Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A838
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: REGIME DE BENS DO CASAMENTO
BENS COMUNS
AQUISIÇÃO
Nº do Documento: SJ200504270008386
Data do Acordão: 04/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3208/04
Data: 10/11/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Bem comum do casal.
II - Intervenção só de um dos cônjuges como adquirente e como mutuário.
III - Contrato - promessa anterior ao casamento, sem eficácia real.
Adquirido um bem na constância de casamento cujo regime de bens era o da comunhão de adquiridos, mediante contrato de compra e venda em que apenas outorgou como comprador um dos cônjuges, que fora o único promitente comprador em contrato - promessa de compra e venda anterior ao casamento e único mutuário no contrato de mútuo concluído após o casamento com vista à obtenção de dinheiro para pagamento do preço desse bem, este torna-se bem comum do casal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 7/11/00, A instaurou contra B acção com processo ordinário, pedindo se declare que a fracção autónoma identificada pelas letras BT do prédio em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 01136/0404592 (freguesia de Leça da Palmeira), inscrito na matriz sob o art.º 4.451, é bem comum do casal constituído por ela autora e pelo réu, e se ordene a comunicação de tal àquela Conservatória, para que na inscrição da propriedade da dita fracção, constante da Cota G-2 - Ap. 32/170297, convertida em definitiva pelo Av. 01 - P. 44/020697, seja feito constar o registo da propriedade a favor de autora e réu, casados no regime da comunhão de adquiridos, uma vez que o réu comprou e registou tal fracção já depois de casado com ela autora mas intitulando-se falsamente como solteiro, pelo que a dita fracção ficou registada como seu bem próprio.
Em contestação, o réu impugnou, sustentou que a fracção em causa era bem próprio dele por só ele a ter prometido comprar antes da celebração do casamento, ter sido só a ele que, também antes do casamento, foi concedido o empréstimo destinado ao seu pagamento, e ser só ele que está a pagar as prestações destinadas a amortização do mesmo empréstimo; e, em reconvenção, pediu se declarasse que tal fracção era bem próprio dele.
Houve réplica, em que a autora rebateu a matéria da reconvenção.
Proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias, foi enumerada a matéria de facto desde logo considerada assente e elaborada a base instrutória.
Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento, no início da qual foi parcialmente deferida reclamação contra a base instrutória, apresentada pelo réu e a que a autora se opôs. Dadas respostas sobre os pontos da matéria de facto sujeita a instrução, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e a reconvenção procedente, declarando a dita fracção bem próprio do réu e absolvendo este do pedido da autora.
Esta apelou, tendo a Relação concedido provimento à apelação, revogado a sentença ali recorrida, e julgado a acção procedente e a reconvenção improcedente, desta absolvendo a autora, e, naquela, condenando o réu no pedido sem prejuízo de eventual compensação nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1726º do Cód. Civil, por acórdão de que vem interposta a presente revista, agora pelo réu, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - É bem próprio do cônjuge o bem por ele adquirido na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior (al. c) do n.º 1 do art.º 1722º do Cód. Civil);
2ª - A enumeração do n.º 2 do referido artigo não é taxativa;
3ª - A aquisição da fracção autónoma em questão pelo ora recorrente, já no estado de casado, resultou de direito próprio anterior decorrente do contrato promessa celebrado anteriormente ao casamento;
4ª - O pagamento do preço de tal aquisição foi feito integralmente pelo ora recorrente mediante dinheiro obtido por um contrato de mútuo em que apenas ele é mutuário e único responsável;
5ª - A autora em nada contribuiu para o pagamento de tal preço;
6ª - A matéria de facto provada impunha, como foi decidido na 1ª instância, a improcedência da acção e a procedência da reconvenção;
7ª - Assim não o tendo feito, o acórdão recorrido fez errada interpretação dos art.ºs 1690º, 1692º, al. a), 1722º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 1723º, n.º 1, al. c), todos do Cód. Civil.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a confirmação do decidido na 1ª instância.

Em contra alegações, a recorrida pugnou pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os como tais declarados no acórdão recorrido, para o qual nessa parte se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, uma vez que não há impugnação da matéria de facto nem fundamento para a sua alteração.
Em causa está apenas saber se, adquirido um bem na constância de matrimónio cujo regime de bens era o de comunhão de adquiridos, mediante contrato de compra e venda em que apenas outorgou como comprador um dos cônjuges, que fora o único cessionário da posição de promitente comprador em contrato promessa de compra e venda do mesmo bem celebrado antes do dito matrimónio e único mutuário do contrato de mútuo destinado à obtenção de dinheiro para pagamento do preço desse bem, este se torna bem comum do casal ou fica bem próprio do cônjuge que figurou como comprador.
A sentença da 1ª instância considerou que, apesar de a aquisição da fracção autónoma em causa ter ocorrido, por compra e venda, já depois da celebração do matrimónio, tal fracção se tornara bem próprio do réu, único outorgante como comprador, ao abrigo do disposto no art.º 1722º, n.º 1, al. c), do Cód. Civil, por este a ter adquirido por virtude de direito próprio anterior que lhe advinha do contrato promessa anteriormente celebrado e em que só ele, e não a autora, assumira a posição de promitente comprador.
Dispõe, com efeito, aquele normativo, que são considerados próprios dos cônjuges os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
Trata-se de uma expressão vaga, geradora de dúvidas, que terão de ser resolvidas com recurso ao disposto no n.º 2 do mesmo artigo, segundo o qual se consideram, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum, os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele, os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento, os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade, e os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.
Como não nos encontramos perante nenhuma destas quatro últimas hipóteses, resta saber se a hipótese dos autos se pode considerar integrada naquela al. c) na medida em que a expressão "entre outros", constante do cabeçalho do n.º 2, mostra que este número é meramente exemplificativo, admitindo outras situações, para além daquelas que expressamente concretiza, como constituindo aquisição de bens na constância do matrimónio por virtude de "direito próprio anterior".
Foi à luz da comparação da situação dos autos com as hipóteses concretamente referidas no apontado n.º 2, e tendo em conta a natureza meramente obrigacional do contrato - promessa, que o acórdão recorrido concluiu que a aquisição ora em causa feita pelo réu não o foi no exercício de direito próprio anterior ao casamento, para os efeitos daquela al. c).
E entende-se que bem.
Com efeito, dos termos daquele n.º 2 resulta que, para a situação em causa se encontrar abrangida no mesmo número, teria de comportar um direito próprio anterior do cônjuge que figure como adquirente, para este nascido em circunstâncias ou com natureza ou eficácia similares à de qualquer das hipóteses concretas previstas nesse número, cuja análise conduz ao entendimento de que o "direito próprio anterior" referido naquela alínea não pode ser senão um direito anterior sobre o próprio bem transmitido, um direito real, embora diferente do direito de propriedade, designadamente um direito real de aquisição, que origine a transmissão do direito de propriedade sobre esse mesmo bem para o cônjuge que figure como adquirente mas sem dependência de qualquer declaração de vontade, no sentido dessa transmissão para ele, pelo transmitente ou por quem legalmente o possa substituir.
Não é essa a situação dos autos, visto que o eventual direito próprio anterior, resultante do contrato promessa em que o réu, antes do casamento, assumiu sozinho a posição de promitente comprador da fracção que veio a adquirir apenas depois de celebrado o matrimónio, não incidia sobre a dita fracção, precisamente porque um contrato promessa, para mais, como é o caso, sem eficácia real, não é um contrato que origine direitos sobre bens, mas sobre cumprimento de prestações.
Na verdade, face aos termos do art.º 410º, n.º 1, do Cód. Civil, o contrato - promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato; e, se bem que lhe possa ser atribuída eficácia real, tal depende, nos termos do art.º 413º do mesmo Código, de declaração expressa das partes nesse sentido e de inscrição da promessa no registo. Portanto, um contrato - promessa de compra e venda de um imóvel sem eficácia real não origina qualquer direito sobre o imóvel a vender, mas apenas o direito de uma das partes ao cumprimento da prestação a que a outra se obrigou; ou seja, o promitente comprador não adquire, por via do contrato - promessa, um direito próprio sobre o bem a comprar, mas apenas o direito a que o promitente vendedor lho venda, mediante a respectiva declaração de vontade que pode nunca vir a ser proferida, ou por meio de execução específica que pode vir a ser impossível, não podendo em consequência o promitente adquirente invocar qualquer direito sobre o aludido imóvel.
Daí que, não invocando o ora recorrente, como base do direito anterior que se arroga, mais do que um contrato - promessa sem eficácia real, não resulte do disposto no art.º 1722º, citado, que a fracção em causa seja bem próprio dele.
E tal não resulta também do disposto no art.º 1723º do Cód. Civil, cuja al. c) seria susceptível de abranger a hipótese dos autos. Nela se dispõe que conservam a qualidade de bens próprios "os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges". O que significa desde logo que, para a fracção em causa, à luz deste dispositivo, poder ser considerada bem próprio do réu, teria de ter sido adquirida com dinheiro próprio dele, ou, pelo menos, face ao disposto no art.º 1726º, n.º 1, do mesmo Código, com dinheiro próprio dele na maior parte.
Mas não o foi.
Com efeito, a fracção foi paga pelo réu com dinheiro por ele obtido mediante mútuo bancário celebrado em 18 de Março de 1997, dinheiro esse que, como se vê do documento que titula o mútuo, a fls. 56 e segs., lhe foi creditado nessa mesma data; e essa data é a da própria escritura de compra e venda, não obstante lhe tivesse sido concedido um empréstimo intercalar, anterior ao casamento mas de montante nitidamente inferior ao empréstimo restante. Ou seja, não só a compra e venda, mas também o mútuo, tiveram lugar depois de celebrado o casamento, só depois deste tendo sido disponibilizada ao réu a maior parte da quantia mutuada.
Quer isto dizer que só quando o réu estava casado com a autora é que a quantia mutuada, na maior parte, lhe foi entregue, pelo que, à luz do disposto no art.º 1144º do Cód. Civil, só então ele se tornou proprietário dessa maior quantia ("as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega"), sem anterior direito a ela por só com a celebração do mútuo ficar com direito à respectiva entrega.
Nessas condições, sendo ele casado com a autora no regime da comunhão de adquiridos, visto que o casamento data de 2 de Fevereiro de 1997 e foi celebrado sem convenção antenupcial (art.º 1717º do Cód. Civil), o próprio dinheiro proveniente do mútuo tem de ser considerado na sua maior parte bem comum (art.º 1724º, al. b), do mesmo Código). Isto mesmo que fosse de admitir, com base no disposto no art.º 1692º, al. a), do Cód. Civil (o que aliás aqui é inviável por não se ter demonstrado falta de consentimento da autora, falta essa que nem sequer foi oportunamente invocada), não ser esta responsável perante o Banco mutuante, precisamente por não se tratar de uma situação que a lei qualifique como de excepção à comunhão, sempre independentemente de eventual compensação a que possa haver lugar. De todo o modo, não seria de admitir que o réu, preferindo responsabilizar-se sozinho perante a entidade mutuante e correr o risco de ter de ser ele apenas o obrigado à restituição, pudesse por essa forma retirar ao outro cônjuge a propriedade em comum do dinheiro mutuado. Seria, com efeito, uma grave e incompreensível contradição do legislador, permitir que um dos cônjuges retirasse, por essa via, por sua livre e exclusiva vontade, ao outro, um direito que ele próprio, legislador, quis conceder a este último, e possibilitar-lhe mesmo que a pouco e pouco lograsse na prática uma autêntica alteração do regime de bens do casamento contra o princípio da imutabilidade que ele legislador consagrou no art.º 1714º do Cód. Civil.
Donde que a fracção tenha sido adquirida pelo menos na maior parte com dinheiro comum do casal, pelo que também daquela al. c) do art.º 1723º e do n.º 1 do dito art.º 1726º não resulta que a fracção em causa seja bem próprio do réu. Diferente seria, ou poderia ser, a situação, se o réu já dispusesse da quantia necessária para pagar o preço da fracção, - ainda que por meio da concessão de mútuo -, antes da celebração do casamento, hipótese essa em que o preço da fracção teria sido pago com dinheiro próprio, e que é a prevista no acórdão deste S.T.J. de 14 de Dezembro de 1995, in Col. Jur. - Acs. do S.T.J., Ano III - 1995, Tomo III, pg. 168.
Portanto, face àquela al. b) do art.º 1724º, também a fracção em causa tem de ser qualificada como bem comum, o que impede se reconheça razão ao recorrente.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27 de Abril de 2005
Silva Salazar
Ponce de Leão
Afonso Correia.