Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1369/16.0T9GRD.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

Existe fundamentação essencialmente diferente, para os efeitos previstos no art. 671.º n.º 3, do C.P.C., quando o Tribunal da Relação perfilha uma solução inovatória e com uma real diversidade nos aspetos essenciais, relativamente à sentença da primeira instância, sendo irrelevantes discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representam efetivamente um percurso jurídico diverso.

Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 1369/16.0T9GRD.C1.S1, da 4.ª Secção

(Reclamação para a Conferência)

Acordam, em Conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

Por despacho datado de 03/03/2022, o Juiz Relator dos autos decidiu, após ter dado previamente cumprimento ao contraditório[1], nos termos do art. 655.º n.º 1, do C.P.C., não admitir o recurso de revista interposto pela Ré Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A., ora reclamante, com fundamento em existir, in casu, dupla conforme (art. 671.º n.º 3, do C.P.C.).

Inconformada com o teor deste despacho, reclamou a recorrente para a Conferência, ao abrigo do disposto no art. 652.º n.º 3, do C.P.C., referindo, em síntese, que não há dupla conforme, uma vez que referido acórdão do Tribunal da Relação ..., apesar de ter confirmado, sem voto de vencido, a decisão da primeira instância, que julgou a ação improcedente, utilizou uma fundamentação inovadora, indo buscar, motu proprio (surpreendentemente, sem o mínimo suporte na materialidade factual dada como provada e sem possibilidade de exercício do contraditório e também sem que tal matéria estivesse, de modo algum, em discussão nos autos, não constituindo objeto do recurso) uma ficcionada discrepância entre o declarado pelo tomador/empregador quanto à atividade (agrícola) que pretendia ver abrangida pelo seguro e a atividade que o sinistrado efetivamente estava a exercer e uma suposta (eventual) invalidade do contrato de seguro.

Assim, foi o percurso e o fio lógico do raciocínio desenvolvidos pela segunda instância bem diversos, tendo até retirado toda a razão à primeira instância, rejeitando em absoluto a fundamentação desta.

Com efeito, para o Tribunal da Relação, em contraposição com a interpretação da primeira instância, verifica-se a existência de exceções determinativas da anulabilidade do contrato de seguro ou da exclusão ou da exclusão do âmbito da proteção do mesmo da atividade desempenhado pelo sinistrado, no momento do acidente, que deveriam ter sido judicialmente arguidas, o que não sucedeu.

Termina a sua reclamação com seguinte conclusão, que passamos a transcrever:

Pelo exposto, concluindo-se não existir, nos presentes autos, “dupla conforme”, designadamente por o Venerando Tribunal da Relação ter contrariado – frontalmente – a argumentação da 1ª Instância e ter infirmado e rejeitado, in totum, a fundamentação ali expendida, percorrendo caminho diferente e desenvolvendo o seu próprio raciocínio (sobre o qual a R./recorrente não pôde, sequer pronunciar-se), deverá revogar-se a (aliás douta) decisão singular reclamada e admitir-se a revista, com a prolação do correspondente acórdão,

o que se requer.

Submetidos os autos à Conferência, cumpre, agora, decidir.
II. Fundamentação

1. Como se pode verificar, a reclamante não traz nada de novo, insistindo que não se pode considerar que há dupla conforme, uma vez que o Tribunal da Relação utilizou uma fundamentação essencialmente diferente da constante da decisão da primeira instância, contrariando até, de forma frontal, a fundamentação desta.

Ora, com todo o respeito pela posição da reclamante, discordamos deste entendimento, pois o que se constata é que o acórdão do Tribunal da Relação ..., proferido em 22/09/2021, confirmou, por unanimidade, a sentença do Juízo de Trabalho ..., de 29/03/2021, com fundamentação algo diferente, mas não essencialmente diferente.

Senão vejamos:

Ambas as instâncias configuram as suas decisões no mesmo quadro normativo – regime jurídico do contrato de seguro e pressupostos da responsabilidade da seguradora no quadro do seguro agrícola genérico (Portaria n.º 256/2011, de 5/7) -, concluindo ambas pela responsabilidade infortunística do acidente. Ou seja, ambas consideraram estar em causa um contrato de seguro agrícola genérico, analisaram os mesmos pressupostos, tendo apenas divergido quanto ao seu preenchimento, concluindo-se, no entanto, em ambos os casos, pela manutenção da responsabilidade da seguradora.

Nesta conformidade, parece-nos inequívoco que as instâncias confluem para a mesma solução jurídica, com recurso ao mesmo enquadramento jurídico, ainda que com uma fundamentação não totalmente coincidente, mas sem ser radicalmente diferente.

2. Ora, de acordo com a doutrina mais relevante e jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça[2], só poderemos considerar que se verifica uma “fundamentação essencialmente diferente”, de modo a possibilitar o acesso ao terceiro grau de jurisdição, nos termos do disposto no art. 671.º n.º 3, do C.P.C., quando o acórdão do Tribunal da Relação perfilhe uma solução jurídica inovadora e com uma real diversidade nos aspetos essenciais em relação à sentença da primeira instância, isto é, trilhe um percurso jurídico diferente, sendo irrelevantes discrepâncias marginais, secundárias, ou periféricas.

Neste contexto, dúvidas não podem subsistir que, na situação em análise, o acórdão do Tribunal da Relação ... tenha enveredado por uma solução inovadora e que tenha sulcado um percurso jurídico diverso da sentença do Juízo do Trabalho ... e, muito menos, que tenha contrariado frontalmente a fundamentação desta.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em desatender a reclamação da Ré Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. e, em consequência, manter-se o despacho de 03/03/2022, que não admitiu, pelas razões mencionadas, a revista interposta.

Custas pela Ré/reclamante, com 2 UC de taxa de justiça.

Anexa-se Sumário (art. 663.º n.º 7, do C.P.C.).

Notifique.

Lisboa, 11 de maio de 2022

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos José de Morais


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[1] Deixa-se consignado que apenas foi notificada a Ré, uma vez que o Autor/recorrido AA, com o patrocínio do Ministério Público, havia suscitado a questão da dupla conformidade, nas suas contra-alegações (Cfr. art. 654.º n.º 2, do C.P.C.).
[2] Cfr., por todos, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6.ª edição atualizada, Almedina, pg. 413 e ss., e os acórdãos do STJ de 15/2/2022, da 1.ª S., e de 17/11/2021, da 7.ª S., cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Isaías Pádua e Oliveira Abreu, disponíveis em www.dgsi.pt.