Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A701
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE FERROVIÁRIO
CAUSALIDADE ADEQUADA
CULPA
Nº do Documento: SJ2007041700701
Data do Acordão: 04/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – A teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado .
II – Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe que o facto concreto apurado seja, em geral e em abstracto, adequado e apropriado para provocar o dano .
III - A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes : uma formulação positiva e uma formulação negativa .
IV- Na formulação negativa, o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto .
V – Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada .
VI – Se a autora se lançou para a porta do comboio e iniciou a descida da carruagem em direcção ao cais ou à plataforma da estação e saiu dele quando o serviço da paragem já estava concluído, a ordem de partida já tinha sido dada e o comboio já tinha iniciado a sua marcha, e se aquela se desequilibrou com o impulso do andamento do comboio e caiu à linha, só a mesma autora pode ser considerada a única culpada pelo acidente de que foi vítima, em termos de causalidade adequada .

*Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :

AA, solteira, instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra C. P. – Caminhos de Ferro Portugueses EP, BB, casado, revisor e CC, maquinista, alegando, em resumo, que no dia 01 de Agosto de 1997, cerca das 23 horas e 10 minutos, foi vítima de atropelamento pelo comboio nº 837, propriedade da Ré CP e conduzido pelos Réus BB e CC, onde ela era transportada, tendo dele saído na Estação da Mealhada, a qual se encontrava mal iluminada, por estarem a ocorrer obras, e quando dele saía o comboio foi posto em andamento, com as portas abertas, e acabou por cair para a linha, tendo-lhe sido cortado na totalidade o braço direito, o que a levou a internamento e tratamentos hospitalares prolongados e dolorosos, além de que ficou com graves sequelas que a impedem de exercer a actividade profissional como anteriormente e mesmo de desempenhar as tarefas quotidianas sem o auxílio de terceiros, tendo suportado dores intensas, tudo por culpa dos Réus, pelo que sobre eles recai o dever de indemnizar .
Pede a condenação solidária dos réus :
a) a pagarem-lhe a quantia de 25.000.000$00 (€ 124.699,46) pelos danos patrimoniais futuros e/ou pela frustração parcial dos lucros cessantes que sofreu, sempre correspondente à sua perda de capacidade de ganho com reflexo no património da Autora;
b) a pagarem-lhe, também a título de dano patrimonial, a quantia de 4.000$00 (€ 19,95) por cada dia útil, em forma de renda vitalícia, desde o dia 23 de Dezembro de 1999, até à data do seu (da Autora) falecimento ou até que cessem as circunstâncias que lhe determinaram ou determinam a necessidade de assistência por parte de terceira pessoa, a que deverão acrescer juros de mora à taxa legal, desde a citação, sobre todas as prestações vencidas desde aquela data até à propositura da acção e até efectivo pagamento de tais quantias;
c) a actualizarem anualmente, a partir de 01 de Janeiro de cada ano e com início em 01 de Janeiro de 2001, de harmonia com a inflação e os índices publicados pelo INE, dos preços do consumidor sem habitação, a referida quantia de 4.000$00 (€ 19,95);
d) a pagarem-lhe a quantia global de 472.000$00 (€ 2.354,33), referente a todas as prestações vencidas a título de renda vitalícia desde 23-12-1999 até à propositura da acção;
e) a pagarem-lhe, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em virtude do acidente, a quantia de 20.000.000$00 (€ 99.759,58);
f) a actualizarem todas essas quantias de harmonia com os índices de inflação dos preços do consumidor sem habitação, devendo ainda os Réus serem solidariamente condenados em juros de mora à taxa legal, sobre as quantias referidas, a partir da prolação da sentença de primeira instância e até integral pagamento .

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Contestaram os Réus, os quais suscitaram a caducidade do direito invocado pela Autora, por a acção não ter sido proposta no prazo de um ano a contar da ocorrência do acidente .
Além disso, impugnaram parte dos factos articulados, alegando, em síntese, que tal acidente ocorreu por culpa exclusiva da Autora, já que a estação da Mealhada se encontrava com luz normal e ela vinha distraída, só se tendo apercebido tardiamente que ali se encontrava, tendo saído da carruagem com o comboio já em andamento e perdido o equilíbrio .
Acrescentam que as carruagens não tinham portas automáticas e que os Réus BB e CC procederam normalmente na paragem e partida do comboio .
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Os Hospitais da Universidade de Coimbra deduziram incidente de intervenção espontânea, solicitando o pagamento das despesas com assistência à Autora, em consequência do acidente, no total de 2.522.790$00 (€ 12.583,62), acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da citação .
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A Autora replicou e requereu a ampliação do pedido, com condenação solidária dos Réus a pagarem-lhe a quantia de 7.000.000$00 (€ 34.915,85), a título de indemnização pelo dano patrimonial emergente que sofreu com a amputação e perda do seu braço direito, para além das quantias já pedidas em a) a f) supra, a qual deverá também ser actualizada de harmonia com o requerido (fls. 94 a 101).
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O Instituto de Solidariedade e Segurança Social – Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém deduziu pedido de reembolso das prestações pagas à Autora, sua beneficiária, em consequência do período de baixa que lhe adveio do acidente, concluindo pela condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de € 8.927,29 (fls. 302 e 303).
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Os Réus contestaram esse pedido do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, considerando que o acidente não ocorreu por culpa sua, mas sim da Autora, concluindo pela improcedência do mesmo (fls. 311 a 315).
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Por despacho de fls 110, foi admitida a ampliação do pedido .
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No despacho saneador, foi julgada improcedente a invocada excepção da caducidade .

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Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, absolvendo os réus BB e CC de todos os pedidos, mas condenando a ré C.P. - Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.,
I- a pagar à autora:
a)- a título de danos patrimoniais (lucros cessantes) e não patrimoniais, a quantia global (já deduzido o montante a reembolsar ao ISSS) de € 96,072,71 (noventa e seis mil e setenta e dois euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano (ou outra que venha a vigorar), a contar da data da sentença, até integral pagamento;
b) - a quantia diária de € 13,97 (treze euros e noventa e sete cêntimos), referente a três dias úteis por semana (segundas, quartas e sextas feiras), fixada a título de indemnização sob a forma de renda, devida desde o dia 23 de Dezembro de 1999 até ao falecimento da Autora ou até que cessem as circunstâncias que determinaram e determinam a necessidade de assistência por terceira pessoa, sendo tal quantia actualizada em Janeiro de cada ano, com início em 2006, de acordo com o índice de inflação (sem habitação), relativo a ano anterior, a publicar pelo INE;
c) os juros de mora legais, desde a citação (19-06-2000), sendo à taxa de 7% ao ano até 30-04-2003, inclusive, e à taxa de 4% ao ano a partir de então (ou outra que venha a vigorar), sobre o montante devido a título de renda vitalícia (mencionada em b) deste dispositivo) entre 23-12-1999 e 09-06-2000, até integral pagamento.
II - a pagar ao Interveniente HUC, a quantia de € 12.583,62 (doze mil quinhentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora legais, desde a data da notificação (25-09-2000), sendo à taxa de 7% ao ano até 30-04-2003, inclusive, e à taxa de 4% ao ano a partir de então (ou outra que venha a vigorar), até integral pagamento; e
III- a pagar ao Interveniente ISSS, a quantia de € 8.927,29 (oito mil novecentos e vinte e sete euros e vinte e nove cêntimos).

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Apelaram a autora e a ré C. P.
A Relação de Coimbra, através do seu Acordão de 11-7-06, decidiu :
1- Declarar procedente a apelação da ré, revogar a sentença recorrida, julgar a acção improcedente e absolver a ré do pedido;
2- Considerar prejudicada a apreciação da apelação da autora .


Inconformada, a autora pede revista, alegando abundantemente e formulando extensas conclusões, onde suscita as seguintes questões:
1- A autora não teve culpa na produção do acidente, devendo este ser imputado a culpa exclusiva da C. P. , por falta de segurança no cumprimento do contrato de transporte, sendo certo que os réus também não ilidiram a presunção de culpa estabelecida no art. 503, nº3, do C.C., pelo que há culpa presumida .
2 - A indemnização pelo dano futuro, resultante da perda da capacidade de ganho da autora, decorrente da IPP de que ficou afectada deve ser elevada para 90.500 euros .
3 – A perda do braço direito da autora deve ser valorada como um dano autónomo e, como tal, ressarcível com a atribuição de uma indemnização de 35.000 euros, não confundível com a perda da capacidade de ganho de que a mesma autora ficou a padecer .
4 – Estas indemnizações, bem como as que lhe foram fixadas na sentença recorrida, deverão ser actualizadas de acordo com as taxas da inflação anuais, em virtude da depreciação da moeda, para o montante de 287.932, 67, acrescido de juros de mora desde a data da sentença recorrida, quantitativo em que todos os réus devem ser solidariamente condenados .
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A recorrida contra-alegou em defesa do julgado.
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Corridos os vistos, cumpre decidir .

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A Relação considerou provados os factos seguintes .

a) No dia 01 de Agosto de 1997, pelas 23 horas e 10 minutos, a autora era transportada pelo comboio n° 837, numa das carruagens deste, para o efeito munida ou portadora do bilhete individual de transporte em 2° classe n° 7069107 (Inter-Regional).

b) No referido dia 01 de Agosto de 1997, a Autora que havia entrado para o identificado comboio, na estação do Entroncamento, viajava neste com destino à estação da Mealhada.

c) Concretamente, dirigia-se para a residência o casal seu amigo, Dr. ... e esposa Sr.ª D. ..., residentes em Vila Nova de Monsarros, Anadia.

d) O identificado comboio n° 837, no referido dia 01 de Agosto de 1997 e na identificada hora, era conduzido pelo Réu, maquinista ou revisor condutor, CC, funcionário da Ré CP.

e) O que ele, Réu CC, fazia por conta e sob a direcção, fiscalização, instrução e orientação da própria Ré CP.

f) Tal comboio n° 837 ou composição ferroviária, era e é propriedade da Ré CP - Caminhos de Ferro Portugueses, EP.

g) No referido dia 01 de Agosto de 1997, pelas referidas 23 horas e 10 minutos, no identificado comboio, seguia também o Réu BB, revisor e funcionário da Ré CP, competindo-lhe, igualmente sob a direcção, fiscalização e instruções desta (CP), a revisão das carruagens do identificado comboio.

h) No referido dia e hora, no identificado comboio e na carruagem onde seguia a Autora seguiam igualmente outros passageiros.
i) Muito embora, no referido dia e hora, nem o identificado comboio, nem a carruagem desta composição, onde viajava a Autora, estivessem superlotados.

j) No referido dia 01 de Agosto de 1997, na Estação dos Caminhos de Ferro da Mealhada, estavam a ser efectuadas e levadas a efeito diversas obras de conservação e manutenção daquele local e estação.

k) A Estação dos Caminhos de Ferro da Mealhada, hoje, depois de realizadas tais obras, tem a configuração demonstrada pelas fotografias que a Autora junta como documentos n° 3, 4, 5, 6, 7 e 8.

l) O referido comboio aproximou-se da estação da Mealhada, sensivelmente pelas 23 horas do referido dia 01 de Agosto de 1997.

m) A Autora, que viajava no mesmo, quando o aludido comboio se aproximou da Estação, não se apercebeu desde logo da mesma, concretamente, se a aludida composição ferroviária estava a aproximar da Estação da Mealhada.

n) O aludido comboio veio, no entanto, a imobilizar-se na referida Estação da Mealhada, para a entrada e saída de passageiros.

o) O que aconteceu por breves minutos.

p) A Autora, pôde constatar que a referida composição se encontrava na Estação da Mealhada.

q) A qual era o destino da Autora.

r) Quando a Autora iniciou a descida da referida carruagem do comboio em direcção ao cais ou à plataforma da Estação da Mealhada, o referido comboio havia já começado a sua marcha.

s) A Autora colocou um pé na plataforma da referida Estação da Mealhada.

t) Mas com o impulso dado pelo andamento do comboio, a Autora desequilibrou-se e caiu na linha férrea.

u) Caiu à linha num espaço compreendido entre a plataforma da Estação e o próprio comboio.

v) Caiu igualmente no espaço existente que se forma com a junção ou atrelagem de duas carruagens.

w) A Autora ficou caída e estendia junto à linha férrea, por onde ainda circulava o identificado comboio, sensivelmente no local que se encontra assinalado por uma seta verde na fotografia junta (como documento n° 9 da petição).

x) A Autora ficou caída junto da linha, com o braço direito em cima ou sobre a referida linha férrea, por onde ainda circulava o identificado comboio.

y) A Autora foi então atropelada pelo referido comboio.

z) Para além de outros ferimentos e lesões sofridos pela Autora, o rodado do comboio, em andamento, cortou ou amputou o braço direito ou o membro superior direito da Autora, separando-o do resto do seu corpo.

aa) O braço direito da Autora, em virtude da referida amputação, ficou a alguns metros desta, próximo da linha férrea por onde os comboios circulam, em sentido inverso ao do n° 837.

bb) No referido dia 01 de Agosto de 1997, próximo da hora em que se verificou o acidente, compareceram na aludida estação da Mealhada o casal identificado (em C) supra), ou seja, o Dr. ..., médico, e sua esposa D. ....

cc) Este casal compareceu na aludida estação para transportar a Autora para Vila Nova de Monsarros, concretamente para a residência do referido casal, situada nesta localidade.

dd) Porém, o Dr. ... e sua esposa depararam e encontraram a Autora caída e estendida na linha do comboio, vítima das referidas queda e atropelamento.

ee) O Dr. ..., com a ajuda da uma terceira pessoa que compareceu ali, retirou a Autora do local onde esta se encontrava quando do atropelamento, colocando-a no cais da Estação da Mealhada.

ff) Até porque, passados minutos, chegaria à estação da Mealhada outro comboio que poderia atropelar a Autora causando-lhe ferimentos piores ou até a morte.

gg) No referido dia 01 de Agosto de 1997, quer pelo próprios Dr. ... e esposa, quer por terceiras pessoas que compareceram na estação, à hora do acidente, foi solicitada a comparência de uma ambulância para o transporte da Autora, o que efectivamente veio a acontecer.

hh) Tendo a Autora, no referido dia, pelas 23 horas e 20 minutos, sido transportada por uma ambulância dos Bombeiros da Mealhada, para os serviços de urgência dos HUC.

ii) A Autora nasceu no dia 08 de Junho de 1947, na freguesia de S. Pedro, Torres Novas, sendo solteira.

jj) No dia 02 de Agosto de 1997, foi assistida no Serviço de Urgência dos HUC a Autora AA, tendo ficado internada, primeiro nos serviços de Ortotraumatologia, sendo depois transferida, respectivamente, para os serviços de Ortopedia 6-B, Cirurgia 1 e de novo para o serviço de Ortopedia 6-B, onde permaneceu até ao dia 29 do mesmo mês de Agosto. Voltou de novo a ser assistida em regime de internamento no serviço de Ortotraumatologia no período de 22-09 a 13-10-1998, e em regime de Consulta Externa até ao dia 31-05-2000.

kk) A assistência que então lhe foi prestada foi originada pelos ferimentos apresentados pela assistida, em consequência de acidente ferroviário ocorrido do dia 01 de Agosto de 1997, pelas 23 horas e 10 minutos, na Estação da Mealhada.

ll) Os encargos com a assistência que foi prestada à Autora AA importam na quantia de Esc. 2.522.790$00.

mm) A Autora AA é beneficiária do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém com o n° de inscrição 095 148 437.

nn) Em consequência do acidente ocorrido em 01 de Agosto de 1997, esse Centro Distrital pagou à referida beneficiária, de acordo com o estatuído nos artigos 15° e 16° do DL n° 132/88, de 20 de Abril, subsídio na doença no período de 02-08-1997 a 19-01-2000, no valor de € 8.927,29 (oito mil novecentos e vinte e sete euros e vinte e nove cêntimos).

oo) Foram ainda pagas as importâncias de € 83,11 referentes a subsídio de Natal de 1997; € 249,30 referentes a subsídio de Natal de 1998; € 248.80 referentes ao subsídio de Natal de 1999; € 249,30 referentes ao subsídio de Férias de 1999 e € 249,30 referentes ao subsidio de Férias de 2000.

pp) No referido dia 1 de Agosto de 1997, à noite, a estação dos Caminhos de Ferro da Mealhada encontrava-se encerrada, nela não estando o chefe da estação.

qq) No referido dia 1 de Agosto de 1997, à noite, a estação dos caminhos de ferro da Mealhada encontrava-se com iluminação de menor intensidade do que a habitual.

rr) A Autora dirigiu-se ao “hall” de entrada da carruagem.

ss) E, consequentemente, a Autora dirigiu-se à porta do tal “hall”, situada na carruagem do comboio, porta essa localizada concretamente do lado da plataforma da Estação da Mealhada, onde o aludido comboio se havia imobilizado.

tt) A Autora ao chegar junto da porta, por onde tinha de sair, constatou que a mesma se encontrava aberta.

uu) Ao ver a referida porta aberta, convenceu-se a Autora de que o referido comboio estava parado ou imobilizado na Estação da Mealhada.

vv) Estando aberta a referida porta da carruagem do comboio, onde seguia a Autora, esta saiu.

xx) Foi o Réu BB, revisor, que, depois de descer para o cais da aludida estação, deu o sinal de serviço concluído ao maquinista do comboio, estando abertas, na altura, pelo menos, a porta da carruagem por onde o mesmo entrou e a da carruagem por onde saiu a Autora.

zz) Logo após aquele sinal de serviço concluído, o Réu BB voltou a entrar no comboio, que se pôs em marcha, com, pelo menos, a porta por onde a Autora saiu aberta.

aaa) Tudo o que o Réu BB também fez por conta sob a direcção, fiscalização, instrução, direcção e orientação da Ré CP.

bbb) O Réu revisor BB Pereira era, para além do Réu maquinista CC, um dos funcionários da CP que seguiam no comboio.

ccc) O mesmo estava incumbido não só da revisão das carruagens, como também de dar sinal de serviço concluído ao maquinista ou ao condutor do comboio nas estações e paragens do seu percurso.

ddd) O Réu maquinista CC, no dia 01 de Agosto de 1997, à noite, no momento da partida do comboio da Estação da Mealhada, não encerrou nem fez encerrar por qualquer forma as portas das carruagens da aludida composição ferroviária.

eee) E muito concretamente a porta da carruagem por onde a Autora saiu, imediatamente antes de cair à linha .

fff) O Réu revisor BB, no referido dia 1 de Agosto de 1997, à noite, no momento da partida do comboio da estação da Mealhada, não encerrou nem fez encerrar a porta da carruagem por onde a Autora saiu antes de cair à linha, tendo encerrado, pelo menos, aquela por onde entrou no comboio após a indicação de serviço concluído.

ggg) Nenhum outro funcionário ou trabalhador da Ré CP, no referido dia e momento da partida do comboio da Estação da Mealhada, encerrou ou fez encerrar a porta por onde a Autora saiu antes de cair à linha e de ser atropelada pelo comboio.

hhh) O comboio, após partir da estação da Mealhada, no dia 01 de Agosto de 1997, passados alguns minutos das 23 horas, prosseguiu viagem durante algum tempo com a porta por onde saiu a Autora aberta.

iii) Após a verificação do descrito acidente, a Autora foi transportada de ambulância aos serviços de urgência do Hospital da Mealhada.

jjj) De onde, já em 02 de Agosto de 1997, após observação e adopção de medidas de estabilização clínicas, foi transferida para o Hospital da Universidade de Coimbra.

lll) No Hospital da Universidade de Coimbra, já em 02-08-1997, foram diagnosticadas à Autora as seguintes lesões do ponto de vista Ortotraumatológico:

- amputação traumática do membro superior direito (braço direito);
- suspeita de fractura da 1ª vértebra dorsal, também designada por D10; e
- traumatismo craniano e hemotórax à esquerda.

mmm) Ainda no dia 02 de Agosto de 1997, a Autora foi submetida a intervenção cirúrgica, nos serviços de urgência (Bloco Operatório) dos HUC, para regularização do coto de amputação pelo 1/3 proximal do úmero direito.

nnn) Após o que foi internada nos serviços de Ortopedia do referido hospital.

ooo) Em 06 de Agosto de 1997, a Autora foi transferida para os serviços de cirurgia de mulheres do aludido Hospital, por se verificar um Volet Costal à esquerda e ter dificuldades respiratórias, devido a fracturas múltiplas que tinha de costelas à esquerda.

ppp) A Autora permaneceu nos referidos serviços de cirurgia de mulheres até 18 de Agosto de 1997.

qqq) Data em que foi transferida para os serviços de Ortopedia do aludido Hospital, onde foi submetida a tratamentos médicos, concretamente de medicina física e reabilitação.

rrr) Para estabilização da coluna dorso-lombar da Autora, foi-lhe aplicado um dorso-­lombostato.

sss) Ainda em consulta de medicina física e de reabilitação, foi prescrita à Autora urna prótese cosmética do membro superior direito, bem como tratamentos anti-álgicos (anti-dolorosos) e de reeducação respiratória.

ttt) Em virtude do traumatismo craniano que a Autora sofreu, e das suas graves sequelas físicas, nomeadamente da amputação completa do seu membro superior direito e dos sofrimentos que passou, a Autora, naquela altura, manifestava perturbações do foro neuro-psicológico.

uuu) Pelo que teve acompanhamento psicológico nos serviços de medicina física e reabilitação dos HUC.

vvv) A Autora teve alta da enfermaria hospitalar em 29 de Agosto de 1997, com indicação de ser observada nos serviços de Medicina Física e Reabilitação.

xxx) Em 17 de Fevereiro de 1998, a Autora foi observada em Consulta Externa dos serviços de Ortopedia do aludido Hospital, tendo-se queixado de dores a nível da coluna dorso-lombar, pelo que lhe foi efectuada uma ressonância magnética.

zzz) Que confirmou a existência de fractura com achatamento cuneiforme da base posterior do corpo vertebral de D.11 da Autora, suspeitando-se igualmente de fracturas em ambos os pedículos.

aaaa) Associadamente, e em virtude da ressonância magnética efectuada à Autora, confirmou-se alteração na emissão do referido corpo vertebral D.11 e estreitamento marcado do espaço intersométrico das vértebras da Autora D.10 e D.11 com irregularidade da plataforma inferior da vértebra D.10.

bbbb) Confirmou-se igualmente que a Autora condicionava angulação cifótica das vértebras dorsais D.10 e D.11, com moldagem do espaço peri-medular anterior, e mais ligeira da parede anterior da medula que apresentava um sinal normal.

cccc) Por sugestão médica, e para melhor caracterização das alterações ósseas descritas, em 23 de Março de 1998 a Autora realizou um T.A.C. (Tomografia Axial Computorizada) centrada nas vértebras D.10 e D.11.

dddd) Que revelou a existência de fractura-achatamento do corpo da vértebra dorsal D.11 da Autora, interessando e revelando a porção esquerda da plataforma vertebral superior, com redução da altura esquerda do corpo vertebral e deformação em cunha da base posterior.

eeee) Igualmente a redução do diâmetro antero-posterior do canal raquidiano ao nível do ângulo posterior-superior da vértebra D.11 da Autora, não condicionando compromisso significativo das estruturas “intra-canalar”.

ffff) Em 14 de Abril de 1998, os serviços médicos do HUC propuseram e aconselharam à Autora o internamento hospitalar, para fusão posterior das suas vértebras dorsais D.10 e D.11.

gggg) Em 22 de Setembro de 1998, a Autora foi internada no serviço de Ortotraumatologia do referido Hospital, com o diagnóstico de fractura antiga da sua vértebra dorsal D.10.

hhhh) A Autora, após ter realizado vários exames laboratoriais, designadamente análises de rotina, electricardiogramas e estudo radiológico, foi submetida a nova intervenção cirúrgica em 28 de Setembro de 1998, tendo-se realizado artrodose posterior das vértebras dorsais da Autora D.8 a D.12, com enxerto autólogo (colhido da crista ilíaca esquerda).

iiii) Esta intervenção cirúrgica a que a Autora foi submetida e o pós operatório decorreram sem incidentes.

jjjj) A Autora teve alta da enfermaria em 13 de Outubro de 1998, com as seguinte orientação terapêutica:
- manter o dorso-lombostato e
- ser observada em Consulta Externa dos serviços de ortopedia dos HUC, em 12 de Janeiro de 1999.

llll) todas as lesões e traumatismos que a Autora sofreu, designadamente nas suas vértebras dorsais D.10 e D.11, o que levou à intervenção cirúrgica de 28 de Setembro de 1998 para Artrose Posterior das Vértebras Dorsais D.8 e D.12, com enxerto autólogo, bem como a amputação total do seu braço direito foram consequência e causados pelo descrito acidente de 01-08-1997.

mmmm) A data da consolidação clínica ou médico-legal da Autora é fixável em 14-03-2000.

nnnn) A Autora sofreu de incapacidade geral temporária absoluta durante 250 dias, a contar da data do acidente.

ooo) Após a consolidação das lesões, a Autora sofre e padece de dorso-lombalgias.

ppp) A Autora sofre e padece de limitação dos movimentos passivos e activos de rotação flexão e extensão da coluna vertebral no seu segmento dorso-lombar.

qqq) A Autora sofre de cefaleias, de insónias, de ansiedade e depressão.

rrr) E padece de dores no coto operatório.

sss) À Autora foi-lhe amputado totalmente o seu membro superior direito, o que é facilmente visível através de um simples exame objectivo do seu corpo.

ttt) A Autora apresenta e tem uma cicatriz ao nível do coto operatório, com cerca de 20 cm de comprimento no sentido horizontal e com reacção quelóide.

uuu) A Autora apresenta e tem uma cicatriz com cerca de 30 cm de comprimento, ao longo da coluna vertebral, ao nível da sua vértebra dorsal D.11.

vvv) A Autora apresenta e tem uma cicatriz com cerca de 6 cm de comprimento, na face externa do hemotórax esquerdo.

xxx) Todas as descritas lesões que a Autora sofreu têm um carácter irreversível.

zzz) Antes do descrito acidente a Autora era destra.

aaaa) As descritas sequelas determinaram à Autora uma incapacidade permanente geral de 70%, à qual acresce, a título de dano futuro, mais 5%, resultando uma incapacidade permanente geral global de 75%, sendo as mesmas sequelas responsáveis por esforços significativamente acrescidos no exercício da sua actividade profissional, sendo mesmo incompatível com tarefas que exijam o compromisso dos dois membros superiores.

bbbb) A data do acidente, a autora trabalhava como ajudante na Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas.

cccc) No exercício da sua profissão, ou seja, como ajudante da referida Santa Casa, a Autora, nos respectivos domicílios, auxiliava a fazer a higiene a pessoas idosas, a dar a alimentação a estas, a vestir essas mesmas pessoas e ainda a prestar-lhes todos os cuidados inerentes a pessoas de avançada idade, tudo no âmbito dos serviços próprios e que são também a razão de ser da referida Santa Casa.

dddd) A Autora, devido às lesões que sofreu, designadamente nas suas identificadas vértebras dorsais, na região lombar do seu corpo e com a amputação do seu membro superior direito, está completamente impossibilitada de exercer a sua actividade profissional descrita, na medida em que as tarefas exijam a utilização dos dois membros superiores, como o fazia antes do acidente.

eeee) O que causou à Autora um grande transtorno, incómodo e um enorme desgosto.

ffff) Já que até à data do acidente, a autora foi sempre uma pessoa saudável alegre e dinâmica.

gggg) As lesões e sequelas sofridas pela Autora, em virtude do acidente, apresentam um carácter permanente e irreversível.

hhhh) A data do acidente, a Autora trabalhada com a categoria de ajudante ou como ajudante, na Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas, auferindo mensalmente um vencimento líquido de Esc. 66.714$00.

iiii) A Autora auferia sempre, como funcionária ou trabalhadora da Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas, 14 salários por ano, ou seja 12 salários acrescidos dos respectivos subsídios de férias e de natal.

jjjj) Após as já referidas intervenções cirúrgicas a que a Autora foi submetida, e depois da sua alta hospitalar, passou vários períodos da sua recuperação na casa ou residência do casal seu amigo Dr. .. e Sr.ª D. ..., situada em Vila Nova de Monsarros, Anadia.

llll) Beneficiando então a Autora da ajuda deste casal, que lhe confeccionava as suas refeições, cortava ou partia os alimentos que iam ser ingeridos pela Autora ajudando igualmente a D. ... a Autora na higiene desta, nas deslocações que tinha de efectuar.

mmmm) Ainda auxiliando a Autora a vestir-se e a despir-se, bem como nos tratamentos a que a Autora ainda tinha de ser submetida.

nnnn) Porém, a Autora em 23 de Dezembro de 1999 regressou à sua casa situada na Rua ..., nº 00, rés-do-chão, em Torres Novas.

oooo) Onde a Autora dorme, come e tem centralizada a sua vida doméstica, morando e vivendo sozinha.

pppp) A Autora necessita agora do auxílio e ajuda de uma terceira pessoa, para fazer regularmente limpeza à casa e habitação onde reside.

qqqq) A Autora também necessita de ajuda e auxilio de uma terceira pessoa para preparar e confeccionar as refeições.

rrrr) A Autora necessita igualmente do auxílio de uma terceira pessoa para lavar a loiça que utiliza, passar a ferro as suas roupas e efectuar a lavagem e secagem destas.

ssss) O que a Autora também não consegue fazer sozinha.

tttt) A Autora também necessita do auxílio de urna terceira pessoa para partir alguns dos alimentos que tem de ingerir.

uuuu) Igualmente a Autora necessita do auxilio de uma terceira pessoa para fazer convenientemente a sua higiene, o que também não consegue fazer sozinha.

vvvv) A Autora necessita do auxílio e ajuda de uma terceira pessoa para carregar e transportar, para a sua residência, as compras que faz, designadamente de géneros alimentícios.

xxxx) A Autora tem necessidade que lhe sejam prestados serviços domésticos por uma terceira pessoa, pelo menos durante alguns dos dias da semana.

zzzz) A Autora tem necessidade que tais serviços domésticos lhe sejam prestados pelos menos algumas horas por dia.

aaaaa) Actualmente o custo por hora de prestação de serviços domésticos, por parte de uma empregada, é de cerca de 700$00 (€ 3,49).

bbbbb) A Autora é funcionária da Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas, auferindo actualmente o vencimento mensal líquido de Esc. 77.492$00.

ccccc) Para além do seu vencimento mensal, a Autora não tem nem possui outros rendimentos.

ddddd) O vencimento mensal líquido da Autora é consumido na sua alimentação, vestuário, em medicamentos que tem de tomar e ainda com as despesas regulares que tem de suportar, designadamente em água da sua habitação, telefone e electricidade desta.

eeeee) A Autora não tem nem aufere rendimentos que lhe permitam suportar uma empregada doméstica que a auxilie nas referidas tarefas domésticas.

fffff) A Autora desde 23 de Dezembro de 1999, na sua residência e por falta dos serviços de uma empregada doméstica, esteve impedida e impossibilitada (até à data da propositura da acção) de convenientemente fazer limpeza à sua residência, habitação e casa onde mora, de cuidar da sua roupa, de confeccionar as suas refeições, de fazer a sua higiene, de partir e cortar os alimentos que necessita de ingerir, de transportar e carregar para sua casa as compras necessárias à sua vida doméstica, designadamente de géneros alimentícios, situação que se mantém.

ggggg) Tarefas domésticas que a Autora durante o referido período de tempo apenas conseguiu executar deficientemente e de forma irregular com a ajuda de pessoas amigas e de familiares.

hhhhh) Mas com quem não pode contar de forma permanente e regular.

iiiii) A Autora desde o momento do acidente, até ser operada em 02 de Agosto de 1997, nos serviços de urgência dos HCC, o que aconteceu cerca das 03,00 horas da madrugada desse dia, esteve em intenso sofrimento, suportando fortes e intensas dores e fortemente angustiada.

jjjjj) Sendo que a Autora, mesmo após a intervenção cirúrgica a que foi submetida para regularização do coto de amputação, continuou a suportar fortes e intensas dores.

lllll) A Autora após a aludida intervenção cirúrgica para regularização do coto de amputação, fez vários tratamentos de medicina física e reabilitação e até mesmo tratamentos de correcção para desenvolvimento dos seus músculos, durante os quais suportou fortes e intensas dores.

mmmmm) A Autora, quer antes, quer depois da realização da segunda intervenção cirúrgica a que foi submetida, suportou fortes e intensas dores.

nnnnn) A Autora, devido ao acidente, a todas os tratamentos que efectuou, designadamente de fisioterapia de recuperação, e às intervenções cirúrgicas a que foi submetida, suportou fortes e intensas dores e manteve-se durante mais de um ano bastante angustiada e em intenso sofrimento.

ooooo) A Autora actualmente ainda sofre e padece de dorso-lombargias, de cefaleias, de insónias, de ansiedade, de depressão e de dores no coto operatório.

ppppp) O “Quantum Doloris” da Autora, face ao seu intenso sofrimento, às fortes dores que suportou, antes e depois das intervenções cirúrgicas a que foi submetida e também durante os tratamentos médicos que lhe foram efectuados, portanto, durante o seu período de incapacidade Geral Temporária Absoluta, é qualificável de “Muito importante” (dentro do escalonamento 1 muito ligeiro, 2 ligeiro, 3 moderado, 4 médio, 5 considerável, 6 importante, 7 muito importante).

qqqqq) A Autora sofre de um profundo e persistente desgosto por manter todas as descritas sequelas do acidente.

rrrrr) A Autora está hoje completamente impossibilitada de, como funcionária da Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas, nos respectivos domicílios, auxiliar pessoas idosas, designadamente ajudando-as na alimentação, na sua higiene, tudo no âmbito dos cuidados inerentes que têm de ser prestados a pessoas idosas.

sssss) O que causa à Autora um grande transtorno, incómodo e um grande desgosto.

ttttt) A autora sente-se fortemente diminuída, incomodada, desgostosa e até mesmo envergonhada, por lhe ter sido amputado totalmente o seu braço direito, evitando o convívio social e o relacionamento com terceiras pessoas.

uuuuu) As carruagens que compunham a composição ferroviária em referência não tinham portas automáticas.

vvvvv) Os próprios utentes podem abrir e fechar as portas das carruagens, conforme as suas necessidades.

xxxxx) Quando o comboio reinicia a marcha, é o revisor que fecha as portas que eventualmente se encontram abertas.

zzzzz) Após o reinício da marcha do comboio, o revisor retomou o seu serviço, tendo sido informado pelos passageiros de que uma senhora tinha saído quando o comboio já havia começado a marcha e que provavelmente se teria magoado.


*
Perante estes factos provados, a questão fulcral a decidir consiste em saber a quem deve ser atribuída a culpa pela produção deste acidente ferroviário.
*
Vejamos :

Aos acidentes ferroviários são aplicáveis as disposições da lei civil relativas à responsabilidade civil extra-contratual e contratual, se for o caso, além do regime do contrato de transporte ( art. 393 do Cód. Comercial – embora apenas assuma especial relevância quanto às mercadorias transportadas ) e especialmente o Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo dec-lei 39.780, de 21-8-54, alterado pelo dec-lei 48.594 de 26- 9-68, e pelo Decreto Regulamentar nº 6/82, de 19 de Fevereiro .
É o que resulta do art. 64 do referido dec-lei 39.780.
Por força do art. 66 deste mesmo diploma, “cumpre à empresa indemnizar os passageiros de todos os prejuízos que sofrerem em consequência de acidente, quer nas pessoas, quer nos valores de mão e animais que levem consigo, salvo se demonstrar que o acidente foi produzido por caso fortuito, força maior, culpa da vítima ou de terceiro “.

Entre os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, cuja regra está contida no art. 483, nº1, do C.C., figura o nexo de causalidade entre o facto lesante e o dano .
Neste domínio, a nossa lei adoptou a doutrina da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão – art. 563 do C.C.
A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que, segundo a teoria da causalidade adequada, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, no plano naturalístico, que ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, depois, que em abstracto ou em geral, seja causa adequada do dano .
Com efeito, a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado .
Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em geral e em abstracto, adequado e apropriado para provocar o dano .
Se o nexo de causalidade constitui, no plano naturalístico, matéria de facto, não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, já o mesmo vem a constituir, no plano geral e abstracto, matéria de direito, onde o Supremo pode intervir pois respeita à interpretação e aplicação do referenciado art. 563 do C.C. ( Ac. S.T.J. de 11-5-00, Bol. 497-350 ; Ac. S.T.J. de 30-11-00, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 150; Ac. S.T.J. de 21-6-01, Col. Ac. S.T.J., IX, 2º, 127; Ac. S.T.J. de 15-1-02, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 36 )
Assim, no nexo de causalidade, a ligação entre o facto e o dano é feita, em último termo, mediante um nexo de adequação do resultado danoso à conduta .
Como ensina Galvão Telles ( citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 578), “determinada acção será causa adequada de certo prejuízo se, tomadas em conta as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção, ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar “ .
Daqui resulta, como bem se observa no Acordão do S.T.J. de 15-1-02 ( Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 38) que “ de acordo com a teoria da adequação, só deve ser tida em conta como causa de um dano aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o agente ( tendo em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis) se mostrava como apta, idónea ou adequada a produzir esse dano.
Mas para que um facto deva considerar-se causa adequada daqueles danos sofridos por outrem, é preciso que tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo- se assim que o julgador se coloque na situação concreta do agente para emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria “.

A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes : uma formulação positiva e uma formulação negativa.
Segundo a formulação positiva ( mais restrita ), o facto só será causa do dano, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como consequência natural ou como efeito provável dessa verificação .
Na formulação negativa ( mais ampla), o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª ed., págs 921, 922 e 930 ; Pedro Nunes de Carvalho, Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, pág. 61, ; Ac. S.T.J. de 15-1-02, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 36: Ac. S.T.J. de 1-7-03, proferido na revista nº 1902/03, da 6ª secção, também relatado pelo mesmo Relator, entre outros ).

Pois bem .

Revertendo ao nosso caso concreto, verifica-se que a Relação julgou a acção improcedente, por ter considerado o acidente imputável a culpa exclusiva da autora, em virtude desta ter saído do comboio quando este já se encontrava em andamento, em manifesta contravenção ao disposto no art. 42, 1º, nº4, do Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo citado dec-lei 39.780 .
Perante os factos provados, julga-se que a decisão da Relação não merece censura, pois só a conduta da infeliz autora pode ser considerada causal do acidente e da sua própria desgraça, à luz dos princípios da doutrina da causalidade adequada .
Com efeito, é proibido aos passageiros “ entrar ou sair das carruagens a não ser nas estações e apeadeiros e quando o comboio estiver parado” – art. 42, 1º, nº4, do Regulamento .
Por sua vez., o art. 69 , nº2, do mesmo diploma, também prescreve :
Entende-se que o transporte começa no momento em que o passageiro se confia ao transportador e subsiste enquanto dura esta situação . São da responsabilidade do passageiro os actos de subir para a carruagem e descer dela“.
Ora, a autora viajava como passageira no aludido comboio Inter- Regional, que parou na estação da Mealhada, para entrada e saída de passageiros.
Foi o réu BB, revisor, que, depois de descer para o cais da mencionada estação, deu o sinal de serviço concluído ao maquinista do comboio, tendo este recomeçado a sua marcha .
Porém, a autora lançou-se para a porta do comboio e iniciou a descida da carruagem do comboio em direcção ao cais ou à plataforma da estação da Mealhada e saiu dele quando a ordem de partida já tinha sido dada e este já tinha iniciado a sua marcha .
Ao colocar o pé na plataforma da referida estação, a autora desequilibrou-se com o impulso do andamento do comboio e caiu à linha, ficando caída junto da linha com o braço direito em cima ou sobre a linha férrea, por onde circulava o mesmo comboio de que se havia apeado, cujo rodado, em andamento, cortou ou amputou o braço direito da mesma autora, separando-o do resto do seu corpo.
Não contribuíram para produção ao acidente, de acordo com a teoria da causalidade adequada, atrás exposta, o facto de, à hora do sinistro, a estação da Mealhada já se encontrar encerrada, com iluminação de menor intensidade do que a habitual e ainda a circunstância de não ter nela o chefe da estação .
Com efeito, apurou-se que o chefe da estação, para efeito de dar partida ao comboio, era substituído pelo revisor (o réu BB), o qual estava incumbido não só da revisão das carruagens, como também de dar o sinal de serviço concluído ao maquinista ou condutor do comboio, nas estações e paragens do seu percurso .
Também não foi por causa da menor intensidade da iluminação da estação que a autora se desequilibrou e caiu à linha férrea, mas antes pelo impulso do andamento do comboio, motivado pelo facto da mesma autora ter iniciado a saída do comboio já com este em andamento .
É certo que o comboio retomou a marcha, levando aberta a porta por onde a autora veio a sair .
Mas também se provou que as carruagens que compunham a mencionada composição ferroviária não tinham portas automáticas e que, quando o comboio reinicia a marcha, é o revisor que fecha as portas que eventualmente se encontrem abertas .
De qualquer modo, o facto da porta ir aberta deixou de ser considerado como causa adequada do sinistro, em virtude de para sua produção ter contribuído decisivamente a circunstância anormal, extraordinária e anómala que intercedeu no caso concreto, interrompendo o nexo de causalidade, consistente no facto da autora ter saído do comboio já depois de ter sido dado o sinal de serviço concluído e do comboio já ter reiniciado a sua marcha .
O que tudo significa que os réus, revisor e maquinista do comboio, lograram ilidir a presunção de culpa que sobre eles recaía, nos termos do art. 503, nº3, do Cód. Civil, por terem demonstrado que não tiveram culpa na ocorrência do acidente .
Sendo o acidente imputável a culpa exclusiva e efectiva da infeliz autora, está afastado o dever de indemnizar de qualquer dos réus .
A autora não prestou a devida atenção à aproximação da estação onde pretendia sair, não diligenciou pela sua saída em segurança, nem se aproximou com a devida antecedência da porta de saída, antes de ser dado o sinal de partida ao comboio, após o serviço concluído.
Qualquer passageiro medianamente cuidadoso e diligente dirige-se para a porta da saída do comboio com a necessária antecedência, certifica-se que o comboio se encontra efectivamente parado e só, então, desce da carruagem .
Nunca desce do comboio já depois de ter sido dada ordem para a sua partida e com o comboio já em andamento, como a autora fez, constituindo-se, por isso, única culpada da sua própria desgraça e do seu lamentável dano e doloroso sofrimento.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso .


Termos em que negam a revista .
Custas pela recorrente .

Lisboa, 17-4-07


Azevedo Ramos (relator)
Silva Salazar
Afonso Correia