Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A3538
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTE COMUM
FRACÇÃO AUTÓNOMA
TÍTULO CONSTITUTIVO
Nº do Documento: SJ200411230035386
Data do Acordão: 11/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8180/02
Data: 03/30/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - O facto de, no projecto de construção aprovado pela Câmara Municipal, as caves do edifício se destinarem a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não impõe que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tais caves fiquem integradas nas partes comuns, podendo o proprietário autonomizá-las, erigindo-as em 61 fracções autónomas.
II - Uma coisa é o destino ou uso a dar a um determinado espaço, que se funda em razões de natureza estritamente técnica, ligadas à segurança do edifício, e outra a definição jurídico-real do regime do mesmo espaço, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal.
III - O ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado, e o fim ou utilização que é conferido a esse espaço pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
IV- Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns ou se inclua no sector das fracções autónomas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 10-7-98, o Condomínio do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua José da Costa Pedreira, nºs..., em Lisboa, instaurou a presente acção ordinária contra "A - Sociedade Técnica de Investimentos Turísticos, L.da" e "B Construção e Comercialização da Imóveis, L.da", (sociedades construtoras do prédio e intervenientes na respectiva escritura de constituição de propriedade horizontal) e ainda os 23 condóminos, devidamente identificados nos autos, pedindo:
1 - a declaração da nulidade parcial da escritura de constituição de propriedade horizontal, referente ao citado prédio, nas partes descritas como terceira cave, segunda cave e primeira cave;
2 - se declare como pertencendo às partes comuns do edifício as fracções designadas, no título constitutivo, como fracção A, B, C, D, E, F, G, H), I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, U, V, X, Z ( 3ª cave ), AA, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH; AI, AL, AM, AN, AO, AP, AR, AS, AT ( 2ª cave ), AU, AV, AX, AZ, BA, BB, BC, BD, BE, BF, BG, BH, BI, BJ, BL, BM, BN, BO, BP ( 1ª cave );
3 - que a permilagem atribuída às fracções autónomas designadas pela letra "A" a "BP" (61%) seja atribuída pelos diferentes condóminos, logo que declaradas partes comuns;
4 - sejam cancelados os registos das fracções designadas pelas letras "A" a "BP", que se encontram registadas em nome dos réus;
5 - seja ordenada a alteração da descrição predial do mesmo prédio.
O Condomínio alega, resumidamente, que, na referida escritura de constituição de propriedade horizontal foi alterado o destino do projecto camarário, transformando-se um espaço comum (uma ocupação nas três caves do prédio destinada a estacionamento automóvel dos condóminos) nas identificadas 61 fracções autónomas, violando-se, desse modo, não só os arts 1414 e segs do C.C., como ainda o art. 6º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (aprovado pelo dec-lei 38382, de 7-8-51), art. 12 do Regulamento Geral de Urbanização da cidade de Lisboa ( aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio), art. 106 do Plano Director Municipal de Lisboa, publicado no D,R, de 29-9-94, 1ª Série B, e art. 28 , nº1, do Regulamento de Licenciamento de Obras Públicas (aprovado pelo dec-lei 445/91, de 20 de Novembro, alterado pelo dec-lei 250/94, de 15 de Outubro ).
Todos os réus foram citados, mas apenas contestaram A, L.da e Imobiliária, C, em peça conjunta, à qual posteriormente aderiram os réus B, L.da, D e Gestão Imobiliária, L.da e E.
Houve réplica.
No despacho saneador, depois de terem sido declaradas improcedentes as arguidas excepções da ilegitimidade do autor e dos réus, conheceu-se do mérito da causa e julgou-se a acção procedente, decisão que foi confirmada pela Relação de Lisboa, mas que o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu Acórdão de 18-12-03, anulou, por falta de fundamentação de direito, tendo determinado que o processo baixasse à Relação para a nulidade ser suprida, em novo julgamento das apelações interpostas.

Oportunamente, a ré "A" juntou aos autos um Parecer de um ilustre Professor de Direito.

A Relação de Lisboa, através do seu novo Acórdão de 30-3-04, anulou a sentença da 1ª instância, por falta de fundamentação de direito, julgou a acção procedente e decidiu:
1 - condenar os réus a reconhecer a nulidade parcial da referida escritura de constituição de propriedade horizontal, na parte relativa às 61 fracções autónomas existentes nas três caves, as quais passarão a ser partes comuns do prédio, fazendo parte integrante dos fogos respectivos, com a mesma permilagem;
2 - determinar que a 7ª sétima Conservatória do Registo Predial de Lisboa proceda às seguintes correcções:
a) - a descrição do prédio com o nº 525 da freguesia do Lumiar é alterada, por forma a que os espaços A a Z ( 3ª Cave) AA a AT ( 2º cave ) e AU a BP ( 1ª cave) sejam considerados partes comuns;
b) - as indicadas partes comuns sejam atribuídas, como estacionamento, aos actuais condóminos, na composição a figurar na descrição, como partes integrantes de cada uma das fracções autónomas que adquiriram, tal como consta da escritura de fls 3 e segs, com a permilagem aí referida;
c) - sejam canceladas as inscrições das fracções autónomas com as letras "A" a "BP".
Continuando inconformados, recorreram de revista os seguintes condóminos:
- A - Sociedade Técnica de Investimentos Turísticos, L.da, F, IBS-Imobiliária C, B- Construção e Comercialização de Imóveis, L.da, e E, por um lado e em peça conjunta;
- e, por outro, em peça autónoma, "D - Consultadoria e Gestão Imobiliária, L.da"
Nas conclusões das suas alegações, os recorrentes pedem a revogação do Acórdão recorrido e que se julgue a acção improcedente, por considerarem que o facto do projecto de construção prever que as caves se destinavam a estacionamento ou estacionamento privativo dos condóminos não impede que no título constitutivo da propriedade horizontal se erija as caves do edifício em fracções autónomas, para estacionamento de automóveis, não se impondo a sua inclusão nas partes comuns, sendo válido o título constitutivo da propriedade horizontal, por se manter o fim a que tal cave fora atribuído no projecto e não se mostrarem violados os invocados arts. 1415, 1416, 1418,, nº3 e 1421 do C.C., art. 6º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo dec-lei 38382, de 7-8-51, art. 12 do Regulamento Geral de Urbanização da cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria 274/77, de 19 de Maio, art. 106 do Plano Director Municipal de Lisboa, publicado no D.R. de 29-9-94, 1ª Série B, art. 28, nº1, do Regulamento de Licenciamento de Obras Públicas, aprovado pelo dec-lei 445/91, de 20 de Novembro, alterado pelo dec-lei 250/94, de 15 de Outubro.
A recorrente "D" também pugna pela sua ilegitimidade passiva.
O recorrido Condomínio contra-alegou em ambos os recursos, em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Estão provados os factos seguintes:

1 - As rés "A" e "B", associadas em consórcio, construíram o prédio urbano sito na Rua José da Costa Pedreira, nºs...., em Lisboa.

2 - As licenças de construção respeitantes ao ajuizado prédio, com os nºs 2248 e 254 foram emitidas, respectivamente, em 29-12-89 e 16-8-93, e nelas se referia que as ocupações na cave eram destinadas a "estacionamento " ( doc. fls 17 e 229).

3 - Em 29-3-93, as sociedades "A, L.da" e "B, L.da" procederam à outorga da escritura de constituição de propriedade horizontal, que constitui documento de fls. 23 e segs, referente ao ajuizado prédio, donde consta, na parte agora interessante, que nas três caves ficaram a existir 61 fracções autónomas, compostas de uma divisão ampla para estacionamento automóvel, designadas pelas letras A a Z, na 3ª cave, AA a AT na 2ª cave e AU a BP na 1ª cave.

4 - Refere-se na mesma escritura que esta se baseou no projecto de construção do prédio e nas respectivas licenças de construção ( a última válida até 29-12-93) e que foi verificado pelo dito projecto que o prédio se destina à venda em propriedade horizontal.

5 - Os réus condóminos das 18 habitações adquiriram fracções autónomas para estacionamento.

6 - Em 28 de Outubro de 1993, teve lugar a vistoria camarária para utilização do prédio (habitação e ocupação), constante do documento de fls 17 e 18, onde os peritos declararam o seguinte:
a) - o prédio foi construído de harmonia com o projecto aprovado, tendo ficado concluído em 28-10-93;
b) - fazem parte do prédio quinze pavimentos, com a seguinte composição:
- uma ocupação nas três caves, destinada a estacionamento automóvel dos condóminos, com mais de 100 m2 de área;
- uma ocupação no piso 0, destinada a loja, com mais de 100 m2 de área;
- uma ocupação no piso da cobertura , destinada a sala do condomínio, com menos de 100 m2 de área;
- uma habitação no piso 0, a nível da galeria, destinada a porteira, com uma assoalhada;
- dezoito habitações do piso 1 ao piso 9, sendo duas por piso, com cinco assoalhadas cada;
- do prédio fazem ainda parte:
- nove arrecadações na 2ª cave e nove arrecadações na 1ª cave, destinadas aos condóminos; um compartimento destinado ao grupo hidropressor na 1ª cave e um compartimento destinado ao tratamento dos lixos no piso 0.
7 - Tal vistoria foi homologada em 12-1-94 ( fls 17).
8 - Em 25-2-97, foi efectuada a nova vistoria camarária que constitui documento de fls 21, homologada em 5-5-97, que havia sido requerida para efeito de se verificar "se as fracções de que o edifício se compõe estão em condições de constituir unidades independentes, para poderem pertencer a proprietários diversos, em regime de propriedade horizontal ".
9 - A respectiva comissão emitiu parecer (fls 21) de que as utilizações vistoriadas constituem unidades independentes, suficientemente distintas e isoladas entre si, com saídas próprias para uma parte comum do prédio ou directamente para a via pública, de modo a formar fracções autónomas.
Composição:
Fracções autónomas:
- uma ocupação no piso do rés do chão, destinada a zona comercial (loja );
- uma ocupação no piso 0 ( galeria), destinada a escritório;
- uma habitação no piso 0 (galeria), com uma assoalhada;
- 18 habitações do piso 1 ao piso 9, sendo duas por piso, com cinco assoalhadas cada uma.
Partes comuns:
As descriminadas no nº1, do art. 421 do C.C.
Partes presumivelmente comuns:
As descriminadas no nº2, do art. 421 do C.C., sendo de considerar entre elas: o estacionamento privativo do prédio nas três caves, o compartimento destinado ao tratamento dos lixos no piso 0 (rés do chão) e a sala de condóminos, no piso de cobertura.
São duas as questões a decidir:
1ª - Se a recorrente "D, L.da" é parte ilegítima;
2 - Se a circunstância do projecto de construção e a licença de utilização prever que as caves do edifício se destinavam a estacionamento ou estacionamento privativo dos condóminos impede que, no título constitutivo da propriedade horizontal, se possam erigir as mesmas caves em fracções autónomas para estacionamento automóvel, sendo esse facto gerador de nulidade parcial da respectiva escritura de constituição de propriedade horizontal, por se tratar de acto nulo, violador de preceitos legais imperativos, que implicavam a sua inclusão nas partes comuns do edifício.

Vejamos:
1.
Legitimidade da recorrente "D, L.da":
O acórdão recorrido já justificou suficientemente a legitimidade passiva desta recorrente, face ao interesse em contradizer, como condómina do prédio, nos termos do art. 26, nºs 1 e 2, do C.P.C. pelo que tal decisão é de manter pela fundamentação então invocada, para que se remete, nesta parte, ao abrigo do art. 713, nº5, do mesmo diploma.
2.
A constituição das caves "em fracções autónomas, para estacionamento ":
A propriedade horizontal foi constituída por escritura de 29-3-93, conforme permite o art. 59, nº2, do Código do Notariado, com base apenas no projecto aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa e respectivas licenças de construção do edifício, com a composição supra referida.
No projecto e nas licenças referia-se apenas que as três caves se destinavam a estacionamento.
Na vistoria de 28-10-93, para utilização do prédio, mencionou-se que as três caves se destinam a estacionamento automóvel dos condóminos.
Na última vistoria de 25-2-97, para efeito de se verificar se as fracções de que o edifício se compõe estão em condições de constituir unidades independentes, em regime de propriedade horizontal, já as três caves foram consideradas como partes presumivelmente comuns, destinadas a estacionamento privativo do prédio.
Pergunta-se:
Será nula a referida escritura de constituição da propriedade horizontal, na parte em que erigiu as três caves em 61 fracções autónomas, para estacionamento automóvel?
A Relação pronunciou-se pela nulidade parcial da escritura, nos termos do art. 294 do C.C., por haver desconformidade entre o título constitutivo da propriedade horizontal e o projecto aprovado pela Câmara Municipal, invocando violação de disposições de carácter imperativo, decorrentes do preceituado no art. 6º do dec-lei 38382, de 7-8-51, art. 12 do Regulamento Geral de Urbanização da cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, art. 106, nº1, do Plano Director Municipal de Lisboa e art. 28, nº1, do Regulamento de Licenciamento de Obras Particulares, aprovado pelo dec-lei 445/91, de 20 de Novembro, alterado pelo dec-lei 250/94, de 15 de Outubro.
Os recorrentes pugnam pela validade do título constitutivo da propriedade horizontal, já que o facto das 3 caves serem constituídas em 61 fracções autónomas não implicou alteração do fim a que as caves estavam destinadas (estacionamento de automóveis), nem importou violação de normas imperativas.
Que dizer?
A razão está com os recorrentes.
No título constitutivo da propriedade horizontal serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas, podendo o título ainda conter a menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum - art. 1418, nº1, e nº2, al. b) do C.C.
A falta de coincidência entre o fim a que se destina cada fracção ou parte comum e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determina a nulidade do título constitutivo - art. 1481, nº3, na redacção do dec-lei 267/94, de 25 de Outubro.
Trata-se da consagração da doutrina fixada no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 10-5-89 ( Bol. 387-79), onde já se estabelecia:
"Nos termos do art. 294 do C.C., o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilidade diferente dos constantes do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal ".
Mas a circunstância de, no projecto aprovado pela Câmara Municipal, as três caves se destinarem a "estacionamento" ou "estacionamento automóvel dos condóminos" não impunha que essas caves, no título constitutivo da propriedade horizontal, integrassem, necessariamente, as partes comuns do mesmo edifício, sendo possível às rés construtoras, no momento da constituição da propriedade horizontal erigir tais caves em fracções autónomas, desde que não seja desrespeitado o fim ou destino indicado no projecto (estacionamento de automóveis), como é jurisprudência pacífica e uniforme deste Supremo (Ac. S.T.J. de 12-6-91, Bol. 408-552; Ac. S.T.J. de 21-5-96, proferido na revista nº 55/96, da 1ª Secção; Ac. S.T.J. de 23-11-99, proferido na revista nº 879/99, da 6ª Secção; Ac. S.T.J. de 13-2-01, Col. Ac. S.T.J., IX, 1º, 113).
Nos termos do art. 2º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo dec-lei 38382, de 7-8-51, a execução da obras e trabalhos a que se refere o art. 1º do mesmo diploma, não pode ser concretizada sem prévia licença das Câmaras Municipais.
E o art. 6º do mesmo Regulamento impõe que nos projectos de novas construções e reconstruções, ampliação e alteração de construções existentes sejam sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos.
Tais exigências têm uma motivação de natureza estritamente técnica, relacionada com as condições de segurança exigidas na construção dos edifícios, condições essas que variam em função do tipo de utilização prevista (Abílio Neto, Direitos e Deveres dos Condóminos da Propriedade Horizontal, pág. 17 e 18).
Mas sendo essa a razão de ser de tal exigência, a especificação feita num projecto de construção no sentido de que as caves do edifício a construir se destinam a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não pode condicionar a futura organização da propriedade horizontal, impondo designadamente a inclusão dessas caves no elenco das respectivas partes comuns.
Para a lei, o ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado pela Câmara Municipal, e o fim ou utilização que a esse espaço é conferido pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns do edifício ou se inclua no sector das fracções autónomas.
Com efeito e tal como se decidiu no citado Acórdão deste Supremo de 12-6-91, "uma coisa é o destino ou o uso a dar a um compartimento, o que, se funda em razões de natureza estritamente técnica ligadas à segurança do edifício, e outra, bem diferente, a definição jurídico-real do regime do mesmo compartimento, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal.
Como resulta do art. 1418 do Código Civil, é no título constitutivo que serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente identificadas.
Daí que seja lícito, no título, afastar a presunção que decorre do nº2, do art. 1421, do mesmo diploma, afectando as partes aí referidas ou apenas alguma delas a uma ou outra fracção autónoma ou, inclusivamente, autonomizando-as, se as mesmas, para isso, reunirem os necessários requisitos legais ".
Neste sentido, também opinam Pires e Liam e Antunes Varela, código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. pág. 411).
Tudo isto, sem que se viole o que consta do projecto quanto ao destino da coisa, dado que este é compatível com qualquer dos regimes adoptados para a mesma, no título constitutivo da propriedade horizontal.
Pois bem.
In casu, foi respeitado o projecto de construção e mantido o destino das caves: estacionamento automóvel.
Por isso, é de concluir que o facto das três caves, segundo o projecto de construção, se destinarem a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não exclui a possibilidade das construtoras, no titulo constitutivo da propriedade horizontal, as autonomizarem, como fizeram, erigindo-as em 61 fracções autónomas, para estacionamento automóvel.
Não foram violadas quaisquer normas imperativas.
Na verdade, o autor nem sequer alegou, na petição inicial, que tais fracções não reúnam os requisitos previstos no art. 1415 do C.C., para constituírem unidades independentes.
O invocado art. 28, nº1, do Regulamento de Licenciamento de Obras Particulares, aprovado pelo dec-lei 445/91, de 20 de Novembro, alterado pelo dec-lei 250/94, de 15 de Outubro, ao determinar que o alvará de licença de utilização especifica obrigatoriamente o uso a que se destinam as edificações, também não obsta à conclusão a que se chegou.
O uso a que se destinam as três caves não foi alterado, nem se encontra em desconformidade com os projectos aprovados, nem com as respectivas licenças de construção, pois sempre foi destinado a estacionamento automóvel.
A alteração dos destinatários ou da definição da situação jurídico-real dos locais de estacionamento não é motivo para se considerar que houve uma alteração ou modificação do seu uso.
O art. 12, nº1, do Regulamento da cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 247/77, de 19 de Maio, então vigente, estabelecia:
" Deverá ser considerada uma área para estacionamento equivalente a 12,5 metros de área útil de estacionamento por fogo ".
Mas também este preceito não é suficiente para amparar a decisão do Acórdão recorrido.
Efectivamente, não decorre, necessariamente, desta norma que cabe aos proprietários de cada fracção autónoma para habitação utilizar essa área, de forma exclusiva, ou que essa área tem necessariamente de ser parte comum do edifício.
Tão pouco se apurou ou foi alegado que cada fracção autónoma para estacionamento tenha área inferior a 12, 5 m2, sendo certo que os condóminos de fracções habitacionais adquiriram, pelo menos, uma fracção afecta a estacionamento.
Por último, importa salientar que o art. 106, do Plano Director da cidade de Lisboa não é aqui aplicável, por este diploma ser posterior à escritura de constituição da propriedade horizontal, pois só foi publicado no D.R. de 29-9-94.
Em face do exposto, é de concluir pela validade da referida escritura de constituição da propriedade horizontal.

Termos em que concedendo as revistas, na parte referente à apreciação do mérito da causa, revogam o Acórdão recorrido e julgam a acção improcedente, absolvendo os réus da totalidade dos pedidos.
Custas pelo autor, aqui recorrido, quer no Supremo, quer nas instâncias.

Lisboa, 23 de Novembro de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão