Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B522
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: RECURSO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTE COMUM
INOVAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: SJ200403040005227
Data do Acordão: 03/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1003/03
Data: 10/02/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. O Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer da matéria de facto quando a Relação deu como provado um facto sem a produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer infracção das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.
2. A nulidade por excesso de pronúncia a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil reporta-se a questões e não a motivações, ou seja, apenas se reporta a pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizaram o litígio, incluindo as excepções.
3. São partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, a que o n.º 1 do artigo 1425º do Código Civil se reporta, além do mais, as paredes delimitadoras do seu perímetro, não é construída em parte comum do edifício a arrecadação que apenas ficou encostada a um muro suporte de terras que é parte comum.
4. É inovadora a obra de alteração do prédio tal como foi originariamente concebido e licenciado aquando da outorga da licença de utilização e existia ao tempo da constituição da propriedade horizontal.
5. Independentemente da autorização pela maioria de dois terços dos condóminos, as inovações operadas nas partes comuns do edifício prejudiciais da utilização, por de algum dos condóminos, das partes próprias ou comuns, só podem deixar de estar sujeitas à sanção de demolição se nelas consentirem os prejudicados, sendo irrelevante o seu licenciamento municipal.
6. A falta de licença municipal para a realização das obras inovadoras não afecta negativamente a deliberação de dois terços da assembleia dos condóminos que as autorizou, e o condómino que construiu uma churrasqueira no logradouro da sua fracção predial não carecia daquela autorização.
7. A construção por um dos condóminos no logradouro da sua fracção predial de uma churrasqueira e de uma arrecadação não alteram o destino habitacional daquela fracção nem o respectivo título constitutivo da propriedade horizontal, designadamente, o seu elemento permilagem de valor.
8. Actua com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium o condómino que autorizou outro condómino a edificar a arrecadação e, vários anos depois, sem motivo plausível, lhe exigiu a juízo a sua demolição.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
"A" e B intentaram, no dia 17 de Abril de 1997, contra C e D, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação na demolição de uma arrecadação e de uma churrasqueira, com fundamento na sua feitura pelos segundos na própria fracção predial sob a propriedade horizontal, contígua à habitação dos primeiros, invocando o acesso indevido de estranhos, pelo menos pelo estendal, à sua casa, a emissão de maus cheiros, de fumos e gorduras prejudiciais à saúde e a falta de autorização dos condóminos quanto à construção da churrasqueira.
Invocaram os réus, na contestação, a irregularidade do mandato judicial conferido pelos autores aos respectivos mandatários, bem como o seu direito a manter a arrecadação e a churrasqueira, e o abuso do direito por parte dos primeiros, e pediram a sua condenação no pagamento de indemnização por litigância de má fé.
Na réplica, os autores impugnaram o afirmado e pedido pelos réus e, realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 4 de Janeiro de 2002, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a demolir apenas a parte da arrecadação sita a menos de dois metros e meio da sua varanda.
Apelaram os autores e os réus, uns e outros na parte em que na sentença ficaram vencidos, e a Relação, por acórdão proferido no dia 2 de Outubro de 2003, negou provimento a ambos os recursos, do qual ambas as partes interpuseram recurso de revista.
A e B, formularam, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- nos termos do artigo 1422º, n.º 2, alínea a), do Código Civil, provado que o telhado da arrecadação construído pelos réus no logradouro facilita o acesso de estranhos à casa dos autores, deveriam os primeiros ter sido condenados a demolir toda a arrecadação;
- os réus deverão ser condenados na demolição da churrasqueira porque a deliberação da assembleia de condóminos ratificadora da construção é nula, nos termos dos artigos 280º, 286º e 294º do Código Civil, por contrária à lei, em razão de não haverem pedido autorização para o efeito aos restantes condóminos, nem haverem obtido licença camarária para alteração do projecto inicial da constituição da propriedade horizontal;

- a construção da arrecadação e da churrasqueira pelos réus provocou alteração da permilagem da sua fracção predial, o que não é conforme com a constituição da propriedade horizontal e altera substancialmente os moldes em que esta foi definida em termos de permilagem, violando o interesse público de todos os condóminos, pelo que era necessária a aprovação de todos eles;
- como as aludidas alterações não são conformes com o projecto inicial da constituição da propriedade horizontal e alteram substancialmente a permilagem do condomínio, consubstanciam negócio contrário à ordem pública e à lei, pelo que as obras são nulas, nos termos dos artigos 280º, 286º e 294º do Código Civil;
- o acórdão recorrido violou os artigos 280º 286º, 294º e 1422º, n.º 2, alínea a), todos do Código Civil, pelo que deve ser revogado.

C e D responderam, em síntese de alegação:
- para a construção da churrasqueira, pediram a autorização de dois terços dos condóminos e apresentaram o pedido de licenciamento camarário, significando os actos praticados a posteriori ratificação da sua conduta;
- a sua edificação não estava à deliberação da assembleia de condóminos ou aprovação por dois terços, porque as edificações estão sobre parte integrante da sua fracção autónoma, do que resulta a inaplicação do n.º 2 do artigo 1425º do Código Civil;
- não está assente que após a construção esta não tenha sido objecto de licenciamento ou autorização camarária;
- não influi nem tem de ser objecto de alteração da propriedade horizontal qualquer edificação em parte da fracção, porque o cálculo da permilagem resulta, quer da área ocupada pela parte habitacional, quer da área do logradouro;
- a implantação da churrasqueira no logradouro parte integrante da fracção predial não obriga à alteração da propriedade horizontal porque não é afectada a permilagem ou o uso da fracção, sendo mero equipamento, porque é de natureza movível.

C e D concluíram, por seu turno, em síntese, no recurso que interpuseram:
- cabendo à autarquia a obrigação de verificação da estética e normas de segurança, ela nada opôs à construção, tendo-a licenciado com anuência expressa do autor;
- as instâncias julgaram mal, por não haver sido alegado ou provado que o muro de suporte de terras existente nas traseiras do prédio era parte integrante dele e comum;
- o facto de a construção em litígio se encontrar encostada ao dito muro não a torna parte comum, por integrar fracção em cujo logradouro foi edificada;
- a invocação pelos recorridos de que a edificação no logradouro da fracção na altura de um piso encostada a um muro na altura de dois pisos facilita o acesso à fracção e estendal, após terem concedido autorização expressa para a sua edificação cerca de dez anos depois da edificação, constitui atitude imoral e persecutória, tanto mais que ali não residem;
- os direitos de personalidade dos recorridos - receio de estranhos terem o acesso facilitado à sua fracção predial e ao estendal - não estão afectados de forma séria e previsível
- os recorridos estão a agir de forma imoral, impondo um sacrifício patrimonial aos recorrentes desadequado e desproporcional em relação ao seu infundado receio, agindo em abuso de direito;
- o acórdão recorrido violou os artigos 8º, n.º 2, 9º, 204º, n.º 3, 334º, 1305º, 1344º, n.º 1, 1420º, 1421º, n.º 1, e 1422º do Código Civil, e 660º, 664º, 668º, n.º 1, alínea d), 712º, n.º 1, alíneas a) e b), 1ª parte do Código de Processo Civil, devendo ser revogado e os réus absolvidos.

A e B, em síntese de conclusão, responderam:
- a Relação, ao decidir que o muro suporte de terras era parte comum do prédio limitou-se a qualificar juridicamente os factos apurados;
- o exercício pelos recorridos do direito à eliminação de uma construção que afecta a segurança da sua casa quanto a pessoas e bens e reserva individual e de privacidade respeita a direitos de personalidade irrenunciáveis;
- nenhum desvalor ético ou de desconformidade com os valores sociais dominantes pode incidir sobre quem pretende não continuar a suportar tal tipo de consequências desvantajosas decorrentes da construção levada a cabo pelos recorrentes.

A Relação referiu declarou inexistir qualquer no acórdão recorrido.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Está inscrita no registo predial na titularidade dos autores a aquisição do direito de propriedade sobre a fracção predial autónoma designada pela letra M, a que corresponde o 1º andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob a ficha n.º 00054/240485, composta de sala comum, três quartos, cozinha, duas casas de banho, hall, despensa e duas varandas, sob a permilagem de 99,6.
2. Está inscrita no registo predial, a favor dos réus, a aquisição do direito de propriedade sobre a fracção predial autónoma designada pela letra K, a que corresponde o rés-do-chão direito do mesmo prédio urbano mencionado sob 1, composta por sala comum, três quartos, cozinha, duas casas de banho, hall, varanda e logradouro com 51,40 m2, sob a permilagem de 145.
