Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1832
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
RESPONSABILIDADE CIVIL
TRANSITÁRIO
ESPECIFICAÇÃO
RÉPLICA
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
Nº do Documento: SJ200307080018327
Data do Acordão: 07/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1189/2002
Data: 12/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A, Lda." intentou, no Tribunal Judicial de Matosinhos, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra "B, Lda.", peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de 27.039,374 libras esterlinas, acrescida dos juros legais a partir de 02/02/90 sobre a quantia de 25.650 libras esterlinas e até integral pagamento.
Alegou, para tanto, essencialmente, que:
- a autora vendeu à sua cliente "C, Ltd", determinada mercadoria, pelo preço global de 25.650 libras inglesas, com ela acordando que a mesma lhe seria entregue, em Londres, contra a apresentação de documentos (CAD);
- acordou com a ré, na qualidade de agente transitária, que esta desenvolvesse a necessária actividade para que a mercadoria chegasse a Londres e fosse entregue, nos termos convencionados, àquela cliente;
- para tal efeito, entregou à ré a referida mercadoria, tendo esta emitido os competentes FCT que se consignavam ao banco, em Londres, encarregado do recebimento do respectivo contravalor em libras inglesas;
- não obstante, a ré permitiu que a mercadoria fosse entregue, livremente, à cliente da autora, que, de posse dela, não mais pagou o preço devido, o que lhe causou o prejuízo correspondente.
Citada a demandada, veio chamar à autoria "D, Ltd", "E, S.A." e "C, Ltd".

As primeira e terceira chamadas nada declararam e a segunda recusou o chamamento, mas requereu a sua intervenção como assistente.
Oportunamente, a ré apresentou contestação, aceitando a existência do contrato invocado pela autora, mas recusando a imputação de incumprimento desse contrato, concluindo pela improcedência da acção.
Findos os articulados, foi exarado despacho saneador que julgou formalmente válida a instância, recusando as excepções peremptórias deduzidas pela demandada, e foram organizados a especificação e o questionário, com reclamação, desatendida, da ré quanto à especificação.
Corridos os ulteriores trâmites processuais, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com decisão acerca da matéria de facto, tendo, depois, sido proferida sentença que julgou a acção procedente, por provada, e, em consequência, condenou a ré no pedido, ou seja, no pagamento à autora da quantia de 27.039,374 libras esterlinas, acrescida dos juros à taxa legal desde 03/02/90 sobre a quantia de 25.650 libras esterlinas até efectivo e integral pagamento.

Inconformada apelou a ré, apenas com parcial sucesso, porquanto o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 9 de Dezembro de 2002, tão só revogou a sentença recorrida na parte em taxou os juros de mora devidos pela ré à autora, os quais, agora, fixou à taxa em vigor em Inglaterra, mas podendo a ré exonerar-se da obrigação em libras esterlinas, pagando em escudos, ao câmbio do respectivo dia do pagamento, no mais confirmando aquela sentença.
Interpôs, então, a ré recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão em crise e a sua substituição por decisão que julgue a acção totalmente improcedente.

Em contra-alegações pugnou a recorrida pela confirmação do decidido.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

A recorrente findou as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - artºs. 690º, nº. 1 e 684º, nº. 3, do C.Proc.Civil):
1. A recorrente, tal como já havia suscitado na sua reclamação contra a especificação e o questionário, e voltou a levantar na apelação, pugnou pela relevância para a decisão da causa dos factos constantes dos artigos 9º a 11º, 15º a 18º e 30º da contestação.
2. Entendeu-se no acórdão recorrido que a recorrente não tem razão quanto a esta questão, pois que, traduzindo a factualidade em causa (artigos 9º a 11º, 15º, a 18º e 30º da contestação) matéria de impugnação, tornava-se desnecessária a sua inclusão na condensação fáctica.
3. Todavia, a matéria de facto em análise é de excepção e não de impugnação, conforme, de resto, também nisso convém a recorrida (vide artºs. 1º e 20º da réplica).
4. Com efeito, assenta o pedido da recorrida no facto de, ao abrigo do contratado com a recorrente, lhe ter confiado 220 cartões de mercadorias para que esta efectuasse a necessária actividade transitária para que as mercadorias chegassem a Londres.
5. A recorrente, reconhecendo embora que a recorrida a contratou para fazer expedir para Londres 220 cartões de mercadoria, alegou que a recorrida a veio a autorizar a fazer-se substituir pela chamada "D, Ltd" (artºs. 9º e 30º da contestação), a quem ficaram cometidas quer a execução das operações locais em Inglaterra, quer a entrega das mercadorias ao destinatário (artº. 11º da contestação), e que transmitiu à chamada todas as instruções que recebera da recorrida, concretamente que as mercadorias só podiam ser entregues contra a apresentação dos documentos consignados ao banco (artºs. 15º e 16º da contestação).
6. É inequívoco, assim, que a recorrente se defendeu por excepção.
7. Por conseguinte, ao contrário do que entendeu o acórdão em crise, não obstante a recorrida lograr provar os factos alegados nos artigos 5º e 6º da petição inicial, a acção não deve proceder ipso facto. É que a recorrente também logrou provar factos que ou impedem ou modificam o efeito jurídico dos factos articulados pela recorrida.
8. Na verdade, ao abrigo dos nºs. 1, 1ª parte, e 3 do artº. 264º do Código Civil, aplicável in casu por via dos artºs. 1165º e 1156º do mesmo código, o procurador pode fazer-se substituir por outrem se o representado o permitir, e, sendo autorizada a substituição, o procurador só é responsável para com o representado se tiver agido com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que lhe deu.
9. Ora, provada que está a autorização da substituição da recorrente pela chamada, conforme aliás a própria recorrida reconhece em 10º da réplica, a recorrente só responderia perante a recorrida se tivesse agido com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que lhe deu.
10. Porém, a recorrida não alegou, nem obviamente logrou provar, qualquer uma destas circunstâncias de facto, ou seja, nem alegou que a recorrente escolheu mal a substituta nem alegou que esta agiu deficientemente nas instruções que deu ou transmitiu à chamada.
11. Ao invés, a recorrente, embora não fosse seu o ónus da prova, alegou (artº. 18º da contestação) que a chamada é uma empresa transitária prestigiada, idónea, diligente e competente, sendo uma das maiores e melhores empresas europeias do ramo, e este facto jamais foi contraditado ou posto em causa pela recorrida, pelo que é incontroverso.
12. Por isso, os factos constantes dos artºs. 9º a 11º, 15º a 18º e 30º da contestação são da maior relevância para a boa decisão da causa.
13. Factos estes que, por não terem sido impugnados na réplica, se têm de ter por admitidos por acordo das partes, e, como tal devem ser incluídos na especificação.
14. É que a defesa da recorrida na sua réplica não neutraliza nem impugna a factualidade alegada pela recorrente na contestação. Com efeito, esta alega que se fez substituir por terceiro e que a recorrida a autorizou a tal. A recorrida, por sua vez, vem dizer que a recorrente é responsável pelos actos dos auxiliares que tenha utilizado na prestação dos serviços contratados.
15. Ora, é manifesto que a recorrida labora numa confusão de conceitos e realidades.
16. Na verdade, a utilização de auxiliares está disciplinada no nº. 4 do artº. 264º do CC, já referido, nos termos seguintes: "o procurador pode servir-se de auxiliares na execução do mandato". Esta possibilidade é extensível quer ao mandato quer à prestação de serviços. E, nos termos do artº. 800º do CC o devedor é responsável perante o credor pelos actos das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação.
17. Poderia parecer à primeira leitura que a situação sub judice se encaixa neste enquadramento; não é, porém, assim, sendo as diferenças de relevo.
18. Com efeito, enquanto na situação de utilização de auxiliares o devedor continua a ser o obrigado perante o credor pelo cumprimento da obrigação, no caso da substituição autorizada pelo credor o obrigado inicial sai da relação jurídica e faz nela ingressar, em sua substituição, outra pessoa, que passa a ser o único responsável perante o credor. Neste último caso, o devedor originário só responde perante o credor pela (má) escolha do substituto ou pelas deficientes instruções que lhe deu.
19. Pelo exposto, é indubitável que a recorrente tendo sido autorizada pela recorrida a fazer-se substituir pela chamada já não responde perante esta, ou melhor, apenas responderia se tivesse agido com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que lhe deu. Mas, a este propósito, a recorrida nada alegou, nem, obviamente, provou.
20. A presente demanda enquanto actuação de uma responsabilização directa da recorrente perante a recorrida tem, assim, de improceder.

No acórdão impugnado foram tidos como assentes os factos seguintes:
i) - a autora dedica-se à produção e comercialização de confecções e têxteis;
ii) - a demandada é uma empresa - agente transitário;
iii) - no exercício normal da sua actividade, a autora, em Outubro de 1989, vendeu à sua cliente "C, Ltd", com sede na Inglaterra, uma quantidade de confecções que expediu em duas partidas, uma de 100 cartões e outra de 120 cartões, pelo preço, respectivamente, de 11.250 e 14.400 libras esterlinas, no valor global de 25.650 libras inglesas;
iv) - foi acordado que a "C, Ltd" pagaria a mercadoria contra a apresentação de documentos (CAD), que foi consignada ao "... Banking Corporation", na sua filial de Londres;
v) - em 11 de Outubro de 1989, estando a mercadoria pronta, a autora mandatou a demandada para que efectuasse a necessária actividade transitária para que ela chegasse a Londres, conforme acordado, tendo a autora fornecido à demandada as devidas instruções;
vi) - assim, naquela data, a autora entregou à demandada os referidos 120 cartões da aludida mercadoria, devidamente despachados na Alfândega do Porto, para seguirem, via Camião TIR, para Inglaterra, onde foram desembarcados no porto de Poole, tendo a demandada emitido, em 13/10/89, os dois originais dos respectivos certificados de transporte do transitário (FCT) nºs. 2.405 e 2.404, que se consignavam ao respectivo Banco em Londres encarregado do recebimento do respectivo contravalor em libras inglesas e sem o qual não era possível o levantamento da mercadoria;
vii) - a ré, através do seu agente em Inglaterra, entregou à "C, Ltd" a mercadoria livre, sem que estivesse paga, conforme cláusula "CAD", no "... Banking Co.", que, não sendo procurado em tempo, devolveu os aludidos FCT ao "Banco ...", incumbido pela autora de levar a efeito a operação de recebimento e cambial;
viii) - a "C, Ltd", de posse da mercadoria, jamais a pagou, sofrendo, assim, a autora um prejuízo equivalente ao valor da mercadoria, ou seja, 25.650 libras esterlinas;
ix) - a autora seria paga, se tudo corresse normalmente, na data da recepção da mercadoria em Londres, o que ocorreu dentro dos dez dias seguintes à expedição, ou seja, até 23/10/89.

Impetra, essencialmente, a recorrente que, por constituírem matéria de excepção e não haverem sido impugnados pela autora na réplica, deviam ter ficado a constar da especificação, como aliás na altura própria propugnou, os factos por si alegados nos artºs. 9º a 11º, 15º a 18º e 30º da contestação.
Como é sabido, no momento em que exara o despacho saneador, "se o processo houver de prosseguir, e a acção tiver sido contestada, o juiz ... seleccionará entre os factos articulados os que interessam à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, especificando os que julgue assentes por virtude de confissão, acordo das partes ou prova documental..." (artº. 511º, nº. 1, do C.Proc.Civil) (1).
Em todo o caso, e não obstante o mencionado comando, mais tarde, e na fundamentação da sentença "o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo (ainda que não tenham sido especificados (2), provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados ..." (artº. 659º, nº. 3, do mesmo diploma).
Por isso se entendeu no Assento STJ nº 14/94, de 26 de Maio de 1994 (3), que "a especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio".
Entendimento que, em derradeira análise, conduz a que, ainda no âmbito deste recurso, a entender-se que os factos alegados e não especificados relevam para o conhecimento da questão de direito, possa ser atendida a pretensão da recorrente, por forma a ordenar-se a ampliação da matéria de facto, situação que se enquadra nos poderes do Supremo, por força do preceituado nos artºs. 729º, nº. 3 e 730º, nº. 1.

Enunciaremos, pois, os factos indicados pela recorrente e, sobre eles, seguidamente nos pronunciaremos para decidir se, face ao regime jurídico aplicável, se torna ou não necessário tê-los em conta, em função da sua relevância para a constituição e base suficiente da decisão do direito:
Artºs. 9º, 10º, 11º e 30º da contestação: "A ré teve necessidade, de resto com o conhecimento e autorização da autora, de se fazer substituir por terceiro, exactamente a chamada "D, Ltd", a quem ficaram cometidas quer a realização de todas as indispensáveis operações locais, v. g. a recepção das mercadorias, o desembaraço aduaneiro, a notificação do consignatário, etc., quer ainda a efectivação da própria entrega das mercadorias ao destinatário/importador".
Artºs. 15º, 16º e 17º da contestação: "A ré forneceu à "D, Ltd" todas as instruções e directivas emanadas da autora e, concretamente, deu pleno conhecimento à "D, Ltd" da cláusula CAD, ou seja, transmitiu-lhe instruções para entregar as mercadorias apenas contra os documentos consignados ao banco, cláusula que, aliás, consta quer das facturas emitidas pela autora quer dos FCT emitidos pela "B, Lda." quer, ainda, da lista de embarque entregue pela "B, Lda." à "D, Ltd"".
Art. 18º da contestação: "A "D, Ltd" é uma empresa transitária prestigiada, idónea, diligente e competente, o que a torna uma das melhores e maiores empresas europeias do ramo".
Importa definir, antes de tudo, o regime jurídico que subjaz à situação traduzida na acção, sem esquecer que essa definição há-de ser feita em conformidade com o modo como a autora apresentou e fundamentou a petição inicial, o que passa pela qualificação do contrato celebrado entre as partes (autora e ré).

Consta dos autos que, em 11 de Outubro de 1989, estando a mercadoria pronta, a autora mandatou a demandada para que efectuasse a necessária actividade transitária para que ela chegasse a Londres, conforme acordado, tendo a autora fornecido à demandada as devidas instruções; e assim, naquela data, a autora entregou à demandada os referidos 120 cartões da aludida mercadoria, devidamente despachados na Alfândega do Porto, para seguirem, via Camião TIR, para Inglaterra, onde foram desembarcados no porto de Poole, tendo a demandada emitido, em 13/10/89, os dois originais dos respectivos certificados de transporte do transitário (FCT) nºs. 2.405 e 2.404, que se consignavam ao respectivo Banco em Londres encarregado do recebimento do respectivo contravalor em libras inglesas e sem o qual não era possível o levantamento da mercadoria.
Temos, portanto, neste contrato, de um lado a autora, que pretendia ver as suas mercadorias conduzidas do Porto para Londres, e do outro a ré, que se vinculou a expedir e deslocar essas mercadorias, bem como a entregá-las ao destinatário, após o cumprimento das formalidades atinentes à inclusão da cláusula CAD (cash against documents, cujo significado contratual é o de que o comprador só pode receber a mercadoria depois de comprovado o pagamento do preço facturado).
Ora, o negócio assim configurado não pode deixar de ser qualificado como um contrato de transporte.
Com efeito, embora não esteja legalmente definido, pode entender-se o contrato de transporte como "o que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas cousas de um lugar para outro e aquele que, por um determinado preço, se encarrega dessa condução" (4).
Ou a "convenção pela qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de pessoas ou coisas de uma para outra localidade" (5).
O contrato de transporte integra, assim, por norma, três entidades: aquele que pretende ver as coisas transportadas (expedidor); o que se encarrega de fazer o transporte, isto é a mudança das mercadorias de um lugar para outro (transportador) e aquele a quem as mercadorias são consignadas (destinatário).
Sendo que, atenta a sua natureza continuada, ele se inicia no momento em que o transportador toma conta das mercadorias e só termina no momento em que as entrega ao destinatário.
E, apesar de as actividades de transitário (prestação de serviços a terceiro, no âmbito da planificação, controlo, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias) e de transportador (realização das operações necessárias para transferir uma coisa de um local para outro) serem diferenciadas, nada impede que o primeiro actue também como transportador (6).

Com efeito, é situação que, usualmente, ocorre no nosso circuito comercial e que, efectivamente, in casu aconteceu também: a autora encarregou a ré de efectuar a necessária actividade para que a mercadoria chegasse a Londres, forneceu-lhe as devidas instruções (concretamente estipulando a cláusula CAD, que a ré aceitou), entregou-lhe 120 cartões, devidamente despachados na Alfândega do Porto, para seguirem, via Camião TIR, para Inglaterra, tendo, na sequência, a ré emitido os originais dos respectivos certificados de transporte do transitário (FCT).
Ademais, o Dec.lei nº. 43/83, de 25 de Janeiro (7), ao determinar no artº. 1º, que "são consideradas empresas transitárias as sociedades comerciais que, tendo por objecto a prestação de serviços a terceiros, no âmbito da planificação, controle, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias, obedeçam aos requisitos estabelecidos no presente diploma e nas suas disposições regulamentares", não veda às chamadas empresas transitárias a celebração e execução de contratos de transporte, que podem livremente celebrar, executando-os directamente ou com o recurso a terceiros - artº. 367º do C. Comercial (8).
De resto, nos precisos termos em que a doutrina e a jurisprudência, perante a omissão a este respeito do Código Comercial, têm progressivamente aperfeiçoado o conceito de contrato de transporte, que na sua modalidade de transporte internacional de mercadorias, por estrada, vem definido como a convenção, consensual, através da qual uma pessoa se obriga perante outra a realizar, mediante um preço, denominado frete, por si ou por terceiros, a deslocação de uma determinada mercadoria, desde um ponto de partida num dado país até um outro ponto ou destino situado num outro país" (9).
Assim, temos como certo que a recorrente, transportadora, assumiu a obrigação de proceder à deslocação das mercadorias da autora, bem como de as entregar ao destinatário nos termos convencionados. Obrigação esta que não é descaracterizada pela cláusula CAD convencionada, porquanto esta cláusula, inserível no conteúdo do próprio contrato de transporte, se refere a uma prestação acessória do transportador, não o transformando em contrato misto de transporte e de mandato, de modo que à violação da mesma sejam de aplicar as regras deste último (10).
Consequentemente, quando o transportador recorre a terceiro para cumprir as obrigações advindas do contrato celebrado, ou o faz no âmbito da celebração de um subcontrato - "negócio jurídico bilateral, pelo qual um dos sujeitos, parte em outro contrato, sem deste se desvincular e com base na posição jurídica que daí lhe advém, estipula com terceiro, quer a utilização, total ou parcial, de vantagens de que é titular, quer a execução, total ou parcial, de prestações a que está adstrito" (11) - ou, de outro modo, sem cobertura contratual, serve-se de quaisquer pessoas ou entidades que o auxiliem no cumprimento dessas obrigações (artº. 800º, nº. 1, do C.Civil).
Em qualquer dos casos o transportador continua obrigado ao cumprimento, pois, tanto numa como noutra das situações, é ele o sujeito da relação contratual de transporte que estabeleceu com o expedidor (12).

Na verdade, por um lado, como se sabe, o subcontrato, ainda que legal ou convencionalmente permitido - cabendo aqui referir que o contrato de transporte não é celebrado intuitu personae, admitindo o subtransporte que integrará, por sua vez, a figura e o regime jurídico do subcontrato (13) - não afasta a obrigação do cumprimento do contraente inicial. Por outro lado, a norma do artº. 800º, nº. 1, do C.Civil é clara no sentido de que aquele que recorre a terceiros auxiliares para cumprir as suas obrigações responde pelos actos deles como se fossem por si praticados.
E isto apesar de no nº. 1 do artº. 26º das "Condições Gerais de Prestação de Serviços pelo Transitário", aprovadas pela APAT em 1985, constar que "fica expressamente estipulado que o Transitário não é responsável perante o cliente ou qualquer outra entidade, por todo e qualquer acto ilícito de agente ou correspondente seu, ou pela inobservância das instruções constantes dos documentos por si emitidos e referentes às mercadorias àqueles consignadas, quer seja o do local do destino da coisa ou mercadoria objecto do transporte, quer seja o de qualquer outro local onde haja transbordo, armazenagem ou outra operação".
Com efeito, em primeiro lugar, cremos inaceitável a aplicação desta doutrina nas situações, como a presente, em que o transitário é simultaneamente transportador.
Depois, ainda que tal se não entendesse, então aquelas "Condições Gerais" teriam o valor de cláusulas contratuais gerais - em contrato de adesão, já que o outro contraente se limitara a aceitá-las pela simples celebração do negócio jurídico. E, nessa medida, a cláusula do artº. 26º, nº. 1 teria que ser considerada proibida por contrária à boa fé, ao atentarmos especificamente na confiança suscitada na outra parte pelo processo de formação do contrato e no objectivo que os contraentes visaram atingir negocialmente a quando do contrato celebrado (cfr. artºs. 16º e 17º do Dec.lei nº 446/85, de 25 de Outubro).
Aliás, aquela cláusula iria sempre traduzir-se, à face do direito concedido ao credor em caso de incumprimento contratual, numa cláusula de irresponsabilidade proibida pelo nosso direito, não apenas por aplicação do princípio da boa fé (artº. 762º, nº. 2, do C.Civil), mas ainda expressamente pelo artº. 809º do C.Civil.

Doutro passo, nos termos do artº. 5º do Dec.lei n. 446/85 a integração de cláusulas gerais no contrato está sempre dependente da comunicação ao aderente, comunicação que terá que ser integral e adequada, conducente a um conhecimento completo e efectivo de tais cláusulas, cabendo ao ofertante o ónus da prova da comunicação. Daí que a simples publicação no Diário da República, das "Condições Gerais de Prestação de Serviço pelo Transitário" não satisfaça os requisitos legais atrás enunciados, bem como o facto de a ré ter feito constar no verso do contrato aquelas cláusulas gerais, porque não fez a prova de que a autora havia tido conhecimento delas (14).

Por último, se aceitássemos a singela interpretação de que o transitário sempre e apenas desenvolve actividades de mera planificação e coordenação, funcionando como simples mandatário do expedidor - como aliás parece resultar das Condições Gerais da APAT, manifestamente inoponíveis aos terceiros contraentes - teríamos que admitir como consagrada no nosso direito uma actividade económica claramente parasitária, no exercício da qual as empresas receberiam sempre o preço correspondente à actividade desenvolvida e nunca seriam responsabilizadas pelos eventuais prejuízos decorrentes dessa actividade, desde que a não efectuassem directamente por si próprias, situação claramente violadora dos princípios constitucionais que disciplinam a organização económica nacional (artºs. 80º e 81º da Constituição).
Resulta, assim, claro que à recorrente, na medida em que não cumpriu a cláusula CAD estipulada (não obstante esse incumprimento se ter ficado a dever à actuação de um terceiro a que recorreu), é imputável o incumprimento do contrato que celebrou com a recorrida, daí advindo a legal consequência de ter que a indemnizar pelos prejuízos sofridos (artº. 798º do C.Civil) (15).
Não podendo, como a recorrente pretende, enquadrar-se a situação no âmbito da representação voluntária (artºs. 262º a 269º, maxime 264º do C.Civil).
Com efeito, e como se alcança do anteriormente exposto, na economia do contrato celebrado entre a recorrida e a recorrente, esta última surge como sujeito do contrato de transporte acordado, não sendo, de modo algum, simples mandatária ou representante daquela.
Donde, o recurso aos serviços da "D, Ltd" nunca poderá ser qualificado como acto de substituição de procurador (que a recorrente não era), mas antes e tão só como utilização de um terceiro para cumprimento da sua obrigação de entrega das mercadorias against documents, situação insusceptível de alterar a sua responsabilidade contratual (artº. 800º, nº. 1, do C.Civil).
Aliás, como bem se refere no acórdão recorrido, esta situação jurídica foi correctamente compreendida pela recorrente desde o início, designadamente quando, configurando a existência de um seu direito de regresso contra aquela "D, Ltd", deduziu o incidente de chamamento à autoria desta.
É que "o incidente do chamamento à autoria, diferentemente do que acontece com o do chamamento à demanda, não existe, em princípio, para, em vez do réu ou com o réu, se proferir uma decisão contra o chamado, mas tão só para lhe impor o efeito de caso julgado da sentença a proferir na acção"(16).
Se, como agora sustenta, tivesse entendido que a responsabilidade directa pelo incumprimento seria da mencionada "D, Ltd", não teria qualquer direito de regresso contra ela, pelo que não deveria tê-la chamado à autoria (quando muito e se desejasse afastar a sua responsabilidade através da imputação àquela da responsabilidade pelo incumprimento do contrato, ter-se-ia defendido na acção com a excepção de não cumprimento devido a facto de terceiro, ou teria deduzido o incidente de intervenção principal provocada).

Desta forma, manifestamente os factos alegados na contestação (designadamente no que respeita ao conhecimento e autorização da autora do recurso à "D, Ltd", a quem foram cometidas quer a realização de todas as indispensáveis operações locais, quer ainda a efectivação da própria entrega das mercadorias ao destinatário/importador", às instruções e directivas emanadas da autora que terá transmitido àquela "D, Ltd", em especial no que toca à existência da cláusula CAD, bem como à invocação de que a "D, Ltd" é uma empresa transitária prestigiada, idónea, diligente e competente, o que a torna uma das melhores e maiores empresas europeias do ramo) não têm qualquer relevância para a decisão de direito e da causa.
Por isso, bem agiram as instâncias quando entenderam que tais factos não teriam que ser especificados ou tidos em consideração na fixação da matéria de facto.
Não havendo, em consequência, qualquer necessidade de ampliação da matéria de facto assente, improcede a pretensão da recorrente.

Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré "B, Lda.";
b) - confirmar o acórdão recorrido;
c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 8 de Julho de 2003
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
___________________
(1) Ao presente caso aplicam-se as normas do C.Proc.Civil, na redacção anterior à Reforma de 1995, já que a acção foi intentada em 31/01/90.
(2) Ac. STJ de 18/03/75, in BMJ nº. 245, pág. 477 (relator Almeida Borges).
(3) In DR IS-A, de 4 de Outubro de 1994 (hoje com a natureza de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência).
(4) Cunha Gonçalves, in "Comentário ao Código Comercial Português", vol. II, Coimbra, 1931, pág. 394.
(5) Ac. STJ de 28/01/97, no Proc. 87866 da 1ª secção (relator Silva Paixão).
(6) Acs. STJ de 19/11/96, no Proc. 300/96 da 1ª secção (relator Ramiro Vidigal); e de 11/10/2001, no Proc. 2088/01 da 1ª secção (relator Reis Figueira); Ac. RP de 17/06/97, no Proc. 595/96 da 3ª secção (relator Alberto Sobrinho).
(7) Diploma regulador do "Acesso à Actividade de Agente Transitário", actualmente revogado pelo Dec.lei nº. 255/99, de 7 de Julho, cujo artº. 1º, nº. 2, determina que "a actividade transitária consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção: a) gestão de fluxos de bens ou mercadorias; b) mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte; c) execução dos trâmites ou formalidades legalmente exigidos, inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal".
(8) Acs. STJ de 20/05/97, in CJSTJ Ano V, 2, pág. 84 (relator Silva Paixão); e de 11/03/99, no Proc. 797/98 da 1ª secção (relator Machado Soares).
(9) Acs. STJ de 14/01/93, in CJSTJ Ano I, 1, pág. 48 (relator José de Magalhães); de 17/11/94, in BMJ nº. 441, pág. 333 (relator Sousa Inês); de 06/03/97, in CJSTJ Ano V, 1, pág. 135 (relator Almeida e Silva); e de 20/05/97, in CJSTJ Ano V, 2, pág. 84 (relator Silva Paixão).
(10) Ac. RP de 07/06/90, in CJ Ano XV, 3, pág. 218 (relator Carlos Matias).
(11) Pedro Romano Martinez, in "O Subcontrato", Coimbra, 1989, pág. 188.
(12) Acs. STJ de 10/02/98, no Proc. 764/98 da 2ª secção (relator Costa Soares); e de 28/05/98, no Proc. 418/98, no Proc. 418/98 da 2ª secção (relator Nascimento Costa).
(13) Ac. RP de 23/10/84, in CJ Ano XIX, 4, pág. 232 (relator Pinto Furtado).
(14) Ac. STJ de 02/07/91, no Proc. 80715 da 1ª secção (relator Cura Mariano).
(15) Ac. STJ de 29/10/96, no Proc. 333/96 da 1ª secção (relator Aragão Seia).
(16) Citado Ac. STJ de 14/01/93; Ac. STJ de 19/03/80, in BMJ nº 295, pág. 315 (relator Ferreira da Costa); Ac. RP de 18/04/96, no Proc. 705/95 da 3ª secção (relator Oliveira Barros).