULIDADE DA SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS.
Doutrina:
- Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, p. 475, 481, 547, 563, 566, 574;
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., p. 232 a 357;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, notas aos artigos 18.º e 27.º;
- Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 848 ; Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, p. 45 e 57;
- Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2014, Almedina, p. 724 e 738;
- Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica, 3.ª edição, p. 690.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 375.º, N.º 1, 379.º, N.º 2, 402.º, 403.º, 410.º, N.ºS 2 E 3 E 412.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 52.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 2, 71.º, N.º 3, 152.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E 2, 171.º, N.º 1 E 177.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1576.º, 1582.º E 1585.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 7/95, IN DR-I, DE 28-12-1995;
- ACÓRDÃO N.º 5/2017, IN DR I DE 23-06-2017;
- DE 14-07-2016, PROCESSO N.º 4403/00.2TDLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1. A determinação da pena comporta duas operações distintas: a determinação da pena aplicável (moldura da pena), por via da averiguação do preenchimento do tipo legal de crime (tipo fundamental) e de circunstâncias modificativas, que podem conduzir à punição por um tipo de crime agravado ou privilegiado, e a determinação concreta da pena (medida da pena), em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal). Em caso de concurso de crimes (artigo 30.º, nº 1, do Código Penal), há ainda que determinar a pena única, a partir da moldura definida pela pena mais grave aplicada aos crimes em concurso e pela soma das penas aplicadas, sem ultrapassar o limite de 25 anos de prisão, tendo em consideração, no seu conjunto, a gravidade dos factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal).

2. A alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal, na redacção anterior à da Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, não previa como factor de agravação do crime de abuso sexual de crianças (artigo 171.º) a circunstância de entre o agente e a vítima existir uma relação de coabitação, incluindo-se nas “relações familiares” as relações constituídas por factos que, nos termos da lei civil, constituem fontes das relações jurídicas familiares (artigo 1575.º do Código Civil).

3. A Lei n.º 103/2015, que visou transpor a Directiva n.º 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e dar cumprimento às obrigações assumidas com a ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais (Lanzarote, 25.10.2007), criminaliza a prática de actos sexuais com crianças, recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança, alargando a tutela penal às situações em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança estabelecida com a criança em resultado de uma autoridade natural, social ou religiosa, que permite controlar, punir ou compensar a criança nos planos emocional, económico ou mesmo físico, como normalmente sucede nas relações entre a criança, seus progenitores ou adoptantes, mas que também podem existir nas relações desta com outras pessoas, como as que prestam cuidados ou contribuem para a sua educação, incluindo as situações frequentes em que as crianças vivem em “família alargada”.

4. Nos termos do n.º 2 do artigo 23.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 73.º, a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada, sendo o limite mínimo da pena de prisão “reduzido a um quinto”, e não “de um quinto”, se a pena for igual ou superior a 3 anos, pelo que a tentativa de violação agravada (artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), a que corresponde a pena mínima de 4 anos, é punível com a pena mínima de 9 meses 18 dias de prisão e não de 3 anos 2 meses e 12 dias.

5. O substrato da medida da pena única não pode bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender a todas as circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, seguindo os critérios da culpa e da prevenção, bem como ter em conta o critério especial do artigo 77.º, n.º 1, in fine, respeitando o princípio da proibição da dupla valoração.

6. Tendo em conta estes critérios, o disposto no artigo 40.º do Código Penal e que não se identifica uma tendência que deva conferir um efeito agravante à pluralidade dos crimes, considera-se que a pena única deve ser fixada em 9 anos de prisão, por, nesta medida, se mostrar adequada e proporcional à gravidade dos factos, no seu conjunto, e às necessidades que a sua aplicação visa realizar.

Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I.  Relatório

1. AA, arguido, com a identificação dos autos, interpõe recurso do acórdão do tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de ... (Juiz ...), da comarca do Porto, que o condenou nas seguintes penas, pela prática, em concurso, de:

1.  Um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal, praticado entre 2015 e 01-12-2017, na pena de 3 (três) anos de prisão;

2.  Um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, do Código Penal, praticado entre 2015 e 01-12-2017, na pena de 3 (três) anos de prisão;

3.  Um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado em 2015, em datas anteriores a 21-09-2015, na pena de 3 (três) anos de prisão;

4.  Um crime de abuso sexual de menores dependentes, agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado após 21-09-2015 e antes de 01-12-2017, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

5.  Um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

6.  Um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

Em cúmulo, na pena única de 12 (doze) anos de prisão;

E ainda nas penas acessórias de proibição de contacto com as vítimas BB e CC, nomeadamente na sua residência ou local de trabalho, devendo o seu cumprimento, caso o condenado não se encontre privado de liberdade, ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância por tal se afigurar imprescindível para a protecção dos direitos das vítimas, e de proibição de uso e de porte de armas, tudo durante 2 (dois) anos a contar do trânsito em julgado do acórdão, e ainda de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, a integrar no plano individual de readaptação a que alude o art.º 21.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

2. Apresenta motivação de recurso, de que extrai as seguintes conclusões:

“1 - As penas parcelares impostas ao ora recorrente são manifestamente excessivas e devem ser reduzidas para penas que se aproximem dos respetivos limites mínimos. Em consequência,

2- A pena única resultante do concurso deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida. Pois que,

3- Atendendo ao que ficou dado como provado relativamente às condições de vida do arguido, ao facto de não ter antecedentes criminais e à personalidade do agente no que ao concurso concerne, justificar-se-ia sempre a aplicação de uma pena única que nunca excedesse os sete anos de prisão. Tanto assim é que,

4- Situações equivalentes trazidas ao crivo dos Tribunais superiores e especificamente a esse Digníssimo Tribunal disso dão conta. Nessa medida e por assim não ter sido,

5- Entende-se que o douto acórdão colocado em crise violou o disposto nos artigos 71.º n.º 2, als. d) e e ) do C. Penal, como assim e  mormente o artigo n.º art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte do C.P.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o douta Acórdão ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta (…)”

3. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, respondeu o Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, a defender a improcedência do recurso, dizendo em conclusões:

“1.- o arguido recorrente mostra-se condenado como autor material pela prática de um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º, n.º 1, al. d), n.º 2, do Cód. Penal, praticado entre 2015 e 01/12/2017, na pena de 3 anos de prisão; um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, praticado em 2015, em datas anteriores a 21-09-2015, na pena de 3 anos de prisão; um crime de abuso sexual de menores dependentes, agravado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 14.º, nº 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, praticado após 21/09/2015 e antes de 01/12/2017, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão; um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, al.s a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, praticado entre 01/04/2017 e antes de 01/12/2017, na pena de 5 anos de prisão; um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, al.s. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal e, finalmente na pena única de 12 anos de prisão;

2.- os fatores que alega como devendo determinar o abaixamento das penas parcelares e, consequentemente, a pena única, são fatores que precisamente apelam a uma maior severidade das penas, pois são eles, o consumir bebidas alcoólicas em excesso, ser consumidor habitual de canábis e não ter ocupação laboral regular;

3.- o arrependimento foi ligeiro e apenas após a produção da prova, relevando o facto de ter sido verbalizado desacompanhado de qualquer ato objetivo concreto que manifestasse a sua sinceridade e interiorização;

4.- a ausência de antecedentes criminais, não obstante não poder ser um prémio para os agentes do crime, não deixou, porém de ser atendida na determinação das penas pelo Acórdão recorrido, o que de imediato resulta do facto de as penas não tem sido mais pesadas;

5.- as penas aplicadas obedeceram às regras legais de determinação das penas não tendo sido violadas quaisquer normas jurídicas, mormente as alegadas pelo arguido/recorrente, o qual tão pouco indica em que precisos termos tal violação se verifica:

5.- o recurso não merece provimento.”

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer nos seguintes termos:

“A.2. O MP na 1ª instância veio apresentar resposta (…), em que anota que o recorrente vem alegar factos que na verdade só reforçam as razões que presidiram, entre outras, à determinação de tais penas parcelares, como o facto de ingerir bebidas alcoólicas em excesso, ser habitual consumidor de «cannabis» e não ter hábitos de trabalho regular. Assinala, com propriedade, que a senda delituosa em que o recorrente se empenhou, prolongou-se ao longo do tempo, registando-se um crescendo da invasão da intimidade sexual da menor ofendida e uma cada vez maior agressividade, para com a assistente. Entende que as penas parcelares obedecendo aos critérios legais da sua determinação, e conquanto o mesmo se podendo afirmar quanto ao respeito dos atinentes á pena única, não merecem censura, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.

A.3. Das conclusões extraídas pelo recorrente, temos que o objecto do recurso, se cinge à determinação das penas parcelares e na procedência da impetrada alteração destas, à reformulação da pena única.

A.3.1. Tendo como necessário referente, as molduras penais dos crimes pelos quais o recorrente vem condenado e naturalmente os gravosos factos contra si provados, não vemos que a ponderação ao abrigo do art. 71º do CP dos parâmetros de determinação da medida das penas (parcelares) sofram que qualquer ilegalidade bem como de violação dos princípios da necessidade, exigibilidade e adequação das penas, quer parcelares, quer única.

Somos assim, de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.”

5. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual tem por objecto um acórdão proferido pelo tribunal colectivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos e visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP).

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

7. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida – que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência – e a nulidades processuais não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), e a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, com a alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Pelo acórdão n.º 5/2017 deste Supremo Tribunal de Justiça (DR I de 23-06-2017) foi fixada jurisprudência no sentido de que «a competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal colectivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

Como se tem afirmado na jurisprudência deste Tribunal (cfr., entre outros, o acórdão de 14.3.2018, no Proc. 22/08.3JALRA.E1.S1, em www.dgsi.pt), o conhecimento do recurso implica que, no âmbito da sua competência, este Tribunal aprecie e decida todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso delimitado pelo recorrente, com vista à sua boa decisão, sem prejuízo das regras relativas à alteração da qualificação jurídica dos factos e das implicações do princípio da proibição da reformatio in pejus (artigos 424.º, n.º 3, e 409.º do CPP).

8. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, as questões colocadas à apreciação e decisão deste tribunal circunscrevem-se à medida das penas parcelares e da pena única, que o recorrente considera terem sido determinadas em violação do disposto nos artigos 71.º n.º 2, als. d) e e), e 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal.

A determinação da pena comporta duas operações distintas: a determinação da pena aplicável (moldura da pena), por via da averiguação do preenchimento do tipo legal de crime (tipo fundamental) e de circunstâncias modificativas que podem conduzir à punição por um tipo de crime agravado ou privilegiado, e a determinação concreta da pena (medida da pena), em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal).

Em caso de concurso de crimes (artigo 30.º, nº 1, do Código Penal), há ainda que determinar a pena única, a partir da moldura definida pela pena mais grave aplicada aos crimes em concurso e pela soma das penas aplicadas, sem ultrapassar o limite de 25 anos de prisão, tendo em consideração, no seu conjunto, a gravidade dos factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal).

O acórdão recorrido

9. O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

“1.   AA, aqui arguido, manteve um relacionamento com comunhão de cama e mesa com BB, aqui assistente, desde data não apurada do ano de 2011 e até 1 de dezembro de 2017.

2.  CC, aqui também assistente, nasceu a ... de 2001 e é filha de ... e da assistente BB.

3.  No referido período, o arguido e as assistentes, bem como DD, filha da assistente BB e irmã da assistente CC, residiram numa habitação sita na Rua ..., depois noutra sita na Rua ..., a partir de data não concretamente apurada mas situada entre junho e agosto de 2012 numa outra sita na Rua ..., ... e, posteriormente, no início do mês de abril do ano de 2017, noutra sita no Lugar..., ....

4.  Por via da aludida união entre a assistente BB e o arguido este era, juntamente com aquela, responsável pela educação, assistência e cuidados da assistente CC e da sua irmã, como se do progenitor se tratasse, sendo por elas respeitado e tratado como um pai.

5.  A assistente CC e a sua irmã ficaram várias vezes entregues à guarda e cuidados do arguido, sobretudo quando a assistente BB não se encontrava na casa de morada de família.

6.  O arguido ingeria em excesso bebidas alcoólicas e consumia canabis.

7.  No período compreendido entre data não concretamente apurada de 2015 e até 1 de dezembro de 2017, o arguido disse à assistente BB, por várias vezes, com frequência não apurada, no interior de cada uma das habitações que partilharam e na presença da assistente CC e da sua irmã: “Porca. Puta. Vaca. Vai dar a cona a outro. Não és boa mãe. Sem mim não és ninguém”.

8.  Nesse período, em cada uma das habitações que então partilharam, na presença da assistente CC e da sua irmã, o arguido também anunciou por diversas vezes à assistente BB: “Bato-te. Vou-te fazer a vida negra. Eu mato-te. Vou dar cabo de ti. Podes chamar a polícia e dizer que não te deixo descansar. Tenho um dom. Não sou responsável pelos meus atos, são espíritos que se apoderam do meu corpo. Um dia pego no carro e empanzino-te contra um muro”.

9.  No referido período, o arguido impediu a assistente BB de se relacionar livremente com terceiros, procedeu à consulta quase diária das comunicações recebidas e efetuadas no telemóvel desta e da correspondência endereçada para a mesma, compareceu no local de trabalho da mesma sem a avisar previamente a fim de controlar as movimentações da mesma, não obstante estar ciente que tal situação desagravada à dita assistente.

10.   No mesmo período, no interior da residência do casal, e por vezes na presença da assistente CC e da sua irmã, por várias vezes, com uma regularidade não apurada, o arguido desferiu bofetadas e murros na assistente BB, apertou-lhe os braços e o pescoço com força, empurrou-a, originando-lhe dores e hematomas, e arremessou contra o corpo da mesma pequenos bens que constituíam o recheio da casa de morada de família.

Assim, entre outras situações:

11.   No dia 14 de julho de 2015, no período da tarde, nas proximidades da residência que mantiveram em ... e na presença da assistente CC e da sua irmã, o arguido dirigiu-se à assistente BB e disse-lhe: “Estás vestida com uma camisa com decote muito profundo. Está a exibir-te para outros homens”.

Ato contínuo, o arguido agarrou com força a camisa da assistente BB, tentou rasgar o tecido de tal indumentária pela força, abanou aquela com violência e apelidou-a de “Puta. Porca”.

12.   No dia 25 de novembro de 2017, pelas 17h.30m, na casa de morada de família, o arguido dirigiu-se à assistente CC e disse-lhe: “Desliga essa merda”, referindo ao computador que a mesma estava a utilizar.

De seguida a assistente BB protestou, ao que o arguido a apelidou de “puta, porca” e disse-lhe: “Não dás educação às filhas. Nunca vão ser alguém na vida. Isto é tudo meu. Eu é que mando ali. Se não obedecerem, faço-vos a vida negra”.

Ato contínuo, o arguido empurrou a assistente BB até à porta de casa e colocou-a fora da habitação.

Nesse dia, o arguido disse à assistente BB: “Não tenho medo da polícia. Podes chamá-los à vontade. Cago na polícia porque já vivia na rua, já roubei e nunca ninguém me apanhou. Vaca”.

13.   No dia 26 de novembro de 2017, depois das 17h.30m, na casa de morada de família, o arguido apelidou a assistente BB de “puta, porca” e disse-lhe: “Não tenho medo da polícia. Cago na polícia”, e desferiu-lhe um soco.

14.   Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, a assistente BB sofreu dores e lesões, designadamente, uma equimose arroxeada, na região mentoniana da face, à direita da linha média, de 1,5 cm de diâmetro, uma escoriação superficial na face posterior do cotovelo de 0,5 cm de diâmetro no membro superior esquerdo, bem como uma escoriação avermelhada na face anterior do joelho de dimensões pericentimétricas e uma equimose arroxeada no terço médio da face superior da coxa, de dimensões pericentimétricas no membro inferior direito, lesões que lhe determinaram 7 dias para a consolidação médico-legal, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.

15.   A partir de data não concretamente apurada de 2015 e até 1 de dezembro de 2017, nas habitações que partilharam nesse período, o arguido disse à assistente CC, por várias vezes e com uma frequência não apurada: “Porca. Mentirosa. Fingida. Faz a limpeza bem-feita! Isto não é só o cú e as mamas a crescer, também tens que trabalhar. Nunca fazes nada em condições. Estás sempre a inventar”.

16.   Nesse hiato temporal, nas habitações que partilharam, o arguido também anunciou por diversas vezes à assistente CC: “Levas já uma lapada. Bato-te. Vou-te fazer a vida negra. Vou dar cabo de ti”.

17.   Nesse período temporal, o arguido impediu a assistente CC de se relacionar livremente com terceiros, colocou-a fora de casa quando a mesma apenas trajava um pijama, impediu-a de se requisitar livremente livros na biblioteca apoderando-se do cartão titulado pela mesma, proibiu-a ainda de ler livros que faziam parte do recheio da casa de morada de família e solicitou à mãe da mesma que fechasse tais livros no sótão, não obstante ter pleno conhecimento que a jovem manifestava gosto pela leitura, e proibiu-a de participar em visitas de estudo, não obstante a assistente CC ser uma aluna aplicada.

18.   No mesmo período, no interior da residência do casal, sem que nada o justificasse, por várias vezes, com uma regularidade não apurada, o arguido desferiu bofetadas na face da assistente CC, causando-lhe dores e fazendo-a chorar.

19.   Em datas não concretamente determinadas do ano de 2015, anteriores a 21-09-2015, depois da assistente CC perfazer treze anos e antes de perfazer catorze anos de idade, por várias vezes, com uma regularidade não apurada, quando a mesma se encontrava sozinha aos cuidados do arguido na casa de morada de família, com o cuidado de não ser visto por terceiros, o arguido após lhe anunciar que lhe pretendia fazer uma massagem, ao que aquela anuía, apalpou-lhe os seios, as nádegas e as pernas, umas vezes por cima da roupa que aquela trajava, e outras em contacto direto das suas mãos com a pele desta, apalpou ainda a assistente CC na zona genital, por cima da roupa e ainda por contacto direto com a pele desta, e exibiu-lhe o seu pénis ereto perguntando-lhe se ela já tinha visto um pénis antes ao que a mesma respondeu que não.

20.   Depois de 21-09-2015 e antes de 01-12-2017, em datas não concretamente apuradas, por várias vezes, com uma regularidade não apurada, quando a assistente CC se encontrava sozinha aos cuidados do arguido na casa de morada de família, com o cuidado de não ser visto por terceiros, o arguido solicitou àquela que se despisse por completo, o que esta última acabou por fazer, acariciou-lhe os lábios da vulva, estimulando-os, e introduziu ainda dedos na vagina daquela, realizando movimentos para dentro e para fora, provocando-lhe dores, ignorando os pedidos da mesma para que parasse com tal introdução.

21.   Algumas vezes, o arguido abriu a braguilha das calças que o próprio trajava, colocava uma das suas mãos no interior das calças, baixou tal indumentária e as cuecas, exibiu o seu pénis ereto na presença da assistente CC e pegou na mão desta e colocou-a no seu pénis, descrevendo em seguida movimentos ascendentes e descentes, algumas vezes até ejacular.

22.   Nesse período, em algumas das vezes, depois de praticar os atos acima descritos, o arguido perguntava à assistente CC: “Gostas?” e dizia-lhe “A partir do momento em que contares alguma coisa a alguém, a tua vida acaba. A tua vida vai ser um inferno”.

23.  

Em datas não concretamente determinadas, mas após 21-09-2015 e antes de 01-12-2017, na casa que partilhavam, por diversas vezes, com uma regularidade não apurada, quando se encontravam sozinhos, o arguido colocou ainda o seu pénis ereto na boca da assistente CC, descrevendo movimentos sequências de vai e vem.

24.   Em algumas dessas situações, previamente o arguido disse à assistente CC: “chupa”.

25.   Alguns dos contactos sexuais entre o arguido e a assistente CC ocorridos em abril de 2017 aconteceram na ..., quando a família já residia no ..., ..., tendo o arguido convencido previamente a dita assistente a acompanhá-lo para a primeira morada, alegando a necessidade arrumações e limpezas antes de entrega dessa habitação.

26.   Nesse local, o arguido estendia um cobertor no chão, pedia para a assistente se despir, tirando ele próprio a roupa que trajava, permanecendo assim os dois nus.

27.   Em duas datas não concretamente apuradas, mas entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, quando se encontravam a sós no domicílio comum, o arguido exibiu o seu pénis ereto na presença daquela, que já não trajava cuecas, puxou-a junto de si e tentou introduzir o pénis na vagina daquela, o que não aconteceu embora o pénis do arguido tenha chegado a tocar os lábios da vagina, descrevendo o arguido movimentos sequenciais, o que causou dores à dita assistente.

28.   Nessas ocasiões, a assistente CC disse ao arguido que não queria que ele praticasse tal ato, uniu as pernas e tentou afastar-se do arguido, tendo este agarrado com as mãos as pernas da assistente e, exercendo força, afastado as mesmas, puxando aquela para si.

29.   A assistente BB não denunciou os eventos de que foi vítima antes de 26-11-2017 por temer pela reação do arguido.

30.   Em 1 de dezembro de 2017 abandonou com as filhas a residência comum.

31.   O arguido agiu da forma descrita sabendo e querendo, perante menor e na residência comum do casal, injuriar, humilhar, ameaçar e maltratar o corpo e a saúde, física e psíquica, da sua companheira, manifestando total desinteresse pelo seu bem-estar.

32.   O arguido agiu da forma descrita sabendo e querendo, na residência comum, injuriar, humilhar, ameaçar e maltratar o corpo e a saúde, física e psíquica, da filha da sua companheira, pessoa particularmente indefesa face ao facto de ser menor de idade e com quem coabitava, ultrapassando os limites do dever de correção, manifestando total desinteresse pelo seu bem-estar.

33.   Até 20-09-2015 o arguido agiu ainda sabendo e querendo praticar os ditos atos sexuais de relevo, com menor de 14 anos de idade, mantendo conversas de cariz sexual com ela.

34.   A partir de 21-09-2015, o arguido agiu ainda sabendo e querendo praticar os ditos atos sexuais de relevo, um dos quais consistindo na introdução vaginal dos seus dedos e outro em coito oral, com menor entre 14 e 18 anos de idade, mantendo com ela conversas de cariz sexual.

35.   Em cada uma daquelas duas vezes, o arguido agiu ainda sabendo e querendo, ciente da sua superioridade física, exercer violência física sobre a assistente CC por forma a constrangê-la a sofrer a introdução vaginal do seu pénis a fim de com ela manter relações de cópula completa, contra a vontade daquela, o que não conseguiu por razões alheias à sua vontade.

36.   Em todas as ocasiões o arguido agiu sabendo e querendo aproveitar-se do facto de coabitar e de fazer parte do agregado familiar da assistente CC, numa relação idêntica à de pai e filha, e assim da relação de proximidade e do ascendente emocional que tinha sobre ela por ser também responsável pela sua educação e assistência, da imaturidade da menor e da sua menor capacidade para compreender o significado e a gravidade de um envolvimento de cariz sexual, fruto da sua tenra idade, pretendendo fazer crer à vítima que tais atos aconteciam num contexto normal de afetos, o que facilitou o cometimento dos ilícitos.

37.   O arguido, com as suas condutas, violou o direito da menor à sua livre autodeterminação sexual e prejudicou o livre e harmonioso desenvolvimento da respetiva personalidade, para satisfação dos seus próprios desejos sexuais.

38.   Em cada uma daquelas situações o arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

39.   Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a assistente BB sofreu dores, ficou instável, com vergonha e embaraçada ao ter que passar por terceiros que se apercebiam da situação, sentiu-se angustiada, agitada, revoltada e enojada.

40.   Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a assistente CC sofreu dores, chorou, sentiu-se enojada, insegura, ficou deprimida, ansiosa, com um humor deprimido, medo, incluindo de estigmatização social, do futuro, do arguido, vergonha, confusão, desconfiada e com alterações na perceção de si, tendo sido acompanhada psicologicamente, o que se mantém atualmente.

41.   O arguido possui o 5.º ano de escolaridade.

42.   Trabalhou de forma irregular quer na construção civil quer no ramo da pintura automóvel, o que lhe proporcionava rendimento mensal não concretamente apurado.

43.   Vive em casa dos pais.

44.   Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.”

9. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.

Nesta parte, a decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

9.1. Quando à determinação das molduras penais dos crimes em concurso (qualificação jurídica dos factos):

9.1.1. “Do crime de violência doméstica (cfr. 1. a 18., 31., 32. e 38. dos factos provados)

Comete o referido crime quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: ao cônjuge ou ex-cônjuge; a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; a progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite (cfr. art.º 152.º, n.º 1, als. a), b), c) e d), do C.P.), verificando-se uma agravação se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (cfr. art.º 152.º, n.º 2, do C.P.).

É comum a afirmação de que o bem jurídico tutelado pela incriminação do crime de violência doméstica reside na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana bem como da própria saúde enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental (cfr. FERNANDES, Plácido Conde, in “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, n.º 8 (especial), 1.º semestre 2008, Livraria Almedina, pág. 305).

Contudo, bem vistas as coisas, o fundamento último das ações e omissões abrangidas pelo tipo reconduzem-se ao asseguramento das condições do livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, enquanto concretização do direito fundamental da integridade pessoal (cfr. art.º 25.º da CRP), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (cfr. art.º 26.º, n.º 1, da CRP), nas dimensões não recobertas pelo art.º 25.º da CRP, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. LEITE, André lamas, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, Julgar, n.º 12 (especial), Coimbra Editora, Coimbra, novembro 2010, pág. 49).

O crime em apreço pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos. Na verdade, a tutela do bem jurídico é projetada numa relação de afetividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação, ou em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo relacional, presente ou pretérito, de vida em comum, numa aceção ampla do termo, sendo em certos casos para tutela do património afetivo comum.

Ora, no presente caso, o arguido BB coabitou com BB, com quem manteve uma relação análoga à dos cônjuges, bem como com a filha desta, CC, menor de idade, pessoa particularmente indefesa em virtude precisamente da sua idade e do facto de lhe estar também confiada para educação e assistência, o que gerava uma dependência, subordinação, submissão e obediência da menor ao arguido, razão pela qual se verificam duas das relações previstas no tipo legal de crime em causa.

As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é, ofensas à integridade física simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.), incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, podendo tais condutas ser praticadas por ação ou por omissão.

Acresce que tais condutas podem ser praticadas de modo reiterado ou não.

Assim, por regra, não basta uma ação isolada do agente, mas também não é exigível uma situação de habitualidade, bastando, em casos de especial violência, uma única agressão para integrar o crime (cfr. Ac. da Rel. do Porto, de 11 de Julho de 2007, in www.datajuris.pt).

Entre a multiplicidade de ações que, à partida, podem ser tidas em conta como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e que em regra preenchem também a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, desferir bofetadas, pontapés, pancadas, empurrões, puxar pelos braços, agarrar e puxar os cabelos, desferir pancadas e morder, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade física corporal da pessoa visada.

Ora, no presente caso, ficou demonstrado que o arguido, durante a relação de proximidade que manteve com BB, a molestou fisicamente desferindo-lhe bofetadas e murros, apertando-lhe os braços e o pescoço e empurrando-a.

Por outro lado, ficou ainda demonstrado que o arguido, durante a coabitação que manteve com CC, a molestou fisicamente desferindo-lhe bofetadas.

Assim, afigura-se que foram assumidos pelo arguido comportamentos com um carácter violento, face à fraca motivação, ao modo de execução e ao contexto em foram praticados, idóneos a refletir-se negativamente sobre as personalidades de BB e CC, sobretudo quando conjugado com os demais comportamentos assumidos pelo arguido e igualmente demonstrados.

Por outro lado, estão em condições de serem qualificados como maus tratos psíquicos, os insultos, as ameaças, as críticas, os comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as perseguições e as esperas inopinadas.

Ora, no presente caso, ficou demonstrado que o arguido, durante a dita relação, injuriou, ameaçou e humilhou a sua companheira e a filha menor desta.

Convém ter presente que, os atos de execução do crime em apreço, para assumirem relevância enquanto tal, não têm necessariamente que possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime (cfr. SECCHI, Zaira, in Tulio Padovani, Codice Penale, II, 4.ª edição, Giuffrè, 2007, art. 572, 4.), sendo que, se a possuírem, as relações de concurso terão que ser vistas e resolvidas à luz do bem jurídico atingido, valorando, para o determinar, a situação ambiente e a imagem global do facto praticado.

Vistas as coisas desse prisma, todos os atos praticados pelo arguido estão intimamente ligados à relação de proximidade existencial de partilha que se estabeleceu entre ele e a sua companheira e que os uniu, bem como à relação de coabitação estabelecida com a filha menor desta, tendo sido praticados por causa de tais relações existenciais.

Por outro lado, todos os atos praticados pelo arguido são objetivamente idóneos a pôr em causa o desenvolvimento da personalidade da companheira do arguido e da filha menor desta, a sua integridade pessoal, a sua dignidade de pessoa humana e a sua saúde, de forma ainda mais grave, em virtude, precisamente, da relação de confiança que existiu entre o arguido e aquelas por força da vivência existencial que estabeleceram.

Como elementos subjetivos, o crime exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade por parte do agente de praticar alguma das condutas tipificadas, demonstrando com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa, in Direito Penal, Lições da cadeira de Direito Penal (3.º ano), 1996, pág. 268/9), verificando-se, deste modo, a chamada congruência entre o elemento subjetivo e os elementos objetivos do crime.

Perscrutando a matéria de facto considerada provada, constata-se que o arguido agiu dolosamente pois ao prever e desejar a produção de tal resultado, decidindo-se pela prática dos factos adequados a provocá-lo, agiu com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n 1, do C.P.), demonstrando uma atitude que, sendo contrária relativamente ao dever ser jurídico-penal, já que podia e devia ter agido de outro modo.

Assim, o seu comportamento é ético-juridicamente censurável.

Segundo o n.º 2, do art.º 152.º do C.P. é agravante do crime a violência exercida perante menor, no domicílio da vítima, próprio ou comum ao agressor.

São situações em que se denota uma necessidade de tutela acrescida, por imperativo ético em congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional de proteção da inviolabilidade do domicílio e da vida privada, face à consciência de que é no domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas, bem como de proteção de vítimas indiretas.

Ora, atenta a matéria de facto provada, ter-se-á que concluir que alguns dos factos foram praticados na residência comum do casal, sendo os referentes à assistente BB sido cometidos perante menor, razão pela qual se verifica a aludida agravação.

Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à conduta do arguido a prática de um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, e 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2, do C.P. e de um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, e 152.º, n.º 1, al. d), n.º 2, do C.P.”

9.1.2. “Do crime de abuso sexual de crianças agravado (cfr. 1., 2., 19., 33. e 36. a 38. dos factos provados)

O crime de abuso sexual de crianças é cometido por quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa (cfr. art.º 171.º, n.º 1, do C.P. quer na redação vigente à data dos factos e decorrente da redação anterior à Lei n.º 103/2015, de 24-08, quer na redação atual decorrente de tal diploma) ou por quem atuar sobre menor de 14 anos por meio de conversa pornográfica (cfr. art.º 171.º, n.º 3, al. b), do C.P. quer na redação vigente à data dos factos e decorrente da redação anterior à Lei n.º 103/2015, de 24-08, quer na redação atual decorrente de tal diploma).

O bem jurídico protegido reside no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, ligado à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores de 14 se encontra carecida de uma proteção particular.

Agente da prática deste crime pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, os familiares ou mesmos os pais da vítima.

Vítima é necessariamente um menor de 14 anos, de qualquer sexo. Tipicamente é indiferente que a vítima seja já ou não sexualmente iniciada, que possua ou não a capacidade para entender o ato sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou se leva a praticar, que lhe caiba uma intervenção ativa (mesmo a iniciativa) ou puramente passiva no processo.

No art.º 171.º, n.º 1, do C.P. estão incluídas como modalidades da ação o praticar com ou em menor de 14 anos de idade ato sexual de relevo e também o levar o menor de 14 anos de idade a praticar com outra pessoa ato sexual de relevo, entendido como todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e que se traduza num entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, no caso dos adultos, ou a liberdade e autodeterminação sexual, no caso de menores (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 447 e 449). Ou seja, todo aquele comportamento que, de um ponto de vista essencialmente objetivo pode ser reconhecido por um observador comum despido de análises subjetivas ou moralistas como possuindo carácter sexual, e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende de forma séria, grave e em elevado grau a intimidade e liberdade de determinação sexual da vítima, no caso dos adultos, ou a liberdade e autodeterminação sexual, no caso de menores (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-01-2016, processo n.º 53/13.1GESRT.C1, in www.dgsi.pt).

Por fim, no n.º 3, al. b), do mesmo preceito está incluída como modalidade de ação o atuar sobre menor de 14 anos por meio de conversa pornográfica, ou seja, quando o conteúdo daqueles for idóneo, segundo as circunstâncias concretas da sua utilização, a excitar sexualmente a vítima, ultrapassando por isso notoriamente, em abstrato, os limites permitidos por um desenvolvimento sem entraves da personalidade do menor na esfera sexual.

Por seu turno, atuar sobre o menor significa tentar satisfazer com ele ou através dele, por meios de processos de características sexuais, interesses ou impulsos de relevo, que não têm de possuir natureza sexual, podendo ser de natureza diferente. Por outro lado, não obstante a utilização da expressão “sobre”, tal não pressupõe a necessidade de contacto corporal entre o agente e a vítima, basta que o menor participe a qualquer título, ainda o mais radicalmente passivo, da conversa ou da leitura do escrito em causa.

No caso dos autos, o arguido praticou na menor de 14 anos atos sexuais de relevo, assim tendo que ser entendidos o apalpar a zona mamária, nádegas, pernas e a vagina, mesmo por cima da roupa.

É certo que, em algumas das vezes em que assim agiu, o arguido manteve com a menor de 14 anos conversa cujo tema era claramente sexual, com uma natureza e intensidade pesada e baixamente sexuais, de tal modo que ela se revele instrumento idóneo para prejudicar um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual.

No entanto, tendo aparentemente o arguido mantido tal conversa como forma de praticar os referidos atos sexuais de relevo, afigura-se que se trata de um mero concurso aparente.

No art.º 177.º do C.P. quer na redação vigente à data dos factos e decorrente da redação anterior às Leis n.ºs 83/2015, de 05-08 e 103/2015, de 24-08, quer na redação atual decorrente de tais diplomas estabelecem-se várias circunstâncias agravantes do crime de abuso sexual de crianças, entre as quais o facto de a vítima se encontrar numa relação familiar e de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.).

A utilização do conceito “relação familiar” visa abranger toda a relação entre o agente e a vítima que se traduza numa proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, e que o agente se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da ação. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação dessa proximidade (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-05-2016, processo n.º 155/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt).

No presente caso, resulta da matéria de facto provada que o arguido e a menor integravam o mesmo agregado familiar, coabitando, fazendo o arguido e a mãe da menor uma vida comum como se de mulher e marido se tratassem, assumindo o arguido um papel para com a menor semelhante ao da sua progenitora ou de, pelo menos, colaboradora desta, sendo pois os comportamentos que assumiu para com esta condicionados pela existência de tal relação familiar, pelo que se verifica a dita agravante.

Resulta ainda da matéria de facto demonstrada que tais atos ocorreram em 2015, por várias vezes, com uma regularidade não apurada, mas antes de 21-09-2015, quando a menor de 14 anos se encontrava sozinha entregue aos cuidados do arguido na casa de morada de família.

Estando imputados ao arguido a prática, em concurso efetivo, do mesmo crime, para a determinação do concreto número de crimes efetivamente praticados pelo arguido, tarefa que não pode ser arbitrária, ter-se-á que ter em consideração que o índice de unidade ou pluralidade de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Assim, deverá considerar-se existir uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as atividades efetuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou sem ter de renovar o respetivo processo de motivação. Por seu turno, numa realização repetida do mesmo tipo legal de crime, num curto espaço de tempo, sobre a mesma vítima, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa, respondendo o facto, além do mais, a uma situação motivacional unitária. Assim, uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma ação unitária quanto os diversos atos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente, são percecionados como uma unidade natural (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-07-2012, processo n.º 1718/02.9JDLSB, in www.dgsi.pt).

É esse precisamente o caso dos autos. Na verdade, antes de a menor perfazer 14 anos de idade, o arguido assumiu para com ela, de forma reiterada, o mesmo tipo de atos, mantendo eles uma evidente proximidade temporal, desconhecendo-se o número de vezes em que os mesmos ocorreram, pelo que apenas é possível considerar praticado um crime relativamente a este particular núcleo de factos.

Mesmo que assim não se entendesse, tendo o abuso ocorrido por diversas vezes e em número concretamente não apurado, sempre o arguido, pelo menos em atenção ao princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da C.R.P., deveria ser punido por um só crime (cfr. MONIZ, Helena, in “Crime de trato sucessivo”, Julgar Online, abril de 2018, ponto 3.2., in fine, pág. 25).

Sob o ponto de vista subjetivo, é de exigir o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito (cfr. art.º 14.º do C.P.).

Ora, resulta da matéria de facto considerada provada que o arguido agiu com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.).

Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à conduta do arguido a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.”

9.1.3. “Do crime de abuso sexual de menores dependentes agravado (cfr. 1., 2., 20. a 26., 34., 36. a 38. dos factos provados)

O crime de abuso sexual de menores dependentes é cometido por quem praticar ou levar a praticar ato sexual de relevo, cópula coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos relativamente a menor entre 14 e 18 anos de idade que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, ou atuar sobre ele por meio de conversa pornográfica (cfr. arts. 171.º, n.º 3, al. b), 172.º, n.º 1 a n.º 3, do C.P.).

Por outro lado, quem praticar ou levar a praticar ato sexual de relevo relativamente a menor entre 14 e 18 anos de idade que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência comete o crime de abuso sexual de menores dependentes (cfr. arts. 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, do C.P., quer na redação vigente à data dos factos e decorrente da redação anterior às Leis n.ºs 83/2015, de 05-08 e 103/2015, de 24-08, quer na redação atual decorrente de tais diplomas).

O bem jurídico protegido reside no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, ligado à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra em princípio carecida de uma proteção particular.

Agente da prática deste crime só pode ser pessoa a quem o menor de idade entre 14 e 18 anos tenha sido confiado para educação ou assistência, seja homem ou mulher.

Vítima é necessariamente um menor entre 14 anos e 18 anos, que tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência, independentemente do sexo.

No art.º 172.º, n.º 1, do C.P. estão incluídas como modalidades da ação o praticar com ou em menor entre os 14 e os 18 anos de idade ato sexual de relevo (por remissão para o art.º 171.º, n.º 1, do C.P.) e também o levar o menor entre os 14 e os 18 anos de idade a praticar com o agente ato sexual de relevo, entendido como todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e que se traduza num entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, no caso dos adultos, ou a liberdade e autodeterminação sexual, no caso de menores (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 447 e 449). Ou seja, todo aquele comportamento que, de um ponto de vista essencialmente objetivo pode ser reconhecido por um observador comum despido de análises subjetivas ou moralistas como possuindo carácter sexual, e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende de forma séria, grave e em elevado grau a intimidade e liberdade de determinação sexual da vítima, no caso dos adultos, ou a liberdade e autodeterminação sexual, no caso de menores (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-01-2016, processo n.º 53/13.1GESRT.C1, in www.dgsi.pt).

No n.º 2 do mesmo preceito legal está incluída como modalidade de ação atuar sobre menor entre os 14 e 18 anos de idade por meio de conversa pornográfica (por remissão para o art.º 171.º, n.º 3, al. b), do C.P.).

Constranger outrem a suportar um contacto sexual é obviamente a conduta de um agente que envolve a vítima numa situação de natureza sexual sem a sua anuência. Quando ao conceito de “contacto de natureza sexual” ele consistirá na prática, no corpo do sujeito passivo, de um toque físico ou corporal com significado sexual que, portanto, constitui um perigo para a sua liberdade de determinação, no caso dos adultos, ou a liberdade e autodeterminação sexual, no caso de menores, e que não se traduza num ato sexual de relevo (cfr. DIAS, Maria do Carmo, in “Notas Substantivas sobre os crimes sexuais com vítimas menores de idade”, in Revista do CEJ, 1.º semestre 2011, número 15, pág. 229).

Mas para o preenchimento dos tipos objetivos de ilícitos exige-se ainda que o menor entre os 14 e 18 anos de idade tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência, verificando-se pois uma relação de dependência pessoal. Encontra-se nesta relação de dependência o menor entre os 14 e 18 anos de idade que tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência por força da lei, de decisão judicial ou de facto, encontrando-se nestes casos o agente investido num particular dever, não sendo necessário que tal relação tenha carácter permanente, pois pode ser temporária ou intermitente.

Educar significa assumir a direção e supervisão da condução da vida, promovendo o desenvolvimento físico e mental. Sob a designação de assistência temos a colaboração na formação e no bem-estar do menor no conjunto dos aspetos físicos e mentais.

No caso dos autos os factos foram cometidos quando o arguido estava sozinho com a menor entre os 14 e os 18 anos de idade na casa de morada de família, cabendo ao arguido assumir as tarefas de educação e assistência daquela, estabelecendo-se então, por força disso, uma relação de confiança entre os dois, mas também de dependência, subordinação, submissão e obediência da menor ao arguido.

Assim, no presente caso verifica-se a relação de dependência pessoal exigida.

Segundo resulta da matéria de facto considerada provada o arguido pediu à menor entre os 14 e os 18 anos de idade que se despisse por completo, acariciou-lhe os lábios da vulva, estimulando-os, introduziu alguns dos seus dedos na vagina daquela, descrevendo movimentos para dentro e para fora, pegou na mão daquela e colocou-a sobre o seu pénis, descrevendo movimentos ascendentes e descendentes até ejacular, e colocou o seu pénis ereto na boca daquela, descrevendo movimentos sequenciais de vai e vem.

O arguido levou a assistente menor entre os 14 e os 18 anos de idade a praticar em si atos sexuais de relevo, sendo que um deles se traduzia na introdução vaginal de dedos e outro em coito oral (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de dezembro de 2010, processo n.º 925/09.8JDLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).

É certo que, em algumas das vezes em que assim agiu, o arguido manteve com a menor conversa cujo tema era claramente sexual, com uma natureza e intensidade pesada e baixamente sexuais, de tal modo que ela se revele instrumento idóneo para prejudicar um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual.

No entanto, tendo aparentemente o arguido mantido tal conversa como forma de praticar os referidos atos sexuais de relevo, afigura-se que se trata de um mero concurso aparente.

No art.º 177.º do C.P. estabelecem-se várias circunstâncias agravantes do crime de abuso sexual de menores dependentes, entre as quais o facto de a vítima se encontrar numa relação familiar e de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.).

A utilização do conceito “relação familiar” visa abranger toda a relação entre o agente e a vítima que se traduza numa proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, e que o agente se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da ação. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação dessa proximidade (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-05-2016, processo n.º 155/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt).

No presente caso, resulta da matéria de facto provada que o arguido e a menor integravam o mesmo agregado familiar, coabitando, fazendo o arguido e a mãe da menor uma vida comum como se de mulher e marido se tratassem, assumindo o arguido um papel para com a menor semelhante ao da sua progenitora ou de, pelo menos, colaboradora desta, sendo pois os comportamentos que assumiu para com esta condicionados pela existência de tal relação familiar, pelo que se verifica a dita agravante.

Resulta ainda da matéria de facto demonstrada que tais atos ocorreram, por várias vezes, com uma regularidade não apurada, quando a menor entre 14 e 18 anos de idade se encontrava sozinha entregue aos cuidados do arguido na casa de morada de família.

Estando imputados ao arguido a prática, em concurso efetivo, do mesmo crime, para a determinação do concreto número de crimes efetivamente praticados pelo arguido, tarefa que não pode ser arbitrária, ter-se-á que ter em consideração que o índice de unidade ou pluralidade de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Assim, deverá considerar-se existir uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as atividades efetuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou sem ter de renovar o respetivo processo de motivação. Por seu turno, numa realização repetida do mesmo tipo legal de crime, num curto espaço de tempo, sobre a mesma vítima, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa, respondendo o facto, além do mais, a uma situação motivacional unitária. Assim, uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma ação unitária quanto os diversos atos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente, são percecionados como uma unidade natural (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-07-2012, processo n.º 1718/02.9JDLSB, in www.dgsi.pt).

É esse precisamente o caso dos autos. Na verdade, após a menor já ter 14 anos de idade, o arguido assumiu para com ela, de forma reiterada, outro tipo de atos diferentes daqueles anteriores, homogéneos entre si, que repetiu, mantendo eles uma evidente proximidade temporal, desconhecendo-se o número de vezes em que os mesmos ocorreram, pelo que apenas é possível considerar praticado um crime relativamente a este particular núcleo de factos.

Mesmo que assim não se entendesse, tendo o abuso ocorrido por diversas vezes e em número concretamente não apurado, sempre o arguido, pelo menos em atenção ao princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da C.R.P., deveria ser punido por um só crime (cfr. MONIZ, Helena, in “Crime de trato sucessivo”, Julgar Online, abril de 2018, ponto 3.2., in fine, pág. 25).

Sob o ponto de vista subjetivo, é de exigir o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito (cfr. art.º 14.º do C.P.) e, por conseguinte, também quanto à circunstância de o menor de 14 a 18 anos ter sido confiado ao agente para fins de educação ou assistência e quanto às circunstâncias agravantes.

Ora, resulta da matéria de facto considerada provada que o arguido agiu com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.).

Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à conduta do arguido a prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.”

9.1.4. “Do crime de violação agravado (cfr. 27., 28., 35. a 38. dos factos provados)

Comete o crime de violação quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral (cfr. art.º 164.º, n.º 1, al. a), do C.P.).

O bem jurídico protegido é o da liberdade de determinação sexual.

O tipo objetivo de ilícito consiste em o agente constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.

Vítima deste crime tanto pode ser um homem, como uma mulher. E também o agente pode ser uma pessoa de qualquer sexo.

A conduta típica traduz-se num ato de coação imediatamente dirigido à prática de um daqueles atos sexuais de relevo elencados. A coação é pois aqui especializada através da sua finalidade, tendo de existir entre ela e o ato sexual uma relação meio/fim.

Meio típico de coação é pois, antes de tudo, a violência. Deverá ser aqui considerado apenas o uso de força física destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. Assim, à violência tem de assistir uma qualquer corporalidade do meio de coação. Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso, a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima, sendo certo que pode ocorrer em simultâneo com o ato sexual de relevo elencado.

Conteúdo da ação é, desde logo, a cópula, devendo entender-se por tal a penetração da vagina pelo pénis, pelo que a cópula vestibular ou vulvar não é pois ainda cópula para este efeito.

Ora, no presente caso, resulta demonstrado que em duas situações distintas o arguido tentou introduzir na vagina da menor o pénis, tendo para o efeito puxado a menor junto de si, efetuou movimentos sequenciais com o pénis enquanto este tocava os lábios da vagina da menor e tentou afastar as pernas da menor, que as fechava, puxando-a para si, o que necessariamente implicou o exercício de força física sobre o corpo da menor, sendo tal idóneo a alcançar a pretendida penetração vaginal pelo pénis.

Contudo, nunca chegou a ocorrer a penetração da vagina pelo pénis, pelo que também não tendo então ocorrido coito anal, coito oral ou a introdução vaginal de outras partes do corpo ou de objetos inequivocamente o crime de violação não chegou a consumar-se (cfr. art.º 22.º, n.º 1, do C.P.), tendo sido praticadas, contudo, condutas que preenchem um elemento constitutivo de tal crime (cfr. art.º 22.º, n.º 2, al. a), do C.P.), estando-se pois no domínio da tentativa.

No art.º 177.º do C.P. estabelecem-se várias circunstâncias agravantes do crime de violação, entre as quais o facto de a vítima se encontrar numa relação familiar e de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.).

A utilização do conceito “relação familiar” visa abranger toda a relação entre o agente e a vítima que se traduza numa proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, e que o agente se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da ação. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação dessa proximidade (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-05-2016, processo n.º 155/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt).

No presente caso, resulta da matéria de facto provada que o arguido e a menor integravam o mesmo agregado familiar, coabitando, fazendo o arguido e a mãe da menor uma vida comum como se de mulher e marido se tratassem, assumindo o arguido um papel para com a menor semelhante ao da sua progenitora ou de, pelo menos, colaboradora desta, sendo pois os comportamentos que assumiu para com esta condicionados pela existência de tal relação familiar, pelo que se verifica a dita agravante.

É certo que está também prevista como agravante a circunstância de a vítima ser menor de 16 anos (cfr. 177.º, n.º 6, do C.P.).

Contudo, no presente caso, tendo a menor atingido essa idade em 21-09-2017, desconhece-se se alguma das duas situações ocorreu após tal data. Na verdade, quanto à localização temporal de tais episódios, apenas se apurou que ocorreram após abril de 2017.

Sob o ponto de vista subjetivo, é de exigir o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito (cfr. art.º 14.º do C.P.).

Ora, resulta da matéria de facto considerada provada que o arguido agiu em cada uma das referidas situações com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.).

Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à conduta do arguido a prática de dois crimes de violação agravados, na forma tentada, ps. e ps. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.”

9.2. Quanto à determinação da medida das penas:

9.2.1. Quanto às penas parcelares:

“Cada um dos crimes de violência doméstica é punido com uma pena de prisão de 2 a 5 anos (cfr. art.º 152.º, n.º 2, do C.P.).

Sendo o crime de abuso sexual de crianças previsto no art.º 171.º, n.º 1, do C.P. punido com uma pena de prisão de 1 a 8 anos, o cometido pelo arguido deverá ser agravado de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.), incorrendo pois o mesmo numa pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.

Por outro lado, sendo o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no art.º 172.º, n.º 1, do C.P. punido com uma pena de prisão de 1 a 8 anos, o cometido pelo arguido deverá ser agravado de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.), incorrendo pois o mesmo numa pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.

Finalmente, sendo o crime de violação, quando consumado, punido com uma pena de 3 a 10 anos (cfr. art.º 164.º, n.º 1, do C.P.), quando agravado de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo nos termos do art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., é punido com uma pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses.

No caso da tentativa, o limite mínimo da pena de prisão é reduzido de 1/5 (9 meses e 18 dias) e o limite máximo é reduzido de 1/3 (4 anos, 5 meses e 10 dias) (cfr. arts. 23.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, als. a) e b), do C.P.).

Assim, por cada um dos crimes de violação agravados, na forma tentada, incorre o arguido numa pena de prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias a 8 anos, 10 meses e 20 dias.

A determinação da medida de cada uma das penas tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo a função desempenhada por cada um destes critérios definida de acordo com a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico (cfr. art.º 71.º, n.º 1, do C.P. e ANTUNES, Maria João, in Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, pág. 41 e segs.).

Deste modo, a prevenção geral de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar (cfr. art.º 40.º, n.º 1, do C.P.).

Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (cfr. art.º 40.º, n.º 2, do C.P.).

Ora, dentro desses limites cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente.

Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas.

São bastante elevadas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir para se restabelecer a confiança na vigência e validade das normas violadas e que, assim, apontam para um maior sancionamento dos agentes deste género de criminalidade, face à sua inquietante frequência, especialmente na área deste município, ao eco e ressonância social de repulsa que provoca na comunidade, sendo suscetível de gerar forte alarme social, intranquilidade e insegurança.

Por outro lado, o arguido agiu sempre com a modalidade mais intensa do dolo, que se mostra direto, revelando forte resolução criminosa tendo em conta a reiteração da sua conduta e os respetivos períodos em causa, denotando os factos cometidos uma personalidade altamente desvaliosa.

É elevado o grau de ilicitude dos factos cometidos, sendo de salientar que o arguido foi reiterando e intensificando a sua conduta, sendo grave a natureza dos atos cometidos dentro da gravidade pressuposta nos tipos de ilícitos em causa, sendo igualmente grave o modo de execução dos crimes e de relevo as consequências causadas, o que milita contra o arguido.

Milita a seu favor a admissão muito parcial dos factos, bem como a circunstância de não possuir antecedentes criminais.

Não ficaram demonstrados nos autos quaisquer factos reveladores de sentimento de arrependimento do arguido.

Tudo ponderado afigura-se adequado condenar o arguido:

1.  Um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2, do C.P., praticado entre 2015 e 01-12-2017, na pena de 3 anos de prisão;

2.  Um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º, n.º 1, al. d), n.º 2, do C.P., praticado entre 2015 e 01-12-2017, na pena de 3 anos de prisão;

3.  Um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., praticado em 2015, em datas anteriores a 21-09-2015, na pena de 3 anos de prisão;

4.  Um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., praticado após 21-09-2015 e antes de 01-12-2017, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão;

5.  Um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., praticado entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, na pena de 5 anos de prisão;

6.  Um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b),164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., praticado entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, na pena de 5 anos de prisão.”

9.2.2.Quanto à pena única:

“A pena única que terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art.º 77.º, n.º 1 e n.º 2 do C. P.).

Assim, a moldura do concurso é de 5 anos e 4 meses de prisão no seu limite mínimo e 24 anos e 4 meses no seu limite máximo.

Estabelecida a moldura penal do concurso, deve determinar-se a pena conjunta do concurso, dentro dos limites daquela. Tal pena será encontrada em função das exigências de culpa e de prevenção, tendo o legislador fornecido, para além dos critérios gerais estabelecidos no art.º 71.º do C. P., um critério especial: “Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (cfr. art.º 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.P.).

Assim, do que se trata agora é de ver os factos concorrentes no seu conjunto e detetar a possível conexão e o tipo de conexão que os liga, tendo em vista a totalidade da atuação dos arguidos como unidade de sentido por forma a possibilitar uma avaliação da gravidade do ilícito global perpetrado e a “culpa pelos factos em relação” (cfr. MONTEIRO, Cristina Líbano, in “A Pena “Unitária” do Concurso de Crimes”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano XVI, n.º 1, pág. 162 e segs.).

Ora, no presente caso, pese embora o período temporal em causa, tendo em conta a similitude de situações e ausência do cometimento de outros factos semelhantes, afigura-se que o conjunto dos factos em apreço é ainda reconduzível a uma pluriocasionalidade ou fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais ou de um particular contexto de vida do arguido, que não radica na sua personalidade manifestada, que não é um traço da sua personalidade.

Ora, assim sendo, não terá sentido atribuir à pluralidade de crimes um efeito particularmente agravante dentro da moldura penal conjunta.

Deste modo, afigura-se adequado condenar o arguido na pena única de 12 anos de prisão”.

Quanto à qualificação jurídica dos factos

10. Concluiu o acórdão recorrido que os factos descritos nos pontos 1 a 18, 31, 32 e 38 da matéria de facto provada constituem dois crimes de violência doméstica, de que foram vítimas a assistente BB e a filha desta, a assistente CC, por, no primeiro caso, preencher a previsão do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2 do Código Penal e, no segundo, a previsão do artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2 do Código Penal.

Da matéria de facto provada resulta, em síntese, que o arguido e a assistente BB mantinham uma relação de coabitação análoga à dos cônjuges e que os factos descritos constituem maus tratos físicos e psíquicos, de que esta e a filha menor CC foram vítimas, tendo tais factos sido praticados no domicílio comum, onde todos residiam, e também na presença da menor CC.

Mostram-se, pois, preenchidos os elementos destes tipos de ilícito.

11. Quanto aos factos descritos nos pontos 1, 2, 19, 33, 36, 37 e 38 concluiu o acórdão recorrido que estes constituem um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, agravado pela circunstância prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do mesmo diploma.

Estes factos foram praticados em datas não concretamente apuradas anteriores a 21.9.2015, data em que a menor CC completou 14 anos.

Considerou o acórdão recorrido, em linha com um acórdão da Relação de Lisboa de 12.5.2016, que o artigo 177.º do Código Penal, “quer na redacção vigente à data dos factos e decorrente da redacção anterior às Leis n.ºs 83/2015, de 05-08, e 103/2015, de 24-08, quer na redacção actual decorrente de tais diplomas” estabelece várias circunstâncias agravantes do crime de abuso sexual de crianças, “entre as quais o facto de a vítima se encontrar numa relação familiar e de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.)” – supra 9.1.2.

Esta interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º carece, todavia, de verificação e confirmação.

11.1. Dispunha o n.º 1 do artigo 177.º, na sua redacção originária (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março):
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela; ou
b) Se encontrar numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente, e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.”

A alínea b) do n.º 1 deste preceito veio a ser alterada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, que entrou em vigor 30 dias após a sua publicação (artigo 10.º).

A Lei n.º 59/2007 acrescentou, como factor de agravação, a circunstância de o agente e a vítima se encontrarem numa “relação familiar, de tutela ou curatela” e a Lei n.º 103/2015, também como factor de agravação, a circunstância de estes se encontrarem numa relação de “coabitação”.

A Lei n.º 83/95, de 5 de Agosto, que alterou o n.º 2 do artigo 177.º, manteve inalterado o respectivo n.º 1.

Assim, nas datas da prática dos factos, tinha o n.º 1 do artigo 177.º a seguinte redacção:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.”

11.2. Da Proposta de Lei n.º 305/XII, que esteve na origem da Lei n.º 103/2015, visando transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.12.2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil (JOUE L335, de 17.12.2011, rectificada, JOUE L18, 21.2.2012), e dar cumprimento às obrigações assumidas por Portugal com a ratificação (Decreto do Presidente da República n.º 90/2012, de 28.5.2012) da Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais (Lanzarote, 25.10.2007), ressalta o propósito de reforçar a protecção das crianças contra “formas graves de abuso e de exploração sexual de crianças” e de tornar o nosso ordenamento jurídico “mais eficaz no combate a uma das mais graves violações dos direitos humanos”, neste sentido se alterando a alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º.

O artigo 18.º, n.º 2, al. b), 2.º travessão, desta Convenção obriga à criminalização da prática de acto sexual com uma criança “abusando de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre a criança, incluindo o ambiente familiar”, o que, lê-se no respectivo Relatório Explicativo, diz respeito a situações em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança estabelecida com a criança em resultado de uma autoridade natural, social ou religiosa, que permite controlar, punir ou compensar a criança nos planos emocional, económico ou mesmo físico, como normalmente sucede nas relações entre a criança, seus progenitores ou adoptantes, mas que também podem existir nas relações desta com outras pessoas, como as que prestam cuidados ou contribuem para a sua educação. Com o uso da expressão “incluindo o ambiente familiar”, diz-se no Relatório, visou-se realçar as situações mais frequentes e prejudiciais para a criança, salientando-se que o termo “família” se refere à “família alargada” (em www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/201).

Inspirada por esta Convenção, a Directiva n.º 2011/93/EU adoptou idêntica formulação, obrigando os Estados-Membros da União Europeia a criminalizar a prática de actos sexuais com crianças, “recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança” (artigo 3.º, n.º 5. i)).

11.3. O n.º 1 do artigo 177.º, nas suas diferentes versões, encontra-se estruturado na base da consideração da relevância de diferentes tipos de relação entre o agente e a vítima, que justificam a agravação da pena, havendo que distinguir as relações familiares para efeitos da alínea a) – em que o maior desvalor do tipo de ilícito resulta da sua simples existência, limitada ao círculo constituído por ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente - e as relações familiares para efeitos da alínea b) – em que tal desvalor decorre do aproveitamento de outra relação familiar para a prática do acto sexual ilícito. Incluem-se aqui as relações de parentesco e de afinidade, que se produzem em qualquer grau na linha recta e até ao sexto grau na colateral (artigos 1582.º e 1585.º do Código Civil), para além das relações estabelecidas por vínculos de tutela ou de curatela (artigos 138ss, 1921.º e 1927 do Código Civil, aqueles substituídos, entretanto, pelo regime de acompanhamento - Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto), bem como das relações de dependência hierárquica, económica ou de trabalho (assim, Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., Coimbra Editora, Comentário ao artigo 177.º, na versão anterior à resultante da lei n.º 103/2015; no mesmo sentido, Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2014, Almedina, p. 738).

“Relações familiares”, para efeitos do n.º 1 do artigo 177.º, n.º 1, são, pois, as relações constituídas por factos que, nos termos da lei, constituem fontes das relações jurídicas familiares – o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção (artigo 1576.º do Código Civil).

Às relações familiares previstas na alínea b), cujo âmbito encontra definição por esta via normativa, veio, pois, a Lei n.º 103/2015, como se evidencia dos elementos histórico e sistemático de interpretação, acrescentar um outro tipo de relação – a de coabitação – que, não emergindo de fontes de relações familiares, alarga a tutela penal a situações de facto em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança nos termos anteriormente expostos, em que se incluem as relações constituídas no âmbito do conceito de família alargada.

11.4. São, pois, claramente distintos os campos de previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal na redacção vigente à data da prática dos factos, na redacção originária e na redacção resultante da Lei n.º 103/2015, vigente a partir de 24.9.2015.

Perante a matéria de facto provada, não havendo uma relação familiar entre o arguido e a vítima, no sentido que lhe deve ser atribuído por recurso ao direito de família, e não estando determinado que, entre o arguido e a vítima, existisse uma outra relação relevante nos termos daquela alínea, há que concluir que a relação entre eles existente constitui uma relação de coabitação, como reconhece o acórdão recorrido, a qual, todavia, diferentemente do que nele se afirma, e pelas razões anteriormente expostas, não se confunde com uma relação familiar.

Esta precisão assume-se como essencial à qualificação jurídica e, consequentemente, à determinação da moldura da pena.

Com efeito, tendo em conta o princípio da legalidade, que compreende a proibição da aplicação retroactiva da lei penal e da analogia para qualificar um facto como crime ou para determinar uma pena (artigo 1.º do Código Penal), e atendendo a que os factos descritos no ponto 19 da matéria de facto provada foram praticados em data anterior a 21.9.2015, não pode a relação de coabitação, actualmente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º, ser considerada para efeitos de agravação da pena nos termos deste preceito.

Pelo que a punição do crime deverá ter lugar exclusivamente com base no disposto no artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, que prevê e define o tipo fundamental.

12. Quanto aos factos descritos nos pontos 1, 2, 20 a 26, 34, 36, 37 e 38 concluiu o acórdão recorrido que estes constituem um crime de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelo artigo, 171.º, n.º 1, agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.

Na fundamentação (supra, 9.1.3 e 9.2.1.), considerou-se e justificou-se, porém, que tais factos constituem um crime da previsão dos artigos 171.º, n.º 1, e 172.º, n.º 1, com a mencionada agravação do artigo 177.º, sendo, pois, manifesto que a omissão da referência ao artigo 172.º, n.º 1, resulta de manifesto lapso de escrita, susceptível de correcção pelo tribunal de recurso (artigo 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP).

Perante os factos provados, concluiu o tribunal recorrido que a ofendida, tendo completado 14 anos de idade, havia sido confiada ao arguido, o qual partilhava com a mãe desta as tarefas de educação e assistência da menor e assumia tais tarefas na ausência da mãe, sendo por ela tratado e respeitado como pai, o que levou a que fossem considerados como verificados os elementos da previsão típica do n.º 1 do artigo 172.º.

Como se explicita no acórdão recorrido, exigindo este preceito que o menor tenha sido confiado ao agente do crime, para efeitos de educação e assistência, não se limita tal exigência aos casos em que o menor seja confiado por força da lei ou por decisão judicial, podendo a confiança incluir situações de facto de estreita dependência e subordinação pessoal (neste sentido, Maria João Antunes, ob. cit, p. 848, Miguez Garcia/Castela Rio, ob. cit, p. 724 e Pinto de Albuquerque, Comentário do CP, Católica, 3.ª ed., p. 690).

Uma vez que os factos provados ocorreram na vigência da Lei n.º 103/2015, que alterou a al. b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal, mostra-se verificada a circunstância de agravação consistente na relação de coabitação, aditada por este diploma (supra, 11).

13. Quanto aos factos descritos nos pontos 27, 28, 35, 36, 37 e 38, concluiu-se no acórdão recorrido que estes constituem dois crimes de violação na forma de tentativa p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, al. a), agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Tendo os factos provados ocorrido em 2017, na vigência da Lei n.º 103/2015, que alterou a al. b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal, mostra-se, também neste caso, verificada a circunstância de agravação consistente na relação de coabitação, aditada por este diploma (supra, 11).

Quanto à determinação das penas parcelares

14. Na determinação das penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso partiu o tribunal, como se impõe, da moldura das penas previstas para cada um deles.

Tendo em atenção o que vem de se expor quanto à qualificação jurídica dos factos, há, todavia, que ter em conta que, como anteriormente se explicitou (supra, 11), o crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal não se mostra agravado pela circunstância prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do mesmo diploma, pelo que a punição do crime deverá ter lugar exclusivamente com base no disposto no artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, que prevê e define o tipo fundamental, punível com pena de prisão de um a oito anos.

15. Quanto à tentativa de violação – crime que, na forma consumada, é punido com pena de 3 a 10 anos de prisão (artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal) –, considerou-se no acórdão recorrido que, atento o disposto no artigo 73.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, “o limite da pena de prisão é reduzido de 1/5”. Pelo que, sendo o crime punível com pena de 4 a 13 anos e 4meses de prisão, por força da agravação de um terço nos seus limites mínimo e máximo, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º, reduzindo 1/5 no seu limite mínimo (que é de 9 meses e 18 dias), concluiu que a moldura da pena se define pelo mínimo de 3 anos, 2 meses e 12 dias e pelo máximo de 8 anos, 10 meses e 20 dias (máximo reduzido de um terço, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 73.º).

Esta conclusão resulta, porém, de um erro de interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 73.º, que estabelece que “o limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto” e não de um quinto.

Assim sendo, a pena aplicável a cada um dos crimes de violação na forma tentada é de 9 meses e 18 dias, no seu limite mínimo, a 8 anos, 10 meses e 20 dias, no seu limite máximo, moldura a partir da qual se deve determinar a medida concreta da pena.

16. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa», devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º do mesmo diploma.

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A privação temporária do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao genericamente designado princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto ilícito típico praticado e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (na expressão de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime (alínea e), com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (alínea f.). O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, que se segue, em particular pp. 475, 481, 547, 563, 566, 574, e Figueiredo Dias, op. cit., pp. 232-357).

17. Importa, pois, apreciar a concreta lesão ou colocação em perigo dos bens jurídicos protegidos, em função da gravidade dos ataques ao objecto das acções levadas a efeito pelo arguido, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação.

18. Na determinação da medida da pena, considerou o tribunal recorrido, desde logo, as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir para se restabelecer a confiança na vigência e validade das normas violadas, que apontam para um maior sancionamento dos agentes deste género de criminalidade face à sua inquietante frequência, ao eco e à ressonância social de repulsa que provoca na comunidade. A este propósito, importa, todavia, advertir que, como anteriormente se explicitou, estando a finalidade de prevenção geral delimitada pelo bem jurídico violado (artigo 40.º do Código Penal), esta referência ao bem jurídico conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto, constitucionalmente imposta, pelo que há-de ser a gravidade do facto, aferida pelo concurso das circunstâncias relevantes do artigo 71.º do Código Penal, que, a final, dentro dos limites mínimo e máximo das penas, servirá para definir os limites das necessidades de prevenção (como salienta Anabela M. Rodrigues, ob. cit., p. 369).

Para a valoração do grau de ilicitude e do modo de execução, relevam fundamentalmente: (a) quanto aos crimes de violência doméstica (como descrito nos pontos 6 a 18 da matéria de factos), a repetição, o teor das palavras e ameaças dirigidas às ofendidas, a interferência na privacidade das comunicações e na correspondência, as várias agressões a murro e a pontapé, aperto de braços e do pescoço e empurrões causando dores e hematomas, o facto de o arguido ter posto as ofendidas Maria dos Anjos fora de casa e o facto de lhe ter dado um soco produzindo os ferimentos descritos no ponto 14, que determinaram 7 dias para a consolidação, sem afectação da capacidade para o trabalho; (b) quanto aos crimes de abuso sexual (como descrito nos pontos 19 a 26), a repetição, a execução mediante o apalpar de seios, nádegas, pernas e na zona genital, por cima da roupa e em contacto directo com a pele, a exibição do pénis erecto, a colocação do pénis erecto na mão da ofendida descrevendo movimentos, algumas vezes até ejacular, a colocação do pénis erecto na boca da ofendida com movimentos de vai e vem, o despir-se e permanecer nu perante a ofendida; (c) quanto aos crimes de violação na forma tentada (como descrito nos pontos 27 e 28), o facto de o arguido ter “tocado” os lábios da vagina da ofendida com o seu pénis erecto, causando-lhe dores com movimentos sequenciais, ter agarrado as pernas da ofendida e, exercendo força, as ter afastado, puxando a ofendida para si.

Quanto às consequências dos factos (pontos 39 e 40), verifica-se que a ofendida BB sofreu dores, ficou instável, com vergonha e embaraçada ao ter que passar por terceiros que se apercebiam da situação, sentiu-se angustiada, agitada, revoltada e enojada; a ofendida CC sofreu dores, chorou, sentiu-se enojada, insegura, ficou deprimida, ansiosa, com um humor deprimido, medo, incluindo de estigmatização social, do futuro, do arguido, vergonha, confusão, desconfiada e com alterações na percepção de si, tendo sido acompanhada psicologicamente, o que se mantém actualmente.

O arguido agiu com dolo directo, com considerável intenção criminosa revelada na repetição das suas condutas.

O grau de violação dos deveres impostos relativamente à vítima, no caso dos crimes sexuais, que resultam das relações de coabitação, e de educação e assistência que assumiu, é elevado, nomeadamente pela sua frequente repetição.

As condições pessoais do arguido, que vivia em coabitação com as vítimas, e o aproveitamento dessa situação para praticar os crimes sexuais e da menor capacidade da vítima para compreender o significado do seu relacionamento sexual com o arguido, manifestam censurável falta de preparação para manter uma conduta com respeito pelos valores do direito, evidenciando elevadas necessidades de prevenção especial de ressocialização.

No que diz respeito às condutas anteriores ou posteriores aos factos, mostra-se que o arguido não possui antecedentes criminais, não havendo, por conseguinte, elementos que devam ser valorados negativamente, e que não adoptou qualquer comportamento que o possa beneficiar, nomeadamente pela sua inacção no sentido de reparar ou atenuar as consequências dos crimes.

19. Tendo em conta estas circunstâncias, os critérios de ponderação dos factores de determinação das penas, as finalidades e princípios que lhe presidem e as molduras penais correspondentes a cada um dos crimes praticados (supra, 10 a 16), não se verifica fundamento que possa constituir substancial base de discordância quanto às penas de 3 anos de prisão aplicadas aos crimes de violência doméstica.

O mesmo não sucede, porém, quanto aos restantes crimes.

Quanto ao crime de abuso sexual de crianças, da previsão do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, não pode ser considerada a circunstância de agravação da pena a que se refere o artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pelo que a moldura da pena a considerar será a de 1 a 8 anos de prisão, nos termos daquele preceito, e não a de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses. Assim, reduz-se a pena para 2 anos e 6 meses de prisão, por, nesta medida, se mostrar adequada e proporcional à gravidade dos factos praticados.

Quanto ao crime de abuso sexual de menores dependentes, agravado, p. e p. pelos artigos, 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, a que corresponde a pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses, pelos mesmos motivos, reduz-se a pena para 4 anos e 6 meses de prisão.

No que diz respeito aos crimes de violação na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1, al. a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, al. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, sendo aplicável a pena de prisão de 9 meses e 18 dias a 8 anos, 10 meses e 20 dias, justifica-se, por este motivo e por idênticas razões, a redução de cada uma das penas para 3 anos de prisão.

Quanto à determinação da pena única conjunta

20. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

A pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas correspondentes aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso.

O substrato da medida da pena não pode bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender a todas as circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, seguindo os critérios da culpa e da prevenção, bem como ter em conta o critério especial do artigo 77.º, n.º 1, in fine (assim Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, pp. 45 e 57), respeitando o princípio da proibição da dupla valoração (artigo 71.º, n.º 2).

Impõe este critério que, na medida da pena, sejam considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a susceptibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 248ss).

Como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, e retomando-se o que se afirmou no recente acórdão proferido no processo n.º 144/14.0JACBR-A.S1 (ainda não publicado), “com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente (…)” – Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-02-2008, Proc. n.º 4454/07” (acórdão de 14.07.2016, Proc. 4403/00.2TDLSB.S1, rel. Cons. Pires da Graça, em www.dgsi.pt).

Citando Figueiredo Dias (ob. cit., p. 291): «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

21. Partindo da moldura penal resultante das penas aplicadas, de 5 anos e 4 meses, no seu limite mínimo, a 24 anos e 4 meses, no seu limite máximo, considerou-se no acórdão recorrido que “pese embora o período temporal em causa, tendo em conta a similitude de situações e ausência do cometimento de outros factos semelhantes, afigura-se que o conjunto dos factos em apreço é ainda reconduzível a uma pluriocasionalidade ou fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais ou de um particular contexto de vida do arguido, que não radica na sua personalidade manifestada, que não é um traço da sua personalidade”, pelo que, “assim sendo, não terá sentido atribuir à pluralidade de crimes um efeito particularmente agravante dentro da moldura penal conjunta”. Em consequência, foi-lhe aplicada a pena única de 12 anos de prisão.

Concorda-se com esta fundamentação.

É, porém, diversa a moldura penal do cúmulo a considerar, a qual passa, agora, a ser definida pelo mínimo de 4 anos e 6 meses de prisão (pena singular mais elevada aplicada aos crimes em concurso) e pelo máximo de 19 anos (soma das penas aplicadas).

Assim, tendo em conta os factos considerados na sua globalidade, a íntima conexão espacial e sequencial entre eles, a personalidade do arguido manifestada nos factos, ainda reconduzíveis a uma pluriocasionalidade, e que neles não se identifica uma tendência que deva conferir um efeito agravante à pluralidade dos crimes, considera-se que a pena única deve ser fixada em 9 anos de prisão, por, nesta medida, se mostrar adequada e proporcional à gravidade dos factos, no seu conjunto, e às necessidades que a sua aplicação visa realizar.

22. Em conformidade com tudo o que vem de se expor deve, pois, o recurso ser julgado parcialmente procedente.

Quanto a custas

23. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP, só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. Não sendo o caso, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça.

III. Decisão

24. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alterar a decisão do acórdão recorrido nos seguintes termos, condenando o arguido AA:

a) Como autor de um crime de abuso sexual de crianças, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, e 171.º, n.º 1, do Código Penal, praticado em 2015, em datas anteriores a 21-09-2015, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) Como autor de um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado após 21-09-2015 e antes de 01-12-2017, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Como autor de um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, e n.º 2, al. a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, na pena de 3 (três) anos de prisão;

d) Como autor de um crime de violação agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, e n.º 2, al. a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticado entre 01-04-2017 e antes de 01-12-2017, na pena de 3 (três) anos de prisão; e

Mantendo as penas de 3 anos de prisão aplicadas a cada um dos dois crimes de violência doméstica,

e) Em cúmulo de todas estas penas, nos termos do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, condenar o arguido na pena única conjunta de 9 anos de prisão,

Mantendo-se, no mais, a decisão recorrida.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Fevereiro de 2019.

Lopes da Mota (Relator)

Vinício Ribeiro