3. A ré manifestou à autora o desejo de fazer uma churrasqueira no logradouro para substituir o fogareiro que utilizava habitualmente no parapeito da janela da cozinha para assar o peixe para as suas refeições, e os autores nunca se queixaram de que o fumo lhes trazia problemas de saúde, e os últimos chegaram a assar o peixe no parapeito da janela da sua cozinha.
4. Em 1987, os réus apresentaram na Câmara Municipal de Sesimbra um pedido de licenciamento de uma arrecadação, com seis metros de comprimento e dois metros e meio de largura, que pretendiam construir no logradouro referido sob 2, tendo para o efeito apresentado uma autorização assinada por outros condóminos do edifício, entre eles o autor, a quem foi apresentado o projecto, pedido que foi autorizado em 14 de Abril de 1988.
5. Os réus construíram a aludida arrecadação no logradouro mencionado sob 2 em tijolo, com telhado de queda de água, com porta e janela, e com a altura de um piso do prédio, encostada a uma parede de suporte de terras com altura superior a dois pisos, e cujo telhado facilita o acesso de estranhos à casa e estendal dos autores.
6. Nas semanas anteriores a 1 de Novembro de 1996, os réus construíram no logradouro mencionado sob 2 uma churrasqueira em tijolo, com telhado em telha de chaminé, sem pedirem autorização aos restantes condóminos nem obterem para o efeito licença camarária.
7. A autora pediu aos réus, no dia 1 de Novembro de 1996, para não continuarem a construção da churrasqueira, com o objectivo de se efectuar uma reunião de condóminos para decidir sobre essa obra.
8. Só após a conclusão da churrasqueira é que os réus pediram autorização de dois terços dos condóminos e apresentaram o pedido de licenciamento camarário.
9. Em consequência da citação para a acção, a ré tem sofrido perturbações nervosas.
III
As questões essenciais decidendas são as de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por excesso de pronúncia e se C e D devem ou não ser condenados a demolir a construção relativa à arrecadação e à churrasqueira.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e recorridos, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- deve ou não ser alterada a decisão da matéria de facto fixada pela Relação?
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por excesso de pronúncia?
- síntese do estatuto legal da propriedade horizontal em tanto quanto releva no caso vertente;
- está ou não a deliberação da assembleia de condóminos que aprovou a construção da churrasqueira por C e D afectada de nulidade?
- posicionamento das construções em causa no confronto das coisas próprias e comuns;
- a construção da arrecadação e da churrasqueira por C e D implicaram ou não a alteração o valor da permilagem relativa à sua fracção predial no confronto com o valor do prédio, consequenciante de algum vício de nulidade?
- a facilitação derivada pela construção da arrecadação do acesso à casa e ao estendal de A e de D justifica ou não, nos termos da lei, a sua demolição?
- a exigência por A e D da demolição da arrecadação envolve ou não abuso do direito?

- síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Os recorrentes C e D afirmaram, sob a motivação de não resultar dos factos provados que a delimitação do prédio incorpore o referido muro de suporte de terras, ter a Relação fixado incorrectamente a matéria de facto ao considerar que esse muro, onde a arrecadação está encostada, é parte comum do prédio.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer da matéria de facto quando o tribunal recorrido deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.
Decorrentemente, a ter havido no caso vertente um verdadeiro e próprio erro na fixação dos factos pela Relação, não podia este Tribunal sindicá-lo, por estar fora do seu âmbito de competência.
Mas na realidade, a afirmação de que o muro de suporte de terras onde a arrecadação está encostada era parte comum do prédio não consta do elenco dos factos considerados provados na sentença proferida na 1ª instância nem no acórdão proferido pela Relação.
Do que se trata, com efeito, é da conclusão jurídica de que, à luz dos factos provados e do artigo 1421º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, o mencionado muro era parte comum do prédio.
2.
Prescrevem os artigos 668º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, e 716º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que o acórdão é nulo quando o colectivo de juízes se pronuncie sobre questões de que não podia tomar conhecimento.
Os referidos normativos estão conexionados com o que prescrevem os artigos 660º, n.º 2, 2ª parte, e 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil, segundo os quais, o colectivo de juízes da Relação não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Importa, porém, ter em linha de conta que se não confundem os conceitos de motivação ou argumentação fáctico-jurídica e de questões, como pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizam o litígio, incluindo as excepções, sendo que só a elas o normativo em análise se reporta.
No caso de a Relação ter realmente conhecido de questão de que não podia conhecer, gerando a referida nulidade derivada de vício de limites, deveria este Tribunal supri-la e declarar em que sentido o acórdão da Relação se consideraria modificado (artigo 731º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Todavia, no caso vertente, o fundamento em que os recorrentes C e D alicerçam a existência da mencionada nulidade por excesso de pronúncia é, afinal, o mesmo em que alicerçam a incorrecta fixação da matéria de facto pela Relação, a que acima se fez referência.
Conforme acima já se referiu, a afirmação da Relação de que o muro de suporte de terras era parte comum do prédio em causa consubstanciou-se em mera conclusão jurídica decorrente dos factos provados, no quadro da liberdade para o efeito de qualquer órgão jurisdicional (artigo 664º do Código de Processo Civil).
Não ocorre, por isso, na espécie, a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia invocada pelos recorrentes C e C.
3.
Uma da formas de constituição da propriedade horizontal, figura típica do direito das coisas, é por via de negócio jurídico, contrato ou negócio jurídico unilateral, tal como ocorreu no caso vertente (artigo 1417º, n.º 1, do Código Civil).
Essencial à constituição da propriedade horizontal é a especificação no título constitutivo das partes do edifício correspondentes à pluralidade das fracções, por forma a que fiquem devidamente individualizadas, e a fixação do valor relativo de cada uma, expresso em percentagem ou permilagem (artigo 1418º, n.º1, do Código Civil, correspondente ao corpo do artigo na sua redacção anterior).
Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício, cuja dualidade de direitos é incindível (artigo 1420º do Código Civil).
Dir-se-á que no direito de propriedade horizontal confluem poderes ou faculdades diferentes, consoante incidam sobre a fracções autónomas pertencentes a cada um dos condóminos, ou sobre as partes comuns, legalmente referenciados ao direito de propriedade singular quanto à primeiras e à compropriedade no que concerne às segundas, não obstante o seu conjunto constituir um direito incindível (artigo 1420º do Código Civil).
Esta realidade reflecte-se, naturalmente, nas limitações impostas aos condóminos no exercício do seu direito, incluindo os poderes que incidem sobre as suas próprias fracções prediais.
A redacção actual do artigo 1421º do Código Civil, em vigor desde 1 de Janeiro de 1995, resultante da alteração do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, não afectou os normativos aplicáveis à situação vertente, designadamente à construção da arrecadação em causa.
Tendo em conta o que resulta da previsão do n.º 1 do artigo 1421º do Código Civil, em conjugação com a presunção de comunidade constante do n.º 2, a par da especificidade do regime da propriedade horizontal, a conclusão não pode deixar de ser no sentido da imperatividade do primeiro dos mencionados normativos (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Código Civil Anotado", vol. III, Coimbra, 1987, pág. 419).
Em consequência, independentemente do que constar do título constitutivo da propriedade horizontal, as paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio são deste partes comuns (artigo 1421º, n.º 1, do Código Civil).
São paredes mestras as que integram o chamado esqueleto do edifício, em que assenta a sua estrutura e segurança, destinadas a suportar as cargas, incluindo as que delimitam o perímetro da edificação e as interiores cuja eliminação ou alteração implicaria o risco de toda a construção (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Código Civil Anotado", vol. III, Coimbra, 1987, pág. 421; e Ac. do STJ, de 30.11.94, CJ, Ano II, Tomo 3, pág. 164, e de 18.5.99, CJ, Ano VII, Tomo 2, pág. 99).
As inovações nas partes comuns do prédio, ou seja, as alterações da sua forma ou substância e as modificações na sua afectação ou destino, estão previstas no artigo 1425º do Código Civil.
Com efeito, embora do n.º 1 do artigo 1425º do Código Civil não conste a expressão partes comuns, conforme decorre do n.º 1 do artigo 1426º do mesmo diploma, é às partes comuns do edifício construído em propriedade horizontal que o primeiro dos referidos normativos realmente se reporta.
Dir-se-á, com efeito, ser inovadora a obra de alteração do prédio tal como foi originariamente concebido e licenciado aquando da outorga da licença de utilização e existia ao tempo da constituição da propriedade horizontal, não relevando, para esse efeito, a vertente do prejuízo na utilização por algum dos condóminos da respectiva fracção ou das partes comuns.
As obras que constituam inovações das partes comuns do edifício dependem da aprovação da maioria dos condóminos em assembleia, com o limite de essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (artigo 1425º, n.º 1, do Código Civil).
A inovações nas partes comuns do edifício não aprovadas pela maioria dos condóminos com a titularidade de dois terços do valor do prédio consequenciam a respectiva destruição.
Acresce que, apesar de haver a referida votação favorável de dois terços dos condóminos, nas partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, das coisas próprias ou comuns (artigo 1425º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, as inovações operadas nas partes comuns do edifício que prejudiquem a utilização por parte de algum dos condóminos das partes próprias ou comuns só podem deixar de estar sujeitas à sanção de demolição se os prejudicados nelas consentirem.
A aprovação da realização das obras em que se traduzam as mencionadas inovações por parte dos órgãos competentes do município não afecta, como é natural, os direitos de algum dos condóminos ou de terceiros que por elas sejam negativamente afectados.
4.
Como a aquisição do direito de propriedade por A e B sobre a fracção predial M e de C e de D sobre a fracção predial K está inscrita no registo predial, presume-se essa mesma titularidade (artigo 7º do Código do Registo Predial).
Uma vez que a referida presunção legal não foi ilidida, importa concluir no sentido de que os primeiros são proprietários da fracção predial M e que os últimos são proprietários da fracção predial K, esta integrante do logradouro mencionado sob II 2, a primeira com 99,6 de permilagem, e a última com 145 de permilagem (artigo 350º do Código Civil).
Está assente que semanas antes de 1 de Novembro de 1996, os réus construíram no logradouro mencionado sob 2 uma churrasqueira em tijolo, com telhado em telha de chaminé, sem pedirem autorização aos restantes condóminos nem obterem para o efeito licença camarária, e, só após a sua conclusão é que pediram autorização de dois terços dos condóminos e apresentaram o pedido de licenciamento camarário.
Trata-se, pois, de inovação em coisa própria da titularidade de C e D, em que se integra o logradouro onde a churrasqueira foi edificada.
Entendem A e B ser nula, em razão de contrariedade à lei, a deliberação da maioria de condóminos que aprovou subsequentemente a construção por C e D da churrasqueira sem licença camarária para o efeito.
É nulo o negócio jurídico cujo objecto, isto é, o seu conteúdo, seja contrário á lei, bem como aquele cujo objecto jurídico seja ilícito por contrariar normas de carácter proibitivo ou preceptivo (artigos 280º, n.º 1, e 294º do Código Civil).
A falta de licença camarária de edificação, cuja exigência tem essencialmente a ver com o ordenamento do território, a salubridade, a segurança e a estética dos aglomerados habitacionais, sujeita os que edifiquem sem a obter a sanções específicas, naturalmente no quadro do ordenamento jurídico-administrativo,
Mas isso nada tem a ver com a deliberação da assembleia dos condóminos de autorização da edificação, situada no plano do ordenamento jurídico-civil, mais concretamente no quadro do regime da propriedade horizontal.
Decorrentemente, à míngua de normativo legal nesse sentido, a falta de licença camarária de construção da churrasqueira jamais poderia afectar de nulidade a deliberação da assembleia de condóminos que a autorizou.
Acresce, por um lado, que a referida deliberação foi tomada, conforme a regra da lei, por maioria dos votos representativos do capital investido (artigo 1432º, n.º 3, do Código Civil).
E, por outro, que as deliberações da assembleia dos condóminos que sejam contrárias à lei são meramente anuláveis e não afectadas do vício de nulidade (artigo 1433º, n.º 1, do Código Civil).
Finalmente, conforme resulta do normativo do n.º 1 do artigo 1425º do Código Civil, segundo a interpretação acima delineada, como C e C se limitaram a construir a referida churrasqueira no seu próprio logradouro, não careciam para o efeito de autorização por via de deliberação da assembleia dos condóminos.
Carece, por isso, de fundamento legal a invocação por A e B da nulidade da deliberação da assembleia de condóminos em causa.
5.
Tendo em conta o que resulta de II 2, 5 e 6, os recorrentes C e D construíram a arrecadação e a churrasqueira no logradouro da sua própria fracção predial.
No que concerne à construção da churrasqueira, a Relação, os recorrentes e os recorridos não dissentem no que concerne ao facto de a mesma haver sido integralmente construída no logradouro da fracção predial cujo direito de propriedade se inscreve na titularidade de A e de B.
A divergência de recorrentes e recorridos, no confronto com o acórdão recorrido, ocorre em relação ao posicionamento da arrecadação no âmbito da fracção predial cujo direito de propriedade se inscreve na titularidade de A e de B, ou também no das partes comuns do edifício.
Resulta dos factos provados que a arrecadação em causa, com seis metros de comprimento e dois metros e meio de largura, altura de um piso do prédio, telhado de queda de água, está encostada a uma parede de suporte de terras com a altura superior a dois pisos.
Tendo em conta os factos provados, e as considerações de ordem jurídica acima desenvolvidas, não pode o referido muro de suporte de terras ser considerado parede mestra nem parte estruturante do prédio a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do artigo 1421º do Código Civil.
Sabe-se, porém, pelos factos provados, ser a função do referido muro, de altura considerável, de suporte de terras e que se posiciona junto ao logradouro da fracção predial de C e de D, certo que a ele encostaram a arrecadação.
Perante este quadro, independentemente do afirmado por B e D de o muro servir de suporte de terras a mais do que um edifício, como não resulta dos factos provados que ele sirva apenas alguma fracção predial em particular, deve considerar-se, nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 1421º do Código Civil, parte comum do edifício.
A propósito da conexão material entre o mencionado muro e a arrecadação construída por C e D, resulta dos factos provados que essa construção ocorreu no logradouro da sua fracção predial encostada ao muro.
A referida factualidade não permite, porém, ao invés do que foi entendido no acórdão recorrido, a conclusão de que a mencionada edificação, por ter sido realizada encostada muro, o foi sobre ele, ou seja, sobre uma parte comum do prédio.
Decorrentemente, a construção da mencionada arrecadação não dependia da deliberação de aprovação da assembleia de condóminos com dois terços do valor total do prédio a que se reporta o artigo 1425º, n.º 1, do Código Civil.
6.
Afirmaram A e B que a construção da arrecadação e da churrasqueira por C e D alteraram a permilagem da fracção predial destes últimos, alterando os moldes em que a propriedade horizontal foi constituída, sem a necessária aprovação de todos os condóminos, e concluíram que isso consubstanciava negócio contrário à ordem pública e à lei e nulidade daquela construção.
Conforme acima se referiu é essencial à constituição da propriedade horizontal, além do mais, a fixação do valor relativo de cada fracção predial expresso em percentagem ou permilagem (artigo 1418º, n.º 1, do Código Civil, correspondente ao anterior corpo do artigo).
Acresce que o título constitutivo da propriedade horizontal e só pode ser modificado por escritura pública sob o acordo de todos os condóminos (artigo 1419º, n.º 1, do Código Civil).
As mencionadas arrecadação e churrasqueira, pela sua própria estrutura e fim, não têm a virtualidade de alterar o destino habitacional da fracção predial de C e de D.
Pela própria natureza das coisas, não tem a mínima consistência jurídica a afirmação da nulidade dessas obras realizadas, porque o mencionado vício só faz sentido se reportado a negócios ou actos jurídicos (artigos 280º, 294º e 295º do Código Civil).
Acresce inexistir qualquer negócio modificativo do título constitutivo da propriedade horizontal, pelo que não faz qualquer sentido a afirmação de A e de B no sentido de ocorrer algum vício de contrariedade à ordem pública ou à lei (artigos 280º e 294º do Código Civil).
Finalmente, também pela própria natureza das coisas, as obras realizadas por C e D no logradouro da sua fracção predial não podem ter a virtualidade de alterar o título da propriedade horizontal, designadamente o elemento consubstanciado na permilagem que lhe corresponde.
Importa, por isso, concluir que a construção da arrecadação e da churrasqueira por C e D não implicaram alteração o valor da permilagem relativa à sua fracção predial no confronto com o valor do prédio, e que inexiste qualquer vício de nulidade dos invocados por A e B.
7.
A propósito da facilitação do acesso à casa e ao estendal de A de B pela arrecadação em causa, está assente que C e D a edificaram no logradouro mencionado sob II 2, em tijolo, com telhado de queda de água, porta e janela, altura de um piso do prédio, encostada a uma parede de suporte de terras com a altura superior a dois pisos, e cujo telhado facilita o acesso de estranhos à casa e estendal dos primeiros.
O sentido jurídico da expressão prejudicar, que consta do n.º 2 do artigo 1425º do Código Civil, é derivada do termo latino praejudicare, com o significado de danificar, deteriorar ou ofender.
Não resulta dos factos provados, tendo em conta a localização e função da mencionada arrecadação, que a facilitação do acesso de estranhos à fracção predial e estendal em causa, prejudiquem a sua utilização por parte de A e de B.

Além disso, não se vislumbra, em termos de probabilidade razoável, que da referida facilitação alguma vez derive a ofensa da segurança e da vida privada de A e de B.
De qualquer modo, conforme acima se referiu, a construção da referida arrecadação, embora encostada ao mencionado muro de suporte de terras, não ocorreu em qualquer parte comum do prédio, mas no logradouro da própria fracção predial de quem a operou, ou seja, de C e D.
É, por isso, inaplicável, na espécie, o disposto no artigo 1425º, n.º 2, do Código Civil, segundo o qual, nas partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, das coisas próprias ou comuns.
Acresce, tendo em conta os factos provados, que a referida construção não consubstancia, por parte de C e D, a infracção às limitações ao exercício do respectivo direito de propriedade a que se reportam os artigos 1305º, 1346º, 1347º, 1349º, 1360º e 1422º, todos do Código Civil.
Importa, por isso, concluir no sentido de a facilitação derivada da construção da arrecadação do acesso à casa e ao estendal de A e de D não justifica, nos termos da lei, a sua demolição.
8.
Tendo em conta o anteriormente exposto, sobretudo sob 7, prejudicada está a análise da questão relativa à improcedência do pedido de demolição da referida arrecadação em razão do abuso do direito (artigos 660º, n.º 2, 1ª parte, 713º, n.º 2 e 726º do Código de Processo Civil).
Não obstante, dir-se-á algo, de modo sintético embora, sobre esta última problemática.
O abuso do direito, excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).
Rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo (ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241).
Na vertente do chamado venire contra factum proprium traduz-se o abuso do direito na conduta contraditória ou seja, na conduta anterior do seu titular que, objectivamente interpretada no confronto da lei, da boa fé e dos bons costumes, gerou a convicção na outra parte de que o direito não seria por aquele exercido e, com base nisso, programou a sua actividade
Está assente que, em 1987, C e D apresentaram na Câmara Municipal de Sesimbra o pedido de licenciamento da referida arrecadação, com uma declaração de autorização assinada por condóminos do edifício, entre eles A, a quem tinha sido apresentado o projecto, pedido esse deferido 14 de Abril de 1988.

O facto de A haver autorizado C e D a edificar a arrecadação, gerando-lhe, naturalmente, a expectativa de lhes não exigirem a demolição e, não obstante, vários anos depois da edificação, operarem essa exigência em juízo consubstanciaria, se direito à demolição tivessem, abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, impeditivo do deferimento da sua pretensão, à margem de qualquer obstáculo de irrenunciabilidade de direitos.
9.
Em decorrência do exposto, improcede o recurso de revista interposto por A e B, e procede o recurso de revista interposto por C e D.
Deve, por isso, revogar-se a acórdão recorrido na parte em que manteve a decisão proferida na 1ª instância no que concerne à condenação de C e de D na demolição de parte da arrecadação em causa.
A e B, porque vencidos no recurso que interpuseram, e no interposto por C e D, são responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, bem como no pagamento das custas concernentes ao recurso de apelação e da própria acção em vez dos últimos (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto por A e B, dá-se provimento ao recurso interposto por C e D, revoga-se o acórdão recorrido e a sentença da primeira instância apenas na parte em que condenou os segundos a demolir parte da arrecadação mencionada sob II 5, e condenam-se os primeiros no pagamento das custas de ambos os recursos para este Tribunal e para a Relação e das da acção.

Lisboa, 4 de Março de 2004
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís