Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B1978
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: CONDOMÍNIO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
INOVAÇÃO
Nº do Documento: SJ200507120019787
Data do Acordão: 07/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 2747/04
Data: 12/14/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. Não é permitida a construção de uma marquise de alumínio ocupando a quarta parte de uma varanda exterior do prédio, contra a vontade dos condóminos que, em assembleia geral e por maioria qualificada, deliberaram validamente não autorizar a construção, que lesa o arranjo estético e arquitectónico do conjunto do prédio em que todos habitam.
2. A sentença que chega ao resultado conclusivo e afirmativo desta lesão, por inspecção judicial ao local, não pode considerar-se que respondeu ao que não devia, ainda que esta conclusão possa reportar-se a um quesito em que se perguntava "se a construção da marquise destoava das restantes fracções do prédio", e, como tal, haver-se, por não escritas, quer a pergunta, quer a conclusão judicativa correspondente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


O Administrador de certo condomínio instaurou acção condenatória, com processo ordinário, na Vara Mista e Juízos Criminais de Coimbra, contra a condómina, A, destinada a demolir uma marquise que "construíra na sua varanda, indevidamente e sem autorização, constituindo um prejuízo para a linha arquitectónica do edifício, uma vez que destoa absolutamente, e se destaca, das restantes fracções".

2. Foi proferida sentença, em 05/03/04, julgando a acção procedente, sentença que a Relação revogou, por considerar que não havia prova da alteração da linha arquitectónica da fachada do prédio, com a instalação da marquise. (Fls. 97).
Para ordenação lógica do discurso, e para melhor se compreender, e enquadrar, o objecto do pedido de revista (parte 4, infra), antecipemos o segmento nuclear da decisão recorrida que é posto exactamente em causa, através do recurso:

3. A decisão recorrida, ao fundamentar a improcedência da acção, acentua que, «não há sequer, no processo, uma fotografia; não há acesso à linha arquitectónica do prédio (fls.96); se sabe qual o piso em que se situa o andar, em que fachada, qual o estilo, o grau de conservação ou de deterioração do edifício, bem como a qualificação ou graduação da visibilidade exterior da obra, ou se há situações similares que mitiguem o alegado ilícito» (fls.97).
Depois, salienta que todo o mal se radica no 1º quesito, porque este, «recaindo sobre puros juízos de valor de natureza evidentemente conclusiva, leva a uma resposta que se tem de haver como não escrita, pese embora o esforço desenvolvido pelo julgador, usando de pronúncia intencionalmente explicativa, mas que não pode deixar de ser considerada, no seu domínio, como excessiva, por representar a introdução, nos autos, de dados de facto nem sequer alegados pela parte onerada com a respectiva prova».
E conclui:
Por um lado: «que a resposta em causa, ultrapassou visivelmente, os limites da pergunta, por mencionar factos não contidos na economia do texto daquela pergunta, devendo ter-se essa resposta, por não escrita, ao abrigo da disciplina consagrada no n.º 4 do art. 646.° do C.P.C.».
Por outro: «que resulta poder extrair-se, o incontornável insucesso da deduzida pretensão, por manifesta carência de alegação factual, comprometendo, de todo, a demonstração de alteração substancial da estrutura externa do prédio e, com isso, a verificação da imputada ofensa ao preceituado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea a), do Código Civil».

4. É esta tese que o pedido de revista põe em causa.
E põe em causa, dizendo o recorrente, o seguinte (por transcrição):
A - A decisão dos M. Juízes a quo não merece qualquer reparo, uma vez que conhece do mérito da causa com base na análise objectiva do prédio em questão e a marquise em causa nos autos, uma vez que a audiência de discussão e julgamento se realizou no local;
B - A resposta dada pelo Tribunal a quo ao quesito 1º não extravasa os limites dos poderes de cognição do juiz, atento o disposto no artigo 661º do CPC;
C - A R., recorrente, não invocou a insuficiência da matéria de facto alegada pelo A., apesar de lhe ter sido facultada a possibilidade de contraditório ao longo da marcha do processo, nomeadamente quando lhe foi notificada a resposta aos quesitos;
D - Se alguma excepção houvesse de ser arguida, deveria tê-lo sido oportunamente, em sede de contestação ou reclamação da especificação;
E - Mesmo que assim, não se considere, a consequência jurídica do conhecimento de matéria de que o tribunal não devesse conhecer é a da nulidade da sentença e não a da improcedência da acção, como decidido no douto Acórdão recorrido;
F - Assim, desatende o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, disposições legais contidas nos artigos 265.º, 508°, n. 3, 660, n.º2, 668º, n.º1 alínea d), do Código de Processo Civil.

5. Analisemos a questão colocada, nos termos que acabam de expor-se:
No quesito 1º aludido, que traduz o suporte projectivo do artigo 4º da petição do autor - matéria que releva decisivamente do acórdão recorrido, cuja parte aqui útil, se resumiu no ponto 3 - perguntava-se, se a construção da marquise destoa das restantes fracções?
E respondeu-se (fls.57):
«Provado que a marquise construída pela ré ocupa ¼ do espaço disponível da varanda, no canto lateral direito, em relação à fachada principal do edifício, e está executada em alumínio de cor castanha, com vidros transparentes, sendo as fachadas do edifício construídas em alvenaria, rebocadas a massa de areia e pintadas de cor castanha e umas incrustações em betão armado também pintadas em cor castanha».
Ao segundo quesito, sobre a situação da marquise, respondeu-se que ela «se situa na fachada lateral direita do edifício, relativamente à fachada principal, e que a ré sendo delegada de informação médica, não dispondo de espaço disponível, para o efeito no interior da fracção, utiliza a marquise para guardar os brindes para oferta aos médicos».
Esta factualidade foi colhida directamente no local, pelo tribunal, a quando da realização da audiência de julgamento (respostas e motivação de fls. 59 e 59 verso).

5.1. Factualidade a que acresce a seguinte, definitivamente fixada pelo colectivo:
- O Autor é administrador do condomínio da prédio da urbanização do Loreto, Lisboa, em Coimbra, eleito em assembleia geral de condóminos;
- A R. é dona e legítima possuidora da fracção "AR" do referido prédio, tendo construído uma marquise nessa fracção, fechando a respectiva varanda, na parte correspondente à marquise.
- A R. não solicitou autorização para a construção da marquise;
- O fecho da varanda da R. foi solicitado por um dos condóminos, e, em consequência da solicitação, reuniu a assembleia geral de condóminos, em 8 de Janeiro de 2000, tendo sido regularmente deliberado no sentido de não autorizar o fechamento da varanda em causa, nas condições em que se fez a obra.
- A marquise construída pela R. ocupa ¼ do espaço disponível da varanda, no canto lateral direito, em relação à fachada principal do edifício, e está executada em alumínio de cor castanha, com vidros transparentes, sendo as fachadas do edifício construídas em alvenaria, rebocadas a massa de areia e pintadas com a cor beije, e apresentando as varandas grades em metal pintadas de cor castanha e umas incrustações em betão armado também pintadas em cor castanha;
- A marquise é constituída por uma estrutura metálica, amovível, retirável a todo o tempo;
- A R., sendo delegada de informação médica e não dispondo de espaço disponível para o efeito no interior da fracção, utiliza a marquise para guardar os brindes para oferta aos médicos;

6. A sentença da primeira instância diz (fls. 64/65) que "...a construção dessa marquise constitui um prejuízo para a linha arquitectónica do edifício em que a referida fracção se encontra, uma vez que destoa absolutamente, e se destaca, das restantes fracções ".
Quando a decisão recorrida sublinha que a pergunta (quesito 1º) envolve um juízo de valor conclusivo (se a varanda destoa das demais fracções...?), e a correspondente resposta se deve ter como não escrita (ver ponto 5 anterior), arrisca ela própria uma conclusão que não é liquida.
Destoar da linha arquitectónica, pode envolver um juízo valorativo, mas não pode deixar de passar por uma verificação de facto (um juízo ôntico, ou do ser), que, no caso, foi feito pelo tribunal no local, que formou tal convicção, inspeccionando. (Artigos 390 e 391 do Código Civil).
Pode não haver na pergunta e na parte correspondente da sentença os elementos de facto em estado puro.
Mas há situações-limite, que são correntes nos juízos decisórios em que a fronteira entre a afirmação do facto ou do acontecimento (humano ou natural) e a avaliação sobre a sua própria existência ou afirmação, se confundem em linguagem coloquial, quando se quer representar uma realidade, em que é extremamente difícil, saber onde acaba a ontologia (o ser) e começa a deontologia (o valor). É inelutável!
O momento da racionalidade integrante do discurso lógico/dedutivo, próprio do método do Direito, não pode descartar esta "ponderação mista", e validar, legitimando, referenciais de factos menos puros, através da dimensão valorativa que coloquialmente exprimem, com inevitável recurso a padrões normais de linguagem corrente.
Expressão esta que, não deixa de ter no seu lastro o sentido e a medida ôntica de partida, que a razão julgadora apreende e projecta em palavras correspondentes.
Aplicando esta racionalidade ao caso, significa que, perguntar se determinada coisa "destoa" (sai fora do tom), das coisas que lhe estão à volta, e responder « que a marquise construída pela ré ocupa ¼ do espaço disponível da varanda, no canto lateral direito, em relação à fachada principal do edifício, e está executada em alumínio de cor castanha, com vidros transparentes, sendo as fachadas do edifício construídas em alvenaria, rebocadas a massa de areia e pintadas de cor castanha e umas incrustações em betão armado também pintadas em cor castanha» - aplicar esta racionalidade ao caso - dizíamos acima- é, a nosso ver, e com o devido respeito pela tese contrária da Relação - aceitar a admissibilidade do exercício feito pela sentença, quando diz, de forma conclusiva, própria do juízo judicativo, que "...a construção dessa marquise constitui um prejuízo para a linha arquitectónica do edifício em que a referida fracção se encontra, uma vez que destoa absolutamente, e se destaca, das restantes fracções ".
O que não deixa de ser um elemento de ponderação relevante para quem apreciou e julgou no local, e não pode ser censurado, enquanto o seu juízo de ciência, traduz a livre, consciente e prudente apreciação critica das percepções imediatas recolhidas da prova directa, segundo os artigos 653º-2, 655º-1 e 659º-3, devidamente coordenados, todos do Código de Processo Civil.
E repare-se com cuidado, que as respostas ao quesito 1º e ao quesito 2º, acima transcritas, revestem carácter essencialmente objectivo, ao contrário da apreciação geral que sobre elas faz a decisão recorrida, para sobre tal apreciação chegar à conclusão da improcedência do direito accionado por falta da sua prova.

7. Aprofundemos mais a questão sobre este aspecto da prova do direito accionado:
O artigo 1422º, n.º 2, dispõe:
«É especialmente vedado aos condóminos:" prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício».
E o n.º 3: «As obras que modifiquem a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício podem ser realizadas se para tanto se obtiver prévia autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio»
Ora, é inquestionável que se fez a prova de que, a marquise existe, não se conforma objectivamente ao arranjo externo das demais fracções do prédio, os condóminos em assembleia geral por maioria qualificada de 2/3, não querem aquele aspecto exterior para o prédio, que não está conforme aos demais. Não querem, nem autorizaram a modificação da varanda, ao abrigo da legitimidade material que lhes advém, entre outros, particularmente, dos artigos, 1420º, 1422º, n.ºs 1, 3 e 4; 1425º-1, do Código Civil. E, naturalmente, porque aí habitam, ou podem habitar, ou (e) porque, ainda, são donos das partes fraccionadas e condóminos do resto, desejando um aspecto descomprometido e bem arranjado para o que é de todos, ou de cada um que se possa reflectir no todo, sem quebra do equilíbrio visual exterior da unidade predial.
Bem se pode mesmo dizer que, se transigissem com a obra, abririam o precedente para os demais condóminos fazerem a mesma coisa, fechando as varandas, passando depois, a estender a roupa à janela, a pôr as gaiolas nas paredes... e por aí fora, até ao nível zero do arranjo estético exterior ou da linha arquitectónica do conjunto - o que seria lesivo dos interesses morais e materiais de quem queira habitar (senhorio ou inquilino), num prédio de andares, com aspecto geral decente e atractivo, como factor até de valorização do conjunto patrimonial!

8. As dúvidas postas pela decisão recorrida sobre a graduação, visibilidade exterior, situação rigorosa da marquise, etc., são, em tese, mera especulação, que nem sequer a defesa argui como factos objectivos, (eventuais excepções peremptórias), nem apresentou qualquer reclamação sobre insuficiência de matéria de facto a esse propósito, na altura própria, como observa o recorrente. [Conclusões C) e D)]. E com razão!
No processo - que é dispositivo - temos o que temos, e não aquilo que, porventura, poderíamos ter, segundo um princípio, que é imperativa, do artigo 264º do Código de Processo Civil, em especial o n.º 2.

9. Importa ainda fechar o exercício judicativo, com uma última reflexão.
Pode dizer-se que uma marquise amovível, de alumínio, ao canto da varanda lateral direita... não tem o significado lesivo do conjunto estético exterior e da linha arquitectónica do ângulo das prumadas, ou de outros ângulos, que se lhe pode objectivamente atribuir; ou ainda, não tem também o significado de que pode pôr em causa a qualidade da habitação, como valor constitucional (artigo 65º).
A observação carece de algum apuramento relevante do caso em mãos.
É o seguinte:
O direito a habitação condigna tem protecção constitucional, como tem protecção constitucional o direito a um urbanismo ordenado, mesmo sobre ao aspecto que vem posto em causa na acção (na apelação e na revista). Poderia até levantar-se uma colisão de valores ou direitos constitucionais em conflito.
Mas a hipótese também aqui, é académica.
Acontece que, no caso, o aproveitamento do espaço da varanda, transformada em pequena marquise, não se destinou a alargar o espaço habitacional, ligado a necessidades essenciais de habitação da recorrida.
Destinou-se, como ficou provado que, ela, «... sendo delegada de informação médica, não dispondo de espaço disponível, para o efeito no interior da fracção, utiliza a marquise para guardar os brindes para oferta aos médicos».
Mesmo que houvesse conflito, o valor de ordenação urbana, ainda que só relativo ao aspecto externo da fachada do prédio - contra a vontade dos restantes condóminos que também lá vivem e se batem pela qualidade estética e arquitectónica do local - seria prioritário, no cenário configurado por este processo.

10. Termos que, se dá provimento à revista, revogando-se a decisão recorrida, e confirmando-se a sentença de 1ª Instância.
Custas pela recorrida.

Lisboa 12 de Julho de 2005
Neves Ribeiro,
Araújo Barros,
Oliveira Barros.