Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P1709
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
CRIME EXAURIDO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200607120017093
Data do Acordão: 07/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I - O crime de tráfico de estupefacientes, concebido como crime de trato sucessivo, de execução permanente, comummente denominado de crime exaurido, fica perfeito com a comissão de um só acto, preenchendo-se com esse acto gerador o resultado típico. O conjunto das múltiplas acções
unifica-se e é tratado como tal pela lei e jurisprudência.
II - O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do
facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única.
III - Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes,
ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infracções, nos termos do art. 30.º, n.º 1, do CP.
IV - No âmbito dos tráficos de estupefacientes é fundamental discernir se entre os actos de tráfico é detectável um qualquer elo de ligação objectiva e subjectiva, sob a forma de resolução única que possa unificá-los na mesma conduta.
V - A pluralidade de actos só não determina uma pluralidade de acções típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou déclancher, mais ou menos automático, da carga volitiva correspondente ao projecto criminoso inicial, ensinando as regras da psicologia que se entre os
factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respectiva já não são a mera descarga dos primeiros, exigindo um novo processo deliberativo.
VI - Resultando da matéria de facto que:
- a arguida, acompanhada da única filha, então com 2 anos de idade, adquiriu heroína e cocaína formando o desígnio de a vender a terceiros, logo em 04-02-2005 entregando, até às 18h40, embalagens de estupefacientes a terceiros, não identificados, em número de 6;
- nesta data, foram-lhe encontradas 15 embalagens de heroína, com o peso global de 2968 g;
- no dia 04-03-2005, pelas 21h15, no interior do seu soutien, foram-lhe encontradas 6 embalagens de heroína, com o peso global de 0,504 g e 24 embalagens de cocaína, com o peso global de 1687 g;
- a arguida vivia, então, uma união de facto conturbada pelos maus tratos proporcionados pelo homem com quem se relacionara e, a ter como credível a versão que apresentou na motivação de recurso para aquela venda lucrativa, teve o objectivo de se sustentar a si e à filha;
torna-se claro que, atenta a prática dos factos num curto hiato temporal, mediando entre eles 1 mês, num mesmo quadro solicitante, de carência económica, de cunho permanente, aquela prática criminosa se inscreve num mesmo desígnio criminoso, despoletado por aquela condição pessoal,
funcionando como factor unificante das condutas, suporte de uma única resolução criminosa perdurante no tempo, não abandonada sequer pela detenção, por horas, para interrogatório judicial em 04-02-2005.
VII - Assim, a conduta da arguida integra a prática de um único crime de tráfico de menor gravidade, p.e p. pelo art. 25.º, al. a), do DL 15/93, de 22-01, mostrando-se adequada a fixação da pena em 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 4 anos, com vigilância do IRS.

Decisão Texto Integral:

Acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum, sob o n.º .../05.2SWLSB , da ....ª Vara Criminal de Lisboa , -3.ª Sec. , com intervenção do tribunal colectivo foi submetida a julgamento , AA , vindo , a final a ser condenada como autora material de 2 crimes de tráfico de menor gravidade , p . e p . pelo art.º 25.º a) , do Dec.º _lei n.º 15/93 , de 22/1 , na pena de 2 anos e 3 meses e prisão por cada , e , em cúmulo jurídico , na pena unitária de 3 anos de prisão .

Inconformada com o teor da decisão proferida , recorre a arguida para o STJ, alegando pecarem por excesso as penas parcelares e a unitária , suspendendo-se a execução da pena, por melhor se adaptar às circunstâncias concretas que levaram `a prática dos crimes , suas condições sociais , idade e necessidade de reabilitação .

A Exm.ª Procuradora da República , em 1.ª instância , considerando que se alteraram , para melhor , as condições pessoais da arguida , que oferece , agora , um quadro de maior estabilidade familiar e financeira , não objecta à preconizada suspensão .

Neste STJ o Exm.º Procurador Geral-Adjunto teve visto dos autos, requerendo que se designe dia para julgamento .

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , considerando que se provaram os seguintes factos:

A arguida adquiriu cocaína e heroína estupefacientes a indivíduo de identidade desconhecida e procedeu à sua divisão em embalagens de doses individuais para proceder à sua venda a consumidores desses estupefacientes.

Assim, no dia 4 de Fevereiro de 2005, pelas 18h 25m, a arguida encontrava-se na Rua Maria Pia, junto da Meia Laranja, em Lisboa, e aí entregava a indivíduos de identidade desconhecida embalagens com estupefacientes.

A arguida estava acompanhada da sua filha BB, de 2 anos de idade.

Até às 18h 40m, altura em que foi interceptada pelos agentes da PSP, a arguida entregou embalagens com estupefacientes, em número não apurado, a seis indivíduos.

Após revista foram encontradas na posse da arguida, e a esta apreendidas, um total de quinze (15) embalagens com 2,968 gramas de heroína, que estavam dentro de dois pacotes individuais de açúcar.

No dia 9 de Março de 2005, pelas 21h 15m, a arguida encontrava-se no cruzamento da Avenida Almirante Reis com a Travessa Cidadão João Gonçalves, no Intendente, em Lisboa, e tinha consigo, escondidas no interior do soutien que usava, seis (6) embalagens com o total de 0,504 gramas de heroína e vinte e quatro (24) embalagens com o total de 1,687 gramas de cocaína, que lhe foram apreendidas.

Mais foi apreendida à arguida a quantia monetária de € 162,86 em notas e moedas do BCE.

A arguida conhecia a natureza estupefaciente dos produtos que vendia e que detinha nas duas indicadas ocasiões, e que lhe foram apreendidos, destinando-os venda a terceiros.

A quantia monetária que lhe foi apreendida era proveniente de cedências a terceiros de estupefacientes.

A arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

AA nasceu em Cabo Verde, pais onde reside a sua família. É a mais nova de nove irmãos, sendo três germanos e seis consanguíneos. Frequentou a escolaridade na idade própria até aos 16 anos, tendo completado o 6.° ano. Após dedicou-se à venda de peixe no mercado.

Aos 18 anos, emigrou para Portugal, onde se encontrava o pai e uma irmã. Neste país, passou a trabalhar como empregada de empresas de limpeza e, posteriormente, em restaurantes, no sector da copa.

Há cerca de cinco anos, começou a viver em união de facto com o pai da filha, durante o período de gestação desta, relação que terminou, há cerca de um ano, na sequência de maus-tratos por parte dele, na sua pessoa.

Pouco tempo depois, iniciou nova relação afectiva que mantém. Reside com o companheiro, cabo-verdiano, servente da construção civil e a filha de 4 anos, que fica aos cuidados de uma ama. Habitam em casa arrendada, composta por dois quartos, marquise e cozinha.

Habitualmenle, têm arrendado um quarto para ajuda do pagamento da renda.

Encontra-se a aguardar a documentação legal, pelo que não pode ter contrato de trabalho ou quaisquer apoios dos serviços públicos. Até à presente data nunca teve autorização de permanência. Por essa razão não está actualmente empregada.

Do seu CRC nada consta.

Assiste a este STJ enquanto tribunal de revista ( art.º 434.º , do CPP) o poder-dever de reexaminar , sem reservas , ressalvada proibição da “ reformatio in pejus” , o direito aplicado , melhorando a decisão , se se colocar , oficiosamente , e esse é o caso , a questão de saber se a conduta do agente configura uma unidade ou pluralidade de infracções , ajustada , como se mostra , à imagem global do facto a qualificação criminosa adoptada , respeitando ao tipo legal de tráfico de menor gravidade .

À dilucidação da questão antepõe-se a da natureza do crime de tráfico de estupefacientes , concebido como crime de trato sucessivo , de execução permanente , mas mais comummente denominado de crime exaurido e , na terminologia alemã , de delito de empreendimento , que , como a falsificação de documentos e outros , fica perfeito com a comissão de um só acto , se excute só com ele , preenchendo-se com esse acto gerador o resultado típico ; o conjunto das múltiplas acções unifica-se e é tratado como tal pela lei e jurisprudência .

O crime exaurido , seguindo-se a jurisprudência emanada do Ac. deste STJ , de 18.6.98 , in CJ , STJ , 98, TIII , pág. 168, é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução , independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única.

Mas a incidência do tempo naquele unicidade não pode deixar de se tomar em apreço , e até comprometê-la mesmo , se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas ; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas , que aglutine as primeiras e subsequentes , ainda dentro daquela volição , hipótese que exclui o concurso real de infracções , nos termos do art.º 30.º n.º 1 , do CP .

Importará discernir então se entre os actos de tráfico é detectável um qualquer elo de ligação objectiva e subjectiva , sob a forma de resolução única que possa unificá-los na mesma conduta ( neste sentido cfr. os Acs. deste STJ , de 14.2.2002 e 3.7.2002 , P.ºs n.ºs 4444/01 e 1533/02 , das 5.ª e 3.ª Secções , respectivamente .

É decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente e que funda o critério de definição da unidade ou pluralidade de infracções , escreve o Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infracções , pág.96 .

A pluralidade de actos , prossegue aquele penalista , in op. cit. , pág. 97 , só não determina uma pluralidade de acções típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou “ déclancher “ , mais ou menos automático , da carga volitiva correspondente ao projecto criminoso inicial , ensinando as regras da psicologia que se entre os factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respectiva já não são a mera descarga dos primeiros , exigindo um novo processo deliberativo .

Importa ao caso reter que a arguida , acompanhada da única filha , então com 2 anos de idade , adquiriu heroína e cocaína formando o desígnio de a vender a terceiros , logo em 4 de Fevereiro de 2005 entregando , até às 18h40 , embalagens de estupefacientes a terceiros , não identificados em número de 6.

Nesta data , na Meia Laranja , em Lisboa , formam-lhe encontradas quinze embalagens de heroína com o peso global de 2, 968 grs.

No dia 4 de Março de 2005 , pelas 21 h15 , no Intendente , no interior do seu “ soutien” foram-lhe encontradas 6 embalagens de heroína com o peso global de 0, 504 grs . e 24 embalagens de cocaína com o peso global de 1, 687 grs.

A arguida , provou –se , vivia , então , uma união de facto conturbada pelos maus tratos proporcionados pelo homem com quem se relacionara e , a ter como credível a versão que apresentou na motivação para aquela venda lucrativa , com o objectivo de se sustentar a si e à filha , torna-se claro que , atenta a prática dos factos num curto hiato temporal , mediando entre eles ( de 1 mês ) , num mesmo quadro solicitante , de carência económica , de cunho permanente , impõe-se concluir que aquela prática criminosa se inscreve num mesmo desígnio criminoso , despoletado por aquela condição pessoal , funcionando como factor unificante das condutas , suporte de uma única resolução criminosa perdurante no tempo , não abandonada sequer pela detenção , por horas , para interrogatório judicial em 4.2.2005 .

Por isso a conduta da arguida se define pela prática de um único crime de tráfico de menor gravidade , p. e p . pelo art.º 25.º a) , do Dec.º-Lei n.º 15/83 , de 22/1, com prisão de 1 a 5 anos .

A medida concreta da pena relevará da consideração da importância dos bens jurídicos a tutelar ( art.º 40.º n.º 1 , do CP) e que ditam a necessidade , com proibição de excesso , da pena , influenciada , em larga medida por considerações de prevenção geral , forma de dissuasão de potenciais delinquentes e de tranquilização da colectividade , que reclama intervenção vigorosa do aparelho punitivo do Estado em relação ao tráfico de estupefacientes e em que se defronta uma ofensividade a plúrimos bens ou valores jurídicos , que vão desde a saúde e liberdade individuais , estabilidade familiar , que destrói , ao erário público , que desfalca , à tranquilidade e segurança públicas porque se situa na génese de criminalidade grave , tornando o traficante alguém de espaço social limitado , que reclama benesses mas esquece sempre , ou quase , a miséria alheia que traz , particularmente , aos segmentos juvenis da sociedade .

A necessidade da pena é , ainda , influenciada por considerações humanitárias sob a égide de reabilitação do agente do crime , tendo a vista a interiorização do seu mau proceder , evitando a sucumbência futura ao crime , a sua emenda cívica , com o que , ele próprio , ganha , desde logo , como a própria sociedade .

A balizar pelo topo , e quaisquer que sejam as considerações de prevenção ( art.º 71.º n.º 1 , do CP) , a culpa do agente , fornecendo a moldura de topo dentro da qual interferem as submolduras de prevenção geral e especial , bem como as circunstâncias que não fazendo parte do tipo atenuam ou agravam a responsabilidade do agente ( n.º2 , do art.º 71.º , do CP) , concorrem , ainda , para a formação da pena .

Ao nível da culpa da arguida assume ela forma dolosa , vontade de traficar e conhecimento proibido pela lei dessa sua acção .

O grau de demérito da acção ou seja da ilicitude , valorando as diminutas quantidades de estupefacientes detidas , dinheiro apreendido , modo de execução do crime , a descoberto , à margem de exagerada dissimulação , sem descurar , no entanto , a qualidade dos estupefacientes , dos mais graves pela dependência e habituação a que conduzem , mostra-se consideravelmente diminuído .

Sobre as necessidades de prevenção geral nem é desnecessário tecer alongadas considerações , conhecido como é o não abrandamento do consumo e tráfico de estupefacientes entre nós .

As necessidades de prevenção especial sob o prisma de conformação futura da arguida ao tecido social que hostilizou não são preocupantes , pois a arguida parece ter refeito a sua vida sentimental e , com isso , ganho alguma estabilidade familiar , fazendo crer , como faz questão de frisar a Exm.ª Procuradora da República , que o encontro com as malhas do crime foram acidentais , contextualizados por aquela difícil condição económica, oferecendo probabilidades de reintegração social .

Em abono da arguida concorre a confissão parcial dos factos , em modalidade pouco mais do que a resultante da sua detenção em flagrante delito .

É delinquente primária ; mãe de uma criança do sexo feminino , nascida já em Portugal , com 4 anos de idade actualmente .

Nacional de Cabo Verde , com permanência entre nós mas sem a correspondente autorização legal , motivo por que não consegue contrato de trabalho , embora já tenha trabalhado como empregada de limpeza e de cozinha.

Presentemente encetou nova relação com um caboverdeano , servente da construção civil , vivendo os três em casa arrendada , de que sublocaram um quarto para ajuda de pagamento da renda .

Apesar de incursa num crime de tráfico de menor gravidade , ao nível do “ dealer “ de rua , nem por isso o crime deixa de comportar alguma gravidade embora menor do que a respeitante ao tipo -matriz , sendo aquele punível na generalidade das legislações uma vez que o traficante concorre para a disseminação da droga , sendo tratado com maior benignidade , respeitando-se , ainda os importantes bens dignos de tutela , porque por ele se atinge o traficante sito no maior escalão .

A pena que se tem por justa para o crime em causa é a de 2 ( dois) anos e meio de prisão.

Este STJ aposta , em juízo prudencial , correndo , é certo , o risco de inêxito , em abalançar-se na formulação de um juízo prognóstico de evolução positiva , de conformação futura à lei , em suspender a execução da pena imposta , por 4 ( quatro) anos , por ter presente o móbil que a arguida –que traficava com a filha de 2 anos junto a si – invocou , a alteração na sua condição familiar , a idade da arguida , contando 25 anos, cuja reclusão seria maléfica em alto grau para a filha , de muito tenra idade , além de em nada saírem beliscadas as finalidades das penas, sujeitando-a a um apertado regime de vigilância pelo IRS , que , de 6 em 6 meses , elaborará relatório ao tribunal da condenação .

Nestes termos , provendo-se ao recurso , se altera a decisão recorrida , condenando-se em 2 anos e meio de prisão , suspensa na sua execução por 4 anos , submetendo-se a vigilância do IRS , a quem se comunicará a condenação .

Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Julho de 2006

Armindo Monteiro (relator)

Sousa Fonte

Oliveira Mendes