Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2883
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
GARANTIA AUTÓNOMA
BOA-FÉ
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: SJ200410140028837
Data do Acordão: 10/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1008/04
Data: 04/20/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. A garantia bancária autónoma, à primeira solicitação ou on first demand cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor (com ou sem justificação documental conforme acordado), terá de pagar a quantia garantida, sem discussão, isto é, sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido.

2. O seu significado é o de que o garante (o banco) fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor nem invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com o contrato base, celebrado entre o ordenador e o beneficiário.
3. Configura-se, assim, como uma garantia automática, exequível mediante simples, imotivada, ou potestativa comunicação pelo beneficiário do incumprimento da obrigação principal do mandante.
4. A automaticidade da garantia on first demand não é, porém, absoluta, e a sua actuação ou execução automática, a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário não pode ter-se como ilimitada: há, com efeito, no direito português, que estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa fé (art. 762º, nº 2, do C.Civil) ou o procedimento abusivo do beneficiário (art. 334º do mesmo diploma).
5. É, por isso, admissível que, nas relações entre ordenador da garantia e beneficiário, aquele intente, em sede judicial, providências cautelares, ou mesmo acções, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", B e C intentaram, nos Tribunais Cíveis de Lisboa, acção declarativa, sob a forma ordinária, contra "D - Edição de Publicidade, L.da", pedindo que se declare inexistente o direito da ré a executar as garantias bancárias, referidas no artigo 18º da petição e, por via disso, ordenar-se o levantamento do montante do depósito referido no artigo 33º da mesma petição, a favor dos autores.

Requereram, ainda, que, na eventualidade de, na pendência da acção, tiver sido ordenado o levantamento do depósito a favor da ré, seja esta condenada a proceder à devolução aos autores do montante de 448.918,10 Euros.

A ré, na sua contestação, invocou excepção peremptória, alegando que foi exactamente nos termos contratuais que solicitou ao G e ao H. execução das garantias bancárias referidas no art. 6º da petição.

No despacho saneador, considerando-se que não está em causa a relação entre a autora e os bancos mas tão só a relação entre a autora e a ré, averiguando-se da licitude da execução das garantias bancárias, foi julgada improcedente a excepção.

Inconformada, recorreu a ré, recurso admitido como de apelação, vindo, na sequência, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 20 de Abril de 2004, a conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, julgando procedente a excepção peremptória invocada pela ré.

Interpuseram, agora, os autores recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da 1ª instância que declarou improcedente a invocada excepção peremptória, nos precisos termos em que foi proferida.

Em contra-alegações sustentou a recorrida dever confirmar-se a decisão impugnada.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações da revista formularam os recorrentes as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. Não há absoluta liberdade e ausência de limites à execução das garantias bancárias on first demand.

2. Defende o Prof. Pedro Romano Martinez, in Contratos em Especial: "Mas mesmo no caso de garantia on first demand deve aceitar-se a existência de um limite, cuja violação implicaria um desrespeito de princípios basilares da ordem jurídica portuguesa. Assim sendo, o garante deve poder recusar o pagamento se provar a manifesta improcedência do pedido. Essa manifesta improcedência do pedido poder-se-á verificar, entre outras, nas situações seguintes (...) se resulta de prova contundente que o beneficiário da garantia não é titular de nenhum direito em relação ao devedor principal, torna-se lícita a recusa de cumprimento por parte do garante."

3. Convencionaram recorrentes e recorrida que a execução e pagamento das garantias bancárias é dependente da prévia verificação/ocorrência de pressupostos e condições expressas nas cláusulas décima primeira e décima quinta do aludido contrato promessa de compra e venda de activos dos autos.

4. "... Se se provar que o devedor garantido realizou a sua prestação de modo adequado não é razoável que o garante continue obrigado a efectuar a prestação acordada. A esta situação pode acrescentar-se a extinção da obrigação garantida ou outra causa com efeito similar." (Prof. Pedro Romano Martinez, in Contratos em Especial).

5. Far-se-á prova contundente nos autos principais da não verificação dos pressupostos expressos na cláusula décima primeira do contrato promessa de compra e venda de activos, que consubstancia o documento 1, da petição inicial, o que é sintomático do modo adequado como os recorrentes garantidos cumpriram a sua prestação.

6. Inexiste a obrigação de pagamento por parte dos recorrentes.

7. Aqui reside o limite válido à execução e pagamento das garantias bancárias dos autos.

8. Não merece o comportamento dos recorrentes qualquer censura que legitime a execução e pagamento das garantias bancárias dos autos.

9. Reveste a execução e pagamento das garantias bancárias a violação dos princípios pacta sunt servanda e da boa-fé, consagrados no artigo 762º, do Código Civil, pois que constitui uma ofensa à legítima vontade e convenção das partes, claramente expressa na cláusula décima primeira do contrato promessa de compra e venda de activos, que consubstancia o documento 1 da petição inicial.

10. A recusa por parte das instituições bancárias garantes sempre seria válida e legítima.

11. O Regime Jurídico das Garantias Bancárias on first demand não pode situar-se no âmbito das relações entre os ora recorrentes e recorrida.

12. A recorrida não litiga contra as instituições bancárias garantes.

13. A matéria controvertida em apreciação nos autos é, pois, "...a licitude da execução das garantias bancárias, no âmbito das relações entre..." recorrentes e recorrida.

14. O pedido formulado e o modo como os recorrentes configuram a acção sempre respeitam única e exclusivamente às relações entre recorrentes e recorrido, pelo que andou bem o M.mo. Juiz da 1ª instância ao decidir pela improcedência da invocada excepção peremptória.

15. São as instituições bancárias garantes estranhas à relação material controvertida e aos sujeitos da mesma relação.

16. Resulta dos autos que as entidades bancárias não executaram as referidas garantias ou pagaram à recorrida o valor por elas titulados, antes, procederam ao depósito do valor por tais garantias titulado a favor e à ordem do Tribunal, em sede de acção principal.

17. Não ocorreu a transmissão do valor titulado por tais garantias para a esfera jurídica da ora recorrida.

18. Discute-se nos autos da existência ou não de desconformidades após a celebração do contrato promessa dos autos, da existência ou não de notificação aos recorrentes de tais desconformidades, da sua quantificação/valor, que justifica ou não o direito à execução e pagamento das garantias bancárias prestadas pelos ora recorrentes.

19. E é este, "o problema fundamental e necessário à justa decisão da lide". Situa-se nas estritas relações recorrentes e recorrida. Por ser este o objecto da lide, não cabe ao Tribunal apreciar a natureza da garantia bancária, antes se lhe pede que aprecie o negócio base/causal, independente e estranho à relação entre as instituições bancárias garantes e a beneficiária, ora recorrida.

20. Pelo que, a negação do direito à execução das mesmas, que em sede de peça inicial se peticiona, é legítima e em tempo.

21. O pedido formulado nos autos não é estanque ou limitado à declaração da inexistência do direito da recorrida a executar as garantias bancárias em apreço, abrange o levantamento do montante de 448.918,10 Euros depositados a favor dos recorrentes e, subsidiariamente, a condenação da recorrida à devolução do mesmo montante aos recorrentes, ou seja, o reconhecimento que nenhum direito assiste à ré/recorrida, por não se ter demonstrado qualquer desconformidade contratual e por falta absoluta de qualquer quantificação do eventual dano.

22. Existe e é possível o objecto da lide.

23. O acórdão recorrido é fruto de uma errónea subsunção jurídica do Regime Jurídico das Garantias Bancárias on first demand à relação jurídica entre os ora recorrente e recorrida e objecto da lide, quando estranhos à posição de garante da instituição bancária.

24. Nega-se razão ao acórdão sub recurso, impondo-se a sua revogação, por padecer do vício de violação dos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa, da Lei, nomeadamente, o artigo 762°, n° 2, do C. Civil e do Regime Jurídico das Garantias Bancárias on first demand sufragando-se a decisão da 1ª instância.

É facto concreto que entre os autores A, B, C na qualidade de gerentes e sócios gerentes e em representação das firmas "E - Edições Técnicas L.da", com sede da Av. Infante Santo .... em Lisboa e " - Edições Técnicas e Publicidade L.da" com sede na Av. Infante Santo ... em Lisboa, respectivamente, e em nome próprio, e a ré "D - Edições de Publicações L.da" foi celebrado um "Contrato Promessa de Compra e Venda de Activos" das referidas sociedades, conforme documento nº 1 de fls.11 a 30.

Acontece, também, que foram prestadas a favor da ré as garantias bancárias constantes de fls. 31, 32 e 33, cujo conteúdo se tem por reproduzido;

Tais garantias, uma delas prestada pelo Banco G pelo montante de 149.639,37 Euros, outra pelo Banco H pelo montante de 149.640,00 Euros, e outra pelo Banco I pelo montante de 149.639,37 Euros, todas a favor da ré, destinaram-se a assegurar por parte dos garantidos "o pagamento à beneficiária das responsabilidades assumidas pelo garantido no âmbito de um contrato de venda de activos celebrado entre o garantido, a beneficiária e outros". Consta do respectivo teor que "responsabiliza-se, assim, o banco, dentro do valor da presente garantia, por fazer entrega à beneficiária dos montantes por ela solicitados, logo que esta os reclame por escrito (…) não cabendo ao banco verificar a existência do respectivo fundamento ou apreciar da justiça ou direito da reclamação da beneficiária, nem podendo o banco opor à beneficiária quaisquer excepções ou objecções".

Por último, é igualmente líquido que os bancos dadores daquelas garantias depositaram nos autos de providência cautelar nº 92/2002 (requerida pelos autores contra a ré em que aqueles pretendiam a abstenção por parte da ré de accionar e executar junto dos bancos as referidas garantias bancárias) os respectivos montantes, à ordem do M.mo Juiz da 12ª Vara Cível do Tribunal de Lisboa.

Face ao teor das conclusões das alegações dos recorrentes, impõe-se, no conhecimento do recurso, averiguar se a pretensão deduzida na acção pode constituir objecto legítimo do processo (por, em derradeira análise ser possível e útil a sua procedência) bem como se tal pretensão é ou não compatível com o regime jurídico das garantias bancárias autónomas nos autos identificadas.

Como acima se enunciou, peticionaram os autores na acção que se declare inexistente o direito da ré a executar as garantias bancárias, referidas no artigo 18º da petição e, por via disso, ordenar-se o levantamento do montante do depósito referido no artigo 33º da mesma petição, a favor dos autores, e subsidiariamente, que, na eventualidade de, na pendência da acção, tiver sido ordenado o levantamento do depósito a favor da ré, seja esta condenada a proceder à devolução aos autores do montante de 448.918,10 Euros.

Foram, sem qualquer dúvida, celebrados três contratos de garantia bancária, também designada de garantia bancária autónoma, que traduz o compromisso assumido por um banco de satisfazer determinada obrigação perante terceiro sempre que o cliente o não faça, por atraso ou em definitivo.

Tal espécie ou tipo de contrato, inominado, causal, autónomo, oriundo do direito anglo-saxónico, que não teve ainda consagração legislativa em Portugal, (1) mas cuja celebração e admissibilidade entroncam no princípio do art. 405º do C.Civil (2), pode definir-se como "o contrato pelo qual um banco, por mandato do seu cliente, se obriga a pagar certa importância à outra parte (beneficiário), ficando esta com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre este e o beneficiário". (3)

A causalidade de tal negócio (que não reveste a natureza de abstracto) existe apenas no sentido de que visa uma função de garantia e não porque tenha a sua justificação no contrato base, do qual é radicalmente independente. (4)

Esta garantia é causal porque é vinculada à prestação da garantia, e é autónoma porque é independente do contrato base. (5)

A concessão da garantia bancária implica a concessão eventual de um crédito equivalente ao do montante garantido, mediante uma contrapartida. A garantia autónoma representa, pois, uma determinada soma em dinheiro, independentemente da natureza da obrigação assumida. (6)

O garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido); não se trata de garantir o cumprimento da obrigação do devedor, mas antes de assegurar o interesse do credor beneficiário de tal garantia. (7)

Daí a autonomia da obrigação, que se estabelece de modo independente, sem qualquer subordinação à obrigação garantida: donde não possa confundir-se com a fiança, na medida em que não é, como esta, acessória da obrigação garantida, antes é autónoma com respeito à dívida que garante, ou seja o garante não pode invocar em sua defesa quaisquer meios relacionados com o contrato garantido, nem lhe são aplicáveis as normas dos arts. 627º, 631º, 634º, 637º, 638º e 647º do C. Civil, relativas à fiança. (8)

Sendo que o garante não pode sequer, para obstar ao funcionamento da garantia, invocar a invalidade formal ou a insubsistência da obrigação garantida (aqui distinta do próprio aval). (9)

Dentre as garantias bancárias, porque é a que in casu claramente se infere, importa destacar a chamada garantia à primeira solicitação ou on first demand - que pode qualificar-se como uma promessa de pagamento à primeira interpelação - a qual cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor (com ou sem justificação documental conforme acordado), terá de pagar a quantia garantida, sem discussão, isto é, sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido. (10)

Garantia esta que representa, para o beneficiário, um acréscimo de garantia, pois que o seu significado é o de que o banco fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor, e que pode traduzir-se pela " garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato base) sem poder invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com esse mesmo contrato. (11)

Configurando-se, assim, como uma garantia exequível mediante simples, imotivada, ou potestativa comunicação pelo beneficiário do incumprimento da obrigação principal do mandante. (12)

Posto isto (parece-nos não ser necessário outro desenvolvimento) importa considerar que o processo de formação do negócio de garantia que está na base da emissão do título respectivo tem estrutura complexa, triangular, decompondo-se em (pelo menos) três relações distintas, a saber: a) um contrato base (no caso, um contrato-promessa de compra e venda, mas que pode ser de empreitada, de fornecimento, etc.), que constitui a relação principal, causal ou subjacente; b) um contrato de mandato, pelo qual o obrigado naquele primeiro contrato (na hipótese, ao cumprimento de determinadas obrigações e ao pagamento do preço estipulado) incumbiu o garante (no caso, como em geral, um banco), de prestar a garantia (neste caso, de pagamento) exigida pela contraparte; c) o contrato de garantia pelo qual o garante, emitindo o competente título, se obrigou a pagar o montante convencionado. (13)

Ou, por outras palavras, "no processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe, em primeiro lugar, um contrato-base, entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato, qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário, e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída". (14)

Não obstante a natureza autónoma da garantia on first demand, e a sua actuação ou execução automática, a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário não pode ter-se como ilimitada: há, com efeito, no direito português, que estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa fé (art. 762º, nº 2, do C.Civil) ou o abuso do direito (art. 334º do mesmo diploma), como por exemplo nos casos extremos de manobras tendentes a enganar o garante ou de procedimento abusivo do beneficiário, designadamente exigindo a garantia em caso de cumprimento pontual da obrigação do devedor. (15)

É que "o princípio de que o banco deve prestar de imediato garantia, logo que solicitado pelo beneficiário, sofre, no entanto, uma excepção: o banco pode, e deve mesmo, recusar-se a pagar a garantia, em caso de fraude manifesta, de abuso evidente por parte do beneficiário. Compreende-se a razão: há princípios cogentes de todo e qualquer ordenamento jurídico que devem ser respeitados, não podendo as garantias automáticas violar grosseiramente os aludidos princípios". (16)

E, indubitavelmente, há que admitir que nas relações bilaterais entre os vários intervenientes no processo de constituição da garantia, se possam desencadear reacções que visem postergar as actuações abusivas ou ilegítimas de qualquer dos contraentes.

Deste modo, é inequívoco que, honrada a garantia pelo garante, este pode exigir do ordenador - em nome de quem, ou por ordem de quem, a garantia é emitida - que lhe restitua o montante da garantia que por ele prestou nos casos em que da parte daquele tenha havido culpa na eclosão do pressuposto da exigência da garantia pelo beneficiário.

Sendo ainda que, "perante uma garantia de pagamento à primeira solicitação, o garante está obrigado a satisfazê-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados. É o devedor que, depois de reembolsar o garante da importância por este paga ao beneficiário tem o ónus de intentar procedimento judicial para reaver a referida importância, caso o credor/beneficiário haja procedido sem fundamento". (17)

"O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor" (18).
Ademais, e apesar da natureza automática da garantia on first demand, a sua automaticidade não é absoluta, assistindo-se, actualmente a um movimento da sua relatividade, através da "admissibilidade do dever (sob pena de perder o direito de regresso contra o mandante) de oposição pelo garante ao beneficiário da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou sejam estes um facto notório", assim como da "admissibilidade da instauração pelo mandante de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou do abuso evidente do beneficiário". (19)

Ora, é isto exactamente que os autores pretendem com a presente acção (que se desenrola apenas entre eles, ordenadores da garantia, e os recorridos, beneficiários). O que intentam - aliás na sequência da providência cautelar que requereram - é que o beneficiário se não aproveite da garantia, recebendo a soma pecuniária correspondente (ou que a devolva caso já a haja recebido) porquanto, segundo alegam, não ocorre qualquer situação (como se propõem demonstrar) que justifique que aquela garantia seja accionada. Em última análise, a sua intenção é evitar que a beneficiária da garantia a exija quando nenhuma razão válida existe para tal, em consequência, fazendo-o abusivamente.

É, assim, perfeitamente claro e possível o objecto da acção, não havendo, neste aspecto das relações entre os ordenadores da garantia e a beneficiária, qualquer motivo para tomar em consideração (salvo se os autores não provarem os fundamentos que invocam) a natureza automática da garantia bancária on first demand.

Têm pois razão os recorrentes, não podendo manter-se o acórdão recorrido, antes se justificando, como adequada ao direito, a decisão proferida na 1ª instância que julgou improcedente a excepção peremptória deduzida pela ré.

Nestes termos, decide-se:

a) - julgar procedente o recurso de revista interposto pelos autores A, B e C;

b) - revogar o acórdão recorrido, por forma a ficar a subsistir a decisão da 1ª instância que julgou improcedente a excepção peremptória aduzida pela ré na contestação;

c) - condenar a recorrida nas custas da revista, bem como a suportar as custas devidas na 2ª instância.

Lisboa, 14 de Outubro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Ac. RL de 11/12/90, in CJ Ano XV, 5, pag. 134 (relator Santos Monteiro).


(2) Ac. STJ de 19/02/2001, no Proc. 1868/01 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos).

(3) José Maria Pires, "Direito Bancário", 2º volume, Lisboa, pag. 284.

(4) Ac. STJ de 09/01/97, in Proc. 402/97 da 2ª Secção (relator Sousa Inês).

(5) Ac. STJ de 07/11/90, in BMJ nº 401, pag. 478 (relator Figueiredo de Sousa).
(6) Galvão Telles, "Garantia Bancária Autónoma", in O Direito, Ano 120º (1988), III-IV, pag. 288; Acs. STJ de 12/11/98, no Proc. 665/98 da 2ª Secção (relator Sousa Dinis); e de 11/11/99, no Proc. 694/99 da 2ª secção (relator Herculano Namora).

(7) Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in "Garantias de Cumprimento", Coimbra, 1994, pag. 50.

(8) Acs. STJ de 27/01/98, no Proc. 831/97 da 1ª Secção (relator César Marques); de 11/02/99, no Proc. 1172/98 da 2ª secção (relator Peixe Pelica); e de 25/05/99, no Proc. 285/99 da 1ª Secção (relator Ferreira Ramos).

(9) Galvão Telles, cit., pag. 286; Ac. STJ de 23/03/95, in CJSTJ Ano III, 1, pag. 317 (relator Miranda Gusmão).

(10) Acs. STJ de 09/01/96, in BMJ nº 453, pag. 428 (relator Machado Soares); de 21/05/98, in BMJ nº 477, pag. 482 (relator Fernandes Magalhães); e de 31/10/2002, no Proc. 2818/02 da 2ª secção (relator Joaquim de Matos).

(11) Galvão Telles, "Garantia Bancária Autónoma ", in "O Direito", Ano 120º (1988), III/IV, pag. 283. Cfr. Almeida Costa e Pinto Monteiro, "O contrato de garantia à primeira solicitação", in CJ, Ano XI, 5, pag. 17 (maxime pags. 19 e 20).


(12) Simões Patrício, "Preliminares sobre a Garantia On First Demand", in ROA, Ano 43 (1983) - III, pag. 713.


(13) Ac. STJ de 30/01/2003, no Proc. 4252/03 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).


(14) Ac. STJ de 21/11/2002, no Proc. 3453/02 da 7ª secção (relator Quirino Soares). Ver, também, Ac. STJ de 11/12/2003, no Proc. 3632/03 da 6ª secção (relator Nuno Cameira).

(15) Acs. STJ de 23/03/95, acima citado; de 25/06/98, no Proc. 454/98 da 2ª Secção (relator Miranda Gusmão); e de 01/07/2003, no Proc. 2079/03 da 6ª secção (relator Ponce de Leão).

(16) Almeida Costa e Pinto Monteiro, "O contrato de garantia à primeira solicitação", in CJ, Ano XI, 5, pag. 20.

(17) Almeida Costa e Pinto Monteiro, referido parecer, pag. 19.

(18) Galvão Telles, estudo citado, pag. 283.

(19) Cfr. Francisco Cortez, "A Garantia Bancária Autónoma", in ROA, Ano 52º, II, Julho, 1992, pags. 513 a 609.