Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
311/12.2TBRDD-B.E1.S2
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
VENDA JUDICIAL
HIPOTECA
CADUCIDADE
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
AÇÃO EXECUTIVA
BEM IMÓVEL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DIREITO REAL
DIREITO PESSOAL DE GOZO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
OBJETO DO RECURSO
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
A venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no art. 20.º, n.º 1, do RAR, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do art. 824.º do CC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

Na execução para pagamento de quantia certa, em que é exequente a Caixa Geral de Depósitos e executados AA e outros, a interveniente acidental SOAVIFREIXO - SOCIEDADE AGRO-PECUÁRIA E VITÍCOLA DO FREIXO, LDA interpôs recurso de apelação do despacho proferido em 28 de Novembro de 2017.

Nesta decisão, o Tribunal decidiu pela caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Executados e a Soavifreixo, considerando inoponíveis ao comprador as relações locatícias constituídas posteriormente ao registo das hipotecas e, assim, que o invocado contrato de arrendamento caducou com a venda executiva.

O Tribunal da Relação julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Ainda inconformada, a interveniente Soavifreixo interpôs recurso de revista excepcional, que veio a ser admitida como revista normal, nos termos do art.º 629º, nº 2, al. d), do CPC.

Formulou as seguintes conclusões:

A.      Antes de mais, e desde logo, o Acórdão recorrido enferma de manifesta nulidade, porquanto, o Venerando Tribunal da Relação de Évora deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado (cf. alínea d) do número 1 do artigo 615.°, ex vi da alínea c) do número 1 do artigo 674.°, ambos do Código de Processo Civil).

B.      Os (errados) esclarecimentos prestados pelo Tribunal de 1.ª instância (no despacho de fls. , datado de 06.04.2018), às questões formuladas pelo Tribunal da Relação de Évora (no Despacho junto ao processo n.º 311/…. com a referência número ...377), não correspondem à realidade dos factos e não se ajustam ao que se passou no processo, assim erradamente influindo na decisão (o Acórdão ora recorrido) que foi proferida pelo Venerando Tribunal da Relação, em manifesta contradição com os elementos constantes nos autos - constam do processo elementos que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida.

Os esclarecimentos prestados pelo Tribunal de 1.ª instância não correspondem, pois, à verdade e não se mostram suficientes à ponderação do caso sub judice.

C.      Para estes efeitos, confronte-se o requerimento posteriormente apresentado em 27.04.2018, com a referência ...750, que aqui se dá por integralmente reproduzido (e já após ter sido proferido o Acórdão ora recorrido em violação do princípio do contraditório).

D.      Em negação do contraditório da ora Recorrente (prazo de contraditório esse que viria apenas a terminar em 04.12.2017), sustentado também nos factos e elementos dos autos acima melhor evidenciados, decidiu-se pela alegada caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Executados e a Soavifreixo (a ora Recorrente), com base em informações erradas e em clara oposição e em violação dos elementos constantes dos autos, vendo-se a ora Recorrente efectivamente prejudicada com tais errados esclarecimentos/ informações. Senão, vejamos.

E.      Relativamente à primeira parte do Acórdão recorrido ("Da nulidade por omissão de pronúncia"), não corresponde à verdade o esclarecimento prestado pelo Tribunal de 1.ª instância ao Venerando Tribunal da Relação de Évora, e com base no qual este Venerando Tribunal veio a decidir nos termos acima expostos, no sentido de que "foram apreciadas todas as questões invocadas" e que a regularidade nunca tenha sido posta em causa por nenhum dos intervenientes processuais; bem como é, ainda, erróneo o nele referido de que a venda não padeceria de qualquer ilegalidade de que devesse conhecer oficiosamente.

Com efeito, conforme a Recorrente veio dar a conhecer ao Venerando Tribunal da Relação (através do requerimento referência ...750, sem que o Venerando Tribunal da Relação tivesse tido sequer oportunidade de apreciar o nele exposto em contraditório, pois proferiu entretanto a decisão que ora se recorre), não foram cumpridos os requisitos e formalidades prévios previstos para que a venda pudesse vir a ser formalizada com a escritura pública tentada agendar, designadamente: i) Em 10.10.2017, o Prédio dado em arrendamento rural à aqui Recorrente, foi adjudicado à proponente Suiniprimus - Comércio e Criação de Gado, Lda., a qual nunca chegou a depositar qualquer montante por conta do valor anunciado, nem com a apresentação da sua proposta, nem, posteriormente, com a aceitação da mesma, no prazo de 15 dias previsto para o efeito (i.e. até ao dia 25.10.2017), nos termos do número 1 do artigo 824.º do Código de Processo Civil; ii) Não foi dado cumprimento, pela Agente de Execução, ao disposto no número 1 do artigo 825.° do Código de Processo Civil (sob a epígrafe "Falta de depósito").

Padecendo a venda em apreço de manifestas irregularidades, deveria o Tribunal de 1.ª instância ter oficiosamente verificado da respectiva ilegalidade, independentemente da respectiva invocação.

F.      Relativamente à segunda parte do Acórdão recorrido ("Da matéria nova relacionada com a data do início do contrato de arrendamento e da pretensa ilegalidade da venda"), não corresponde à verdade o esclarecimento prestado pelo Tribunal de 1.ª instância ao Venerando Tribunal da Relação de Évora, e com base no qual este Venerando Tribunal veio a decidir nos termos acima expostos, no sentido de que a data do início do arrendamento não teria sido debatida, porque, alegadamente, não teria sido alegado que o arrendamento em apreço havia ocorrido anteriormente a 1 de Janeiro de 2005.

Com efeito, conforme a Recorrente veio dar a conhecer ao Venerando Tribunal da Relação (através do requerimento referência ...750), o Tribunal de 1.ª instância não deu sequer a oportunidade à Recorrente para tal. Tal questão não foi abordada pois o Tribunal de 1.ª instância veio precipitadamente a mal decidir, sem respeitar, nomeadamente, o contraditório da Arrendatária Rural, aqui recorrente, nos termos acima evidenciados, proferindo, como o fez, uma sua decisão, em 28.11.2017, quando ainda se encontrava a correr o prazo de contraditório da Arrendatária Rural, que apenas terminaria em 04.12.2017.

A Recorrente veio a informar o Venerando Tribunal da Relação de tal facto (através do requerimento referência ...750).

G.      O Tribunal de 1.ª instância mal decidiu: i) sem permitir sequer o exercício do direito de preferência da Arrendatária Rural, aqui recorrente; ii) sem permitir o contraditório da Arrendatária Rural, aqui recorrente, bem como, iii) sem permitir a invocação das nulidades da venda pela Arrendatária Rural, aqui recorrente,

O que apenas possibilitou à Arrendatária Rural, apenas e nomeadamente, arguir tais nulidades de venda apenas em sede de recurso e quando delas pôde ter acesso e conhecimento diante de um despacho proferido antes do tempo e do decurso do prazo de resposta da Recorrente.

H.      É, pois, falso que as questões invocadas nunca hajam sido postas em causa.

Foram logo quando a Arrendatária Rural, aqui recorrente, delas teve conhecimento. Mas, conforme referido, o Tribunal de 1.ª instância mal decidiu e sem se encontrar esgotado o prazo de pronúncia por parte da Arrendatária Rural, aqui recorrente.

A Recorrente veio a informar o Venerando Tribunal da Relação de tal facto (através do requerimento referência ...750).

I.        Relativamente à terceira parte do Acórdão recorrido ("Da caducidade do contrato de arrendamento rural"), ainda que se entenda ser aplicável aos contratos de arrendamento (o que não se concede) o preceituado no número 2 do artigo 824.° do Código Civil, o certo é que, in casu, o contrato de arrendamento em apreço remonta já ao ano de 1980, sendo, portanto, muito anterior a qualquer hipoteca registada, não caducando, por conseguinte, com qualquer venda executiva.

J.       Acontece que, conforme acima referido, o Tribunal de 1.ª instância não deu sequer oportunidade à aqui Recorrente de se pronunciar acerca da data de início do arrendamento em apreço (que é, conforme exposto, anterior a 1 de Janeiro de 2005).

Tal questão não foi abordada pois o Tribunal de 1.ª instância veio precipitadamente a mal decidir, sem respeitar, nomeadamente, o contraditório da Arrendatária Rural, aqui recorrente, nos termos acima evidenciados, proferindo, como o fez, uma sua decisão, em 28.11.2017, quando ainda se encontrava a correr o prazo de contraditório da Arrendatária Rural, que apenas terminaria em 04.12.2017.

K.      O Acórdão recorrido padece, assim, de nulidade, ao ter decidido com base nas informações erradas prestadas pelo Tribunal de 1.ª instância, ignorando as informações prestadas pela aqui recorrente.

L.       A Recorrente, conforme resulta do acima exposto, viu-se, assim, claramente prejudicada pelo facto de o Tribunal da Relação de Évora não ter tido em consideração as informações prestadas pela aqui recorrente naquele seu requerimento apresentado em 27.04.2018, com a referência ...750, informações essas essenciais para a decisão do caso sub judice, porquanto, impõem uma decisão diversa daquela proferida pelo Tribunal da Relação de Évora (no Acórdão aqui recorrido).

M.      Nos termos do número 2 do artigo 608.° do Código de Processo Civil, "O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (...)".

N.      O Acórdão recorrido é, assim, nulo, nos termos da alínea e) do número 1 do artigo 615.° do Código de Processo Civil, porquanto o Tribunal da Relação de Évora deixou de se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado (ao ter proferido decisão sem ter tido em consideração o exposto no requerimento apresentado, em 27.04.2018, pela ora Recorrente, e que, conforme se alcança do acima exposto, impunha uma decisão diversa daquela proferida),

Devendo, assim, ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido, nos termos da alínea c) do número 1 do artigo 674.º do Código de Processo Civil.

O.      A aqui Recorrente nunca foi notificada do despacho proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, a solicitar esclarecimentos ao Tribunal de 1.ª instância, e, bem assim, não foi notificada, pelo Venerando Tribunal da Relação, dos esclarecimentos prestados pela 1ª Instância, para que pudesse a Recorrente pronunciar-se e responder em conformidade, em exercício do direito que processualmente lhe assiste de contraditório.

P.  A aqui recorrente nunca foi notificada do Despacho proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora (junto ao processo n.º 311/12…. com a referência número ...377), pela Secretaria do Tribunal da Relação, não lhe tendo sido, por conseguinte, dada a possibilidade de contraditório e de poder pronunciar-se acerca do conteúdo do mesmo - 1.ª Nulidade processual.

Q.      A aqui recorrente nunca foi notificada pela Secretaria do Tribunal de 1.ª instância do Despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, datado de 06.04.2018 (junto ao processo n. 311/12…., com a referência número ...039), em resposta às questões suscitadas pelo Tribunal da Relação de Évora - 2.ª Nulidade processual.

R.      A aqui recorrente nunca foi notificada pelo Tribunal da Relação do referido Despacho do Tribunal de 1.ª instância (junto ao processo n.º 311/12…, com a referência número ...039), antes de proferir a decisão aqui recorrida, não tendo dado a possibilidade à ora Recorrente de se pronunciar sobre as informações (erradas) contidas em tal despacho - 3.ª Nulidade processual.

S.      O Tribunal da Relação de Évora, ao considerar, designadamente, no Acórdão recorrido, que não poderia apreciar em sede de recurso a matéria alegadamente "introduzida ex novo", relativa questão da data do início do contrato de arrendamento não coincidente com a da vigência do acordo formalizado (face à errónea informação prestada pelo Tribunal de 1.ª instância de que tal questão não havia sido alegadamente debatida), bem como relativa questão das ilegalidades da venda (face, igualmente, às informações erróneas prestadas pelo Tribunal de 1.° instância), não deu cumprimento ao número 1 do artigo 655.° do Código de Processo Civil - 4.ª Nulidade processual.

T.       A Recorrente apenas teve conhecimento dos Despachos acima referidos no dia 27.04.2018, por consulta do processo na plataforma Citius,

Data na qual a Recorrente, constatando, então, que os esclarecimentos prestados pelo Tribunal de 1.ª instância, conforme acima demonstrado, não correspondem à realidade dos factos, procurou, de imediato, pronunciar-se acerca dos mesmos, mediante o requerimento dirigido ao Tribunal da Relação de Évora, submetido no mesmo dia (em 27.04.2018) - o referido requerimento com a referência ...750 (referência do Citius: …348).

U.      Posteriormente, com a notificação do Acórdão recorrido, a Recorrente constatou que o Venerando Tribunal da Relação de Évora veio a decidir, sem, de facto, dar a possibilidade à Recorrente de se vir pronunciar acerca dos errados esclarecimentos prestados pelo Tribunal de 1.ª instância, e, ainda, sem ter tido em consideração as informações prestadas naquele seu requerimento.

V.      Nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12.02.2015, processo número 0373/14 (disponível em www.dgsi.pt), em que estava, igualmente, em causa um recurso de revista excepcional, "Se o conhecimento de nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, só ocorreu com a notificação do acórdão recorrido, o prazo para a respectiva arguição não se tinha ainda iniciado antes desse momento, não estando a mesma sanada quando foi proferida a decisão recorrida (. . .). Assim, e sendo o meio próprio de atacar o acórdão o recurso, é em sede de recurso que se deve conhecer da nulidade arguida, com a invocação da violação do princípio do contraditório."

W.     A notificação dos Despachos acima referidos à Recorrente, para que esta pudesse vir pronunciar-se acerca dos mesmos, bem como a notificação nos termos do número 1 do artigo 655.° do Código de Processo Civil, traduzem-se em actos impostos por lei - cf. número 3 do artigo 3.°, número 1 do artigo 220.° e número 1 do artigo 655.°, todos do Código de Processo Civil.

X.      Neste caso, com efeito, conforme acima referido, foi omitida, pelas Secretarias de ambos os Tribunais (Tribunal de 1.ª instância e Tribunal da Relação), a notificação legalmente devida, nos termos da segunda parte do número 1 do artigo 220.° do Código de Processo Civil, impedindo, assim, que a Recorrente tivesse a possibilidade de se pronunciar sobre ambos os Despachos acima referidos, antes que o Tribunal da Relação de Évora viesse a decidir com base nos esclarecimentos/ informações erróneas prestadas pelo Tribunal de 1.ª instância.

Y.      Para além disso, o Venerando Tribunal da Relação de Évora, ao considerar, designadamente, no Acórdão recorrido, que não poderia apreciar em sede de recurso a matéria alegadamente "introduzida ex novo", relativa questão da data do início do contrato de arrendamento não coincidente com a da vigência do acordo formalizado (face à errónea informação prestada pelo Tribunal de 1.ª instância de que tal questão não havia sido alegadamente debatida), bem como relativa questão das ilegalidades da venda (face, igualmente, às informações erróneas prestadas pelo Tribunal de 1.ª instância), deveria proceder previamente à notificação da aqui Recorrente, nos termos e para os efeitos do citado número 1 do artigo 655.° do Código de Processo Civil.

Z.      Assim, a falta de cumprimento do contraditório, concretizada na não notificação dos Despachos acima referidos à aqui Recorrente para esta se pronunciar acerca do conteúdo dos mesmos, bem como na não notificação da Recorrente para se pronunciar nos termos do número 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil (atendendo às questões que o Tribunal da Relação não poderia apreciar, por as considerar (erradamente) como "novas"), nos termos das normas acima citadas, reconduz-se à omissão de actos exigidos por lei que, porque susceptíveis de influir no exame ou decisão da causa, constituem nulidades, sujeitas ao regime dos artigos 195.°, 197.° e 199.°, todos do Código de Processo Civil.

AA.  Nestes termos,  devem  ser  declaradas  as  nulidades  decorrentes  da  falta  de  cumprimento do contraditório, concretizada na não notificação da aqui Recorrente, nos termos do número 3 do artigo 3.°, do número 1 do artigo 220.°, do número 1 do artigo 655.° e do número 1 do artigo 195.°, todos do Código de Processo Civil (ex vi da alínea b) do número 1 do artigo 674.° do Código de Processo Civil), e, consequentemente, quando um acto se tenha por anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente - ou seja, tem-se também por anulada decisão ora recorrida.

BB.  O presente recurso vem interposto do Acórdão proferido em 26.04.2018, a fls., proferido pela 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo número 311/12.2TBRDD-B.E1, nos termos do qual viria o Venerando Tribunal da Relação de Évora decidir julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo em 28.11.2017, o que não se consente,

Decisão esta que havia, por seu turno, entendido pela alegada caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Executados e a sociedade Soavifreixo, aqui recorrente, porquanto:

"seriam alegadamente inoponíveis ao comprador as relações locatícias constituídas posteriormente à constituição das hipotecas";

Mais se decidido (o que também não se consente), que "o invocado contrato de arrendamento necessariamente caducou com a venda executiva" (sendo que esta não se verificou, tendo, entretanto, ficado prejudicada a sua realização).

CC.    Pretenderia, pois, fazer-se a aplicar-se ao caso sub judice do disposto no número 2 do artigo 824.° do Código Civil (o que não se concede), decidindo-se, por conseguinte, pela alegada caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Executados e a aqui recorrente, por tal contrato ter sido alegadamente celebrado em data posterior ao registo de três hipotecas a favor da Exequente (o que como vimos acima, também não foi o caso diante as nulidades acima invocadas).

