Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B2990
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DOS SANTOS
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: SJ200811180029902
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

I - A acção de reclamação, verificação e graduação de créditos numa situação processual de abertura de concurso de credores, apesar de apensada a uma execução, mantém a sua estrutura e autonomia de acção declarativa em relação àquela.

II - A apensação é apenas determinada por razões de funcionalidade e de agilização das várias fases de um tal processo executivo.

III - Assim, numa acção executiva instaurada no domínio da alteração da lei que reformou a acção executiva (Dec Lei 38/2003) em que se verifica a existência de mais que uma penhora sobre os mesmos bens e, por isso se susta a execução, é essa lei nova que rege, entre outras, as circunstâncias de tempo (prazo) para o exequente reclamar os seus créditos.

IV - Nesse caso, o exequente da execução sustada pode reclamar o seu crédito, a todo o tempo e até à transmissão dos bens penhorados (art. 865.º, n.º 3, do CPC).

V - Entendimento diferente afrontará, cremos, as legítimas expectativas do exequente tuteladas pelos princípios da acção executiva, (ponderação de interesses e prioridade), da segurança e certeza do direito, e do acesso à justiça, constitucionalmente garantidos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I -AA, L.da, com sede em Larguinho, Ourém, por apenso à execução n° .............. do Tribunal de Tomar em que são executados BB e mulher CC, veio reclamar, nos termos do artigo 871 ° do C.P.Civil, o seu crédito, no montante de € 39.322,38, acrescido da quantia de € 10.410,20 de juros de mora.
Alegou, no essencial, ser uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comercialização de vidros e ter, no exercício da sua actividade, fornecido aos executados produtos da sua especialidade; que os executados lhe fizeram uma confissão de dívida, com o respectivo acordo de pagamento, do qual, porém, só pagaram uma prestação; que, por isso, intentaram acção executiva no tribunal judicial de Ourém, no âmbito da qual foram penhorados dois prédios urbanos descritos na Conservatória de Registo Predial de Tomar sob os n.ºs 797 e 798, mas, tendo-se constatado, pelas certidões respectivas, que sobre tais imóveis já pendiam várias penhoras registadas anteriormente, sendo a mais antiga a da execução n.º 20-A/1993, foi determinada a sustação da execução por si movida, ao abrigo disposto no artigo 871 ° do C.P.Civil, razão por que naquela mais antiga vieram reclamar o seu crédito.
Admitida liminarmente a reclamação e efectuadas, na sequência disso, as competentes notificações, não foi apresentada qualquer impugnação. De seguida, e depois de junta pela reclamante certidão do despacho judicial de sustação proferido na execução de Ourém e da respectiva notificação, conforme o ordenado pelo despacho de fls. 47, foi proferida decisão a recusar a reclamação, por intempestiva.
Inconformada, a reclamante apelou
Sem êxito, porém, porquanto a Relação julgou o recurso improcedente.
De novo inconformada, pediu revista.
Alegou e concluiu:
-Reitera- se o conteúdo das alegações apresentadas na Relação.
-É a lei aplicável ao processo onde o despacho é proferido que regula o exercício do direito de reclamar o crédito no processo anterior.
- O despacho de sustação foi proferido ao abrigo do Dec. Lei 38/2003.
- Logo o exequente pode reclamar os créditos a todo o tempo.
- Outro entendimento viola a segurança e certezas jurídicas consagradas no art.º 202 da CRP.
Não houve contra alegações
II - Cumpre decidir
Como é sabido são as questões postas nas conclusões das alegações do recurso delimitam o seu âmbito.
A recorrente entende que a sua reclamação é tempestiva em face do disposto no art.o 8710 do C.P.Civil na redacção introduzida pelo Dec. Lei n° 3812003, de 08 de Março, redacção esta, a seu ver, de aplicação ao caso em apreço (e não a redacção anterior, como foi entendido pelo tribunal recorrido) por ser também aquela que é aplicável ao processo onde foi proferido o despacho de sustação.
«As instâncias entenderam que seria de aplicar o referido art. ° 871 ° na redacção anterior à reforma da acção executiva constante daquele Dec. Lei n° 38/2003, de 08.03, tendo, consequentemente, concluído pela extemporaneidade da reclamação.
Raciocinam assim:
"O art. ° 21 ° n° 1 daquele citado Dec. Lei n° 38/2003, de 08/3, já com as alterações decorrentes do Dec. Lei nO 199/2003, de 10/9, prescreve que:
«As alterações ao Código de Processo Civil, ao Código do Registo Predial, ao Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, ao Código de Processo do Trabalho, ao Código de Procedimento e de Processo Tributário e ao Decreto-Lei n° 269/98 de 1 de Setembro, bem como ao artigo 5480 do Código Civil, só se aplicam nos ou relativamente aos processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003»
Ora, a execução instaurada pela ora recorrente no tribunal judicial de Ourém, em 18.06.2004, foi sustada, ao abrigo do art.º 871° do C.P.Civil, permitindo-se assim à exequente reclamar o crédito respectivo na execução n.º 20-A/93 do tribunal de Tomar, como veio a suceder.
As reclamações de crédito, como resulta do estatuído no art.º 865° do C.P.Civil, quer na redacção anterior, quer na redacção posterior àquele Dec. Lei nº 38/2203, «são autuadas num único apenso ao processo de execução», isto é, processam-se por apenso ao processo principal de execução de que dependem.
A execução de sentença com processo executivo sumário a que esta reclamação de créditos se encontra apensa, foi instaurada em 30.06.1993, não lhe sendo, consequentemente, aplicáveis as alterações introduzi das por aquele Dec. Lei n.º 38/2003, de 08/3. E, correndo a reclamação sub judice na dependência dessa execução n.º 20-A/93, afigura-se-nos óbvio que, do mesmo modo, lhe não poderão ser aplicáveis tais alterações, pois que elas só se aplicam nos ou relativamente aos processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003, e a reclamação em apreço não é nem respeita a processo instaurado depois de tal data.
De outro modo, haveria sempre o risco de as decisões tomadas na reclamação, ao abrigo do regime processual introduzido por tais alterações, poderem vir a conflituar com as decisões adoptadas, ao abrigo do regime processual anterior, no processo principal de execução de que a reclamação depende.
Sucede, por outro lado, que, de harmonia com o disposto no nº 2 do art.º 871° do C.P.Civil na versão de 95/96, a reclamação de créditos deverá ser apresentada dentro do prazo facultado para a dedução dos direitos de crédito, a menos que o reclamante não tenha sido citado pessoalmente nos termos do artigo 864°, porque nesse caso pode deduzi-la nos 15 dias posteriores à notificação do despacho de sustação.
Deveria, por isso, a ora recorrente, no caso, ter reclamado o seu crédito no prazo de 15 dias após a notificação do despacho de sustação.
Como, porém, só o fez em 10 de Outubro de 2006, é manifesta a extemporaneidade da reclamação, como bem decidiu o tribunal recorrido."
Vejamos, então.
Os Factos
Os factos pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso são, além dos que emergem do precedente relatório e aqui se dão por reproduzidos, os seguintes:
1- A presente reclamação de créditos deu entrada no tribunal de Tomar, no dia 10.10.2006;
2- A acção executiva, com o nº 726/04.0TBVNO, foi intentada no tribunal de Ourém, no dia 18.06.2004;
3- Nesses autos nº 726/04.0TBVNO, em que é exequente a ora reclamante AA, e executados, CC e DD. L.da, o despacho de sustação, a que alude a que alude o art° 871.º do CPC, foi proferido em 01.06.2006 e transitou em julgado em 16.06.2006;
4- O processo principal a que esta reclamação de créditos se encontra apensa, trata-se da execução de sentença com processo sumário com o n° 20-A/1993 do Tribunal de Tomar, instaurada em 30.06.1993
Vistos os factos, passemos ao seu enquadramento jurídico.
Assim:
A questão é a de saber se uma reclamação de créditos após a sustação de uma execução, intentada já na vigência da Nova Reforma da Acção Executiva (Dec. Lei 38/2003) apresentada pelo próprio exequente no processo de reclamação de créditos, apensado a uma acção executiva instaurada na vigência do anterior quadro legal, é regida pelo antigo ou pelo novo direito ou, mais em concreto, se é de aplicar a nova ou a anterior redacção dos art. 871.º e 865.º do CPC.
A resposta prende-se com a natureza e significado que for dado ao processo de reclamação de créditos, onde é apresentada a dita reclamação em função da sua apensação a outra acção executiva e, ainda em função da natureza e estrutura da fase processual do concurso de credores e verificação de créditos, não descurando o caso concreto.
No acórdão do TRP de 22/11/2005 - dgsi/net - considera-se que a reclamação de créditos apensada não é um processo, novo, autónomo, independente, mas sim um incidente do processo executivo e, por isso se regerá pelos normativos resultantes da reforma da acção executiva, ou anteriores a esta, de acordo com o regime legal que deva ser seguido pelo processo principal
Em idêntico sentido vão, também os acórdãos do mesmo TRP de 17/01/2005 e do TRC de 25/11/2004. mas já diverge desse entendimento o acórdão do TRP de 16/12/2004, no qual se considera a Reclamação de créditos um processo com estrutura autónoma, apesar de apensado, seguindo ele as regras legais que lhe forem próprias.
Começaremos por dizer que, em vista do caso concreto e na falta de disposição legal específica, temos que ir aos princípios, (da acção executiva e da Constituição da República, sobretudo) e à razão das coisas, para solucionar a questão.
"Brevitatis causa", deles faremos uma sucinta resenha, apenas.
Dos primeiros destacamos o da ponderação de interesses e o princípio da prioridade e dos segundos o da segurança e certeza no direito, da igualdade, e do direito a tutela jurisdicional.
A prevalência dos interesses do exequente (favor creditoris) não deve fazer esquecer os interesses atendíveis do executado.
A protecção do executado (cuja origem remonta à lex Poetelia romana) projecta-se na proporcional idade da penhora na impenhorabilidade de certos bens e no respeito de certos direitos fundamentais do executado2.
Em todo o caso, qualquer favorecimento do executado pressupõe necessariamente, que os interesses deste devam ser, consideravelmente mais fortes do que os do exequente na realização coactiva da sua prestação.
Quanto ao princípio da segurança e certeza do direito e chamando já o caso dos autos verificamos que a acção executiva intentada pela recorrente e donde saiu a reclamação de créditos em causa entrou em juízo no TJ de Ourém em 18/06/2004, logo, em plena vigência da lei nova.
O nosso entendimento vai mais no sentido de considerar que no caso seria sempre a lei nova a aplicar, quanto aos prazos (ou ausência deles) no que se refere à apresentação da dita reclamação pelo exequente.
Vejamos porquê.
Àcerca da estrutura e natureza da, mais propriamente chamada de acção de verificação e graduação de créditos, diremos que se trata de uma acção declarativa autónoma relativamente à acção executiva ficando, porém subordinada a esta, por razões de funcionalidade e é processada por apenso à acção executiva.3
A sua autonomia radica na sua especificidade de acção declarativa, no seu objectivo próprio, diferente do da acção executiva (acção principal), seguindo cada uma os seus próprios trâmites, por vezes simultaneamente.
Ora, se é verdade que a reclamação foi apresentada no TJ de Tomar para aí ser apreciada, também é verdade que a sua génese reside no despacho, proferido no processo do TJ de Ourém, que ordenou a sustação da execução, mandando cumprir o art° 871° do CPC, cuja redacção era (como é ainda) a resultante do Dec. Lei 38/2003, que sob a epígrafe "Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens " diz:
"Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, é sustada quanto a estes, aquela em que a penhora tenha sido posterior, mediante informação do agente de execução a fornecer ao juiz nos dez dias imediatos à realização da segunda penhora, ou ao conhecimento da penhora anterior ou, a todo o tempo, a requerimento do exequente, do executado ou de credor citado para reclamar o seu crédito"
Entre outros comentários a este normativo diz Lebre de Freitas4que:
" ... perante a informação fornecida o juiz susta a execução e o exequente vê-se forçado a reclamar o crédito na outra execução, sob pena de os efeitos da penhora se virem a extinguir com a venda executiva que nela se realize (art. 824-2 CC); não é estabelecido, para tanto, um prazo, contado da notificação da sustação, pelo que o exequente continua a poder apresentar a reclamação até à transmissão dos bens penhorados nos termos gerais do artº. 865.º - 3 (Lebre de Freitas -A Acção Executiva, 2.ª ed. pág.258, do Código de Processo Civil Anotado -Vol. III, pág. 526).
Com efeito, este segmento do art.º 865.º do CPC diz "Os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados”.
Ora, deverá acentuar-se que a recorrente foi notificada do teor de um despacho que a remete para os termos do art. 871.º do CPC no domínio duma acção executiva regulada pela lei nova, não conhecendo nem tendo obrigação legal de conhecer a natureza e o estado da acção em que iria reclamar o seu crédito.
Daí que se entenda que à recorrente tenha sido dada uma expectativa de garantia que o direito não pode deixar de tutelar e garantir sob pena de, não o fazendo, ofender os princípios da acção executiva (ponderação de interesses e prioridade), a certeza e a segurança do próprio direito e o acesso à justiça (art.º 20.° e 205.°-2 da CRP).
Deve-se referir, ainda, que mesmo que não se concluísse (e conclui-se) que, o caso dos autos se regia pela lei nova, então seria aplicável a lei por que se regia o processo da reclamação de créditos e não o processo executivo (principal).
Face ao exposto, pode concluir-se:
A acção de reclamação, verificação e graduação de créditos numa situação processual de abertura de concurso de credores, apesar de apensada a uma execução, mantém a sua estrutura e autonomia de acção declarativa em relação àquela;
A apensação é apenas determinada por razões de funcionalidade e de agilização das várias fases de um tal processo executivo.
Assim, numa acção executiva instaurada no domínio da alteração da lei que reformou a acção executiva (Dec Lei 38/2003) em que se verifica a existência de mais que uma penhora sobre os mesmos bens e, por isso se susta a execução, é essa lei nova que rege, entre outras, as circunstâncias de tempo (prazo) para o exequente reclamar os seus créditos;
Nesse caso, o exequente da execução sustada pode reclamar o seu crédito, a todo o tempo e até à transmissão dos bens penhorados (art. 865.º, n.º 3, do CPC).
Entendimento diferente afrontará, cremos, as legítimas expectativas do exequente tuteladas pelos princípios da acção executiva, (ponderação de interesses e prioridade), da segurança e certeza do direito, e do acesso à justiça, constitucionalmente garantidos.
É que, além do mais, deve acentuar-se que qualquer credor reclamante não é apenas parte no apenso de verificação e graduação de créditos mas é também parte na acção executiva “qua tale” e nela pode exercer até alguns poderes que por lei são deferidos ao exequente (v.g. os contidos nos artigos 847.º, n.º 3, 875.º, n.º 2 e 885.º, n.º 1, do CPC), circunstância que eleva o seu estatuto acima de uma simples parte acessória (art.º 337.º).
III - Face ao exposto, concede-se a revista revogando a decisão recorrida.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 18 de Novembro de 2008

Rodrigues dos Santos (Relator)
João Bernardo
Oliveira Rocha