Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3606/12.1TBBRG-A.G1.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
PRESSUPOSTOS
FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
SENTENÇA CRIMINAL
PROVA TESTEMUNHAL
NEXO DE CAUSALIDADE
APRECIAÇÃO DA PROVA
SENTENÇA
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
INCAPACIDADE
TESTADOR
CESSÃO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
ERRO
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A revisão de decisão judicial transitada com fundamento na al. b) do art. 696º do CPC, designadamente quando se trate de falsidade de depoimento testemunhal, depende da demonstração da falsidade do meio de prova que tenha sido determinante da decisão, isto é causal ou concausal da decisão.

II. Verificada a condenação de uma testemunha pela prática do crime de falsidade do depoimento prestado na audiência final que precedeu a sentença que decretou a anulação de um testamento por incapacidade do testador e a anulação de um contrato de cessão de quinhão hereditário por erro, depoimento que influiu na formação da convicção relativamente aos factos que a 1ª instância e, depois, a Relação consideraram provados e não provados, verifica-se o nexo de causalidade exigido pela al. b) do art. 696º do CPC.

III. Ainda que na condenação criminal a falsidade do depoimento testemunhal tenha sido especificamente evidenciada relativamente aos factos de que resultou a anulação do testamento, revelar-se-ia artificial o estabelecimento de uma distinção relativamente aos dois negócios jurídicos que estavam em discussão, tanto mais que a credibilidade que foi atribuída ao depoimento da testemunha adveio do facto de ser magistrado judicial e de ter uma relação de proximidade com os outorgantes em ambos negócios jurídicos: conviveu com o testador, viveu em união de facto com a filha deste e estava a par do relacionamento existente entre esta e o seu irmão que vieram a celebrar o contrato de cessão do quinhão hereditário.

IV. Nestas circunstâncias, é legítimo concluir que se acaso qualquer das instâncias tivesse conhecimento da falsidade do depoimento testemunhal nos termos que veio a ser penalmente sancionado, tal elemento não deixaria de ser ponderado na avaliação da credibilidade de todo o depoimento, quer quando foi proferida a sentença de 1ª instância quer, depois, quando a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto.

V. Verificando-se, assim, a relação de concausalidade entre o depoimento falso e o acórdão da Relação que confirmou a sentença que declarara a anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário, estão preenchidos os pressupostos da revisão extraordinária desse acórdão.

Decisão Texto Integral:

I - AA

interpôs recurso extraordinário de revisão contra

BB

do acórdão da Relação que confirmou a sentença de 1ª instância que declarou anulado um contrato de cessão de quinhão hereditário outorgado entre a recorrente e o recorrido referente à herança do respetivo progenitor comum.

A pretensão de revisão extraordinária funda-se na al. b) do art. 696º do CPC, argumentando a recorrente que a decisão da matéria de facto que foi fixada pelas instâncias na ação declarativa foi determinada pelo depoimento da testemunha CC, na altura juiz de direito e que posteriormente veio a ser condenado precisamente pela prática do crime de falsidade desse depoimento.

Depois de vicissitudes processuais que envolveram a declaração de incompetência tanto da 1ª instância como da Relação, veio a ser decidido que a competência para a tramitação e apreciação deste recurso de revisão pertencia ao Tribunal da Relação.

O recorrido respondeu, defendendo a improcedência do recurso de revisão, na medida em que o depoimento testemunhal invocado pela recorrente não teria sido determinante da decisão cuja revisão é pedida, ou seja, da decisão de anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário.

Por acórdão da Relação foi julgado improcedente o recurso de revisão.

O recorrente interpôs recurso de revista, concluindo:

1. O tribunal a quo fez uma errónea interpretação do acórdão proferido no processo-crime nº …, bem como dos requisitos de admissibilidade do aludido recurso extraordinário.

2. Da leitura do acórdão-crime proferido neste Supremo, sendo arguido a aqui testemunha CC, não é possível concluir que a falsidade do seu depoimento se reconduziu apenas aos factos atinentes à anulação do testamento, tal como entendeu o Tribunal a quo, pois, a matéria de facto constante nos pontos 12, 13, 14, 20, 21, 22 e 34 dos factos provados pela Rel. Guimarães no processo cível (a qual, não foi objeto de qualquer alteração pelo Tribunal Superior), diz respeito à cessão do quinhão hereditário.

3. O acórdão criminal, na parte da motivação da decisão sobre a matéria de facto, concretamente, nas fls. 25 (quando se pronuncia sobre as declarações do arguido), 26 (quando faz alusão ao depoimento da testemunha DD), 29 (quando aprecia o depoimento da testemunha EE), 31 (quando se pronuncia relativamente ao depoimento da ali testemunha FF, aqui recorrido), e 40 e 41 (quando analisa do depoimento da testemunha GG), são inúmeras as referências à matéria atinente ao contrato de cessão do quinhão hereditário, nomeadamente, que, no momento da celebração da escritura aqui em causa, o recorrido não se mostrou admirado com a referência feita ao recebimento da quantia de € 700.000,00, nem quanto a qualquer outra questão.

4. O tribunal a quo andou mal ao ter concluído que da análise do acórdão proferido no processo-crime apenas resulta que a testemunha CC falseou os factos relacionados com a anulação do testamento, pois da análise da aludida decisão extrai-se claramente que o juízo incriminatório feito ao seu depoimento, na parte atinente à anulação do testamento, abrange igualmente o segmento do depoimento prestado no tocante à materialidade respeitante à anulação da cessão do quinhão hereditário, pelo que dúvidas não existem de que se deveria ter decidido que a falsidade do depoimento da testemunha CC abrange a matéria de facto em que a recorrente foi condenada nestes autos.

5. Mesmo que se entendesse que o acórdão proferido no processo-crime apenas atendeu aos factos referentes à anulação do testamento outorgado pelo pai da recorrente e do recorrido, ainda assim, impunha-se a procedência do recurso de revisão apresentado pela recorrente, com fundamento no disposto no art. 696º, nº 1, al. b), do CPC.

6. Atenta a razão que subjaz ao recurso de revisão – prevalência da justiça – parece-nos manifesto que, quando fez menção à falsidade do depoimento, o legislador pretendeu legitimar a alteração de uma decisão transitada em julgado, por via deste recurso extraordinário, no caso de se verificar que aquela decisão foi determinada, teve por base, o depoimento de uma testemunha que, deliberadamente, faltou à verdade, sendo irrelevante apurar se a mentira se verificou em todo o seu depoimento, ou apenas em parte dele, na medida em que, constatando-se a falsidade, tal depoimento deixa de poder ser valorado, já que, é inconcebível atribuir-se algum tipo de credibilidade a uma testemunha que foi condenada pela prática de um crime de falsidade de depoimento, com fundamento no facto de ter mentido sobre factos essenciais para a prolação da sentença proferida no processo onde faltou à verdade.

7. Perante uma mentira de uma testemunha, parece-nos evidente que a falsidade do seu depoimento terá necessariamente de contaminar todo o depoimento da testemunha, sob pena de permanecer a dúvida, junto da comunidade, se efetivamente foi feita ou não justiça!

8. É contrário ao espírito do legislador que o depoimento de uma testemunha que faltou à verdade sobre determinados factos em discussão num processo, o qual foi essencial para a decisão transitada em julgado, possa merecer acolhimento para prova de outros factos no mesmo processo.

9. A testemunha CC faltou deliberadamente à verdade dos factos que bem conhecia, com a finalidade de se vingar da ora recorrente, pelo facto de a mesma ter rejeitado as suas tentativas de reatar a relação marital que os uniu durante alguns anos e da qual nasceu uma filha.

10. Apesar de a testemunha bem saber que tal não correspondia à verdade, não teve qualquer pudor em afirmar que o seu sogro se encontrava absolutamente incapaz na data da outorga do testamento.

11. Ficou demonstrado naquele processo-crime que, após a separação, a identificada testemunha contactou o aqui recorrido para o “instigar” a intentar, contra a recorrente, a ação que deu origem à decisão que se pretende rever, parecendo manifesto que, admitir-se que tal depoimento possa sustentar a decisão revidenda, é o mesmo que aceitar que a justiça seja renegada.

12. O Tribunal a quo interpretou incorretamente a al. b) do nº 1 do art. 696º do CPC, na medida em que, para preencher o conceito de falsidade de depoimento basta tão só e apenas que se verifique que a testemunha mentiu, independentemente de ser ter apurado ou não se mentiu em tudo ou apenas em parte das respostas que deu perante um tribunal, na medida em que o comportamento de uma testemunha num processo deve ser perspetivado na sua globalidade e não de uma forma meramente fracionada.

13. Encontra-se preenchido o requisito da existência de nexo de causalidade, pois, para o preenchimento do referido requisito, basta que a falsidade possa ter determinado a decisão a rever, isto é, que nela tenha exercido influência relevante.

14. Não é necessário que a decisão tenha como única base o depoimento falso, e tendo em conta que a decisão revidenda assentou essencialmente no depoimento da testemunha CC, o tribunal “a quo” também andou mal quanto a este ponto.

15. A Rel. de Guimarães, bem como o tribunal de 1ª instância, quanto aos factos identificados nas alegações pelas als. a), b) e c), formaram a sua convicção através do depoimento das testemunhas HH e CC, sendo certo que, atento os depoimentos das duas referidas testemunhas, é manifesto que, para formar a convicção do tribunal, foi determinante o que foi relatado pela testemunha CC, já que, a testemunha HH não acompanhou a escritura de cessão de quinhão hereditário, nem tão pouco o acordo celebrado entre as partes antes da sua celebração, só tendo conhecimento dos factos em discussão nos autos após a celebração da respetiva escritura, ou seja, de forma indireta.

16. A convicção do tribunal quanto aos factos identificados nas alegações pelas als. d) a k), também assentou essencialmente no depoimento da testemunha CC, já que, embora a testemunha DD tenha confirmado que aquando da elaboração da escritura de cessão do quinhão hereditário recebeu indicações da testemunha CC, a o Tribunal entendeu que do seu depoimento não se podia inferir, sem mais, que houvesse contradição entre as declarações das referidas testemunhas.

17. Quanto aos factos constantes nas identificadas als. l) a p), resulta da leitura do acórdão que foi essencial para o tribunal formar a sua convicção o depoimento da testemunha CC, pois, apesar de na referida decisão se fazer menção ao depoimento da testemunha II, da sua leitura, é manifesto que também foi um mero complemento do depoimento da testemunha CC.

18. A convicção da Rel. de Guimarães e do Trib. Judicial da Comarca ..., plasmada nas suas respetivas decisões, quando à matéria referente a contrato de cessão do quinhão hereditário, assentou essencialmente no depoimento prestado pela testemunha CC.

19. Na sentença proferida em 1ª instância, para a qual remete o acórdão que se pretende rever, refere-se expressamente que a testemunha CC “foi sem margem para dúvidas uma testemunha essencial ao convencimento do tribunal face à proximidade com a R. e o seu pai aquando dos factos em discussão nos presentes autos”, o que é bem revelador de que o tribunal proferiu decisão no sentido de anular a escritura de cessão do quinhão hereditário celebrada entre o A. e a R. em 22-10-10, essencialmente porque deu como assente a factualidade relatada pela mencionada testemunha.

20. Não temos dúvidas que o tribunal proferiu decisão no sentido de anular a escritura de cessão do quinhão hereditário celebrada entre o A. e a R. em 22-10-10, essencialmente porque deu como assente a factualidade relatada pela mencionada testemunha.

21. O depoimento falso da testemunha CC foi determinante para a decisão a rever.

22. Encontra-se, absolutamente, preenchido o requisito da existência de nexo de causalidade entre a falsidade e a decisão a rever.

23. A mentira da testemunha foi pautada por uma sede de vingança desmesurada, que culminou numa decisão prejudicial à recorrente.

24. A decisão sob censura, e depois de ter sido igualmente sancionada pelo CSM com uma aposentação compulsiva, não poderá de modo algum “branquear” partes do depoimento com a argumentação de que a mentira tenha sido apenas parcial.

25. A decisão sob censura poderá, nalguma parte, subsistir sem o depoimento da testemunha CC?

26. O depoimento de uma testemunha mentirosa não poderá de nenhuma forma ser valorado em juízo e, nessa medida, a decisão em crise, sem o referido depoimento, fica em modo flutuante sem nenhuma “coxa de argumentação” que a sustente.

27. Caindo naturalmente no vazio da argumentação.

28. O depoimento falso da testemunha CC foi determinante para a decisão a rever, razão pela qual, contrariamente ao que consta na decisão de que se recorre, dúvidas não existem de que se encontra igualmente preenchido o requisito da existência de nexo de causalidade entre a falsidade e a decisão a rever, a que alude o art. 696º nº 1 al. b), do CPC.


Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Elementos a ponderar:

1. A recorrente sustentou o recurso de revisão nos seguintes fundamentos que, atenta a especificidade deste recurso e o facto - realmente invulgar e grave - de ser sustentado na falsidade do depoimento testemunhal prestado por um juiz de direito (que, entretanto, foi compulsivamente aposentado por Deliberação do Conselho Superior da Magistratura publicada no D.R., II Série, de 15-10-2019), se descrevem:

Concluiu a recorrente na petição inicial do recurso de revisão que:

1. O presente recurso de revisão vem interposto do douto acórdão da Rel. de Guimarães, proferido em 6-11-14, e transitado em julgado em 9-12-14, na parte em que decidiu manter a sentença proferida pelo Trib. Judicial ....

2. Para fundamentar tal decisão, a Rel. de Guimarães e, anteriormente, o Tribunal de 1ª Instância, consideraram que a recorrente engendrou um plano para adquirir a propriedade da totalidade dos bens deixados pelo pai de ambos, o Eng. BB.

3. Da leitura do acórdão revidendo resulta ainda que o tribunal criou também a convicção de que nunca foi vontade do pai do A. e da R. que a mesma ficasse com o quinhão hereditário do primeiro, já que, alegadamente, não queria beneficiar a R., e ainda que o A. só celebrou a escritura de cessão do quinhão hereditário porque não tinha consciência dos seus efeitos jurídicos, já que nunca foi sua intenção abrir mão da sua parte na herança.

4. Estes factos foram dados como provados essencialmente com base no depoimento da testemunha CC, pois, apesar de naquele acórdão também se fazer referência ao depoimento da testemunha HH e II, da leitura dessa decisão, constata-se que o depoimento destas testemunhas foi um mero complemento do depoimento da referida testemunha CC, pois, nem a testemunha HH, nem a testemunha II acompanharam a escritura de cessão de quinhão hereditário, nem tão pouco o acordo celebrado entre as partes antes da sua celebração, sendo certo que a convicção das próprias testemunhas sobre a realidade dos factos efetivamente ocorridos teve por base a história que lhes foi relatada pela testemunha CC aquando da reunião havida entre eles antes da instauração desta ação.

5. Na sentença proferida em 1ª instância, para a qual o acórdão revidendo remete, refere-se expressamente que a testemunha CC foi, sem margem para dúvidas, uma testemunha essencial ao convencimento do tribunal face à proximidade com a R. e o seu pai aquando dos factos em discussão nos presentes autos.

6. Nessas decisões consta também que, sem qualquer ressentimento eventualmente decorrente da separação da R., a testemunha CC descreveu, de forma clara, perentória e convincente, que o relacionamento existente entre a R. e o A. era nulo, que aquela só se aproximou do irmão após o falecimento do pai de ambos, que até à data da realização da cessão da quota hereditária nunca se apercebeu que o A. ia vender ou abdicar do quinhão hereditário a favor da sua irmã, de forma gratuita, só se tendo apercebido naquele ato da razão da reaproximação e manipulação sentimental da R. junto do irmão, motivo pelo qual, aquando da outorga da cessão, ficou a testemunha surpresa quando, durante a leitura da escritura, na parte relativa ao preço da cessão, o A. a ele se tentou dirigir, manifestando estranheza, ainda dizendo o seu nome, como que a pedir-lhe explicações, porém a R. cortou-lhe a palavra dizendo-lhe que se não fosse assim perdiam os bens para o Fisco.

7. Nessas decisões consta ainda que a testemunha CC supôs que a R. fosse cumprir as obrigações exaradas na escritura, e que só após a ter confrontado com a situação e esta lhe ter dito que não ia pagar nada, que nunca teve intenção de pagar nada ao irmão, é que se apercebeu do logro em que o A. tinha caído; que o A. desconhecia ir realizar-se a cessão do quinhão hereditário, quer pelo que disse na hora, quer pela forma como o mesmo reagiu no seu decurso, por um lado, por não ter a exata noção do que ia fazer e das suas consequências, embora soubesse que se tratavam de assuntos da herança, e, por outro lado, por a testemunha estar presente, porque o falecido Eng. BB havia dito ao A. para confiar nele, o que conferiu solenidade ao ato.

8. Da apreciação da decisão revidenda resulta que a convicção da Rel. de Guimarães e do Trib. Judicial da Comarca ..., plasmada nas suas respetivas decisões, assentou essencialmente no depoimento prestado pela testemunha CC, pois, o depoimento prestado pelas outras testemunhas foi um mero complemento do depoimento da mencionada testemunha, não sendo aqueles suscetíveis de formar a convicção do tribunal no sentido da decisão proferida.

9 No âmbito do processo criminal nº 563/14…, que correu termos na Rel. de Guimarães, no qual figurou como queixosa a aqui recorrente e como arguido a testemunha CC, foi proferido acórdão em 16-5-17, posteriormente confirmado na íntegra pelo STJ, em 18-1-18, e transitado em julgado em 1-2-18, que julgou procedente a pronúncia e, consequentemente, condenou o ali arguido CC pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360º, nºs 1 e 3, do Cód. Penal.

10. Naquele processo, tanto a Rel. de Guimarães como o Supremo entenderam que o depoimento testemunhal do aí arguido foi essencial para a formação da convicção do tribunal, e, consequentemente, para ser proferida a decisão que se pretende que seja revista, na audiência de julgamento de 19-9-13 deste proc. nº 3606/12….; quando interveio na qualidade de testemunha do A., quis, e efetivamente declarou factos e respondeu às perguntas que lhe foram formuladas em contrário da verdade que bem conhecia; apesar de bem saber que o pai do A. e da R. pretendia encontrar uma solução para que o A. recebesse uma renda vitalícia, que não pudesse ser penhorada, e tivesse assegurada uma casa decente, que também não fosse suscetível de penhora (daí a constituição do direito de uso e habitação), que o património ficasse preservado de atos de prodigalidade daquele, e conhecendo também o que ficou convencionado entre o A. e a R. quanto à cessão do quinhão hereditário, cuja minuta da escritura e os termos da mesma foram por si determinados, relatou outra realidade ao tribunal, criando a convicção de que a R. engendrou um plano para se apropriar da quota da herança que pertencia ao A.

11. No âmbito deste processo, a Rel. de Guimarães e o Supremo também não tiveram qualquer dúvida que o ali arguido, a aqui testemunha CC, faltou deliberadamente à verdade como forma de vingança por a R. ter rejeitado as suas tentativas de reatar a relação marital que os uniu durante alguns anos e da qual nasceu uma filha.

