Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1432
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
PRÉDIO URBANO
PRÉDIO RÚSTICO
USUFRUTO
EXTINÇÃO
FIDEICOMISSO
INDIVISIBILIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200806050014321
Data do Acordão: 06/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

- A constituição de unidades prediais distintas a partir de um único edifício passa, necessariamente, no nosso sistema jurídico, pela constituição da propriedade horizontal.
- A modificação das características físicas de uma edificação destinada a comércio e a habitação unifamiliar para um edifício em regime de propriedade horizontal está sujeita a licenciamento prévio das Câmaras Municipais.
- Constitui condição de procedência da pretensão de divisão a demonstração de estarem satisfeitos os pertinentes requisitos administrativos até ao momento em que o tribunal deva pronunciar-se sobre a questão da divisibilidade.
- Indemonstrados os requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, a indivisibilidade, cujo conhecimento é oficiosamente imposto, não pode deixar de ser declarada.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA intentou contra BB, casado com CC, contra DD e contra EE , casada com FF, acção especial para divisão de coisa comum, tendo por objecto, além de outros, o “prédio urbano, sito na Rua..., composto de casa de construção moderna em bom estado de conservação, com a superfície coberta de 1.325,5 m2, com logradouro de 4.310 m2 e com quintal de 66 m2, inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de Castelo Branco sob o art. 4056 e descrito na CRP respectiva sob o n.º 8.516 da dita freguesia”
Alegou que ele, A., e os RR. são comproprietários em partes iguais de tal prédio e que “embora se trate duma construção única, pela sua área e características pode facilmente e sem grandes obras e alterações ser dividido em dois, três ou quatro, com a constituição da propriedade horizontal”

Contestaram os RR., articulado em que, aceitando a alegada compropriedade, se opõem à divisibilidade do prédio sustentando que o mesmo é uma casa única, apalaçada, integrando ainda uma construção com três divisões no quintal e um único e grande jardim e que, na actual estrutura do imóvel, a sua divisão ainda que por constituição de 4 fracções autónomas, em propriedade horizontal, é materialmente impossível, ressalvada a hipótese, que recusam, de serem realizadas obras vultuosas e de custo elevado, sendo que o fraccionamento do imóvel, atentas as características de casa solarenga, implica significativa diminuição do actual valor global, não admitindo a divisão em 4 unidades equivalentes e independentes, com saída própria, pelo que, neste momento, o Tribunal nem sequer poderia constituir, por sentença, a pretendida propriedade horizontal e nenhuma alteração estrutural nele pode ser realizada sem o respectivo licenciamento.

Foi admitida e teve lugar prova pericial, tendo os Peritos respondido aos quesitos formulados por ambas as Partes.

Após várias vicissitudes processuais, sobremaneira relacionadas com o desenvolvimento do acordo sobre a divisão dos outros prédios, foi proferida o seguinte decisão:
(…) oportunamente foram realizadas as perícias determinadas nos autos.
Ao que ora importa, no que concerne ao prédio urbano identificado nos autos, concluíram, por unanimidade, os Exmos. Srs. peritos pela sua divisibilidade (cfr. fls. 139 a 145).
Em face disso, cumpre proceder à composição dos quinhões a atribuir aos consortes em função das respectivas quotas (1/4 cada).
Do exposto resulta que a pretensão dos Réus se mostra extemporânea e carece de fundamento legal.
Posto que, se impõe concluir pelo indeferimento do peticionado.
Notifique os Exmos. Srs. peritos nomeados, que procederam à realização da perícia relativa ao prédio urbano identificado nos autos, para, no prazo de vinte dias, se pronunciarem quanto à formação dos quinhões (artigo 1053°, n.° 5 do CPC)”.

Dessa decisão, interpuseram os RR. recurso de agravo que a Relação, depois de considerar tratar-se do recurso da «decisão sobre a questão, suscitada na contestação, da indivisibilidade do prédio urbano (…), que não deixa de ser a decisão final correspondente e respeitante à fase declarativa do processo especial em causa, fase essa em que se define o direito e a que alude o art. 1053º-2 e 3 do CPC», sem oposição das Partes (que para o efeito ouviu), mandou seguir como de apelação.
Conhecendo do respectivo objecto, revogou a decisão, declarou a indivisibilidade do prédio e determinou o prosseguimento do processo com a conferência aludida no art. 1056º-2 CPC.


O Autor interpõe agora recurso de revista, pedindo a reposição “do despacho da 1ª Instância, pronunciando-se os Senhores Peritos quanto á composição dos quinhões, proferindo-se, de seguida a decisão prevista no n.º 2 do art. 1053º do CPC”, a coberto das conclusões que se transcrevem:

“1- O Tribunal a quo julgou indivisível o imóvel, todavia não tinha elementos de facto para se poder pronunciar pela divisibilidade ou indivisibilidade do bem em apreço, nem, processualmente podia, como o fez, dar por assente a matéria de facto e proferir uma decisão que, em primeiro lugar, competia à 1ª Instância.
2- Nos presentes autos vieram os RR., recorridos, contestar a acção de divisão de coisa comum, intentada pelo ora recorrente, negando a divisibilidade natural do imóvel solicitando de imediato prova pericial sobre tal facto, pelo que ordenou, e bem, o Meritíssimo Juiz da primeira Instância, que se procedesse a essa peritagem.
3- Todavia, esse douto despacho alicerçou-se, apenas, no art. 576°, n.º 2 do CPC, omitindo deste modo, o previsto no n.º 5 do art. 1053°, pelo que nada disse quanto à composição de quinhões, no caso dos peritos concluírem pela divisibilidade, facto este que não mereceu reparo às partes.
4- Nessa peritagem, pronunciaram-se os Senhores peritos, por unanimidade pela divisibilidade do prédio, peritagem essa que também não mereceu qualquer reparo às partes.
5- Mais de cinco anos volvidos sobre a peritagem (uma vez que o processo estivera entretanto parado por diversas razões e inclusive a pedido das partes) vieram os RR., recorridos discordar da mesma, requerer que o prédio seja considerado indivisível e pedir a conferência a que alude o art. 1056°, n.º 2 do CPC.
6- Ora, dessa peritagem poderiam os recorridos ter reclamado, pedido esclarecimentos, ter pedido uma segunda peritagem, no prazo legal, depois de terem sido notificados da mesma ...o que não podiam, era, salvo melhor opinião, perante a constatação de uma facto, do juízo de valor da peritagem e ainda antes de ser definidos os quinhões, vir, passados mais de cinco anos, dizer discordar do que afirmam os senhores peritos.
7- Pelo que, e bem, foi a sua pretensão julgada extemporânea, tendo ainda decidido o Tribunal de primeira instância "no que concerne ao prédio urbano identificado nos autos, concluíram, por unanimidade, os Exmos. Srs. peritos pela sua divisibilidade. Em face disso, cumpre proceder à composição dos quinhões a atribuir aos consortes em função das respectivas quotas (1/4 cada) .... ( ... ) ... Notifique os Exmos. Senhores peritos nomeados, que procedam à realização da perícia relativa ao prédio urbano identificado nos autos, para, no prazo de vinte dias, se pronunciarem quanto à formação dos quinhões (artigo 1053, n.º 5 do CPC). "
8- Após o que, a ter o processo seguido o seu curso normal, deveria o tribunal de primeira instância proferir decisão, devidamente fundamentada, sobre as questões suscitadas na contestação, nos termos do n.º 2 daquele artigo 1053°, designadamente fixando os factos provados e não provados., cabendo da mesma recurso, com subida imediata e nos próprios autos.
9- Todavia, vieram os RR. recorrer desse despacho, argumentando, em síntese, que o mesmo dava o bem por divisível quando este era indivisível.
10- Assim, também o entendeu o Tribunal a quo, todavia o que o despacho da primeira instância diz é que os Senhores peritos concluíram pela divisibilidade e que, portanto, em cumprimento do art. 1053°, n.º 5, devem pronunciar-se sobre o formação dos diversos (4) quinhões!
11- Não obstante, o Tribunal a quo, concluiu ainda que o despacho em causa é a decisão sumária a que se refere o art. 1053° n.º 2 do CPC.
12- Ora, de acordo com o exposto, salvo o devido respeito, não se entende como pode o Tribunal a quo chegar a tal conclusão, uma vez que por um lado nesse despacho não há qualquer decisão sobre a divisibilidade ou não do imóvel, mas tão só a constatação de qual foi o juízo dos Senhores peritos.
13- Depois porque não é dada como assente qualquer matéria de facto e, consequentemente, também não é apresentada qualquer fundamentação para uma decisão ... que não se tomou!
14- À falta de matéria de facto estabelecida pela primeira instância o Tribunal a quo estabeleceu ele próprio a matéria de facto, segundo refere, com base numa certidão e no relatório de peritagem, do qual retém apenas algumas repostas dos Senhores Peritos, para concluir pela indivisibilidade do bem.
15- Desde logo alterou a matéria de facto (inexistente) embora, salvo melhor opinião não se verificasse nenhum dos condicionalismos previstos no art. 712°, n.º 1 do CPC, deixando de fora, quanto ao laudo pericial, elementos de capital importância.
16- Assim quanto ao ponto B, que resulta da resposta o quesito 15, sobre o aspecto do imóvel (casa solarenga apalaçada) não transcreve a segunda parte da resposta "sendo todavia, no seu interior constituído por diversas unidades distintas ... "
17- O ponto C) dá por assente que na casa existem duas unidades habitacionais e funcionam uma drogaria, um escritório de advocacia, uma ourivesaria, um comércio de lãs e um armazém de papelaria.
18- Porém tal facto fica muito aquém da resposta dada pelos senhores peritos quer aos quesitos 5 e 6, quer ao quesito 16, com efeito, resulta dessa resposta que aquelas partes do prédio são independentes, distintas e isoladas entre si, claramente autónomas ...
19- Deste modo, não só não merecia qualquer censura o douto despacho da primeira instância, como, claramente o douto acórdão em causa, julgou onde não podia julgar, decidiu onde não podia decidir.
20- Desde logo, a questão não é a de saber se a casa em causa foi ou não "projectada para ser dividida em 4 Fracções", como faz o Tribunal a quo, mas sim de saber se pode ou não ser dividida em 4 quinhões, iguais no seu valor, isto é, se as unidades independentes e autónomas constituídas por duas de habitação, uma drogaria, um escritório de advocacia, uma ourivesaria, um comércio de lãs e um armazém de papelaria (independentemente de serem unidades com funções diferentes) podem ser agrupadas em 4 quinhões de igual valor.
21- E tal questão não tem nada a ver com o facto (sintomaticamente perguntado pelos RR. recorridos), da parte habitacional poder ainda ser dividida em 4 fracções autónomas, com recurso a obras ....
22- A questão, reafirma-se, é de saber se, com as unidades autónomas já existentes, e certamente de diversos valores, é possível fazer quatro quinhões iguais, questão a que o Tribunal a quo respondeu que não.
23- Não se percebendo como o fez, nem como o podia fazer, uma vez que não tinha os valores da cada uma dessas unidades, que, aliás, deverá ser estabelecido pelo Senhores peritos, para servir de fundamentação aos quinhões que venham a propor. ..
24- Pelo que, reafirma-se, a matéria de facto à disposição do Tribunal a quo salvo o devido respeito, não era sequer suficientes para o habilitar a decidir como decidiu.
(…) Ao assim não decidir o douto Acórdão recorrido violou e/ou interpretou erradamente o disposto nos arts. 209° e 388° do CC e arts. 712°, n. 1053°, n° 2 e 3 e 1056°, n.º 1 e 2 do CPC.”

Os Recorridos apresentaram resposta em que concluíram pela confirmação do acórdão impugnado.


2. - No acórdão recorrido teve-se como provada a seguinte factualidade (que “se alicerçou na certidão do Reg. Predial junta e no conteúdo do laudo pericial”):

A) O prédio urbano sito na Rua ..., composto de casa, com a superfície coberta de 1.325,5 m2, com logradouro de 4.310 m2 e com quintal de 66 m2, inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de Castelo Branco sob o art. 4056 e descrito na CRP de Castelo Branco sob o n.º ..... a fls. 157 verso do livro B-... da freguesia de Castelo Branco, está desde 28/12/1957,inscrito, na CRP de Castelo Branco, em comum e partes iguais a favor de:
AA;
BB;
DD; e
EE.
B) A casa existente em tal prédio – denominado “Solar do Dr. GG – tem o aspecto exterior duma casa solarenga/apalaçada;
C) Em tal casa existem duas unidades habitacionais, a que serve de residência aos AA. e o “torreão”; além disso, funcionam na casa uma drogaria, um escritório de advocacia, uma ourivesaria, um comércio de lãs e um armazém de papelaria;
D) A drogaria, a ourivesaria, o comércio de lãs e o armazém de papelaria têm acesso directo para a via pública;
E) O escritório de advocacia e as duas unidades habitacionais têm acesso para o logradouro.
F) Quaisquer obras a efectuar no prédio terão que ser objecto de prévio projecto – por especialistas credenciados, dada a localização e o relevo que o edificado tem no contexto da cidade.
G) Quanto ao “torreão”, dadas as suas características e o actual estado de degradação, pode ser demolido/reconstruído todo o seu interior, podendo nesta obra obter-se 4 fracções autónomas.
H) Quanto à casa principal, considerando as suas características e o seu relativo bom estado de conservação (atendendo à idade), deve manter-se o seu actual estado.


3. - Mérito do recurso.

3. 1. – Determinação do objecto do recurso em função do objecto do recurso interposto para a Relação.

O Recorrente começa por se insurgir contra o facto de o Tribunal da Relação ter apreciado o recurso interposto pelos Recorridos da decisão acima transcrita como uma declaração judicial de indivisibilidade do prédio urbano em causa, constituindo a decisão sumária a que se refere o art. 1053º-2 CPC, e não a mera constatação que “os Senhores peritos concluíram pela indivisibilidade”, devendo “pronunciar-se sobre os diversos quinhões”.

A questão suscitada foi devidamente colocada, como acima se aludiu, no despacho em que se propôs a alteração da espécie do recurso, em razão do respectivo objecto, sem qualquer reacção do ora Recorrente, apesar de lhe ter sido devidamente assegurado o exercício do contraditório (art. 703º CPC).

Decidido que o recurso seria de apelação, incidindo sobre «a decisão final respeitante à fase declarativa do processo (…), fase esta em que se define o direito a que alude o art. 1053º-2 e 3 CPC», o ora Recorrente, então Recorrido, continuou em silêncio.

Consequentemente, há que concluir que o decidido pela Relação sobre a espécie e objecto da decisão recorrida se tornou definitivo (art. 677º CPC).


3. 2. – Fixação da matéria de facto pela Relação.

3. 2. 1. - O Recorrente argúi a violação das normas do art. 712º-1 CPC a pretexto de a Relação ter alterado a matéria de facto, apesar de inexistente no despacho da 1ª instância, do mesmo passo que deixou de fora, quanto ao laudo pericial, o segmento da resposta ao quesito 15, donde consta “sendo todavia, no seu interior constituído por diversas unidades distintas».

Não tem razão.

A Relação, como Tribunal de Instância, isto é, com irrecusável competência e liberdade de julgamento da matéria de facto, em conformidade com o que se dispõe no art. 712º do CPC, de resto em termos definitivos fora dos limites da prova vinculada mencionada no art. 722º-2, 2ª parte, do mesmo Diploma, ao elencar o conjunto de factos que teve por provados com relevo para a apreciação da questão da divisibilidade ou indivisibilidade, que antes fixara, limitou-se a suprir a nulidade consubstanciada na falta de fundamentação de facto (art. 668-1--b) CPC), cometida pela decisão recorrida, em estrita obediência ao dever de suprimento que lhe impunham as normas dos arts. 713º-2 e 715º-2.

Ora, não se questiona que os Julgadores da 2ª Instância não dispusessem de todos os elementos de que dispunha o da 1ª Instância para conhecer da questão de direito sob impugnação, ou, dito de outro modo, que o Tribunal de recurso se não encontrasse, perante os elementos de facto a valorar e fixar, na mesma situação em que se encontrava o Tribunal recorrido, o que desde logo decorre de não ter sido produzida qualquer prova não reduzida a escrito, designadamente testemunhal.

Consequentemente, da conjugação dos dispositivos citados e dos n.ºs 1-a) e 4 do art. 712º resulta que a Relação dispunha de todos os elementos de prova que haviam servido de base à decisão impugnada, apesar de ter omitido o respectivo enunciado, não sendo, também por isso, caso de anulação, mas de suprimento da omissão cometida.

A tudo acresce, note-se, de forma incontornável, a imposição legal de conhecimento oficioso da questão da indivisibilidade, vale dizer, do dever proferir decisão pelo Tribunal, na 1ª Instância ou em recurso, logo que o processo forneça os necessários elementos – art. 1053º-4 CPC.

3. 2. 2. - Embora despida de relevância, pelas razões que a seguir melhor se evidenciarão, também se entende carecer de fundamento o pretendido aditamento ao facto B) da parte não acolhida da resposta dos Peritos ao quesito 15 aludida.

Com efeito, trata-se de matéria conclusiva que, como resulta do quesito 16 e respectiva resposta e da 2ª parte da resposta ao mesmo quesito 15, pretende traduzir as unidades onde se praticam “as actividades comercial, de serviços e habitação”, que são as referidas na al. C) dos factos provados e que a invocada resposta ao quesito 16 já não confirmou como “unidades independentes, distintas e isoladas ente si”, referindo-se-lhes apenas como “unidades”.
O conceito de “unidade distinta” traduz um juízo de valor a retirar de um conjunto de factos que preencham o acervo de características próprias integradoras da inconfundibilidade ou autonomia da coisa a que se reportam.

Ora, a perícia é, antes de mais, um meio de prova que tem por fim a percepção ou apreciação de factos (art. 388º C. Civil) e não a formulação de juízos valorativos, designadamente quando sejam susceptíveis de preencher conceitos de direito, juízos cuja inclusão ou tratamento como matéria de facto está também vedada ao juiz, não podendo, em consequência ser considerados em fundamentação da apreciação e decisão da questão jurídica - arts. 511º-1 e 646º-4 CPC.

Não há, também quanto a este ponto, violação do disposto no dito art. 712º-1 CPC.

3. 3. – A (in)divisibilidade do prédio.

O Recorrente insiste na pretensão da divisibilidade do prédio urbano, relevando ser a questão saber se pode ou não ser dividido em quatro quinhões, iguais no seu valor, independentemente do destino para que foi projectado ou das obras a que seja necessário recorrer.

No acórdão recorrido, depois de se referir que a noção de indivisibilidade resulta do art. 209.º do CC, em que se estabelece que “são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”, fez-se notar que o preceito traça um critério jurídico e não físico/naturalístico ou material, uma vez que física e materialmente quase todas as coisas são divisíveis.

O critério jurídico da divisibilidade eleito pressupõe, como exige a norma, o concurso de três circunstâncias cumulativas: - que não haja alteração da substância; - que não se verifique diminuição do valor (detrimento); - e, que não saia prejudicado o uso a que se destina. Quando tal não suceda a coisa não pode ser fraccionada; é naturalmente indivisível.
Por outro lado, tais requisitos de fraccionamento – as características ou qualidades da coisa que permitem a sua divisibilidade - devem concorrer no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade.

Assim, como vem ponderado, “não é o facto de, no futuro – com mais ou menos obras ou trabalhos – a coisa se poder tornar divisível que permite qualificá-la como divisível; tem de se atender ao que ela é e não ao que ela pode vir a ser”.
Confirma-o a regra consagrada no n.º 1 do art. 1056.º, n.º 1, do CC ao determinar que, na falta de acordo, tem lugar a realização de sorteio, o que não pode significar senão que a divisibilidade, além de actual, há-de permitir inteirar em espécie todos os interessados, sem que haja lugar a tornas (cfr. acs. STJ, de 5/11/2002 e de 14/10/2004, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

O prédio cuja divisão vem proposta, para poder ser declarado divisível haverá, então, de, no presente, permitir o fraccionamento em quatro quinhões, sem precedência de obras de vulto ou de pagamento de tornas.

Equivale tal a submeter o critério de divisibilidade à possibilidade formação de quatro unidades prediais urbanas distintos e autónomos, pois que o que se pretende é justamente abandonar o regime da compropriedade.


Ora, o modo de constituição de unidades prediais distintas a partir de um único edifício passa necessariamente, no nosso sistema jurídico, pela constituição da propriedade horizontal.

E, satisfazendo essa possibilidade de modificação do direito de propriedade, a lei prevê, como um dos modos de constituição a decisão judicial em acção de divisão de coisa comum (art. 1417º C. Civil).
Do mesmo passo, a lei civil fixa como requisitos de constituição da propriedade horizontal, sob pena de nulidade do título, que se trate de fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública – art. 1415º.


No caso, até se admite que possa existir a aptidão natural do edifício para constituição de fracções com a autonomia que a lei exige, sendo divisível em substância.
Tudo dependerá de um eventual projecto e da realização das obras de o poderão concretizar.

Acontece, porém, que o nosso sistema jurídico sujeita ao regime de controlo ou licenciamento prévio das Câmaras Municipais as operações de urbanização e obras particulares, nomeadamente, e ao que ao caso interessa, as “obras de alteração” de construções ou edifícios, em que se incluem, incontornavelmente, as de modificação das características físicas de uma edificação destinada a comércio e habitação unifamiliar para um edifício em regime de propriedade horizontal (arts. 2º, 4º, 60º, 62º a 66º e 70º, todos do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16/12, entretanto alterado pelo DL. n.º 177/2001 e pela Lei n.º 60/2007, de 4/9, mas sem reflexo no conteúdo das normas ora em aplicação).
E a própria Constituição da República comete às autarquias a definição dessas regras urbanísticas (art. 64º-4).

Ora, justamente, a par, ou antecedendo mesmo, aqueles requisitos da lei civil, existem esses requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal que, decorrendo da verificação das exigências arquitectónicas, de ordem estética e urbanística, de segurança salubridade, etc., são de satisfação exclusivamente deferida às Câmaras Municipais.
A esta Entidade administrativa cabe sempre, como requisito prévio da constituição da propriedade horizontal por qualquer dos meios admitidos na lei, emitir certificado de que o edifício é dotado dos requisitos que o RJUE exige para o efeito (arts. 62º a 66º e 74º cit.).

Que assim é mostra-o o último segmento do n.º 2 do art. 1417º C. Civil conferindo legitimidade para provocar a declaração de nulidade do título á entidade administrativa competente para a aprovação ou fiscalização das construções.
Exige-o, de resto, expressamente o Código do Notariado para a constituição por negócio jurídico titulado por escritura pública (art. 59º), não se vendo como dispensá-lo o reconhecimento judicial, tanto mais que se trata, inegavelmente, do cumprimento de normas de direito público, de interesse e ordem pública, ficando para a decisão judicial a resolução de divergências entre os interessados (cfr. RODRIGUES PARDAL e DIAS da FONSECA, “da propriedade horizontal”, 5ª ed., 97-100).

A tudo acresce, repete-se, que o conhecimento da indivisibilidade é oficiosamente imposto.

Como se escreveu no ac. deste Supremo de 29/11/2006 (proc. 06A3355, in www.dgsi.pt.jstj), “não é possível conceber a constituição da propriedade horizontal sem a observância de todos os requisitos legais, incluindo os de natureza administrativa”.

Não podendo, como se disse, a questão da divisibilidade ficar à mercê da verificação de situações futuras e hipotéticas, era ónus do Autor, ora Recorrente, interessado na divisão, demonstrar estarem satisfeitos os pertinentes requisitos administrativos de constituição da realidade jurídica que a acção visava, mediante instrução dos autos com a falada certificação municipal.

Trata-se, na verdade, de uma condição de procedência da pretensão, a demonstrar até ao momento em que o tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre a questão da divisibilidade, irrelevando quaisquer outras provas ou diligências probatórias (nomeadamente de natureza pericial, inidóneas como substituição do documento camarário).
Daí que logo se tenha adiantado supra a inocuidade da inclusão da reclamada matéria respondida pelos Peritos entre a factualidade tida como provada.

Aqui chegados, pode concluir-se, sem necessidade de mais considerações - designadamente em apreciação dos fins para os quais o prédio foi projectado ou sobre as unidades em que é possível a sua divisão em substância (habitações, lojas, etc.), tudo prejudicado pelo que se deixou dito -, que, indemonstrados os requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, ou seja, do modo legalmente admissível de divisão de construções urbanas, a indivisibilidade do prédio não pode deixar de ser, perante os elementos disponíveis, reconhecida.

Por estes fundamentos, a decisão impugnada tem de ser mantida.

4. - Decisão.

Pelo exposto, acorda-se em:
- Negar a revista;
- Manter a decisão impugnada; e,
- Condenar o Recorrente nas custas.

Lisboa, 5 de Junho de 2008

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias