Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4615
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO COELHO
Nº do Documento: SJ200302180046151
Data do Acordão: 02/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 919/02
Data: 09/26/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No Tribunal Judicial de Vale de Cambra a "A, CRL" propôs execução para pagamento de quantia certa contra B, seu marido C, D e E, para cobrança de um crédito resultante de mútuo que concedeu aos executados B e C e que havia sido afiançado pela executada D e seu marido F, sendo que, por morte deste, intervieram no processo, como seus únicos sucessores, sua viúva D e seus filhos B e E.
Foi proferido despacho que, devido a ter sido declarada com trânsito em julgado a falência da executada D, declarou extinta a instância quanto a ela por impossibilidade superveniente da lide e condenou a exequente nas custas.
A exequente agravou, sem êxito, já que a Relação do Porto proferiu nesse recurso acórdão que confirmou o mencionado despacho.
Daí trouxe a exequente o presente agravo em 2ª instância onde pugna pela revogação do dito acórdão e sua substituição por decisão que apenas declare extinta a instância, relativamente à D, enquanto fiadora mas não enquanto sucessora de seu falecido marido, sempre com custas a cargo da massa falida.
Nas conclusões que formulou ao alegar defendeu o seguinte, invocando ter havido violação dos arts. 154º, nº 3 do CPEREF e 447º do CPC:
- O falecido mantém-se como obrigado na qualidade de fiador;
- Os credores do falecido prevalecem sobre os dos herdeiros deste, que só receberão bens da herança após o pagamento àqueles, única hipótese em que haverá intervenção do liquidatário da massa falida;
- Quanto ao falecido, a execução terá de ser instaurada sempre contra os seus herdeiros;
- A extinção da instância relativamente à D enquanto fiadora determina responsabilidade por custas a cargo da respectiva massa falida.
Não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos a ter em conta são os que constam do relatório supra.
I - Da impossibilidade superveniente da lide:
Apenas se discute a extinção da instância relativamente à executada D na vertente da sua intervenção na qualidade de sucessora do seu falecido marido, que com ela foi fiador, e não enquanto fiadora em seu próprio nome.
O óbito do fiador F determinou a chamada dos seus herdeiros tanto à titularidade das relações jurídicas patrimoniais daquele como à dos bens que lhe pertenciam - cfr. arts. 2024º e 2030º do CC, diploma do qual serão as normas que adiante citarmos sem outra identificação.
E a responsabilidade pelas obrigações do falecido deve ser satisfeita à custa dos bens que, por ele deixados, integram a sua herança, sendo que os seus credores têm, nesse âmbito, preferência sobre os credores pessoais dos herdeiros - cfr. arts. 2068º e 2070º.
Esta limitação da responsabilidade pelas obrigações do falecido aos bens que, por ele deixados, integram a sua herança necessita de ser compaginada com o disposto no art. 2071º.
Em teoria, tal limitação existe em qualquer caso, mas com regime diverso no que respeita ao ónus de prova.
Se a herança tiver sido aceita a benefício de inventário, só os bens inventariados respondem pelas dívidas do "de cujus", salva a prova, a fazer pelo credor, de que existem outros bens.
Se tiver sido aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelas dívidas não excede o valor dos bens da herança, mas cabe aos herdeiros provar a sua eventual insuficiência.
Isto mostra que a herança constitui um património autónomo, embora a prossecução em juízo dos interesses - direitos e obrigações - que lhe são inerentes seja feita em moldes variáveis.
Havendo herança jacente - aquela que, de acordo com o art. 2046º, ainda não foi aceita nem declarada vaga para o Estado -, uma eventual execução será proposta contra a herança, à qual, nesse caso, se reconhece personalidade judiciária - cfr. art. 6º, al. a) do CPC.
Já aceita, mas enquanto indivisa, deverá ser proposta contra todos os herdeiros, em regime de litisconsórcio necessário passivo - cfr. art. 2091º, nº 1 - determinado pela existência, ainda, de um património autónomo composto por bens que respondem colectivamente pelos encargos - cfr. art. 2097º - e do qual os herdeiros são contitulares - cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2ª edição, pgs. 109-111 -, mas que não tem personalidade judiciária - cfr. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, pg. 20.
Com a partilha da herança cessa o regime de representação colectiva, passando cada herdeiro a responder pelas dívidas da herança na proporção da quota que nela lhe coube - cfr. art. 2098º, nº 1 - e a poder ser demandado sozinho.
Os herdeiros serão, neste último caso e no anterior, demandados em nome próprio - não representam, em correcto sentido técnico-jurídico, ninguém -, embora no âmbito de uma relação jurídica que no lado passivo é plural - num caso em regime de indivisibilidade, noutro caso em regime de conjunção - e que se não constituiu com eles, mas que, constituída anteriormente com intervenção do "de cujus", os passou a ter como sujeitos por virtude de um fenómeno de sucessão.
Não faz sentido dizer-se, como diz a agravante, que "... o falecido era fiador e principal pagador e, por ter falecido, para ser executado tem de o ser pelos seus sucessores ...", nem que "... a execução foi declarada extinta quanto aos sucessores, mas a posição do falecido mantém-se ...", nem que "O falecido ...... mantém-se como obrigado ...".
Isto porque, por virtude da sua morte, o falecido não pode ser executado, nem a sua posição de obrigado se mantém; a personalidade, tanto a jurídica como a judiciária, cessam com a morte - cfr. art. 68º, nº 1 - e as relações jurídicas do falecido, ou se extinguem, ou passam para a titularidade dos seus sucessores - cfr. arts. 2024º e 2025º, nº 1. Mas, apesar de demandados em nome próprio quando não há já herança jacente, a posição dos herdeiros em face dos bens da herança varia consoante houve, ou ainda não houve, partilha.
Se houve, vão responder pelas dívidas do "de cujus" os bens que aos herdeiros couberam em propriedade singular ou em compropriedade, embora o processo da sua determinação divirja em função da forma como a partilha foi feita - amigavelmente ou em inventário, como vimos ao falar do art. 2071º.
Se não houve, respondem os bens da herança, que aos herdeiros ainda pertencem apenas em propriedade colectiva ou em comunhão indivisa, sem determinação da parte que em cada um lhes caiba.
Isto mostra que, em caso de falência de um dos herdeiros, aquilo que pode ficar a integrar a massa falida - cfr. art. 147º, nº 1 do CPEREF - se configura de modo distinto.
No primeiro caso, serão já os bens que por partilha recebeu.
No segundo caso, será, ainda e apenas, o seu direito ao quinhão hereditário, cujo conteúdo se especificará oportunamente.
A declaração de falência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido, mas podendo prosseguir contra outros executados, se os houver - cfr. o art. 154º, nº 3 do CPEREF.
Este prosseguimento parcial, porém, só pode ocorrer se não estivermos perante um litisconsórcio necessário, o que envolve a necessidade de uma interpretação restritiva do preceito.
E, por outro lado, a proibição de processamento da execução singular contra o herdeiro falido apenas tem razão de ser na medida em que nela se visem bens que pertencem à massa falida.
Será o caso da execução onde se queira penhorar o seu direito ao quinhão hereditário, ao abrigo do art. 2098º, nº 1.
Mas não o será já quando a penhora incide sobre bens individualizados pertencentes a uma herança indivisa, submetida ainda ao regime do art. 2091º, nº 1. Aliás, em reforço da razão já adiantada, acrescentar-se-á que, a não ser assim, sempre se esbarraria com a impossibilidade de cumprir o regime de litisconsórcio necessário ali estatuído, uma vez que se não vê como poderia reclamar-se contra os herdeiros não falidos - ou contra outros que, podendo estar também falidos, assim terão sido declarados em outro processo - em sede de verificação de créditos e com vista ao pagamento das dívidas da herança.
Assim, a tomada de posição sobre a solução a dar à questão que vimos analisando implica o conhecimento da situação da herança do falecido F, designadamente se já foi, ou não, objecto de partilha.
Se foi, a decisão tomada no sentido de extinguir a instância quanto à executada D é correcta e será de manter.
Se não foi, só será de manter na medida em que é executada como fiadora - matéria que, aliás, não vem discutida -, mas não enquanto é demandada na qualidade de sucessora do falecido F.
Impõe-se determinar, ao abrigo do art. 729º, nº 3 do CPC, o esclarecimento deste ponto.
II - Da responsabilidade por custas:
Sustenta a agravante que as custas relativas à extinção da instância no tocante à responsabilidade da executada D enquanto fiadora devem ser suportadas pela massa falida por a impossibilidade da lide ser imputável à executada por ter entrado em falência.
A sede legal da decisão tem sido procurada, tanto nas instâncias como pela agravante, no art. 447º do CPC, embora os resultados alcançados sejam diversos visto que as decisões proferidas responsabilizaram pelas custas a agravante, dada a sua qualidade de exequente - o que corresponde à aplicação da regra básica ali prescrita pelo legislador.
Porém, a agravante pretende que se reconheça ser a impossibilidade da lide imputável à executada D, o que inverteria a solução quanto à definição da responsabilidade por custas.
Digamos, desde já, que não se nos apresenta como correcta a recondução do preceito do art. 154º, nº 3 do CPEREF à figura da impossibilidade da lide, pois a execução assenta numa relação jurídica que apenas terá que ser accionada noutro processo - designadamente o de falência, em sede de reclamação de créditos -, ao passo que os exemplos que usualmente são dados quanto àquela figura traduzem uma extinção da relação - que será a consequência da perfilhação na acção de investigação, ou da destruição da coisa na acção de reivindicação, a alienação da coisa que é objecto de pedido de execução especifica, a revogação da sentença que, em caso de procedência de recurso com efeito meramente devolutivo, fora logo dada à execução, etc..
Assim, o enquadramento da situação em causa como uma simples excepção dilatória inominada apontaria para a responsabilidade por custas a cargo da exequente, aqui agravante, visto ter sido vencida.
Mas, ainda que se mantivesse a qualificação dada nas instâncias, sempre seria de dizer que, ignorando-se a causa da falência - nomeadamente, se resultou de actuação culposa ou dolosa da falida -, não poderia afirmar-se qualquer nexo de causalidade entre a respectiva declaração e a forma como a falida desenvolveu a sua actividade.
E os critérios da lei nesta matéria assentam no risco a cargo do autor e na causalidade para responsabilizar o réu, ao ser-lhe imputado o aludido efeito - o que, de acordo com os princípios gerais, há-de assentar num nexo psicológico que aqui se desconhece.
Sempre, por isso, também nesta óptica seria de manter a condenação da agravante tal como foi proferida.
Face ao exposto, decide-se:
A) Ordenar que na Relação do Porto, se possível com intervenção dos mesmos Excelentíssimos Desembargadores, se providencie pela ampliação da matéria de facto com vista ao esclarecimento da situação em que se encontra a herança de F - designadamente se foi, ou não, já partilhada - e posteriormente se decida, em conformidade com o regime jurídico exposto acima, se a execução pode prosseguir quanto à executada D enquanto herdeira daquele;
B) Negar provimento ao agravo na parte em que se pretendia a revogação da condenação em custas.
Metade das custas deste agravo ficam a cargo da agravante.
A outra metade será da responsabilidade de quem a final se mostrar responsável.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2003
Ribeiro Coelho
Garcia Marques
Ferreira Ramos