DD.  Não obstante, é por demais evidente que o número 2 do artigo 824.° do  Código Civil não é aplicável ao caso sub judice, porquanto, e desde logo, o contrato de arrendamento não confere ao arrendatário um qualquer alegado direito real, mas apenas um direito de crédito (aliás, e ao invés, aplicar o mencionado preceito ao arrendamento, seria, isso sim, desvirtuar o escopo e essência da referida norma e nela pretender inserir situações claramente pretendidas afastar pelo legislador), Sendo, por conseguinte, irrelevante o facto de terem sido alegadamente constituídas, ou não, hipotecas anteriormente à celebração do Contrato de Arrendamento (o que, como acima vimos e diante das nulidades invocadas, também não foi o caso, sendo o arrendamento rural da Recorrente Soavifreixo, inclusivamente, anterior às hipotecas).

EE.  Não obstante a decisão recorrida, verdade é que, como se alcança também desta decisão, a questão da aplicabilidade, ou não, do preceituado no número 2 do artigo 824.° do Código Civil aos contratos de arrendamento é uma questão muito controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência.

FF.  É por demais manifesto que não estamos diante um caso de lacuna na lei/caso omisso, que obrigaria à aplicação extensiva/analógica, ao caso sub judice, do número 2 do artigo 824.° do Código Civil,

Mas, e ao invés, a locação expressamente dispõe sobre esta matéria, e em sentido contrário ao citado preceito, não podendo o mesmo, independentemente de o arrendamento ser anterior ou posterior às hipotecas (o que, como vimos, é, inclusivamente, anterior e remontado a 1980), ser assim aplicado.

GG. Ou seja, a par da doutrina a este respeito, está, com efeito, o Acórdão aqui recorrido em clara contradição com vários outros Acórdãos proferidos quer por outros Tribunais da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20.01.2011 (processo n. 144-B/2001.L1-2), disponível em http://www.dgsi.pt, junto como documento n. 1 - o Acórdão-Fundamento neste recurso de revista excepcional (doravante, o "Acórdão Fundamento"). (…)

BBB. A Recorrente não se pode conformar com a decisão expressa no Acórdão recorrido, com a qual a Recorrente veria o seu contrato de arrendamento (que remonta já ao ano de 1980) a ser considerado como caducado, pelo facto de o Venerando Tribunal da Relação de Évora, contrariamente, conforme vimos, ao entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, exposto no Acórdão Fundamento (bem como ao entendimento de outros Tribunais e de doutrina, conforme abaixo demonstrado), ter a opinião de que a norma prevista no número 2 do artigo 824. º do Código Civil é extensível aos contratos de arrendamento.

Aliás, a par do Acórdão Fundamento, faça-se também menção ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que, no domínio da mesma questão, acolheu também o entendimento da Recorrente Arrendatária Rural no sentido de entender que o número 2 do artigo 824.º do Código Civil não se aplica aos arrendamentos.

Não pode, assim, a Recorrente conformar-se com a decisão de caducidade do seu contrato de arrendamento, quando, noutros casos semelhantes ao caso sub judice, como é, como vimos, o caso do Acórdão-Fundamento, se decidiu, e bem, pela subsistência do contrato de arrendamento, porquanto, a norma prevista no número 2 do artigo 824. º do Código Civil não tem aplicação ao arrendamento.

CCC.  Conforme bem decide o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão Fundamento, "o contrato de arrendamento não confere ao locatário um direito real, mas apenas um direito de crédito".

Para além disso, conforme refere Luís A. Carvalho Fernandes, ao direito do locatário, "no estado actual do seu regime no sistema jurídico português, deve ser atribuído (. . .) natureza obrigacional (. . .). Trata-se, sem dúvida, de um direito obrigacional particular, por ser de gozo, o que o aproxima, funcionalmente, dos direitos reais desta categoria e explica a menor intensidade do dever de cooperação imposta ao locador. Mas não mais do que isto." (in Lições de Direitos Reais, 5.ª edição, Quid Júris, 2007, pp. 178 e 179).

"E este direito pessoal de gozo está subtraído à regra de extinção provocada pela venda executiva, aplicando-se à locação de que ele emerge a regra emptio non tollit locatum estabelecida no artigo 1057.° do Código Civil.

DDD. Ou seja, e diante do exposto, concluiremos ter mal decidido o Acórdão recorrido, pois, em face das normas dispostas no âmbito da locação, não estamos, assim, diante um caso que obrigasse a aplicação extensiva ou analógica das normas relativas aos direitos reais.

A locação expressamente dispõe sobre esta matéria, não sendo compatível sequer a aplicação ao arrendamento a cominação resultante do número 2 do artigo 824.° do Código Civil.

Devendo, pois, esse arrendamento - anterior à penhora - subsistir em caso de venda executiva, "quer não exista qualquer ónus sobre o imóvel à data da celebração do arrendamento, quer sobre esse imóvel incida uma garantia real (nomeadamente uma hipoteca)" - (cf. o aqui Acórdão-fundamento; e Maria Olinda Garcia, in Arrendamento urbano e outros temas de direito e processo civil, Coimbra Editora, 2004, pp. 24 e seguintes e 48-60).

EEE. Sem prejuízo da nulidade invocada, com a demonstração do um arrendamento inclusivamente anterior à constituição da hipoteca (remontando a 1980), certo é que por cautela, no Acórdão Fundamento bem se decide que o contrato de arrendamento, embora celebrado em momento posterior ao registo de hipoteca (o que se aceita por cautela de patrocínio), mas em data anterior ao registo de penhora (como sempre se passaria no caso sub judice), não caducou com a venda judicial.

A solução contrária (solução essa aplicada pela Acórdão recorrido) "penaliza o arrendatário e é dificilmente conciliável com a nulidade da cláusula que proíbe o dono de onerar os bens hipotecados (artigo 695.º C.C.), os bens cujos rendimentos foram consignados (artigo 665.º C.C.), os bens penhorados (artigo 678.° C.C.) e os bens afectos a privilégios creditórios (artigo 753.º C.C.)" - cf. citando Teixeira de Sousa, o aqui Acórdão Fundamento.

Não foi claramente intenção do legislador subsumir os direitos obrigacionais, como seja o arrendamento, à citada norma (de direito reais) do Código Civil.

FFF. Conforme também referido no Acórdão Fundamento, tal solução contrária (da não subsistência/extinção do arrendamento, anterior à penhora, em caso de venda executiva (que não se concede), quer não exista qualquer ónus sobre o imóvel à data da celebração do arrendamento, quer sobre esse imóvel incida uma garantia real, nomeadamente uma hipoteca), não é, ainda, conciliável com o direito de preferência que o arrendatário tem na venda do local arrendado, nos termos do artigo 1091.° do Código Civil, porquanto, se, nos termos da lei, o arrendatário tem um direito de preferência na compra e venda do local arrendado, tal significa, então, que o arrendamento não se extingue com a venda executiva.

Sendo tal ainda reforçado pelo disposto no número 3 do artigo 109.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), nos termos do qual, e dominado pela ideia de tutela do locatário, estranho à situação de insolvência do locador,

"A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância", estando aqui em causa, nomeadamente, "a manutenção da posição contratual do arrendatário (cf. artigo 1057.º do C.Civ.) e o seu direito de preferência (...)" (cf. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado", Vol. 1, Quid Júris, 2005, pp. 413 e 414).

GGG. Acresce, ainda, o disposto no artigo 819.° do Código Civil, nos termos do qual, "Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arredamento dos bens penhorados.".

HHH. Na interpretação da lei, deve, pois, ter-se em conta a unidade do sistema jurídico, sendo de presumir, na fixação do sentido e alcance da lei, "que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (cf. números 1 e 3 do artigo 9.° do Código Civil).

Assim, "tendo o legislador sentido a necessidade, em 2003 - com o Dec. Lei n.º 38/2003, de 8 de Março - de [expressamente] introduzir no art.º 819.º, do Código Civil, a referência à inoponibilidade à execução - para além dos já previstos actos de disposição ou oneração - do "arrendamento" posterior à penhora, mal se compreenderia que - tendo assim dissipado controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias a propósito - desperdiçasse o ensejo para, sendo esse o seu entendimento, "explicitar" a abrangência, pela caducidade decorrente da venda executiva, estabelecida no art.º 824.°, do arrendamento anterior à penhora".

III.  Para além disso, acresce, ainda, a dificuldade da transferência para "o produto da venda" da fracção autónoma, do direito do arrendatário, que caducasse com aquela venda executiva, nos termos do número 3 do artigo 824.° do Código Civil, caso se entendesse (tal como entende o Tribunal a quo) que o arrendamento estaria abrangido pelo número 2 do mesmo preceito.

JJJ. In casu, conforme se retira da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância (a decisão confirmada pelo Acórdão recorrido), o Prédio em apreço foi penhorado em 03.06.2013, reportando-se o arrendamento (reduzido a escrito, por exigência legal) ao ano de 2005, sem prejuízo, de qualquer forma de remontar o mesmo já a 1980.

Ora, nos termos do artigo 819.° do Código Civil, apenas se a penhora do Prédio tivesse sido registada em data anterior à data da celebração do Contrato de Arrendamento é que este não lhe seria oponível, conforme refere Fernando Amâncio Ferreira: "por proceder da vontade do executado, já é inoponível o arrendamento por ele celebrado depois do registo da penhora, como hoje expressamente se refere no artigo 819.º do Código Civil" (in Curso de processo de execução, 4.ª edição, Almedina, p. 230).

Tendo sido, in casu, a penhora registada posteriormente à celebração do Contrato de Arrendamento (e também do arrendamento cuja formalização se fez depois por exigência legal), conclui-se, assim, e por um lado, pela oponibilidade do arrendamento à penhora posterior.

KKK. Por outro lado, não sendo aplicável ao arrendamento o disposto no número 2 do artigo 824.° do Código Civil, conforme acima exposto, e conforme é entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão Fundamento, é irrelevante o facto de as hipotecas sobre o Prédio arrendado terem sido registadas no ano de 2002, i.e. em data anterior à celebração do Contrato de Arrendamento reduzido a escrito por exigência legal, sem prejuízo, de qualquer forma, de o mesmo remontar já a 1980 (diante da nulidade e apreciação da questão prévia acima invocadas).

Tal arrendamento, anterior à penhora do Prédio arrendado (e também inclusivamente anterior às hipotecas), subsiste, assim, com uma venda executiva do mesmo, mesmo existindo três hipotecas registadas sobre o mesmo.

Isto porque, como se viu, ora por um arredamento remontado a 1980 e anterior à constituição de hipotecas, ora (cautelarmente) pela não aplicação, em qualquer dos casos, do número 2 do artigo 824.° do Código Civil à figura do arrendamento e, por conseguinte, ao caso sub judice.

LLL. Salvo o devido respeito, como erradamente se decidiu no Acórdão recorrido, não estaríamos, alegadamente, perante uma simples transmissão consensual inter vivos, mas somos confrontados com uma venda em execução, a qual não se encontraria alegadamente provisionada na lei do arrendamento rural. E, nestes termos, ao constituir, alegadamente, um caso omisso, reclamar-se-ia (o que não se consente) a aplicação do direito subsidiário.

Contudo, não estamos diante um caso omisso.

MMM. A este propósito e na mesma esteira de entendimento, veja-se, nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.01.2004, processo n.º 03A4098 (disponível em www.dgsi.pt), de onde se retira o seguinte, relativamente à inadmissibilidade da aplicação analógica do número 2 do artigo 824.° do Código Civil: "A analogia é um meio de preenchimento de lacuna legal - art.º 10.°, nºs 1 e 2, do C. Civil - que aqui não há. Não previu o art.º 824. n.º 2, a caducidade do arrendamento porque o art.º 1057.º do mesmo Código estabeleceu a regra da sua transmissão.".

Concluindo, assim, o Supremo Tribunal de Justiça que "Não há assim lacuna legal que permita a sua aplicação analógica [do número 2 do artigo 824.º do Código Civil] ao arrendamento" (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.01.2004, acima identificado).

Veja-se, também, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.09.2008, processo n.º 5151/2008-7 (disponível em www.dgsi.pt), e, ainda no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21.11.2006, processo n.º 0523508, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.10.2006, processo n.º 4866/2006-7 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

NNN. Para além do acima exposto, e sobretudo no que releva para a apreciação do caso sub judice e com vista à boa decisão da causa, não estamos diante um caso omisso, não havendo, assim, necessidade de recorrermos, subsidiariamente (ou analogicamente, como se queira) ao disposto no número 2 do artigo 824.° do Código Civil.

OOO. Com efeito, o artigo 1057.° do Código Civil expressamente estabeleceu a regra da sua transmissão.

O Adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato (o comprador do imóvel na acção executiva) sucede nos direitos e obrigações do locador (os Executados), comprando o imóvel com o arrendamento rural, conforme também se dispõe no artigo 20.° do Regime do Arrendamento Rural,

Como ensina a doutrina a este respeito, o arrendamento é um direito obrigacional de gozo. Relativamente a ele se dispondo como o faz o artigo 1057° do Código Civil, é subtraída a aplicação da regra de extinção provocada pela venda executiva.

Regra: Emptio non tollit locatum (a compra não extingue o objecto locado) estabelecida no artigo 1057.° do Código Civil.

Deverá, pois, esse arrendamento subsistir em caso de venda executiva, quer não exista qualquer ónus sobre o imóvel à data da celebração do arrendamento, quer sobre esse imóvel incida uma garantia real, nomeadamente uma hipoteca,

Não havendo assim aplicação do artigo 42.º do citado Regime e, consequentemente, não se aplicando ao caso sub judice o disposto no número 2 do 824.º do Código Civil, que, de qualquer forma, nunca seria aplicável por estamos inclusivamente diante um arrendamento anterior à constituição da hipoteca, conforme explanado em sede de nulidade e questão prévia e suspensão deste apenso até ser proferida decisão no apenso do outro recurso pendente.

PPP. Mostra-se, assim, evidente a necessidade da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, a fim de sanar a contradição jurisprudencial (e doutrinal) existente, o que se impõe, igualmente, por razões de segurança jurídica,

Devendo, assim, ser admitido o presente recurso de revista excepcional,

Pois, a par do Acórdão Fundamento, e conforme doutrina e jurisprudência sobre esta matéria, o arrendamento de prédio hipotecado, celebrado pelo proprietário e o arrendatário não caduca em caso de venda do referido prédio em execução.

Nem o recurso ao princípio da adequação justifica, nem a via da interpretação teleológica ou da interpretação analógica permitem que se faça valer para o arrendamento a solução legal prevista para os direitos reais no artigo 824.º, número 2 do Código Civil (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.05.1997, in CJ 1997, 3° - 87).

QQQ. Sem prejuízo, e por mera cautela de patrocínio, caso se entenda que não se verificam os pressupostos da revista excepcional, deverá a presente revista ser apresentada ao relator, nos termos e para os efeitos do número 5 do artigo 672. º do Código de Processo Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Importa acrescentar que a Relação proferiu ainda dois acórdãos complementares:

No primeiro, apreciou e desatendeu as nulidades invocadas pela recorrente, quer em requerimento autónomo, quer nas alegações da revista;

No segundo, indeferiu o pedido de reforma do acórdão recorrido.

Como se referiu, este recurso foi admitido como revista normal, nos termos do art.º 629º, nº 2, al. d), do CPC. Mesmo que não se concorde com este enquadramento, parece-nos que o recurso seria sempre admissível nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), tendo em atenção o teor do AUJ nº 2/2021, como adiante será referido.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;

- Nulidades processuais;

- Caducidade do contrato de arrendamento rural em caso de venda judicial do bem arrendado.

III.

No acórdão recorrido foi considerada relevante a seguinte factualidade:

1. Em 3 de Junho de 2013, foi penhorado na presente execução o prédio misto sito em ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº ........26 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ……64 e rústica sob o artigo 3º, secção 19, do respectivo Serviço de Finanças (referência …….62).

2. Sobre tal prédio encontram-se registadas, sob apresentações 2, de 26 de Fevereiro de 2002, 1 de 29 de Maio de 2002 e 1 de 3 de Setembro de 2002, três hipotecas a favor da Exequente Caixa Geral de Depósitos, SA.

3. A referida penhora encontra-se registada, sob apresentação 227, de 3 de Junho de 2013.

4. Não constam da certidão de registo predial junta aos autos quaisquer outros registos relativamente ao prédio penhorado.

5. O prédio em causa foi adjudicado, no âmbito deste processo, ao proponente Suiniprimos - Comércio e Criação de Gado, Lda., em 10 de Outubro de 2017 (referência 1781903).

6. Os Executados celebraram, em 1 de Janeiro de 2005, com a sociedade Soavifreixo - Sociedade Agro-Pecuária e Vitícola do Freixo, Lda. um contrato de arrendamento rural que abrange o prédio identificado em 1 (referência ……74).

IV.

1. A recorrente invocou a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia e a verificação de várias nulidades processuais ocorridas na pendência do processo na Relação.

Aquela nulidade, que tem a ver com as questões respeitantes a irregularidades da venda judicial e com a data do arrendamento celebrado pela recorrente, não tem razão de ser.

Na verdade, a decisão da 1ª instância não se pronunciou sobre essas questões, nem tinha de o fazer, uma vez que as mesmas não haviam sido colocadas anteriormente; essa decisão apenas teve por objecto a questão da caducidade do arrendamento.

É certo que a questão da data do arrendamento poderia contender com essa decisão sobre a caducidade, mas esta não pode ser censurada por se ter apoiado na afirmação inequívoca, quer dos proprietários, quer da recorrente/arrendatária, de que o arrendamento se tinha iniciado em Janeiro de 2005 (tendo sido junto o documento que o formaliza).

Assim, em termos formais, não existe omissão de pronúncia, uma vez que a Relação abordou essas questões, constatou a sua novidade e decidiu em conformidade.

O que se passou depois, com a pronúncia na tentativa de esclarecer os elementos apontados pela recorrente (requerimento de 27.04.2018), é que parece excessivo.

De todo o modo, no que respeita às próprias questões – irregularidades da venda judicial, da notificação para preferência e início do arrendamento – assim como, quanto às aludidas nulidades processuais arguidas pela recorrente, deve notar-se que as mesmas extravasam o objecto do presente recurso de revista, que está circunscrito à questão em relação à qual se verifica a contradição jurisprudencial que viabilizou a admissão do recurso: a caducidade do arrendamento.

Consequentemente, não há que conhecer aqui de tais questões.

2. No Acórdão recorrido concluiu-se que a regra da transmissibilidade do art.º 20º, nº 1, do Regime do Arrendamento Rural (RAR), não é aplicável no caso de venda executiva. Assim, sendo, no caso, o contrato de locação posterior ao registo da hipoteca, o arrendamento caduca, por força do regime estabelecido no nº 2 do art.º 824º do CC.

Esta questão da caducidade do contrato de arrendamento é, desde há muito, controvertida, quer na doutrina, quer na jurisprudência, como é amplamente referido no Acórdão recorrido.

De um lado, a doutrina "realista", assente essencialmente na consideração de "o arrendamento ser um «direito inerente» por força do disposto no artigo 1057.º do CC, que faz transferir para o adquirente do direito os direitos e obrigações do locador, aliando a essa ideia o carácter tendencialmente vinculístico do arrendamento, que constitui um gravame para o respectivo titular; se a lei pretende que os bens sejam transmitidos livres de quaisquer direitos que os onerem, preservando assim o seu valor em processo executivo, seria incompreensível que deixasse incólume o arrendamento, incluindo-se o mesmo no disposto no artigo 824.º, n.º 2 do CC".

Do outro, a doutrina "personalista" que, partindo do entendimento de que o direito ao arrendamento é um direito pessoal de gozo e não um direito real e que, no regime actual, o arrendamento, pela perda do carácter vinculístico, não constitui um verdadeiro ónus que desvalorize o imóvel, afasta a aplicação do disposto no art.º 824º, nº 2, do CC, pelo que o direito ao arrendamento não caduca com a venda, mesmo que sobre o imóvel arrendado incida uma garantia real, como, no caso, a hipoteca, registada antes da celebração do arrendamento.

Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça tomou posição sobre esta questão no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021 (DR IS de 5.8.2021).

Na fundamentação desse Acórdão afirma-se que, para se poder enveredar pela solução da caducidade do arrendamento seria necessário fazer a equiparação da relação locatícia existente, na perspectiva do locatário, a um direito real, uma vez que a norma do art.º 824º, nº 2, do CC ("os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo") apenas se refere à extinção de direitos reais e não, também, de todos os direitos, reais e/ou obrigacionais que incidam sobre a coisa.

Sublinha-se, porém, que

O contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no artigo 1022.º do CCivil, não se tratando, pois, de um direito real de gozo, encontrando-se expressamente afastado do Livro III - Direito das Coisas - sendo certo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (artigo 1306.º do CCivil), o qual afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia.

Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento.

Por outro lado, acentua-se que,

Não obstante algumas características particulares do arrendamento, maxime, as que conferem ao locatário o poder de usar dos meios facultados ao possuidor, se for perturbado no exercício dos seus direitos, nos termos do artigo 1037.º, n.º 2 do CCivil, contra o locador ou contra aquele que dele adquira o direito por força do artigo 1057.º, o arrendamento é um direito pessoal de gozo (assim qualificado expressamente pelo artigo 1682.º, n.ºs 1 e 2 do CCivil), definido pelo artigo 1022.º do CCivil, como o contrato pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem o gozo de uma coisa mediante uma retribuição, sendo nesta que reside a natureza creditícia da relação: é um direito creditório referente a uma coisa, não é um direito sobre a coisa; por outro lado a inerência, afloramento da sequela, não lhe confere a característica do absolutismo do direito, apanágio de um direito real, uma vez que o mesmo não corresponde a uma obrigação passiva universal, mas antes a um direito relativo ao senhorio, pois apenas a este o arrendatário poderá exigir que lhe seja assegurado o gozo da coisa locada para os fins a que a mesma se destina, bem como que proceda às reparações necessárias, nos termos dos artigos 1031.º, alínea b) e 1036.º do mesmo diploma (…)

Como se faz notar no Acórdão recorrido (…) «a concessão do gozo significa que nada se transmite, nada se transfere, nada se aliena. O que sucede é que o locador se vincula à prestação de proporcionar esse gozo ao arrendatário, adquirindo este, em contrapartida, o direito à mesma prestação - de natureza obrigacional - e não qualquer direito sobre a coisa».

Reafirma-se que, do disposto no art.º 1057º do CC («O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo») resulta

A garantia para o arrendatário da manutenção do seu contrato de arrendamento, pois a lei mais do que prever a transmissão para o novo proprietário do contrato de arrendamento anteriormente celebrado, impõe que nessa transmissão se mantenham intactos todos os direitos e obrigações que impendem sobre o direito transmitido.

Tal previsão faz

Afastar, de um lado, a aplicação do normativo inserto no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, por no mesmo não haver qualquer referência à ocorrência da caducidade relativamente aos direitos obrigacionais e, nestes, ao arrendamento, e por outro, por nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051.º do mesmo diploma, não constar a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial.

Acrescenta-se depois:

Nem se diga, ex adverso, que se trata de uma argumentação sem qualquer expressão, uma vez que a enunciação legal embora nunca assuma um carácter taxativo, mas antes meramente exemplificativo, no caso concreto, a apontada omissão, só se poderá ter como propositada, face ao preceituado no artigo 1057.º: se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar e, daí a impossibilidade manifesta de se poder afastar a aplicação do disposto no artigo 1051.º, o qual não prevê como causa de caducidade a venda em processo executivo do imóvel arrendado, nem tão pouco na liquidação insolvencial (…).,

Só não seria assim, se o legislador podendo prever a hipótese da venda em execução e, concomitantemente, em liquidação insolvencial, o tivesse deixado consignado, sendo certo que o poderia ter feito, atentas as alterações legislativas entretanto ocorridas, mas não o fez (maxime aquando da inclusão no artigo 819.º do CCivil do arrendamento posterior à penhora, entre os actos inoponíveis à execução), caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca.

Argumentou-se, de seguida, com o sentido das alterações que têm sido introduzidas no regime do arrendamento urbano, acentuando o seu carácter transitório e não desvalorizante do bem (o que, para o nosso caso, não parece assumir relevância), afirmando-se ainda:

Há que ter igualmente em atenção que a circunstância de o imóvel, em venda, poder estar hipotecado, não inibe o proprietário de o arrendar, nem de o transmitir a terceiro com lucro, como deflui inequivocamente do disposto no artigo 695.º do CCivil, uma vez que hoje em dia a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência do contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral, por via da oposição à renovação, denúncia e/ou resolução (…).

A respeito da interpretação das normas aplicáveis afirmou-se, a concluir, que:

Estando o regime da transmissibilidade do arrendamento perfeitamente enquadrado no preceituado no artigo 1057.º do CCivil, para onde nos remete, além do mais, o disposto no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, dúvidas não subsistem de que a tais normativos é estranho o regime prevenido no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, pelo que, inexiste qualquer lacuna carecida de integração analógica. (…)

Os direitos de garantia e os direitos reais, nada têm a ver com os direitos obrigacionais, onde se inclui o arrendamento, não se podendo, sem mais, concluir que aqueles podem abarcar este, «[N]ão sendo direito real, à locação, mesmo na modalidade de arrendamento, não se aplica o disposto no art.º 824.º, n.º 2, CC, pelo que o bem vendido em execução é transmitido sem afectar o direito do locatário.»(…).

Assim, uniformizou-se a jurisprudência nestes termos:

"A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil".

Afigura-se-nos que a tese acolhida neste AUJ tem aqui inteiro cabimento e aplicação, apesar de existirem elementos que, aparentemente, diferenciam o caso destes autos.

Desde logo, o facto de estar ali em causa uma venda em processo de insolvência, a que é aplicável o disposto no art.º 109º, nº 3, do CIRE e aqui uma venda executiva.

Note-se, porém, como se salientou no referido AUJ, que à alienação em insolvência é igualmente aplicável o regime da venda executiva, afirmando-se, por outro lado, que a referência ao disposto no art.º 109º, nº 3, não aponta directamente para uma resolução jurídica diversa do conflito nos Acórdãos em confronto, já que o nó górdio da problemática discutida em ambos se centrou na (in)aplicabilidade do preceituado no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil aos contratos de arrendamento celebrados em data posterior à constituição da hipoteca sobre os respectivos imóveis que tenham sido objecto de venda.

De facto, aquela norma do CIRE limita-se a garantir a manutenção dos direitos reconhecidos ao locatário pela lei civil (cf. arts. 1057º e 1091º) e, no nosso caso, quanto à manutenção da posição contratual do locatário, também pelo art.º 20º, nº 1, do RAR[2].

Por outro lado, está em causa nestes autos um contrato de arrendamento rural, mas esta natureza não interfere, por si só, na nossa questão: o arrendamento rural é uma locação de prédio rústico (art.º 2º, nº 1, do RAR), constituindo, pois, na sua estrutura, um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, como decorre do disposto no art.º 1022º do CC.

Importa, porém, notar que, na regulamentação específica deste contrato existe norma expressa sobre a questão da transmissibilidade e da caducidade.

Com efeito, conforme dispõe o art.º 20º, nº 1, do RAR, o arrendamento não caduca por morte do senhorio nem pela transmissão do prédio.

Esta norma, estabelecendo para a transmissão da posição contratual regra idêntica à prevista no art.º 1057º do CC (consagrando o princípio emptio non tollit locatum), afasta também as dúvidas que se suscitavam, quanto ao arrendamento urbano, sobre o carácter taxativo ou enunciativo dos casos de caducidade previstos no art.º 1051º do CC.

Prevê-se ali, expressamente, que a transmissão do prédio não provoca a caducidade do contrato.

Assim, no fundo, a questão a decidir nestes autos coloca-se em termos idênticos àqueles que eram postos em relação ao art.º 1057º do CC: se, na venda executiva, o regime dessa norma – no nosso caso, o regime do art.º 20º, nº 1, do RAR – é preterido pelo disposto no art.º 824º, nº 2, do CC.

Ora, a este respeito, impõem-se aqui as razões que constam da fundamentação do aludido AUJ e que acima se reproduziram, que levaram a afastar a subsunção do caso na previsão do art.º 824, nº 2, por neste se contemplar apenas direitos de garantia e direitos reais e não o arrendamento e inexistir lacuna carecida de integração analógica ou razão para a interpretação extensiva dessa norma.

Como se sublinhou, direitos de garantia e direitos reais nada têm a ver com o arrendamento, que tem natureza obrigacional, nada permitindo afirmar que o legislador tenha dito menos do que o que queria e que, ao aludir àqueles direitos, quisesse englobar neles o arrendamento.

Em conclusão:

A venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 20º, nº 1, do RAR, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em consequência, declara-se que o contrato de arrendamento invocado nos autos não caducou com a venda executiva.

Custas dos recursos a cargo da recorrida.

Lisboa, 03 de novembro de 2021

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Proc. Nº 311/12.2TBRDD-B.E1.S2
F. Pinto de Almeida (R. 304)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 506; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed., 225.