12. É assim manifesto que a testemunha CC, cujo depoimento foi determinante para a prolação da sentença do Trib. da Comarca ..., confirmada pelo acórdão da Rel. de Guimarães, mentiu.

13. No caso concreto, encontra-se verificado o requisito de falsidade que a lei exige para o recurso de revisão, pois, o acórdão proferido pelo Supremo atestou que a testemunha CC, quando prestou depoimento nestes autos, faltou à verdade, sendo ainda certo que tal depoimento foi determinante para a prolação da decisão revidenda.


2. Consignemos, antes de mais, os factos essenciais que emergem dos autos:

1. BB, ora Recorrido, intentou no Trib. Judicial  ... ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo ordinário, contra a sua irmã, ora Recorrente, AA (a que corresponde o proc. nº 3606/12….), requerendo, a final, que:

a) se declare nulo o testamento outorgado pelo de cujus a favor da R., a 9-6-10;

b) se declare nulo o contrato de cessão de quota hereditária celebrado entre o A. e a R., a 22-10-10;

c) se assim não se entender, declarar-se anulados tais testamento e cessão de quota hereditária;

d) se condene a R. a reconhecer a herança indivisa como a única proprietária dos bens e direitos deixados por morte de BB;

e) se condene a R. à restituição à herança de todos os bens e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente das contas bancárias do de cujus;

f) se declarem nulos e ineficazes todos os negócios celebrados pela R. sobre bens da herança em data posteriores às escrituras colocadas em crise;

g) se ordene o cancelamento das inscrições que incidam sobre os bens identificados a favor da R. e de terceiros;

h) subsidiariamente, e sem prescindir, se declare nula a declaração de quitação constante do contrato de cessão, por provada a falta de pagamento do preço, condenando-se a R. a pagar ao A. € 700.000,00 a título de capital, acrescida de juros vencidos no valor de € 44.032,88 e juros vincendos até integral pagamento.

2. A R. deduziu em tal processo contestação, pugnando pela total improcedência da ação.

3. Após audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

- anular o testamento outorgado a 29-6-10 e o contrato de cessão do quinhão hereditário celebrada a 22-10-10;

- condenar a R. a reconhecer a Herança Indivisa como a única proprietária dos bens e direitos deixados por morte de BB;

- condenar a R. à restituição à Herança de todos os bens e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente das contas bancárias do de cujus;

- condenar a R. a restituir à Herança o correspondente valor dos bens já alienados e registados a favor de terceiros, nomeadamente o preço obtido com os veículos indicados no ponto 7. dos factos provados;

- ordenar o cancelamento das inscrições existentes a favor da R. sobre os bens da Herança não alienados a terceiros.

4. Interposto recurso pela R., por acórdão da Rel. de Guimarães, de 6-11-14, transitado em julgado em 9-12-14, foi decidido julgar parcialmente procedente a apelação, sendo revogada a sentença, na parte que decidiu anular o testamento outorgado a 29-6-10, mas manteve a sentença, na parte em que declarou a anulação da cessão do quinhão hereditário celebrada entre o A. e a R. a 22-10-10, e tudo o mais decidido.

5. Para fundamentar tal decisão o Tribunal de 1ª instância e, posteriormente, a Rel. de Guimarães, considerou provada, entre o mais, a seguinte factualidade:

«1. Em 8-10-10, faleceu BB, no estado de divorciado. - cf. certidão de fls. 187 a 189.

2. O BB deixou bens móveis e imóveis, bem como dinheiro, títulos de crédito e outros direitos de natureza patrimonial (acordo).

(…)

10. Por óbito de BB, não se procedeu a inventário ou partilha extrajudicial, pelo que a aberta permaneceu ilíquida e indivisa (acordo).

11. Através de escritura lavrada a 22-10-10, no Cart. Notarial da R. Cons. ...., Edifício ...., lojas ... e ..., em ..., do Dr. DD, foram habilitados como seus únicos herdeiros legitimários os dois filhos: BB, aqui A., e AA, aqui R. - cf. certidão da escritura de fls. 30 e 31.

12. Através de escritura denominada de "cessão de quinhão hereditário", lavrada também a 22-10-10, no Cart. Notarial da R. Cons. ...., Edifício ...., lojas ... e ..., em ..., do Dr. DD, o A. declarou que "mediante o preço de € 700.000,00, que já recebeu e de que dá quitação, cede à segunda outorgante, sua irmã ... o direito e ação ao quinhão hereditário que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai, BB ... de cuja herança fazem parte bens imóveis com o valor patrimonial atribuído correspondente à parte transmitida de € 60.139,92 ... e bens móveis e direitos de crédito com o valor atribuído ... de € 639.860,08 ... ", o que a segunda outorgante declarou aceitar.

Mais disseram "que a 2ª outorgante compromete-se a dar ao 1º outorgante, seu irmão, uma prestação mensal vitalícia no valor de € 500,00, a qual será paga dentro dos primeiros 8 dias do mês a que disser respeito, com início no próximo mês de Dezembro, mediante transferência bancária ...

Que a 2ª outorgante promete constituir a favor do seu irmão o direito de habitação sobre a fração autónoma designada pela letra "L", do prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial sob o art. ..., no prazo de 6 meses, a partir da data da presente escritura" - teor da escritura de fls. 32 a 34.

13. No dia 29-6-10 o pai do A. e da R., BB, celebrou um testamento, no Cart. Notarial a cargo da notária JJ, na R. Dr. …, nº …, … sala, em ..., através do qual instituiu a agora R. como única e universal herdeira da sua quota disponível e, em caso de pré-falecimento desta, como tais, as suas netas, LL e EE. - cf. escritura de fls. 37 e 38.

(…)

21. O A. teve um passado de toxicodependência grave, o que condicionou o seu percurso familiar, escolar e, posteriormente, a sua atividade laboral (acordo).

22. A escolaridade do A. foi marcada pelo insucesso, falta de motivação, absentismo, associação a grupo de pares ligado ao consumo de drogas (acordo).

23. O A. iniciou o consumo de drogas aos 13 anos com haxixe (acordo).

24. Aos 15 anos passou, também, a consumir heroína, cocaína e álcool, adquirindo dependência (acordo).

25. Abandonou os estudos com 20 anos, apenas concluindo o 9° ano de escolaridade (acordo).

(…)

29. Desde agosto de 2009 mantinha-se afastado do consumo de drogas (acordo).

30. O A. acompanhou o pai na sua fase terminal, pessoa a quem conseguiu, finalmente, evidenciar que havia mudado de rumo na vida (acordo).

31. Após a morte do pai, o A. passou a depositar plena confiança na irmã (acordo).

32. E passou a permitir-lhe também a administração do património mobiliário e imobiliário que integrava a herança ilíquida e indivisa comum, porque àquela pertencia o encargo, como cabeça-de-casal (acordo).

33. A R. acompanhara sempre com mais proximidade a situação patrimonial do falecido pai (acordo).

34. A R. é pessoa mais instruída e esclarecida e vivia à data maritalmente com um magistrado judicial (acordo).

35. A R. prometeu ao A. que garantiria todos os seus interesses patrimoniais, fosse em termos de habitação, locomoção e/ou rendimentos (acordo).

36. No dia de 22-10-10 o A. e a R. almoçaram juntos, seguindo depois para o Cart. Notarial  ..., referido em 11. e 12., onde foi outorgada a escritura de habilitação de herdeiros e, ato contínuo, a escritura de cessão de quinhão hereditário referidas (acordo).

37. Após a outorga das escrituras referidas a R. passou a depositar na conta bancária do A. a prestação mensal referida em 12. (acordo).

38. O A. esteve preso, em cumprimento de pena, entre 8-12-11 e 20-6-12 - ofício da DGSP de fls. 269. (als. A) a AE) da matéria assente)

39. As relações familiares entre o A. e a R. nunca foram afetuosas, nem próximas.

40. Após o óbito referido em 1., a R. reatou o contacto pessoal com o A. e predispôs-se a apoiá-lo em todos os atos da sua vida, passando a transmitir-lhe afeto, cuidado, carinho e atenção.

41. Pouco tempo volvido sobre o óbito do pai e com o pretexto de que importava definir, até por questões fiscais, a situação da herança, a R. convenceu o A. de que o melhor seria formalizar a administração da herança, através da outorga da escritura de habilitação de herdeiros.

42. A R. prometeu-lhe que os bens que integravam a herança permaneceriam em comum, para serem utilizados pelos dois como até ali havia acontecido. (1° a 4°)

43. No dia 21-10-10, a R. comunicou verbalmente ao A. que este deveria comparecer no Cart. Notarial a cargo do notário DD, em ..., a fim de se proceder à outorga da escritura de habilitação de herdeiros.

44. Na manhã de 22-10-10 convidou o A. para almoçar em ....

45. O A. desconhecia que ia ser celebrado o contrato de cessão titulado pela escritura referida em 12.

46. Confrontado com o teor da mesma apenas no momento da leitura da escritura, o A. solicitou explicações à R.

47. Que lhe garantiu verbalmente que se tratava se uma mera formalidade para lhe permitir administrar melhor a herança. (8° a 12°)

48. Aproveitou ainda a R. a presença do seu companheiro - magistrado judicial em cuja idoneidade e integridade o A. confiou - para convencer o A. da legalidade do ato.

49. Foi por força das explicações e no quadro de confiança criado pela irmã, que o A. concordou em outorgar a escritura de cessão de quinhão hereditário. (15° e 16°)

50. Depois da outorga das escrituras referidas em 11. e 12., a R. comunicou ao A. não pretender manter com ele qualquer contacto, nomeadamente do tipo pessoal.

51. E que lhe estava vedado utilizar qualquer bem da herança, porque todos os bens lhe pertenciam.

52. Recusando-se a prestar ao A. qualquer apoio.

53. Colocou à venda alguns bens da herança.

54. O A. foi forçado a viver do auxílio de terceiros, pois, face ao referido em 26. a 28. e 38., não auferia qualquer tipo de rendimentos. (18.º a 22.º)

55. Foi II, com quem mantinha uma relação de namoro, quem proveu ao seu sustento por algum tempo. (23°)

56. A R. não pagou ao A. o preço declarado na escritura referida em 12.

57. A "declaração de quitação" ínsita naquele ato foi uma mera "formalidade".

58. A R. sabia que o A. não tinha consciência do sentido e alcance da sua declaração, nomeadamente, dos seus efeitos jurídicos.

59. Sabia a R. que o A., ao assinar a escritura de cessão do quinhão hereditário, estava persuadido de que apenas viabilizava a melhor administração do património da herança.

60. E que não pretendia abrir mão em favor dela do património da herança.

61. E que não abriria mão do seu quinhão hereditário, muito menos, a título gratuito.

62. A R. transmitiu a ideia de que se não fosse formalizada a denominada "administração" da herança, o A. perderia bens a que tinha direito para o Fisco.

63. Aquando da outorga do testamento referido em 13. o pai do A. e da R. estava sob o efeito de inúmera medicação (posteriormente eliminado pela Relação).

64. Revelava sérias dificuldade sem se exprimir (posteriormente eliminado pela Relação).

65. Havia dias em que o falecido não tinha a noção do tempo e do espaço (posteriormente eliminado pela Relação).

66. Foi a R. quem tratou de toda a documentação necessária à elaboração do testamento.

67. Foi a R. que definiu o que deveria constar do testamento sem consultar o pai e sem que o pai tenha para o mesmo contribuído (posteriormente eliminado pela Relação).

68. Foi a R. que arranjou duas testemunhas da sua inteira confiança.

69. Como o conteúdo do primeiro testamento lavrado - referido em 20., previa apenas que a R. fosse usufrutuária dos bens do pai, na medida do disponível, esta fez lavrar o segundo testamento, nessa mesma tarde, que corresponde ao descrito em 13., tendo a notária dado sem efeito o celebrado nessa manhã.

70. Para o efeito, a R. levou novamente o pai ao referido Cartório. (35° a 39°)

71. O pai do A. e R. sempre referiu que jamais queria prejudicar o filho e/ou beneficiar a AA.

72. O testador sempre afirmou no seu círculo de relações pessoais que era sua vontade proteger o filho, uma vez que, infelizmente, era toxicodependente.

73. O A. tomou conhecimento do referido de 13. a 20. e de 63. a 70. em setembro de 2011. (41° a 43°)

74. O testador encontrava-se deprimido, face à iminência da sua morte. (45°)».

6. Na motivação da sentença proferida em 1ª instância, refere-se expressamente o seguinte:

“O Tribunal fundamentou a sua convicção na globalidade da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, designadamente com base na confissão parcial da R. quanto a parte da matéria controvertida, quando ouvida em depoimento de parte, conjugada com o depoimento das testemunhas inquiridas, no confronto com a prova documental oferecida nos autos, tudo valorado segundo as regras da experiência comum.


A R. confessou que o preço declarado na escritura de cessão não foi entregue ao A. e que a declaração de quitação ali inserta era uma mera formalidade (quesitos 24º e 25º), porquanto aquele correspondia ao valor fixado ao quinhão hereditário do A., já gasto por conta da herança em vida do pai, estando o autor perfeitamente consciente do negócio que faziam (recusa de confissão aos quesitos 26º a 29º).


No que respeita ao aludido acordo efetuado entre a R. e o A. não só o mesmo nos parece perfeitamente desadequado da realidade dos nossos dias, pois toxicodependente ou não, o A. jamais cederia a sua quota num património tão valioso como o da herança, sem receber qualquer tipo de contrapartida mais significativa, precisamente pelo facto de ser adito, que certamente não se contentaria com uma mensalidade equivalente ao salário mínimo nacional e o direito a habitar um apartamento quando a herança é integrada por 10 imóveis, um jazigo, saldos bancários e aplicações de mais de € 500.000,00, uma prestação do Município ..... no valor de € 460.000,00, ações tituladas na bolsa e créditos, mais de 10 veículos e uma embarcação.


Mais adiante, analisando o depoimento da testemunha CC:

“CC, pessoa com quem a R. viveu em união de facto, entre abril de 2008 e julho de 2011 (e pai de uma das suas filhas …), magistrado judicial, foi sem margem para dúvidas uma testemunha essencial ao convencimento do tribunal face à proximidade com a R. e o seu pai aquando dos factos em discussão”.

Quaisquer ressabiamentos e/ou ressentimentos eventualmente decorrentes da separação da R., que, a existirem, estavam bem escondidos, o que é certo é que a testemunha descreveu de forma clara, perentória e convincente o tipo de relacionamento existente entre a R. e o A., que era nulo, pois sempre que se encontravam era “sob o patrocínio do pai” e contra a vontade da R., a diferença ocorrida com o óbito do progenitor, pois a R. tentou e logrou reaproximar-se do irmão, demonstrando que se deviam apoiar os dois, transmitindo-lhe apoio e carinho, denotando preocupação com a sua vida, desde logo afirmando que o apoiaria no que necessitasse, já que embora haja reconhecido que apenas esteve uma ou duas vezes com os irmãos em simultâneo, entre a data do óbito do progenitor deles e a outorga da cessão da quota do A., por viver maritalmente com a R., presenciou os inúmeros telefonemas que esta fazia ao irmão, a pretexto da necessidade de agilizar a habilitação de herdeiros, da necessidade de formalizar a administração da herança, sempre com o argumento de que assim tudo seria mais fácil para o A., que não tinha rendimentos, a quem manifestava apoio e afirmava ter “muito gosto em ajudar”.

Até à data da realização da habilitação de herdeiros e da cessão da quota hereditária do A., escrituras que o próprio agendou junto de um cartório da sua confiança, em ... e a pedido da sua então companheira, a testemunha nunca se apercebeu que o A. ia vender ou abdicar do quinhão hereditário a favor da sua irmã, de forma gratuita.

Só no ato percebeu a razão de tal reaproximação e manipulação sentimental da R. junto do irmão, justamente para o convencer de que podia nela confiar, motivo pelo qual aquando da outorga da cessão ficou a testemunha surpresa quando, durante a leitura da escritura na parte relativa ao preço da cessão o A. a ele se tentou dirigir, manifestando estranheza, ainda dizendo o seu nome, como que a pedir-lhe explicações, porém a R. cortou-lhe a palavra dizendo-lhe que se não fosse assim perdiam os bens para o Fisco, pelo que a própria testemunha lhe aconselhou calma, supondo que a R. iria de facto cumprir as obrigações exaradas na escritura: pagar o preço de setecentos mil euros, atribuir-lhe um rendimento mensal vitalício de quinhentos euros e constituir o direito de uso e habitação do apartamento onde o irmão vivia em ....

Porém, referiu que no final do ato confrontou a companheira com a situação, e esta logo lhe disse que não ia pagar nada, que nunca teve intenção de pagar nada ao irmão, que ele não tinha direito a nada, podendo eventualmente dar-lhe uns bens.

Perante esta situação percebeu o logro em que o A. havia caído, que ele assinou a cessão convencido que a irmã ia cumprir e repor a situação, e que só aceitou de facto assinar o ato, que desconhecia ir realizar-se (quer pelo que o A. disse na hora, quer pela forma como o mesmo reagiu no seu decurso), por um lado, por não ter a exata noção do que ia fazer e das suas consequências, embora soubesse que se tratavam de assuntos relativos à herança, por outro lado, por a testemunha estar presente, porque o falecido Eng. BB havia dito ao A. para confiar nele, razão pela qual a sua presença conferiu ao ato uma seriedade acrescida”.

Deste depoimento resultou assim a cabal confirmação do quesitado de 24º a 30º da base instrutória (pontos 56. a 62. da decisão da matéria de facto na sentença).

A matéria dos quesitos 18º a 20º e 21º foi confirmada de forma muito clara pela mesma testemunha, que até usou a expressão relação de "carácter odioso" para definir o que se passou depois da outorga da habilitação e cessão, e referiu ser verdade que a ex-companheira logo que fez as escrituras colocou à venda alguns bens da herança, levantou dinheiro das contas e fez uma aplicação nos CTT, porém não concretizou mais.

Quanto à matéria relativa à outorga do testamento de 29-6-10, mais uma vez a testemunha foi determinante para o convencimento do Tribunal, embora, nesta sede e quanto sobretudo aos quesitos 31º a 34º e 44º e 45º, conjugado com os depoimentos de JJ, notária, com as limitações supra referidas, e MM, médica que seguia o autor no IPO  ….

Referiu pois CC que, e porquanto à data da outorga do testamento o falecido residia consigo, a R. e a neta LL, filha comum da R. e da testemunha, o testador havia tido alta dos hospitais da …. e do IPO …, após dois internamentos subsequentes, com um prognóstico de morte, deslocando-se de cadeira de rodas, mostrando-se incontinente pelo que usava fraldas e tomava bastante medicação, não sendo capaz de se alimentar, vestir, automedicar, fazer a higiene, sem que houvesse apoio de terceiros.

Quanto à parte psicológica referiu que o testador estava apático, deprimido, tinha muita dificuldade em se exprimir, tinha falta de noção espácio-temporal, embora de forma intermitente, desconhecendo por vezes onde se encontrava.

Mais referiu a testemunha que sempre o falecido lhe disse que estava preocupado com o futuro do filho, nomeadamente antes da agudização da doença, nunca tendo transmitido a ideia de que iria beneficiar a R., mas sim procurando saber se havia alguma forma legal de cuidar do património que iria ser também dele, pois tinha receio de uma nova recaída do filho no mundo da droga, mais referiu que, apesar de ter dito ao falecido que podia optar pela propositura de uma ação de inabilitação ou interdição, para que lhe fosse nomeado tutor, aquele acabou por nunca se decidir a avançar para uma situação dessas.

Tudo para explicar que quando a R. lhe disse que o pai tinha feito um testamento a seu favor, do qual segundo recordava teve conhecimento na noite anterior à outorga ou no próprio dia, exibindo-lhe aquela no dia 29-6-10, à hora do almoço, e questionando-o se dessa forma ficava com todo o património do pai, lhe explicou que não porque se consignava que era mera usufrutuária da quota disponível.

Mais referiu que a R., confrontada com essa explicação, fez de imediato uma chamada telefónica, vindo a testemunha a aperceber-se que se dirigia à notária que havia lavrado o testamento, pois a meio da conversa a R. passou-lhe telefone pedindo que explicasse a situação, que o que se pretendia era ficar como herdeira exclusiva da quota disponível, o que fez, sabendo depois que a R. e o pai se deslocaram da parte da tarde de novo ao dito cartório, lavrando o segundo testamento, confirmando a matéria dos quesitos 31º, 32º, 34°, 35°, 36º (com exceção de uma parte), 37º, 38º, 39º e 45º.

Mais referiu com interesse que após a outorga do testamento, já em agosto, a R. organizou uma festa de aniversário ao pai, em ..., e que como este apresentava nessa altura grandes melhorias da sua condição física e psicológica, que voltou a residir sozinho, mudando-se para uma residência sénior, na …….

Confirmou ainda a matéria dos quesitos 41º a 43º, e quanto à do quesito 46º referiu de forma relevante que quando a ré viveu consigo não tinha rendimentos próprios, pelo que seria difícil amealhar aquelas quantias de dinheiro, porém, nunca se meteu nos assuntos do dinheiro provindos da família dela».

7. A Rel. de Guimarães, bem como o Tribunal de 1ª Instância, formou a sua convicção quanto aos factos provados constantes nos pontos 40., 41. e 42. através do depoimento das testemunhas HH e CC.

8. No que concerne aos factos constantes nos pontos 45. a 52. dos factos provados, a convicção do Tribunal assentou no depoimento das testemunhas CC e DD.

9. Quanto aos factos provados constantes nos pontos 58. a 62., do acórdão resulta que tais respostas resultaram “quer do depoimento de parte da própria R. (pontos 56. a 62.), quer do depoimento da testemunha CC (pontos 56. a 65.), quer do depoimento da testemunha II quanto aos pontos 60. e 61., dada a conversa que ela escutou em alta voz entre A. e R”.

10. Quanto aos factos provados constantes nos pontos 71. e 72., tais respostas resultaram “do depoimento das testemunhas HH, CC e NN, ex-mulher do falecido e mãe do A. e da R., bem como de OO”.

11. No Ac. da Rel. de Guimarães foi exarada designadamente a seguinte fundamentação:

Quanto aos factos 40. a 42.:

“Mas está razoavelmente correto o julgamento que foi feito pela Srª juiz a quo, com base nos depoimentos das testemunhas HH e CC, os quais estão detalhadamente descritos na exaustiva fundamentação de facto da sentença.

Donde o pronunciamento do tribunal recorrido quanto a estes factos não merece censura”.

Quanto aos factos 45. a 52., 56. a 62. e 63. a 65.:

«Pretende a apelante que não se poderia ter considerado provada esta factualidade [pontos 45º a 52º], e que ocorre erro notório na apreciação da prova, até porque tendo sido o Dr. CC a dar instruções ao Notário Dr. DD sobre o conteúdo da escritura de cessão do quinhão hereditário, não pode aceitar-se a declaração da testemunha CC sobre a surpresa da declaração de quitação, não podendo concluir-se também que o A. ficou surpreendido com a cessão do quinhão.

Mas não é isso que se pode concluir dos depoimentos das testemunhas CC e DD.

Efetivamente a testemunha CC aceita ter contactado o Notário Dr. DD para ele marcar a referida escritura com brevidade, com as condições que lhe foram transmitidas pela R. Alexandra, e, embora o Dr. DD confirme que recebeu as indicações da testemunha CC, do depoimento do mesmo não se pode inferir, sem mais, que haja contradição entre as declarações das referidas testemunhas.

Consideramos também correto o julgamento que foi feito pela senhora juiz a quo, com base nos depoimentos das testemunhas referidas, os quais estão detalhadamente descritos na exaustiva fundamentação de facto da sentença.

Igual raciocínio se pode fazer, e com base nas testemunhas referidas, de que está bem decidida a matéria de facto dada como provada nos factos 56. a 62.


Ora as respostas a estes pontos da matéria de facto resultam quer do depoimento da própria R. (pontos 56. a 62.), quer do depoimento da testemunha CC (pontos 56º a 65º), quer do depoimento da testemunha II quanto aos pontos 60º e 61º, dada a conversa que esta escutou entre A. e R.”

Já quanto à matéria de facto dada como provada nos arts. 63. a 65., parece-nos que tal matéria foi erradamente dada como provada.

A única testemunha que tal refere é o referido CC que viveu maritalmente com a R., e que o descreve como absolutamente apático, amorfo, sem noção de nada, o que acentuou no dia do testamento.


Assim, não se podem dar como provados os factos constantes dos arts. 63. a 65. que se revogam.

…».

12. No âmbito do processo-crime nº 563/14…, que correu termos no Tribunal da Rel. de Guimarães - Secção Penal, no qual figurou como queixosa a aqui recorrente AA e como arguido a testemunha CC, em 16-5-17 foi proferido acórdão, posteriormente confirmado na íntegra pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 18-1-18, e transitado em julgado em 1-2-18, que condenou o arguido CC pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360º nºs 1 e 3, do Cód. Penal.

13. Foi dado como provado nesse acórdão, posteriormente confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, além do mais, o seguinte:

«1. O arguido e a assistente AA viveram em união de facto entre junho de 2007 e julho de 2011;

(…)

3. Por via desse relacionamento, o pai da assistente, BB, e o arguido conviveram um com o outro, tendo aquele desenvolvido uma relação de consideração e confiança com este;

4. Desde 2008, mercê da referida relação de consideração e confiança que se desenvolveu entre o pai da assistente e o arguido e também pelo facto de este ser juiz de direito, aquele pedia-lhe orientação e aconselhamento jurídico relativamente aos seus muitos negócios e questões de ordem patrimonial pendentes, pedindo que o acompanhasse a reuniões e apoiasse quando precisava de tomar decisões e resolver problemas concretos;

(…)

12. Era do conhecimento de todos os familiares e amigos mais próximos a sua permanente preocupação com o filho, BB, devido à sua longa toxicodependência, desde os 13 anos de idade, o qual já lhe gastara muitos milhares de euros com internamentos para desintoxicação, pagamento de dívidas, cheques e objetos de valor que lhe furtara e vendera para alimentar a toxicodependência, sem nunca ter tido qualquer atividade profissional ou laboral regular e remunerada;

13. Preocupava-o sobremaneira o futuro do filho após a sua morte e ansiava encontrar forma de assegurar a sua subsistência depois disso, pois sabia que por causa da droga ele rapidamente delapidaria o património que herdasse, ficando na miséria;

14. De todos estes factos era o arguido conhecedor;

15. Nesse contexto e a conselho do arguido, enquanto permaneceu em casa da assistente, no dia 29-6-10, da parte da tarde, o pai da assistente, outorgou um testamento, no Cart. Notarial de JJ, em ..., no qual instituiu aquela sua filha como única e universal herdeira da sua quota disponível e, em caso de pré-falecimento desta, as suas netas (…) e (…), esta filha da assistente e de (…);

16. Este testamento substituiu um primeiro testamento celebrado durante a manhã do mesmo dia, após perceber que nele a assistente era apenas instituída usufrutuária dos bens pertencentes à herança;

17. A alteração ocorreu por sugestão e conselho do arguido, ao almoço, que, para o efeito, falou por telefone com a notária que lhe disse que fora isso que o testador havia dito;

18. O pai da assistente faleceu no dia 8-10-10;

19. No dia 22-10-10, no Cartório Not.  ..., do notário DD, foi celebrada:

- escritura de habilitação de herdeiros dos seus dois únicos filhos, a assistente e BB;

- escritura de cessão de quinhão hereditário nos termos da qual BB, conforme previamente acordado entre eles, declarou que mediante o preço de € 700.000,00, já recebido e de que dava quitação, cedia à assistente, sua irmã, o direito e ação ao quinhão hereditário que lhe pertencia na herança líquida e indivisa aberta por óbito do pai de ambos;

- na mesma escritura, a assistente obrigava-se a dar ao irmão uma prestação mensal vitalícia, no valor de € 500,00 e a constituir, no prazo de seis meses, a favor do irmão, o direito de habitação sobre a fração autónoma designada pela letra L do prédio urbano sito no concelho ...;

20. Foi o arguido quem marcou a data da celebração destas escrituras e forneceu cópias do testamento e demais elementos necessários à sua elaboração, nos termos em que vieram a ser celebradas, tendo estado presente durante a celebração das referidas escrituras, as quais, na presença de todos, foram lidas e explicadas aos intervenientes e por eles assinadas;

21. O objetivo, conforme vontade manifestada pelo pai da assistente antes de falecer, era assegurar a seu filho BB uma renda vitalícia e uma casa que lhe proporcionassem uma vida decente, preservando o património de atos de prodigalidade daquele;

22. A partir de então o irmão da assistente, BB, passou a receber a pensão depositada pela sua irmã e a poder usufruir de casa;

23. Em 30-8-11, BB intentou contra a assistente, sua irmã, a ação nº 5545/11…, da Vara de Comp. Mista, do Trib. Judicial ..., para anulação daquela escritura de cessão de quinhão hereditário, alegando, além do mais, que ela lhe transmitira a ideia de que a dita escritura de cessão traduzia “o meio legal e adequado para que o A. pudesse manter o nível de vida a que sempre fora habituado”, facto que lhe foi confirmado pelo arguido, “companheiro da R., magistrado que lhe garantiu que, se não assinasse, corria o risco de ficar sem nada, no mais confirmando os artifícios anteriormente gizados pela R.”

24. Em julho de 2011, terminou a relação do arguido com a assistente AA;

(…)

26. Em setembro de 2011, o arguido, por sua iniciativa, deslocou-se a ... para se encontrar com o irmão da assistente, BB e com um primo de ambos, HH, com o objetivo de esclarecer, perante eles, a sua intervenção na celebração do testamento e da cessão de quinhão hereditário;

27. Após essa reunião, BB desistiu da instância na ação nº 5545/11…, desistência que foi homologada por despacho de 23-9-11, e interpôs nova ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo ordinário, contra a assistente, que correu termos sob o nº 3606/12…;

28. Nesta ação desapareceram todas as referências à intervenção do arguido na celebração da escritura de cessão de quinhão hereditário e foram aditados aos pedidos que já constavam da anterior ação, o de anulação do testamento, por alegada falta de capacidade e sanidade mental do testador;

29. Nessa ação o arguido foi indicado como testemunha;

30. Na audiência de julgamento dessa ação nº 3606/12 …, na sessão ocorrida no dia 19-9-13, o arguido, após a Srª Juíza o ter advertido de que estava obrigado a responder e com verdade às perguntas que lhe iam ser colocadas, sob pena de, não o fazendo, praticar um crime de falso depoimento e ter prestado juramento, prestou depoimento;

(…)

32. O arguido disse, contra a verdade que bem conhecia, que na altura em que foi celebrado o testamento, o Eng. BB, além do mais, “não sabia as horas, não sabia os dias da semana, não sabia os meses. E muitas vezes não sabia mesmo onde se encontrava, … inclusivamente a casa, não sabia que estava em ..., em casa da filha ou em sua casa … era praticamente impercetível o que ele dizia nessa altura” e não tinha consciência do que estava a fazer;

33. O arguido, por ter convivido com o Engº BB, designadamente no período que antecedeu o seu falecimento e por ter aconselhado e determinado os termos do testamento celebrado, sabia perfeitamente que aquele estava na posse das suas faculdades mentais, de livre e esclarecida vontade e com capacidade de decisão, ou seja, capaz de decidir sobre os seus assuntos pessoais e de dispor dos seus bens.

34. Sabia também os exatos termos da escritura da cessão de quota hereditária, por ter sido ele a redigir a minuta e a entregá-la ao notário, tendo acordado com ele a data da celebração da escritura em que veio a estar presente;

35. Ao declarar que o testador não definiu o que deveria constar do testamento nem tinha consciência do que estava a fazer quando o outorgou, o arguido concretizou de forma livre, deliberada e consciente, a prestação de depoimento com conteúdo que sabia não corresponder à realidade dos factos, apesar de também saber que o seu depoimento seria determinante para a formação da convicção da julgadora, como se verificou realmente e foi refletido na motivação e que assim desobedecia à lei, cometendo um crime.

36. Quis declarar factos e responder às perguntas que lhe eram formuladas, em contrário da verdade que bem conhecia;

37. Sabia, tanto mais quanto além de ter agido na qualidade de testemunha, exerce as funções de juiz de direito, que estava obrigado a dizer a verdade perante o tribunal, conforme juramento que fez, tendo tomado consciência da advertência formulada pela juíza que presidia ao julgamento, de que incorria em responsabilidade criminal caso não respondesse com verdade;

38. Agiu de forma livre, voluntária e deliberada, apesar de saber que a sua conduta atentava contra a realização da justiça e era punida como ilícito criminal;

(…)».

14. E nesse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-1-18, na parte atinente à “Matéria de direito: qualificação jurídica dos factos”, foi explicitada a seguinte fundamentação:

«(…)

Estabelece o citado art. 360º:

1. Quem, como testemunha, perito, técnico ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

(…)

Ora, ficou provado que o arguido foi indicado como testemunha do autor BB na ação intentada contra a ora assistente que correu na extinta Vara Mista ... com o nº 3606/12…. (nºs 27 e 29), tendo prestado depoimento na sessão de julgamento de 19.9.2013 (nº 30).

Nesse depoimento, o arguido afirmou que o Eng. BB “não sabia as horas, não sabia os dias da semana, não sabia os meses. E muitas vezes não sabia mesmo onde se encontrava, inclusivamente a casa, não sabia que estava em ..., em casa da filha ou em sua casa (…) era praticamente impercetível o que ele dizia nessa altura” e não tinha consciência do que estava a fazer (nº 32).

Porém, o arguido sabia perfeitamente, por ter convivido na mesma casa com o Eng. BB, na altura dos factos, que ele estava na posse das suas faculdades mentais, de livre e esclarecida vontade e com capacidade de decisão, ou seja, capaz de decidir sobre os seus assuntos pessoais e de dispor dos seus bens (nº 33).

Daqui resulta, sem margem para quaisquer dúvidas, que o arguido depôs conscientemente não só contra a verdade objetiva, real ou histórica, como também contra a sua perceção pessoal, aquela que teve na altura dos factos.

Em suma: o arguido sabia que o seu depoimento não só contrariava a verdade objetiva, como contradizia a sua própria perceção e convicção.

Assim, mesmo à luz da conceção de falsidade de testemunho que diz perfilhar, o arguido cometeu o crime do art. 360º do CP.

Acrescente-se ainda que a doutrina considera o crime em referência como de perigo abstrato e de mera atividade, consumando-se, portanto, com a prestação do testemunho, independentemente de esse testemunho ter ou não influência na decisão final.

De qualquer forma, ficou provado que o arguido sabia que o seu testemunho falso seria decisivo para a formação da convicção do julgador, o que se verificou efetivamente, já que na fundamentação da matéria de facto da sentença proferida na ação nº 3606/12… se refere que esse depoimento foi “determinante para o convencimento do tribunal” (nº 35 e fls. 99 do Anexo), sentença essa que anulou o testamento do Eng. (…).

Houve, pois, um dano efetivo para a assistente, R. naquela ação, dano só reparado com a interposição de recurso dessa sentença para a Relação de Guimarães, que revogou a anulação do testamento».


III – Decidindo:

1. O recurso extraordinário de revisão regulado nos arts. 696º e ss. do CPC constitui um instrumento excecional que permite quebrar a resistência de uma decisão coberta pelo caso julgado, no pressuposto de que, em casos tipificados, os valores da segurança e da certeza jurídica inerentes ao caso julgado material devem ceder perante a demonstração de circunstâncias cuja gravidade abala os alicerces da própria decisão.

É nestes casos que uma decisão judicial transitada em julgado pode ser anulada, com efeitos que podem desencadear, consoante as circunstâncias, a retoma da tramitação processual a partir do momento em que ocorreu o vício ou a substituição da decisão por outra isenta do vício processual ou adjetivo que a afetou.

Um grupo de situações é enunciado na al. c) do art. 696º, preceito que abarca não apenas a falsidade do depoimento (de parte, testemunhal ou outro), mas ainda a de qualquer declaração ou documento prestado ou apresentado na ação em que o meio de prova foi apreciado e valorado. Ponto é que o meio de prova cuja falsidade seja reconhecida (in casu, o depoimento testemunhal) tenha sido determinante para a decisão a rever e que a matéria da falsidade probatória não tenha sido - devendo sê-lo - objeto de discussão e de apreciação no processo em que o meio de prova foi apresentado.

A verificação de um nexo de causalidade entre a falsidade do meio probatório e a decisão judicial que com base no mesmo foi proferida constitui um requisito comum a todas as situações acauteladas pelo art. 696º, al. b), do CPC, sendo necessário que se possa afirmar que o concreto meio de prova exerceu influência decisiva no resultado ou, noutros termos, que foi causa adequada do resultado que veio a ser declarado na ação.


2. Trata-se de matéria relativamente à qual a doutrina e a jurisprudência é uniforme, como o comprovam diversos arestos, entre os quais o Ac. do STJ, 6-6-19, 98/16, www.dgsi.pt, no qual estava em causa um depoimento testemunhal. Nele se alude á verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- Que se demonstre a falsidade do depoimento;

- Que se estabeleça um nexo de causalidade adequada entre a falsidade do depoimento e o resultado da ação em que foi proferida a sentença, em termos de se poder afirmar que o depoimento falso foi determinante para esse resultado;

- E que a falsidade do depoimento não tenha sido objeto de discussão no processo em que foi proferida a sentença.

Noutra perspetiva, foi precisamente a falta do nexo de causalidade que serviu de justificação à improcedência do pedido de revisão apreciado no Ac. do STJ 27-4-17, 978/06, www.dgsi.pt, relatado pelo ora relator, num caso em que “a decisão da matéria de facto foi sustentada em depoimentos testemunhais, servindo o relatório pericial (arguido de falso) para corroborar esses depoimentos”. Outrossim no Ac. do STJ, de 7-2-13, 877-B/2002, www.dgsi.pt, também relatado pelo ora relator, no qual se asseverou que “a invocação da falsidade de documentos, declarações ou depoimentos para efeitos de recurso extraordinário de revisão não prescinde da verificação de um nexo de causalidade adequada relativamente à decisão revidenda”.

Anote-se ainda, também a título exemplificativo, o Ac. do STJ, de 7-4-11, 1242-L/1998, em www.dgsi.pt, no qual se concluiu que “a revisão não pode ter como base, apenas, indícios da razão daquele que a pretende, mas sim uma consistente demonstração de que essa razão é provável, ou seja, o art. 771º do CPC (de 1961) exige que o documento por si só indicie tal probabilidade”.

Repare-se que não é exigível que o meio de prova em causa tenha sido o fundamento único da decisão da matéria de facto; basta que tenha sido um dos meios de prova que contribuiu decisivamente para a formação da convicção do tribunal, relevando para o efeito o que tenha ficado espelhado na motivação da decisão revidenda.

Como refere Amâncio Ferreira, em Manual dos Recursos Cíveis, 8ª ed., p. 315, “é condição essencial que haja um nexo de causalidade entre a peça falsa e a decisão revidenda; quer dizer, é necessário que a decisão se baseie na prova viciada, ou que ela tenha determinado a decisão que se pretende rever”. E, citando Rodrigues Bastos, acrescenta que “não é indispensável que a decisão a rever tenha como única base ou se funde exclusivamente no documento ou ato judicial cuja falsidade foi verificada. Basta que possam ter determinado aquela decisão, que nela tenham exercido influência relevante”.

Assim foi decidido recentemente, num caso semelhante, no Ac. do STJ 7-10-20, 2262/16, www.dgsi.pt, relatado pela ora segunda adjunta, em cujo sumário se refere, alem do mais, que:

“…

IV - Pode assim concluir-se que a falsidade do depoimento testemunhal foi concausal em relação à inserção do facto descrito no ponto III, e, consequentemente, foi também concausal em relação à decisão de improcedência da ação.

V - De acordo com orientação doutrinal que se acompanha não é de exigir que a falsidade do meio probatório em crise tenha sido a causa exclusiva da decisão, bastando que tenha, de acordo com a teoria da causalidade adequada comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, sido uma das causas da mesma decisão.

VI - Ora, a partir dos elementos do processado que culminou na decisão revidenda, resulta que o depoimento testemunhal (cuja falsidade se encontra provada) teve influência muito relevante tanto sobre a sentença como sobre o acórdão da Relação, admitindo-se que, no que se refere a este último – que é afinal a decisão revidenda – tal influência tenha mesmo sido determinante.

VII - Apurar se, excluído o depoimento falso, a decisão de facto se manterá ou não, é o objetivo da “fase rescisória” do recurso extraordinário de revisão e não da presente “fase rescidente” na qual apenas cabe proceder à apreciação da verificação do fundamento invocado para o recurso.

…”.

3. O Ac. da Rel. de Guimarães que foi proferido na ação declarativa revogou a sentença de 1ª instância na parte em que fora declarada a anulação do testamento outorgado pelo pai da ora recorrente, através do qual lhe deixou a sua quota disponível.

Este segmento decisório beneficiou a ora recorrente. Não tendo de incidir sobre tal segmento, a pretensão de revisão extraordinária visa unicamente o outro segmento decisório confirmativo da sentença que determinou a anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário outorgado por escritura pública, tendo por cedente o ora recorrido e por cessionária a ora recorrente.

Importa, pois, apreciar se o facto da testemunha que depôs na audiência final na ação declarativa ter sido condenada pela prática de um crime de falsidade do depoimento constitui fundamento suficiente para decretar a revisão do acórdão da Relação, transitado em julgado, que confirmou a sentença de 1ª instância que decretou a anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário. Para o efeito cumpre avaliar essencialmente se e em que medida o depoimento testemunhal que foi cominado de falso pode ou não ser considerado determinante da decisão revidenda.

A pretensão extraordinária foi apreciada pela Relação, a qual, com base nos elementos documentais que foram mencionados e parcialmente reproduzidos no relatório inicial, julgou-a improcedente. Concluiu que, apesar de a testemunha CC (na altura juiz de direito) ter sido condenada pelo crime de falsidade do seu depoimento, não se verificaria o nexo de causalidade previsto no art. 696º, al. b), do CPC, entre a falsidade que foi criminalmente sancionada e a decisão cível respeitante à anulação da cessão de quinhão hereditário.


4 Analisando o acórdão da Relação, em conjugação com a sentença de 1ª instância que apreciou e motivou a matéria de facto provada e não provada, constata-se que aquele modificou a decisão a respeito de alguns factos em que fora sustentada a anulação do testamento, mas manteve intacta a decisão de facto na parte relacionada com o pedido de anulação da cessão do quinhão hereditário.

Da motivação constante da sentença de 1ª instância, na parte relativa à decisão da matéria de facto provada e não provada, consta a expressa referência ao depoimento prestado pela testemunha CC relativamente a ambos os blocos de factos, quer o relacionado com a anulação do testamento, quer o atinente à anulação da cessão de quinhão hereditário. Asseverou-se que em relação a cada segmento da realidade a referida testemunha revelou ter conhecimento direto, por ter contactado com cada um dos intervenientes nos negócios jurídicos:

a) Quanto à anulação do testamento: o testador, a filha beneficiada, com quem vivia em união de facto e o outro filho do testador;

b) Quanto à anulação da cessão de quinhão hereditário: o filho do de cujus, como cedente, e a filha, como cessionária.

Por seu lado, a Relação, dentro do objeto da impugnação da decisão da matéria de facto, apreciou os meios de prova que foram indicados pela recorrente, mas fundamentalmente acabou por apoiar-se na motivação que fora exposta na sentença de 1ª instância, à qual aderiu, designadamente na parte em que nela se atribuiu credibilidade ao depoimento da testemunha CC.

É, pois, dentro destas balizas que deverá apreciar-se em que medida o depoimento da testemunha CC, para além de ter sido determinante da anulação do testamento (cujo resultado foi invertido através do recurso ordinário de apelação), também o foi relativamente à anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário.

Para o efeito não pode olvidar-se que qualquer depoimento testemunhal é precedido da prestação de juramento, nos termos dos arts. 513º e 459º do CPC, comprometendo a testemunha a depor com veracidade sobre o que he for perguntado. Por outro lado, como decorre do art. 516º, a testemunha, ao depor com precisão sobre a matéria a que é inquirida, deve revelar a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o seu conhecimento.

Todos estes aspetos assumem especial relevo no caso concreto, atenta a relação de proximidade para-familiar (decorrente da união de facto com a ora recorrente) que existia entre a testemunha e os demais intervenientes em ambos os negócios jurídicos: testador, a filha beneficiada pela deixa testamentária e o outro filho cedente do quinhão hereditário.


5. Vejamos o que se nos depara no caso concreto:

5.1. O acórdão criminal emanado deste Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou o acórdão da Relação no processo-crime, julgou “procedente a pronúncia contra o “arguido CC, pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360º nºs 1 e 3, do Cód. Penal”.

Tal condenação assentou nos seguintes factos essenciais:

30. Na audiência de julgamento dessa ação nº3606/12...…, na sessão ocorrida no dia 19-9-13, o arguido, após a Srª Juíza o ter advertido de que estava obrigado a responder e com verdade às perguntas que lhe iam ser colocadas, sob pena de, não o fazendo, praticar um crime de falso depoimento e ter prestado juramento, prestou depoimento;

32. O arguido disse, contra a verdade que bem conhecia, que, na altura em que foi celebrado o testamento, o Eng. BB, além do mais, “não sabia as horas, não sabia os dias da semana, não sabia os meses. E muitas vezes não sabia mesmo onde se encontrava, … inclusivamente a casa, não sabia que estava em ..., em casa da filha ou em sua casa … era praticamente impercetível o que ele dizia nessa altura” e não tinha consciência do que estava a fazer;

33. O arguido, por ter convivido com o Engº BB, designadamente no período que antecedeu o seu falecimento e por ter aconselhado e determinado os termos do testamento celebrado, sabia perfeitamente que aquele estava na posse das suas faculdades mentais, de livre e esclarecida vontade e com capacidade de decisão, ou seja, capaz de decidir sobre os seus assuntos pessoais e de dispor dos seus bens.

34. Sabia também os exatos termos da escritura da cessão de quota hereditária, por ter sido ele a redigir a minuta e a entregá-la ao notário, tendo acordado com ele a data da celebração da escritura em que veio a estar presente;

35. Ao declarar que o testador não definiu o que deveria constar do testamento nem tinha consciência do que estava a fazer quando o outorgou, o arguido concretizou de forma livre, deliberada e consciente, a prestação de depoimento com conteúdo que sabia não corresponder à realidade dos factos, apesar de também saber que o seu depoimento seria determinante para a formação da convicção da julgadora, como se verificou realmente e foi refletido na motivação e que assim desobedecia à lei, cometendo um crime.

36. Quis declarar factos e responder às perguntas que lhe eram formuladas, em contrário da verdade que bem conhecia;

37. Sabia, tanto mais quanto, além de ter agido na qualidade de testemunha, exerce as funções de juiz de direito, que estava obrigado a dizer a verdade perante o tribunal, conforme juramento que fez, tendo tomado consciência da advertência formulada pela juíza que presidia ao julgamento, de que incorria em responsabilidade criminal caso não respondesse com verdade;

38. Agiu de forma livre, voluntária e deliberada, apesar de saber que a sua conduta atentava contra a realização da justiça e era punida como ilícito criminal;

5.2. O extrato factual da decisão criminal evidencia que a parte substancial dos factos que integraram o crime de falsidade de testemunho estava relacionada com o que foi declarado pelo arguido acerca da alegada incapacidade do testador na ocasião em que o testamento foi outorgado.

Porém, ainda que o foco principal da condenação criminal esteja centrado na factualidade atinente à anulação do testamento, o mesmo acórdão criminal considerou provados factos com maior amplitude, abarcando ainda o depoimento testemunhal referente ao circunstancialismo em que foi outorgado o contrato de cessão de quinhão hereditário.

Com efeito, dele consta ainda que o arguido, “sabia também os exatos termos da escritura de cessão de quota hereditária, por ter sido ele a redigir a minuta e entregá-la ao notário, tendo acordado com ele a data da celebração da escritura em que veio a estar presente”. E, embora utilizando uma formulação genérica, dele consta ainda que “quis declarar factos e responder às perguntas que lhe foram formuladas em contrário da verdade que bem conhecia”, agindo “de forma livre, voluntária e deliberada, apesar de saber que a sua conduta atentava contra a realização da justiça …”, o que incluía também factos a que o arguido depôs na audiência cível relacionados com o negócio jurídico da cessão do quinhão hereditário.

Mas não é esse o único elemento relevante, importando ainda notar o que se refere na motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença proferida na ação declarativa e, depois, no acórdão da Relação, daí resultando que o relevo do depoimento testemunhal do arguido no processo cível não se produziu apenas em torno dos factos relacionados com a anulação do testamento - matéria que, como se disse, acabou por ser sanada pela Relação, através do recurso ordinário de apelação – estendendo-se também aos factos atinentes ao outro negócio jurídico.

E, na realidade, tratando-se de um depoimento que incidiu sobre todo o objeto de uma ação que integrava dois pedidos e duas causas de pedir, só de forma artificial se poderia considerar, como o fez a Relação, que a falsidade do depoimento apenas foi determinante para a decisão de 1ª instância acerca da matéria relacionada com a anulação do testamento, deixando de o ser relativamente ao pedido e causa de pedir atinentes à anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário.

Essa asserção, além de ser negada pelo teor de cada uma das referidas decisões e até do acórdão criminal, é contrária as regras da lógica e da experiência, na medida em que, dependendo a credibilidade de uma testemunha da veracidade que é concretamente atribuída ao seu depoimento, tal fator fica irremediavelmente afetado em relação a todo o depoimento prestado perante a demonstração inequívoca de que a testemunha mentiu inequivocamente sobre os factos diretamente relacionados com a capacidade do testador, em circunstâncias que bem conhecia, já que vivia em união de facto com a respetiva filha que foi beneficiada pela cláusula testamentária.

5.3. Podemos, assim, assumir que o depoimento testemunhal em causa, além de ter sido determinante para o resultado da ação declarativa relacionado com a anulação do testamento, como resulta claramente do acórdão criminal, não deixou de o ser também (nem poderia deixar de o ser) relativamente a factos que foram tido como relevantes para a declaração da anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário. Sinal disso é o facto de a testemunha em causa, depois de ter levado o seu empenho ao ponto de colaborar na preparação e no agendamento da escritura pública que formalizou tal contrato, colaborou com o irmão da A. na instauração da ação judicial onde o depoimento veio a ser prestado e valorado.

Perante um depoimento testemunhal prestado por um magistrado judicial que até justificou a sua condenação penal e que, além disso, deu azo à aplicação da pena disciplinar de aposentação compulsiva (deliberação do Conselho Superior da Magistratura publicada no D.R., II Série de 15-10-2019), toda a credibilidade que lhe foi atribuída por ambas as instâncias ficou inquinada, independentemente de o foco da ação criminal ter incidido mais sobre o que foi relatado pela testemunha acerca das condições psíquicas do testador e menos sobre as circunstâncias em que foi outorgada a cessão do quinhão da herança.

A conclusão diversa que foi extraída no acórdão recorrido em torno do modo como no tribunal de 1ª instância e, depois, na Relação, foram apreciados e reapreciados os meios de prova que serviram para sustentar cada uma das decisões da matéria de facto provada e não provada (redundando na afirmação da falsidade causal em relação ao que foi decidido relativamente ao testamento e na negação dessa causalidade ou concausalidade a respeito da cessão do quinhão hereditário) de modo algum consegue ultrapassar o teste da fiabilidade ou da credibilidade do depoimento da testemunha relativamente a toda a matéria a que foi inquirida.

Com efeito, se, porventura, como veio a comprovar-se posteriormente, o tribunal de 1ª instância e, depois, a Relação se tivessem apercebido de que o depoimento da testemunha era falso em relação a algum dos factos relatados acaso teria sido atribuída ao depoimento a credibilidade que serviu para sustentar a decisão relativamente a outros factos?

Por simples dedução lógica, a resposta não pode deixar de ser negativa, resultado que mais se acentua quando se verifica que a testemunha, depois do envolvimento que teve na outorga do contrato de cessão do quinhão hereditário, acabou por tomar o partido do outro interessado, numa altura em que tinha cessado a união de facto com a ora recorrente, o que se refletiu no aconselhamento relativamente à instauração da ação de anulação de ambos os negócios jurídicos.

Não é pelo facto de não estar em causa neste recurso extraordinário de revisão o segmento decisório respeitante à anulação do testamento, que a Relação oportunamente revogou pela via ordinária do recurso de apelação, que o crime de falsidade do depoimento deixa de relevar para revisão do outro segmento decisório.

A prestação de um depoimento testemunhal clara e inequivocamente marcado pelo perjúrio relativamente a um dos negócios jurídicos (testamento) maculou indelevelmente todo o depoimento que também foi determinante para o que foi decidido acerca do outro negócio (cessão do quinhão da herança), tanto mais que quanto a este se revelou especialmente importante a prova testemunhal, considerando que estavam em causa factos relacionados com as motivações do cedente e a alegada estratégia da ora recorrente para conseguir convencê-lo a outorgar a cessão.

O acréscimo de causalidade relativamente ao efeito persuasivo do depoimento testemunhal em causa é mais evidente quando se verifica que a testemunha era um magistrado judicial e que, por esse facto, estava especialmente vinculado ao dever de colaborar na sã administração da justiça, o que envolvia a prestação de depoimento testemunhal verdadeiro imposto quer pelas normas gerais, quer pelas regras estatutárias.

5.4. Por conseguinte, tendo em conta a condenação criminal, o teor de cada uma das decisões proferidas na ação declarativa e as regras de experiência, impõe-se concluir que, para efeitos da decisão revidenda, acerca da anulação da cessão do quinhão hereditário foi relevantemente ponderado e valorado o depoimento testemunhal prestado por alguém que, na ocasião, era juiz de direito e que conjugava os seguintes fatores que terão justificado a sua “razão de ciência”:

- viveu maritalmente com a recorrente, de quem tem uma filha;

- conviveu com a sua família e designadamente com o recorrido, irmão da recorrente;

- assistiu à outorga da escritura pública de cessão do quinhão hereditário para a qual até elaborou uma minuta.

Estas circunstâncias influíram na credibilidade que foi atribuída ao seu depoimento, ao ponto de ser especificamente referido tanto na sentença de 1ª instância como no acórdão da Relação. Efeito que não teria existido, não teria o mesmo nível ou seria sujeito a um mais apertado escrutínio se acaso cada uma das instâncias judiciais que se pronunciou sobre a matéria de facto provada e não provada tivesse conhecimento do que veio a apurar-se posteriormente no processo criminal, ou seja, de que o depoimento testemunhal em causa estava inquinado de falsidade ao ponto de ter justificado a condenação criminal.


6. Reunidos estão, pois, os requisitos para a procedência do recurso extraordinário de revisão, o que, nos termos do art. 701º, nº 1, al. b), implica a anulação do acórdão da Relação, na parte em que apreciou o pedido e a causa de pedir atinentes ao contrato de cessão de quinhão hereditário, com reflexos também na anulação do segmento correspondente da sentença de 1ª instância.

É por isso que, atenta a falsidade do depoimento prestado pela testemunha CC, deverá ser retomada a audiência final, com exclusão desse depoimento e com a realização das diligências de prova que forem consideradas pertinentes, com eventual aproveitamento dos demais depoimentos que foram prestados.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão da Relação proferido no presente recurso extraordinário de revisão. Consequentemente:

a) Declara-se anulado o acórdão da Relação datado de 6-11-2014, proferido na ação declarativa, na parte em que confirmou a sentença de 1ª instância de 3-2-2014, que, por seu lado:

- declarou a anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário celebrado por escritura pública de 22-10-2010;

- condenou a R. à restituição à herança dos bens e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente as contas bancárias do de cujus;

- condenou a R. a restituir à herança o correspondente ao valor dos bens já alienados e registados a favor de terceiros, nomeadamente o preço obtido com os veículos indicados no ponto 7. dos factos provados na sentença;

- ordenou o cancelamento das inscrições existentes a favor da R. sobre os bens da herança não alienados a terceiros;

- e condenou a R. nas custas processuais.

b) Determina-se que se dê seguimento ao disposto no art. 701º, nº 1, al. b), do CPC, na parte relacionada com o pedido de anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário e com os pedidos dependentes dessa anulação, considerando-se prejudicado o depoimento oportunamente prestado pela testemunha CC.

As custas deste processo de revisão, incluindo as do presente recurso de revista, ficam a cargo do recorrido.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Notifique.


Lisboa, 13-5-21


Abrantes Geraldes (relatora)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo