Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
85/15.5GEBRG-N.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
INQUÉRITO
PRAZO PEREMPTÓRIO
PRAZO PERENTÓRIO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 08/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / REVOGAÇÃO, ALTERAÇÃO E EXTINÇÃO DAS MEDIDAS / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE / CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES CONTRA A ORDEM E A TRANQUILIDADE PÚBLICAS / CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA.
Doutrina:
- Germano Marques da Silva, Princípio da Celeridade e Prazos de Inquérito, Revista Julgar, n.º 34, 2018, p. 139 e ss.;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, p. 508;
- José António Barreiros, Inquérito Sem Prazo, Justiça Sem Fim, ainda na mesma Revista, p. 149 e ss.;
- Maia Costa, Código de Processo Penal, Comentado, de Henriques Gaspar et al., Almedina, 2.ª Edição, p. 853 e 926 ; Código de Processo Penal, Anotado, 17.ª Edição, p. 659 e ;
- Paulo Dá Mesquita, Prazos da Acção Penal e Procedimento para Acusação, na mesma Revista, p. 166 e ss.;
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, p. 738;
- Souto de Moura, Inquérito e Instrução, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1991, p. 102.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 215.º, N.º 1, 222.º, N.º 2, ALÍNEAS A), B) E C), 89.º, N.º 6, 109.º E 276.º, N.ºS 6, 7 E 8.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 202.º, ALÍNEA B), 203.º, N.º 1, 204.º, N.º 2, ALÍNEAS A) E E) E 299.º, N.ºS 1 E 5.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 11-10-2007, PROCESSO N.º 07P3852, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-10-2007, PROCESSO N.º 06P4713, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-05-2012, PROCESSO N.º 591/11.054LSB, IN SASTJ, ANO DE 2012, P. 267;
- DE 30-01-2013, PROCESSO N.º 11/13.6YFLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 26-10-2016, PROCESSO N.º 5/13.1IDCTB-B.C1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A providência de habeas corpus no respeitante à prisão ilegal, tem o seu tratamento processual no art. 222.º do CPP, cujo elenco taxativo o n.º 2 faz derivar do facto de:“a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.“
II - A providência de habeas corpus constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediatamente às situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade da prisão directamente verificável a partir dos factos documentados no respectivo processo.
III - Os prazos de prisão preventiva a que se reportam o n.º 1 do art. 215.º do CPP são prazos fixados em função de cada fase processual indicada nas várias alíneas, ampliando-se o prazo anteriormente fixado à medida que se atingem as fases sucessivas – acusação, pronúncia e/ou condenação – não dependendo da respectiva notificação, mas da sua dedução, como desde logo se conclui da letra da lei referente a essas fases processuais. O prazo é único, isto é, não há vários prazos, um em cada fase e o mesmo é contado desde o decretamento da prisão preventiva até à prolação da acusação ou decisão de pronúncia ou condenação.
IV - O art. 276.º do CPP fixa prazos de duração máxima para o inquérito, fazendo-os variar em função da situação processual do arguido, da gravidade dos crimes e da excepcional complexidade do próprio processo. Conforme há muito a doutrina vem sustentando os prazos máximos de duração do inquérito não são peremptórios, sendo válidos os actos processuais praticados ainda que depois de findo o prazo, o mesmo é dizer, o termo do prazo não tem qualquer efeito preclusivo, mormente no que respeita à imposição da medida coactiva de prisão preventiva.
V - As consequências do decurso do prazo de inquérito são de ordem meramente administrativa, não vão além da possibilidade de fixação de um período necessário para conclusão do inquérito ou avocação do processo, num e noutro caso, pelo superior hierárquico imediato do titular do processo ou de dedução do incidente de aceleração processual (art. 276.º, n.ºs 6 a 8 e 109.º, ambos do CPP), bem como, ainda do fim do segredo de justiça interno (art. 89.º, n.º 6, do CPP). Se outro fosse o entendimento da lei, isto é, se os prazos fossem de caducidade ou os seus termos determinassem uma qualquer invalidade, ficaria sem sentido útil o instituto de aceleração processual do art. 109.º do CPP, sempre apresentado como grande novidade do direito processual penal pátrio.
VI - A imposição da medida de coacção de prisão preventiva, ainda que para lá do prazo de duração do inquérito, não enferma de qualquer invalidade, sendo realidades distintas os prazos de inquérito e de duração da prisão preventiva. Não se vislumbra nesta interpretação qualquer violação de princípios da CEDH ou de precitos de ordem constitucional.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, invocando a ilegalidade da prisão preventiva em que se encontra no Estabelecimento Prisional de ... à ordem do processo de inquérito n.º 85/15.5GEBRG (actos jurisdicionais) do Juízo de Instrução Criminal de Guimarães - Juiz 2, Comarca de ..., por haver sido decretada após decurso do prazo de duração máxima do inquérito, veio através de Il. Advogado requerer providência de habeas corpus, nos termos e com os fundamentos que se transcrevem:

1. Na sequência da detenção efectuada pelo Órgão de Policia Criminal às 7:00 horas do dia 01 de Julho de 2018, o ora requerente foi apresentado, em 03 de Julho de 2018, ao Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal, para a realização de primeiro interrogatório judicial.

2. No âmbito do mencionado interrogatório, por considerar estar indiciada a prática de um crime de associação criminosa e de sete crimes de furto qualificado, com fundamento na alegada existência de perigo de continuação da actividade criminosa, de fuga e de perturbação do decurso do inquérito, foi proferido o despacho de fls. 3413 a 3498, através do qual, o Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal aplicou ao aqui requerente a medida de coacção de prisão preventiva.

3. Assim, o requerente encontra-se a cumprir a mencionada medida coactiva no Estabelecimento Prisional de ..., desde a referida data de 03 de Julho de 2018.

4. Todavia, apesar de o requerente só ter sido detido em 1 de Julho de 2018, e preso preventivamente no referido dia 3 do mesmo mês e ano, o certo é que, conforme consta de fls. 3422, 3489 e 3495 dos autos, o inquérito teve o seu início na longínqua data de 16 de Abril de 2015,

5. ou seja, há 41 meses.

6. O prazo do inquérito é único, não se interrompe, nem se suspende...

7. Ora, conforme é consabido, nos termos do disposto no artigo 276.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público, enquanto titular da fase de inquérito, independentemente do crime em investigação, tem de proferir despacho de arquivamento ou de acusação no prazo MÁXIMO de 18 meses.

8. Pelo que, dúvidas não existem de que, no caso concreto, se encontra há muito esgotado o prazo de duração máxima da referida fase processual,

9. o que, aliás, já foi reconhecido expressamente, quer pelo Ministério Publico na promoção de fls. 4019, quer pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal, no seu despacho de 24 de Julho de 2018 – refª. 159352213.

10. De facto, consta no mencionado despacho que se mostram inequivocamente findos os prazos previstos no artigo 276.º do Código de Processo Penal, considerando a data em que o inquérito passou a ter suspeitos, o que coincide temporalmente com o prazo em que foi reaberto o inquérito, e simultaneamente, os autos sujeitos a segredo de justiça.

11. Por outro lado, importa referir que, da leitura do referido artigo 276.º Código de Processo Penal e do artigo 215.º do mesmo diploma legal, constata-se que o prazo de duração da prisão preventiva e o prazo máximo de duração da fase do inquérito são semelhantes,

12. o que permite concluir que o prazo máximo de duração daquela medida coactiva foi determinado pelo legislador de forma precisa e absolutamente dependente do tempo de duração das fases processuais previstas para o processo penal.

13. De facto, é manifesto que a ideia central do legislador foi a de fazer coincidir o termo da prisão preventiva com o momento estabelecido para o termo das sucessivas fases processuais, de forma a promover a aceleração do processo e o seu andamento sem delongas, incentivando os titulares de cada uma das respectivas fases a respeitar os prazos de conclusão das mesmas.

14. O arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

15. Assim o estabelece o artigo 32.º da nossa Constituição e já o proclamava, em 1789/1791, a 6ª emenda à Constituição dos EUA.

16. A morosidade penaliza quem está sujeito a medidas de coacção, a meios de obtenção de prova e a uma inexorável estigmatização social (apesar de se presumir inocente).

17. A providência de habeas corpus é uma providência excepcional, destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade, como doutrina Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, 1986, pág. 273), que a rotula de «providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional», confluindo, no mesmo sentido entre outros. Germano Marques da Silva, ensina que a providência de habeas corpus é «uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo, em muito curto espaço de tempo, a uma situação de ilegal privação de liberdade» (Curso de Processo Penal, tomo 2.º, pág. 260).

18. A providência de habeas corpus não pressupõe o prévio esgotamento dos recursos que possam caber da decisão de onde promana a prisão dita ilegal, sendo compatível com a possibilidade de recurso de tal decisão, exactamente pela necessidade de pôr imediatamente cobro a uma situação de patente ilegalidade.

19. A providência de habeas corpus não almeja a reanálise do caso; pretende a constatação da ilegalidade.

20. No caso dos autos, para além de se detectar abuso de poder, também se patenteia a ilegalidade adjacente ao esgotamento do prazo legalmente fixado para o encerramento do inquérito, que constitui um erro, grosseiro e grave na aplicação do direito, por força dos quais é de detectar ilegal a prisão do requerente.

21. Ou seja, de acordo com as regras e princípios aplicáveis ao processo penal, resulta que os prazos fixados no artigo 215.º do Código de Processo Penal não podem ser considerados de forma isolada, na medida em que, terá de ser necessariamente tida em conta a intenção específica do legislador, a qual, impõe que se conjugue o disposto no referido artigo 215.º do Código Processo Penal com os normativos que estabelecem os prazos de duração máxima de cada uma das fases do processo.

22. Ora, conforme já se referiu, no caso concreto, os prazos de duração máxima do inquérito já se encontram largamente ultrapassados, pelo que, estamos perante um "vazio" processual, na medida em que, o inquérito enquanto fase de investigação e recolha de indícios terá de ser considerado, necessariamente, encerrado por força do decurso do referido prazo legal e obrigatório previsto no artigo 276.º do CPP.

23. Isto é, apesar de formalmente o Ministério Público ainda não ter encerrado o inquérito, o certo é que, por se encontrarem, largamente, ultrapassados todos os prazos legalmente fixados para a duração do mesmo, impõe-se que a fase de inquérito, repete-se, enquanto fase de investigação e de recolha de indícios da prática de crime, se considere imediatamente encerrado, já que, neste momento impende apenas sobre o Ministério Público a obrigação de proferir, fora de prazo, despacho de arquivamento ou acusação,

24. pois, caso contrário, ou seja, caso inexistisse qualquer consequência para a ultrapassagem dos prazos de duração das fases processuais, teríamos inquéritos a durar ad aeternum, com o consequente prejuízo dos direitos defesa e interesses constitucionalmente protegidos do arguido.

25. Face ao exposto, uma vez que o prazo de duração máxima da prisão preventiva tem de ser conjugado com o prazo de duração das várias fases processuais e sendo certo que, o prazo máximo de duração do inquérito já se esgotou, o que, necessariamente, implica que, neste momento, o processo esteja "suspenso" a aguardar que seja proferido o respetivo despacho de arquivamento ou de acusação, dúvidas não existem de que a prisão do requerente é manifestamente ilegal, por não estar devidamente suportada por uma fase processual válida,

26. pois, repete-se, o inquérito está findo, e, portanto, não podem continuar a decorrer diligências de investigação com o arguido preso, uma vez que não existe qualquer fundamento legal para o arguido continuar privado da sua liberdade sem ser proferido despacho de encerramento de inquérito com o respectivo despacho de arquivamento/acusação.

27. De facto, é manifestamente ilegal que, passados 3 anos e quase 5 meses, ainda haja a pretensão de continuar a investigar no âmbito dos presentes autos de inquérito, com o arguido preso, sendo que o inquérito compreende um conjunto de diligências que visam investigar, dentro de um prazo legal a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e recolher as provas.

28. O processo de inquérito tem necessariamente que ser encerrado, com base nos factos apurados, sendo certo que cabe apenas ao Ministério Público concluir sobre a existência ou não da responsabilidade criminal de certa pessoa.

29. Ora, após o decurso do inquérito durante 3 anos e quase 5 meses, é manifesto que o prazo legal do inquérito está largamente esgotado, pelo que não é aceitável que se justifique a prisão do arguido na existência de qualquer perigo de perturbação do inquérito, pois, este há muito devia estar encerrado...

30. Por outro lado, é consabido que se o início da prisão preventiva apenas se verificar já depois de findo o prazo legal da fase de inquérito, não poderão colher os efeitos dos limites máximos previstos até à decisão instrutória, fase que ainda não teve o seu início.

31. Por idêntica razão, se numa determinada fase se tiver esgotado o limite do prazo de duração do inquérito, o arguido pode voltar a ser preso se se passar a outra fase e se se mantiverem as razões para determinar a sua prisão, desde que não tenha sido ainda atingido o máximo da correspondente fase.

32. Conforme já se referiu, o legislador teve o propósito de promover o andamento sem delongas dos processos, incentivando os respectivos responsáveis a respeitar os prazos de conclusão de cada fase, sob risco de insubsistência de uma prisão preventiva tida por essencial para a prossecução dos objectivos da justiça criminal.

33. A ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo das sucessivas fases processuais.

34. Os prazos de limite máximo de prisão preventiva até dedução de acusação são indicativos da duração do inquérito em cada um dos circunstancialismos definidos no artigo 215°, n.°1, alínea a), e n.ºs 2 e 3 (cfr. artigo 276.°, n.°1, primeira parte, e n.°2, alíneas a) e c)), razão pela qual, não podem os prazos estabelecidos no artigo 215.º do Código de Processo Penal, serem analisados de forma isolada, pois, impõe-se que se tenha em consideração a fase processual em causa.

35. Como se verifica, os prazos de duração máxima de prisão preventiva são pré-determinados segundo a fase processual, a gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento.

36. Como resulta do citado artigo 28.º n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, "a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei", significando que não pode, face à sua natureza de "ultima ratio", de deixar de estar temporariamente limitada.

37. Cabendo à lei, a fixação de prazos de prisão preventiva, dispõe, consequentemente, o legislador ordinário de uma relativa margem de liberdade de conformação, sem embargo de dever ser respeitado o princípio da proporcionalidade, conforme salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, l volume, Coimbra, página 490 e, no mesmo sentido Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, página 321, e Acórdãos deste Tribunal n.ºs 137/92 e 246/99 (o primeiro disponível em www.tribunalconstitucional.pt e o segundo publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1999)».

38. Na verdade, a opção do legislador foi a de obrigar os titulares dos inquéritos a tomar em conta como termo final do prazo da primeira fase da prisão preventiva, a data em que deveria ser proferida a acusação ou o arquivamento, uma vez que este momento se revela congruente com propósito de promover sem delongas o normal decurso do processo.

39. Entendendo-se como absolutamente razoável a opção do legislador,

40. há que ter em conta que apenas releva a prisão efectiva e actual e a ilegalidade deve ser aferida em função da situação processual presente.

41. De acordo com o princípio da actualidade, é necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, sendo a actualidade reportada ao momento em que é necessário apreciar o pedido - neste sentido, cfr., i. a. acórdãos deste Tribunal de 06-01-1994, in BMJ n.º 433, pág. 419; de 21-01-2000, in BMJ n.º 493, pág. 269; de 24-10- 2001, processo n.º 3543/01-3.ª; de 26-06-2003, in CJSTJ 2003, tomo 2, pág. 224; de 30-01-2003, processo n.º 378/03-5.ª; de 19-10-2006, processo n.º 3950/06-5ª; de 20-12-2006, processo n.º 4731/06-3.ª; de 01-02-2007, processo n.º 350/07-5.ª; de 15-02-2007, processo n.º 526/07-5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 1440/07-5.ª; de 13-02-2008, processos n.ºs 435/08 e 522/08; de 02-04-2008, processo n.º 1154/08; de 22-10-2008, processo n.º 3447/08; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08; de 19-12-2008, processo n.º 4140/08, todos da 3.ª secção.

42. Neste momento, decorridos três anos e cinco meses de diligências de inquérito, sem que tenha sido proferido o despacho de encerramento, com o necessário despacho de arquivamento/acusação, tal fase terá de ser alvo de preclusão.

43. O artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.

44. O motivo aduzido pelo requerente cabe no elenco contemplado no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nomeadamente, no fundamento da alínea c), nos termos invocados.

45. Na situação presente a prisão do requerente foi ordenada por entidade competente, no caso pelo Juiz de Instrução Criminal com jurisdição na área da Comarca de ... e com fundamento na existência de indícios da prática pelo arguido de crime que justifica a aplicação da medida de prisão preventiva no âmbito de um inquérito que teve o seu início em 16 de Abril de 2015, apesar de se mostrarem largamente esgotados os prazos da fase de inquérito, sem ter sido deduzida acusação, o arguido terá necessariamente que ser libertado, até que o processo entre numa nova fase.

46. Verifica-se, pois, que se encontram preenchidos os pressupostos legais para que seja decretada a ilegalidade da prisão, pois, existe o invocado fundamento da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal, o que viabiliza desde logo a providência, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, integra as alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal.

47. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 217.º do Código de Processo Penal, "o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir (...)".

48. Deste modo, uma vez que a medida de coacção que lhe foi aplicada, terá necessariamente de ser declarada extinta pelo decurso do prazo de duração máximo do inquérito, é manifesto que o mesmo deverá ser posto em liberdade.

49. E, por isso, impõe-se uma pergunta: que Estado de Direito é este em que a lei impõe restrições severas à aplicação da prisão preventiva, elevando-a à medida de coacção excepcional - a última «ratio» -e os tribunais a aplicam de forma desajustada e sem critério, fazendo, assim, letra morta da sua característica da subsidiariedade?

50. Que Estado de Direito é este em que se decreta a aplicação de uma medida de coacção de prisão preventiva, assente num processo de inquérito cujo prazo de conclusão já se encontra findo?

51. É para nós evidente que, em matérias tão sensíveis como esta dos direitos, liberdades e garantias, o legislador tem que adoptar critérios muito mais restritivos, de modo a não permitir grandes margens de manobra, pois, só assim será possível cumprir os ditames constitucionais e legais e, por consequência, só assim poderemos cumprir o Estado de Direito Democrático, cuja construção está expressa na nossa Constituição e que todos temos a obrigação de construir.

52. Ora, a verdade é que, em clara violação do disposto no n.º 1 do artigo 217.º do Código de Processo Penal, o requerente encontra-se ilegalmente preso no Estabelecimento Prisional de ....

53. Por isso, conforme é consabido, a providência de habeas corpus constitui um incidente que se destina a assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido - artigo 27.º n.º 1 e 31.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - e visa pôr termo a situações de prisão ilegal, motivada, entre outros, por ser mantida para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial.

54. Ou seja, a providência extraordinária de habeas corpus tem como pressuposto de facto a prisão efectiva e actual e como fundamento de direito a sua ilegalidade.

55. Conforme se demonstrou, o arguido encontra-se ilegalmente preso, porquanto a sua prisão se mantém para além dos prazos fixados por lei - 222.º n.º 2 c) do Código de Processo Penal.

56. Deste modo, é esta a medida legalmente adequada para restituir, com a maior brevidade, a liberdade ao requerente, a qual, ilegalmente lhe está a ser coartada.

57. Verifica-se, assim, uma violação dos princípios básicos incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptados pela Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948 e publicada no Diário da República, I Série A, n.9 57/78, de 9 de Março de 1978, mediante, Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e dos direitos constitucionalmente consagrados nos artigos 27º., e 32º da Constituição da República Portuguesa.

CONCLUSÕES:

1. No passado dia 3 de Julho de 2018 foi aplicada ao requerente a medida de coacção de prisão preventiva.

2. Desde a referida data, o requerente encontra-se a cumprir a mencionada medida coactiva no Estabelecimento Prisional de ....

3. Embora o requerente só tenha sido preso preventivamente no referido dia 3 de Julho de 2018, o inquérito teve o seu início na longínqua data de 16 de Abril de 2015, ou seja, 41 meses.

4. O artigo 276.º- do Código de Processo Penal, independentemente do crime em investigação, impõe ao Ministério Público que encerre o inquérito no prazo máximo de 18 meses.

5. É, assim, manifesto que no caso concreto já se encontra há muito esgotado o prazo de duração máxima da referida fase processual, o que, aliás, já foi reconhecido expressamente, quer pelo Ministério Público na promoção de fls. 4019, quer pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal, no seu despacho de 24 de Julho de 2018 - ref. 159352213.

6. Resulta da leitura do artigo 276.º Código de Processo Penal e do artigo 215.º do mesmo diploma legal, que o prazo de duração da prisão preventiva e o prazo máximo de duração da fase do inquérito são semelhantes, o que é revelador de que o prazo máximo de duração daquela medida coactiva foi determinado pelo legislador de forma precisa e absolutamente dependente do tempo de duração das fases processuais previstas para o processo penal.

7. Da leitura dos dois preceitos legais resulta que a ideia central do legislador foi, de facto, a de fazer coincidir o termo da prisão preventiva com o momento estabelecido para o termo das sucessivas fases processuais, de forma a promover a aceleração do processo e o seu andamento sem delongas, incentivando os titulares de cada uma das respetivas fases a respeitar os prazos de conclusão das mesmas, na medida em que, como é consabido, o arguido deve ser julgado no mais curto prazo razoável compatível com as garantias de defesa.

8. De acordo com as regras e princípios aplicáveis ao processo penal, resulta que os prazos fixados no artigo 215.º do Código de Processo Penal não podem ser considerados de forma isolada, na medida em que, terá de ser necessariamente tida em conta a intenção específica do legislador, a qual, impõe que se conjugue o disposto no referido artigo 215.º do Código Processo Penal com os normativos que estabelecem os prazos de duração máxima de cada uma das fases do processo.

9. No caso concreto, os prazos de duração máxima do inquérito já se encontram largamente ultrapassados, pelo que, estamos perante um "vazio" processual, na medida em que, o inquérito enquanto fase de investigação e recolha de indícios terá de ser considerada, necessariamente, encerrada por força do decurso do referido prazo legal e obrigatório previsto no artigo 276º do CPP.

10. Embora o Ministério Público ainda não tenha encerrado o inquérito, o certo é que, por se encontrarem, largamente, ultrapassados todos os prazos legalmente fixados para a duração do mesmo, impõe-se que a referida fase, repete-se, enquanto fase de investigação e de recolha de indícios da prática de crime, se considere imediatamente encerrada, já que, neste momento impende apenas sobre o Ministério Público a obrigação de proferir, fora de prazo, despacho de arquivamento ou acusação.

11. Caso inexistisse qualquer consequência para a ultrapassagem dos prazos de duração das fases processuais, teríamos inquéritos a durar ad aeternum, com o consequente prejuízo dos direitos defesa e interesses constitucionalmente protegidos do arguido.

12. É manifestamente ilegal que, passados 3 anos e quase 5 meses, ainda haja a pretensão de continuar a investigar no âmbito dos presentes autos de inquérito, com arguidos presos, sendo certo que, não é tampouco aceitável que se justifique a prisão do arguido, na existência de qualquer perigo de perturbação de um inquérito que há muito devia estar encerrado.

13. Os prazos de limite máximo de prisão preventiva até dedução de acusação são indicativos da duração do inquérito em cada um dos circunstancialismos definidos no artigo 215°, n.º1, alínea a), e n.ºs 2 e 3 (cfr. artigo 276.°, n.°1, primeira parte, e n.°2, alíneas a) e c)), razão pela qual, não podem os prazos estabelecidos no artigo 215.º do Código de Processo Penal, serem analisados de forma isolada, pois, impõe-se que se tenha em consideração a fase processual em causa.

14. A opção do legislador foi a de obrigar os titulares dos inquéritos a tomar em conta como termo final do prazo da primeira fase da prisão preventiva a data em que deveria ser proferida a acusação ou o arquivamento, uma vez que este momento se revela congruente com propósito de promover sem delongas o normal decurso do processo.

15. Conforme se demonstrou, o arguido encontra-se ilegalmente preso, porquanto a sua prisão se mantém para além dos prazos fixados por lei - 222.º n.º 2 c} do Código de Processo Penal.

16. Deste modo, é esta a medida legalmente adequada para restituir, com a maior brevidade, a liberdade ao requerente, a qual, ilegalmente lhe está a ser coartada.

17. Verifica-se, assim, uma violação dos princípios básicos incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptados pela Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948 e publicada no Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março de 1978, mediante, Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e dos direitos constitucionalmente consagrados nos artigos 27º. e 32º da Constituição da República Portuguesa.

NESTES TERMOS,

e, nos melhores de direito que V. Exa. muito doutamente suprirá, deve ser declarada a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva, e, em consequência ser ordenada a libertação imediata do requerente AA.

Mais se requer que, seja fixada uma sanção pecuniária compulsória de € 5.000,00 a favor do arguido, por cada dia em que o mesmo se encontrar em prisão ilegal e em absoluta privação de liberdade”.

O Exmo. Juiz daquele processo (actos jurisdicionais), de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 223.º do CPP, prestou a seguinte informação:

O arguido requerente encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva desde o passado dia 3 de Julho de 2018 (cfr. auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido e fls. 3570 dos autos principais).

Os presentes autos tiveram o seu início em 17/04/2015 (conforme consta do auto de denúncia de fls. 3 dos autos principais) e ainda não foi proferido despacho de encerramento do inquérito, sendo certo que, conforme referido pelo Ministério Público na promoção de fls. 4052 dos autos principais, só a partir de 24/02/2017 é que passaram a correr contra pessoa determinada (cfr. despacho de reabertura do inquérito de fls. 66 dos autos principais).

Em relação ao mérito do requerimento ora em apreço, e não querendo naturalmente o signatário substituir-se a esse Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, afigura-se ser de referir que o artigo 276.° do Código de Processo Penal determina, na verdade, a fixação de prazos de duração máxima do inquérito, de acordo com a situação do arguido, o tipo legal de crime e a complexidade da respectiva investigação, podendo o Procurador-Geral da República determinar, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, a adopção do regime de aceleração processual, nos termos do artigo 109.°, quando tenham sido ultrapassados esses prazos.

Todavia, a única consequência que decorre do incumprimento desses prazos, ou daqueles que forem fixados em aplicação do mecanismo previsto no artigo 109.°, é a agora estabelecida no artigo 89.°, n.º 6, do Código de Processo Penal, que se traduz na possibilidade de levantamento do segredo de justiça, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido.

Nada permite, por outro lado, concluir que a ausência de libelo acusatório, no termo do prazo máximo definido para a duração do inquérito, representa a inexistência de indícios da prática de crime, já que esse prazo é meramente ordenador e a sua ultrapassagem, para além da consequência processual há pouco mencionada, não tem quaisquer efeitos preclusivos.

Na jurisprudência podem ver-se a propósito desta questão os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Outubro de 2016 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/02/2017, ambos consultáveis em wwvv.dgsi.pt, tendo-se deixado escrito naquele primeiro acórdão que «o Código de Processo Penal no seu artigo 276.°, n.º 1, não atribui uma qualquer natureza ao prazo que aí estabelece para o encerramento do inquérito. Em primeiro lugar, não estamos perante o estabelecimento de um prazo para o exercício de um direito mas antes, perante o estabelecimento de um prazo para o exercício de um poder-dever vinculado do titular da acção penal, no caso.

Daí poder retirar-se que estamos perante norma programática que mais não pretende do que fixar ao agente titular desse poder funcional um prazo para o encerramento do inquérito, sob pena de eventual responsabilidade disciplinar. Como diz Maia Gonçalves, em anotação a este artigo do Código de Processo Penal, «os prazos máximos de duração do inquérito não são peremptórios, pois não é possível demarcar o tempo e uma investigação. As diligências praticadas para além desses prazos são válidas. Porém, um excesso para além do que é razoável pode desencadear responsabilidade disciplinar e um incidente de aceleração processual».

Afigura-se-nos ser precisamente neste instituto de aceleração processual que vamos encontrar uma resposta decisiva à questão que nos ocupa.

Com efeito, a norma do artigo 108.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, estatui que quando tiverem sido excedidos os prazos previstos na lei para a duração de cada fase do processo, podem o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis requerer a aceleração processual.

Daqui se retira uma conclusão óbvia: o prazo que estudamos não é de caducidade, pois que, de outro modo, a ter-se verificado, estaríamos perante um caso de preclusão do direito (no caso do poder-dever respectivo), pelo seu não exercício no prazo legalmente assinado. Mas, a assim ser, existiria contradição intrínseca do sistema processual penal, já que a norma do artigo 108.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, permitiria o prosseguimento do processo não obstante o poder-dever de formular a acusação se ter extinguido, por ter caducado.

Como poderia a lei permitir a formulação de uma acusação já depois de o prazo legalmente estabelecido para tal se mostrar precludido? E as normas dos artigos 109.°, n.º 5 e 6, do Código de Processo Penal, são claras na atribuição de uma responsabilidade   meramente   disciplinar   ao   causador   desses   atrasos,   sempre   que injustificados.

Ao permitir a aceleração processual, mesmo após se mostrarem excedidos os prazos de duração de cada uma das fases processuais, a lei está a atribuir aos prazos fixados uma natureza meramente ordenatória, funcional e referencial, retirando-lhes, deste modo, qualquer natureza preclusiva do poder-dever em análise.
A mesma natureza, ordenatória-funcional, terão os prazos para a prática dos actos da secretaria (artigo 105.° Código de Processo Penal), para o encerramento da instrução (artigo 306.º Código de Processo Penal), entre outros.

Não se compreenderia a atribuição de natureza peremptória a esses prazos processuais, conhecida que é a crescente complexidade dos processos, como bem demonstram os presentes autos.

A certeza e a segurança jurídicas e a definição do estatuto dos arguidos serão alcançadas mediante a aplicação ao caso dos prazos de prescrição do procedimento criminal.

Afigura-se-nos, por conseguinte e ressalvado o devido respeito por diferente opinião, não ser de acolher a tese sufragada pelo arguido requerente, sendo certo ainda que, encontrando-se o arguido preso preventivamente há cerca de mês e meio, o prazo o prazo máximo legalmente previsto no artigo 215.°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código de Processo Penal, não se mostra manifestamente atingido.

Cremos, pois, ser legal a aplicação e manutenção da medida de coacção de prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito, devendo, em consequência, ser a presente petição de habeas corpus indeferida, por manifestamente improcedente”.

Convocada a Secção Criminal e notificado o M.º P.º e o defensor teve lugar a audiência, nos termos dos art.ºs 223.º, n.º 2 e 435.º, do CPP.

Cumpre, pois, conhecer e decidir a questão suscitada, de saber se o decurso do prazo de duração máxima do inquérito preclude a possibilidade de aplicação da medida coactiva de prisão preventiva.

*

II. Fundamentação

1. O circunstancialismo relevante para julgamento da presente providência é o que resulta quer da própria petição de habeas corpus, quer da informação do respectivo juiz, quer da certidão junta, havendo a assinalar que o ora requerente foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva no dia 03-07.2018, no âmbito do processo acima referido, na sequência do 1.º interrogatório judicial de arguido detido, por indiciação da prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299.º, n.ºs 1 e 5, pela autoria de 3 crimes de furto qualificado p. e p. pelos art.ºs 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alín. a) e 202.º, alín. b) e co-autoria de 4 crimes de furto qualificado p. e p. pelos art.ºs 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alín. e), todos do Cód. Penal.

2. A providência de habeas corpus tem tutela constitucional no art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa, que dispõe:

1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos. 

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

Na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira[1] essa medida “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos art.ºs 27.º e 28.º (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

No respeitante à prisão ilegal, o seu tratamento processual decorre do art.º 222.º do CPP, cujo elenco taxativo o n.º 2 faz derivar do facto de:

a) - Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) – Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) – Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Como providência excepcional, o habeas corpus constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediatamente às situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade da prisão directamente verificável a partir dos factos documentados no respectivo processo[2].

Dispondo sobre os prazos de duração máxima de prisão preventiva, reza o n.º 1 do art.º 215.º do CPP:

1. A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado”.

O n.º 2 alarga esses prazos, respectivamente para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, além do mais para o caso de criminalidade altamente organizadas ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou, mormente, pelo crime do art.º 299.º do CP (associação criminosa).

O n.º 3 prevê um outro alargamento, para o caso de alguns crimes (que indica por remissão ao n.º anterior) e se o processo for declarado de excepcional complexidade.

Os prazos de prisão preventiva a que se reportam o n.º 1 do art.º 215.º do CPP são prazos fixados em função de cada fase processual indicada nas várias alíneas, ampliando-se o prazo anteriormente fixado à medida que se atingem as fases sucessivas - acusação, pronúncia e/ou condenação - não dependendo da respectiva notificação, mas da sua dedução, como desde logo se concluiu da letra da lei referente a essas fases processuais (“deduzida acusação”, “proferida decisão instrutória”, “tenha havido condenação em 1.ª instância ou com trânsito em julgado”).

O prazo é único, isto é, não há vários prazos, um para cada fase e o mesmo é contado desde o decretamento da prisão preventiva até à prolação da acusação ou decisão de pronúncia ou condenação.

Por seu turno, o art.º 276 do CPP fixa prazos de duração máxima para o inquérito, fazendo-os variar em função da situação processual do arguido, da gravidade dos crimes e da excepcional complexidade do próprio processo (6 meses, 8 meses para os crimes referidos no n.º 2 do art.º 215.º do CPP e 10 e 12 meses para os casos de excepcional complexidade, conforme n.º 3 do mesmo preceito, havendo arguidos presos ou sujeitos à medida de OPH, e 8, 14, 16 e 18 meses, respectivamente, para os demais casos).

Sustenta o requerente que decorridos os prazos do inquérito apenas compete ao Ministério Público proferir, fora de prazo, despacho de arquivamento ou acusação, estando precludido qualquer outro acto investigatório com o arguido preso preventivamente.

Assim não é.

Conforme há muito a doutrina vem sustentando, os prazos máximos de duração do inquérito não são peremptórios, sendo válidos os actos processuais praticados ainda que depois de findo o prazo, o mesmo é dizer, o termo do prazo não tem qualquer efeito preclusivo, mormente no que respeita à imposição da medida coactiva de prisão preventiva[3].

Revisitada a questão, num passado recente, Germano Marques da Silva[4], após expressar o seu alinhamento na doutrina e jurisprudência dominantes quanto a considerar os prazos de inquérito como prazos ordenadores, não peremptórios, conclui que “em caso algum a lei dispõe que o excesso de prazo para a duração da fase processual do Inquérito determina o seu arquivamento ou comina a nulidade dos actos praticados após o decurso do prazo”.

Essa é ainda a posição de Paulo Dá Mesquita[5].

Respigando do resumo que antecede o artigo em causa, “[a] interpretação histórico-teleológica e sistemático-teleológica da norma do art.º 276.º do CPP revela que os prazos previstos nos n.ºs 1 a 3 desse preceito não têm qualquer efeito peremptório relativamente ao exercício da acção penal. A atribuição aos prazos previstos no art.º 276.º do CPP de efeitos preclusivos da acção penal seria desconforme à independência dos tribunais, autonomia do M.º P.º, estrutura acusatória do processo penal e ao comando constitucional no sentido de que o exercício da acção penal deve ser orientado pela legalidade. O direito a uma decisão em prazo razoável tutelado pela Constituição e na CEDH não se reporta a uma decisão numa data abstractamente estabelecida para toda uma categoria de casos, sendo adequados para a defesa desse direito mecanismos de avaliação da justificação de ultrapassagem de prazos por uma entidade com poderes administrativos e disciplinares relativamente à autoridade responsável pelo processo como o previsto nos art.ºs 108.º e 109.º do CPP e de ressarcimento indemnizatório como a acção de responsabilidade civil extracontratual consagrada no art.º 12.º da Lei n.º 67/2007, de 31.12. A jurisprudência do TEDH também destaca que o direito à celeridade relativamente à investigação criminal e exercício da acção penal não é de um determinado sujeito processual e a sua comprovada lesão não impõe o encerramento automático do processo ou fase processual num determinado sentido”.

Dissonante destas posições, minoritariamente, José António Barreiros[6] sustenta que à falta de lei expressa a cominação para o decurso do prazo de inquérito não pode ser a caducidade, mas a invalidade dos actos praticados para além do prazo, o que pode projectar-se a nível da validade da própria a acusação se entre ela e esses actos, praticados fora do prazo, houver um nexo causal.

Salvo o devido respeito esta é uma conclusão que e na economia do presente processo extraordinário e urgente de habeas corpus, não podemos subscrever, antes se aderindo, conforme já referido, à tese maioritária de que os prazos previstos nos n.ºs 1 a 3 do art.º 276.º do CPP não têm qualquer efeito peremptório relativamente ao exercício da acção penal e à imposição ao arguido de uma medida coactiva de prisão preventiva.

Com efeito, as consequências do decurso do prazo do inquérito (obviamente com o limite temporal da prescrição do procedimento criminal) são de ordem meramente administrativa, não vão além da possibilidade de fixação de um período necessário para conclusão do inquérito ou avocação do processo, num e noutro caso, pelo superior hierárquico imediato do titular do processo ou de dedução do incidente de aceleração processual (n.º 6 a 8 do art.º 276.º e 109.º, do CPP), bem como, ainda, do fim do segredo de justiça interno (n.º 6 do art.º 89.º do CPP).

Se outro fosse o entendimento da lei, isto é, se os prazos fossem de caducidade ou os seus termos determinassem uma qualquer invalidade, ficaria sem sentido útil o instituto de aceleração processual do art.º 109.º do CPP, sempre apresentado como grande novidade do direito processual penal pátrio.

A imposição da medida de coacção de prisão preventiva, ainda que para lá do prazo de duração do inquérito, não enferma de qualquer invalidade, sendo realidades distintas os prazos do inquérito e de duração da prisão preventiva.

Pela sua clareza, permitimo-nos aqui transcrever, do Ac. do STJ de 11.10.2007 que apreciou similar providência de habeas corpus[7], que “os prazos de conclusão do inquérito previstos no art.º 276.º do CPP nada têm que ver com os prazos da prisão preventiva e não têm qualquer influência nessa medida coactiva, nem nos despachos que a determinaram, mantiveram ou prolongaram.

O eventual excesso dos prazos do inquérito não fazem precludir o exercício da acção penal e apenas têm por consequência última a aceleração determinada pelo Procurador-Geral da República (n.º 6 do art.º 276.º). Para além de ter consequências no segredo de justiça, de acordo com o art.º 89.º, n.º 6, do CPP.

Por isso, ainda que nos autos já tenha sido excedido o prazo de conclusão do inquérito, o que não cabe averiguar no âmbito desta providência, a prisão preventiva mantém-se de acordo com os prazos máximos previstos no art.º 215.º do CPP”.

Também o acórdão de 09.05.2012 deste STJ[8] considerou (conforme sumário) que “para efeitos de contagem do prazo da prisão preventiva e sua extinção, o que releva não é o início do inquérito em que ocorreu a aplicação dessa medida de coacção – sendo por isso irrelevante convocar-se o disposto no art.º 276.º, n.ºs 1 e 3, do CPP – mas sim o início da prisão preventiva, como refere o corpo do art.º 215.º, n.º 1, do CPP”.

Comungando-se desta orientação e voltando ao caso dos autos, porque a prisão preventiva do arguido reporta o seu início a 03.07.2018, ou seja, a cerca de mês e meio, está ainda longe do decurso do prazo de 6 meses conforme o disposto na alín. a) do n.º 1 e n.º 2, do art.º 215.º do CPP, pelo que falece o fundamento invocado pelo requerente, da alín. c) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, bem como se não vislumbra qualquer violação de “princípios básicos” da CHDH ou de preceitos de ordem constitucional, para que possa tirar proveito da providência de habeas corpus requerida, qualquer outra razão legal não ocorrendo, a que oficiosamente pudesse atender-se para seu deferimento.

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III. Decisão

Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA.

Custas pelo requerente, com a taxa de justiça de 4 UC.

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Supremo Tribunal de Justiça, Escadinhas de São Crispim, 21 de Agosto de 2018

Francisco Caetano

Isabel São Marcos

Olindo Geraldes

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[1] Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, pág. 508.
[2] Cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal, Comentado, de Henriques Gaspar et al., Almedina, 2.ª ed., pág. 853.
No mesmo sentido e entre outros, v. os Acs. do STJ de 20.10.2007, Proc. 06P4713 e 30.01.2013, Proc. 11/13.6YFLSB.S1, in www.dgsi.pt.

[3] Vide, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anot., 17.ª ed., pág. 659, Maia Costa, ob cit., pág. 926 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., pág. 738, onde se dá ainda nota do acórdão do TC n.º 294/2008 que concluiu pela não inconstitucionalidade do art.º 276.º do CPP quando interpretado no sentido de que um acto processual (no caso apreensão de bens) se mantém válido não obstante praticado para lá do prazo máximo do inquérito, ainda que não tenha sido deduzida acusação.
No mesmo sentido, Souto de Moura, Inquérito e Instrução, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1991, pág. 102 onde sustenta que “ a supressão de qualquer alusão “ao termo do prazo” [no n.º 2 do art.º 277.º do projecto do CPP] não pode ter outro sentido do que o de, por um lado, se permitirem diligências fora do prazo, intocadas na sua validade e, por outro, haver casos de clara justificação para ultrapassagem de prazos. Pense-se, v. g., na situações de suspensão dos prazos de prisão preventiva, previstas no art.º 216.º do Código, sem que igual suspensão esteja prevista quanto aos prazos do inquérito, ou prossecução de investigações por via do art.º 278.º ”.
Na jurisprudência pode ver-se, no mesmo sentido, o Ac. RC de 26.10.2016, Proc. 5/13.1IDCTB-B.C1, www.dgsi.pt.
[4] Princípio da Celeridade e Prazos de Inquérito, Revista Julgar, n.º 34, 2018, págs. 139 e ss.
[5] Prazos da Acção Penal e Procedimento para Acusação, na mesma Revista, págs. 166 e ss.
[6] Inquérito Sem Prazo, Justiça Sem Fim, ainda na mesma Revista, págs. 149 e ss.
[7] Proc. n.º 07P3852, in www.dgsi.pt
[8] Proc. n.º 591/11.054LSB-3.ª Secção, in SASTJ, ano de 2012, pág. 267.