Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A2089
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: DIREITOS DE AUTOR
OBRA COLECTIVA
OBRA FEITA EM COLABORAÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200510110020896
Data do Acordão: 10/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 778/05
Data: 02/17/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I – Embora seja certo que a aplicação em concreto do critério distintivo fixado na lei (art.º 16, n.º 1, als. a) e b), do CDADC) passa de forma determinante pela análise da “intensidade” e “coloração” dos factos que se apurarem, a qualificação duma obra de arquitectura como colectiva ou feita em colaboração é uma questão de direito, e sujeita, por isso, ao julgamento do Supremo Tribunal de Justiça.

II - Provando-se que o Autor, um conhecido arquitecto, teve participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura de determinadas obras concebidas entre 1965 e 1972, período de tempo em que trabalhou na equipa do atelier do arquitecto ao qual é atribuída pelos Réus, na revista que dirigem e editam, a respectiva paternidade, deverá considerar-se que tais obras de arquitectura correspondem a obras colectivas.

III - Não sendo possível discriminar a produção pessoal do Autor na criação das obras ajuizadas, não obstante a sua participação preponderante nelas, mostra-se inviabilizada a hipótese de lhe atribuir o direito de autor como se de obras feitas em colaboração se tratasse, atento o disposto no art.º 19, n.º 2, do CDADC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Em 30.9.02, no Tribunal de Lisboa, AA propôs contra BB, CC e DD uma acção ordinária, pedindo, designadamente, que fosse reconhecido como sendo o autor da concepção global e do projecto do hotel e dos bungalows da ..., do edifício ..., e da loja e da fábrica de discos ..., condenando-se os réus a publicar na revista ..., com o necessário relevo, a rectificação da qual conste explicitamente tal reconhecimento.

Alegou, em resumo, a referida criação arquitectónica, e que a mencionada revista, dirigida e editada pelos dois primeiros réus, publicou em Novembro de 2000 um extenso artigo do terceiro réu sobre o arquitecto EE, a quem atribuiu a paternidade das referidas obras.

Os réus contestaram, impugnando os factos e concluindo pela improcedência da acção.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente.

O autor apelou, mas a Relação de Lisboa, por acordão de 17.2.05, confirmou a sentença.

Mantendo-se inconformado, o autor recorreu de novo, agora para o Supremo Tribunal, e, alegando, formulou as conclusões úteis que assim se resumem:

1ª – Nem a matéria de facto assente nem as respostas à base instrutória permitem concluir, como concluíram as instâncias, que as obras em causa são “obras colectivas”, já que em nenhuma dessas sedes se contém qualquer alusão aos factos estruturantes duma obra colectiva: ser ela organizada por iniciativa de uma empresa e divulgada ou publicada em seu nome (artºs 16º, nº 1, b), e 19º do CDADC [1]);

2ª – O núcleo fáctico essencial fixado pelas instâncias leva a concluir pela caracterização das obras em causa como obras de colaboração, em cuja concepção global e processo de criação dos projectos arqui­tectónicos  o recorrente teve uma participação preponderante;

3ª – O direito de autor sobre uma obra em colaboração pertence a todos os que nela colaboraram, esteja ou não descriminado o contributo individual de cada um – e, portanto, também ao recorrente: principalmente a este, dada a comprovada “predominância” do seu contributo;

4ª – Tal participação preponderante (isto é, maioritária) do recorrente nas obras em questão conduz necessariamente à procedência parcial do pedido;

5ª – Ao atribuir a exclusiva autoria dessas obras ao arquitecto EE, com total omissão do nome do recorrente, o artigo referido nos autos violou o seu direito à respectiva paternidade, direito esse que é inalienável, irrenunciável e imprescritível;

6ª – Deveria, pois, a acção ser julgada procedente em parte, e os recorridos condenados a reconhecer que o recorrente teve “uma participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura” das obras e do hotel e bungalows da ..., do edifício ... e da loja e fábrica de discos ..., e bem assim a publicar na revista ..., com o necessário relevo, uma rectificação da qual conste explicitamente esse reconhecimento.

Os recorridos contra alegaram, defendendo a manutenção do julgado.    

II. São os seguintes os factos definitivamente assentes, apurados nas instâncias:

1) O autor é um dos mais conhecidos e prestigiosos arquitectos portugueses, sendo publicamente conhecido.

2) A sua vasta obra é admirada e estudada dentro e fora do País.

3) A sua obra e importância, na arquitectura contemporânea, é mencionada em publicações de referência, na área da arquitectura, por autores nacionais e estrangeiros.

4) O autor granjeou, na década de 80 do século XX, prestígio académico ou crítico enquanto protagonista do chamado pós-modernismo.

5) Entre as suas criações mais relevantes podem mencionar-se os complexos habitacionais das ... e de …, a Central de Camionagem do …, os Edifícios …, D. …, Banco …, na Av. …, e as Torres ….

6) O hotel e os bungalows da ..., em …, o edifício ..., em Lisboa, e a loja e a fábrica de discos de ..., em … e …, foram concebidos e projectados entre 1965 e 1972.

7) O autor teve participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura dessas obras (resposta aos pontos 4º e 5º da base Instrutória).

8) Entre 1965 e 1972 o autor trabalhava no atelier do arquitecto EE, integrado na respectiva equipa.

9) No nº 4 da revista ..., referente ao mês de Novembro de 2000, que o 1º e 2º réus dirigem e editam, o 3º réu publicou, de páginas 39 a 69, um artigo sobre o arquitecto EE, em que a paternidade das obras referidas em 6) é atribuída a este último.

10) Nesse artigo afirma-se, na página 57, que “em 1965, EE projecta a fábrica de discos para a editora ...”; na 59, referindo-se ao conjunto da ..., diz-se que este “confirma a aproximação de EE ao espírito anglo-saxónico”; na 69, nas indicações bibliográficas, indica-se o mesmo arquitecto como autor dos projectos do Hotel da ..., da Loja ..., em Cascais, e do edifício ....

11) Esse artigo é ilustrado por imagens, na página 48, da Fábrica ... e da sua construção; e na 50, 52 e 54 do hotel da ....

12) Na revista “Arquitectura”, n.° …, Lisboa, … de 19…, em texto indicado como sendo subscrito pelo autor, é referido que o hotel da ... é imputado ao atelier EE e FF, sendo o projecto de arquitectura do autor e tendo como colaborador o arquitecto GG; quanto às moradias da ... é referido que o arquitecto foi o autor; quanto à loja de discos …, fazendo-se menção expressa ao atelier EE, indica-se, como arquitecto, o autor; no livro “…”, 19…, escrito por HH, num quadro cronológico de factos artísticos relativos ao ano de 1970, ficou escrito como facto relevante: “Atelier EE, proj. de AA - Hotel ... (A…)”; relativamente ao ano de 1973, ficou escrito “Atelier EE, proj. AA, edifício ...”; no livro “AA - …”, …, 19…, que teve como fonte o próprio autor, as obras referidas em 6) são descritas como sendo da autoria do autor.

13) O 3º réu é doutorado em arquitectura e é autor de diversos ensaios e estudos sobre teoria e crítica de arquitectura e tem ainda exercido funções de docente em estabelecimentos universitários.

III. O autor, ora recorrente,  propôs esta acção com o declarado objectivo  de ser reconhecido como o autor exclusivo das obras de arquitectura ajuizadas, reivindicando a titularidade do correspondente direito  moral.
Face, porém, à decisão do tribunal de 1ª instância sobre os factos controvertidos, abandonou esse propósito, tendo defendido perante a Relação, no recurso que aí levou, a tese de que as obras em causa se configuram  como obras de colaboração, nos termos definidos pelo artº 16º, nº 1, al. a), do CDADC.

E é esse o entendimento que, conforme se vê das conclusões da presente revista, continua a defender, assim contrariando o julgamento uniforme das instâncias, que decidiram estar-se, não perante obras feitas em colaboração, mas sim em presença de obras colectivas, cuja noção consta da alínea b) do indicado preceito legal.

Segundo dispõe o artº 25º do mesmo código, autor da obra de arquitectura é o criador da sua concepção global e respectivo projecto.

No caso ajuizado, como decorre do exposto, a controvérsia sobre se as obras em causa foram criação exclusiva do autor ou de uma pluralidade de pessoas encontra-se já ultrapassada: há convergência  de posições entre as partes e as instâncias quanto a tratar-se da segunda alternativa indicada.  Assim, subsiste tão somente a questão de saber se, dentro do “género” “obra plural”, aquelas que aqui se discutem devem integrar-se na “espécie” obra feita em colaboração, como sustenta o autor, ou obra colectiva, como a sentença e o acordão recorrido julgaram. É este o ponto saliente da revista.

Segundo o já citado artº 16º, nº 1, a), a obra que for criação de uma pluralidade de pessoas denomina-se obra feita em colaboração quando divulgada ou publicada em nome dos colaboradores ou de alguns deles, quer possam descriminar-se quer não os contributos individuais; e denomina-se obra colectiva, de acordo com a alínea b) do mesmo preceito,  quando organizada por iniciativa de entidade singular ou colectiva e divulgada ou publicada em seu nome.

Ora, se parece indiscutível que a qualificação duma obra de arquitectura como colectiva ou feita em colaboração é uma questão de direito, estando sujeita, por isso, ao julgamento do Supremo Tribunal, afigura-se de igual modo patente que a aplicação, em concreto, do critério distintivo fixado na lei passa de forma determinante pela análise da, digamos assim, “intensidade” e “coloração” dos factos que se apurarem, relativamente aos quais, como se sabe, o Supremo não dispõe de poderes de julgamento.

Queremos com isto significar que, correspondendo a obra de arquitectura, sempre e em qualquer caso, a “uma realidade incorpórea, incarnada ou não na construção”,[2]  - uma realidade,  nesta  exacta  medida,  de difícil e problemática “fixação” e “transposição” para o interior de um processo judicial cível – o esclare­cimento  do iti­nerário seguido pelo julgador até expressar a sua livre convicção a respeito dos factos da causa pode contribuir relevantemente  para o Supremo solucionar da melhor maneira em cada caso o problema de direito enunciado; solucionar da melhor maneira, isto é, evitando, por um lado, a invasão da esfera de competência das instâncias, e, por outro, a consideração inadvertida de factos (ou juízos de facto) que elas, de caso pensado, não incorporaram no processo.

Na situação ajuizada os pontos 4º e 5º da Base Instrutória, decisivos para o julgamento a proferir tendo em vista a causa de pedir invocada, estavam assim redigidos:

4º - Entre as suas criações (do autor) arquitectónicas mais relevantes estão as mencionadas em D) dos factos assentes (cfr. facto nº 6 supra), que foram concebidas e projectadas pelo autor e construídas sob (por manifesto lapso, o magistrado escreveu “sobre” a fls 210) a sua orientação entre 1965 e 1972?

5º - A concepção global e o projecto dessas obras foram feitos pelo autor?

Estes quesitos foram respondidos em conjunto, dando origem ao facto relatado sob o nº 7 (secção II do presente acordão).

Na motivação das respostas o julgador, depois de fazer uma circunstanciada resenha dos documentos e depoimentos em que se baseou para formar a sua con­vic­ção,  escreveu a dado passo (fls 440/441):

“Do confronto destes depoimentos resultou que para uns a concepção global e o projecto de arquitectura das obras em causa pertenceu exclusivamente ao Arq. AA, não tendo o Arq. EE feito um único "risco". Para outros, a autoria só poderia ser atribuída ao Arq. EE que era a pessoa que tinha a responsabilidade final do projecto e era quem dirigia os vários colaboradores que o assessoravam, como seria o caso do A. Para outros ainda a autoria deveria ser atribuída ao “Atelier EE” enquanto entidade empresarial que aglutinava todos os trabalhos que no seu quadro eram realizados.

Para nós, depois de contrapostas as várias versões dos mesmos factos e tendo em atenção essencialmente os depoimentos das testemunhas presenciais que trabalharam no “Atelier EE”, resultou que o Arq. AA terá tido uma participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura das obras mencionadas, sendo certo que elas não foram seguramente obras de uma pessoa só. Por exemplo, ficou para nós claro que no Hotel ... houve uma importante participação do Arq. GG e na Loja de discos de … houve importante participação do pintor II e do poeta JJ. Sem prejuízo da preponderância que se admite que o A. teve, também ficámos convictos, conforme todas as testemunhas acabaram por admitir, com maior ou menor boa vontade, que a "mão" do Arq. EE, como verdadeiro responsável perante os donos das obras e edilidades competentes, nunca terá deixado de estar presente no processo criativo dos projectos de arquitectura. No entanto, por­que os factos controvertidos se apresentavam somente na perspectiva do A., sendo que só ao A. os mesmos interessam, entendemos fazer somente relevar a sua participação na autoria dos projectos, sem qualquer menção a outras pessoas que tenham intervindo no processo criativo em causa”. (o sublinhado é nosso).

Posteriormente, na sentença - que, deve sublinhar-se, é da responsabilidade do mesmo juiz que decidiu a matéria de facto -  escreveu-se isto (fls 477):

“Não poderemos deixar de chamar ainda à colação a fundamentação do despacho que respondeu aos pontos 4° e 5° da base instrutória, porquanto ela introduz na discussão desta questão a ponderação real da prova produzida sobre esta matéria (fls 440 a 441).

Daí resultam as seguintes ideias fortes:

1ª que em função dos depoimentos das testemunhas presenciais que trabalharam no “Atelier EE”, resultou que o Arq. AA terá tido uma participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura das obras mencionadas;

que essas obras não foram seguramente obras de uma pessoa só, realçando-se por exemplo uma importante participação do Arq. GG na obra do Hotel ... e do pintor II e poeta JJ na Loja de discos …;

3ª que conforme todas as testemunhas acabaram por admitir, com maior ou menor boa vontade, que a “mão” do Arq. EE, como verdadeiro responsável perante os donos das obras e edilidades competentes, nunca terá deixado de estar presente no processo criativo dos projectos de arquitectura.

4ª que a resposta aos pontos 4º e 5° da base instrutória foi condicionada pelo interesse do A. em ver estabelecida a sua autoria sobre as obras em causa e, por isso, a resposta dada não faz qualquer menção a outras pessoas que tenham intervindo no processo criativo.

Em consequência, desta última ideia, verifica-se que não se deu qualquer relevo, porque não havia interesse directo dos RR. nesses factos, em estabelecer como provado, ou não provado, se a autoria das obras arquitectónicas e respectivos projectos em causa, eram de imputar directamente ao Arquitecto EE, a título principal ou como co-autor, ou à empresa “Atelier EE e FF”.

Portanto, em rigor, só de forma indirecta é que poderemos chegar à conclusão que estamos perante uma obra colectiva, fundamentalmente relevando o facto que consta de 5) da matéria de facto provada” (o sublinhado é nosso).

O que é que resulta daqui?

Resulta com bastante nitidez, conjugando o facto 7 com os factos 6 e 8, que as obras de arquitectura discutidas, criadas por uma pluralidade de pessoas, organizadas por iniciativa do atelier do arquitecto EE e divulgadas em seu nome, correspondem a obras colectivas, e não, como defende o autor, a obras feitas em colaboração; é que, justamente, não ocorreu a sua divulgação ou publicação em nome dos colaboradores ou de alguns deles que permitiria desconsiderar, para efeitos de protecção autoral, a circunstância de não haver, no caso, discriminação dos contributos individuais.

Portanto, o acordão recorrido não merece qualquer reparo quando conclui que: 1º)  Segundo o critério classificativo reflectido no art.º 16º do CDADC, a obra colectiva é aquela que resulta da actividade duma empresa (tal é, aliás, o ensinamento do Prof. Oliveira Ascensão, que na sua obra mencionada na nota 2 escreve o seguinte - pág 124: “Assim, na obra colectiva, o direito cabe originariamente ao empresário, e na obra de colaboração aos autores que colaboram. Pode aliás o empresário ser simultaneamente criador, mas isso é irrelevante para a qualificação da obra como colectiva”);

2º) Não sendo possível, no caso sub judice, discriminar  a produção pessoal do autor na criação das obras ajuizadas, não obstante a sua participação preponderante nelas, mostra-se inviabilizada a hipótese de lhe atribuir o direito de autor como se de obras feitas em colaboração se tratasse, atento o disposto no art.º 19º, nº 2, daquele diploma legal.

Improcedem ou mostram-se deslocadas, assim, as conclusões do recurso.

IV.  Nestes termos, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 11/Outubro/2005
Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

 ________________ 
[1] Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, diploma a que, salvo menção em contrário, pertencem todos os artigos referidos no texto.
[2] Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, pág. 499 (citado no acordão recorrido).