Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B2337
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: DUARTE SOARES
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
DONO DA OBRA
EMPREITEIRO
COMISSÃO
DANO
TERCEIRO
Nº do Documento: SJ200609140023372
Data do Acordão: 09/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Na empreitada não existe comissão, pois a relação entre dono da obra e empreiteiro, por inexistir o elemento da subordinação, não envolve a responsabilidade solidária pelos danos ocorridos na execução da obra nos termos do disposto no art. 500.º, n.º 2, do CC.
II - Logo, o dono da obra não é um comitente do empreiteiro.
III - Porém, para avaliar do âmbito da responsabilidade dos intervenientes no contrato de empreitada, é necessário averiguar do rigoroso conteúdo deste negócio, pois a responsabilidade do dono da obra pode resultar dos específicos contornos da relação estabelecida com o empreiteiro, designadamente, do tipo de obra em questão, dos quais pode resultar, com ou sem responsabilidade concreta do empreiteiro, a ofensa de direitos de terceiros.
IV - Resultando dos factos provados, mormente do objecto do contrato, que da execução deste iriam necessariamente resultar prejuízos para terceiro, independentemente da verificação ou observância de especiais cuidados ou regras de prudência destinados a evitá-los ou até a minimizálos, forçoso é de concluir pela responsabilidade do dono da obra pelos danos causados a terceiros na execução dos trabalhos contratados. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Empresa-A instaurou acção ordinária contra Município de Vale de Cambra e Empresa-B pedindo a condenação dos RR a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de € 248.875 sendo € 243.887,52 a título de indemnização por danos patrimoniais e € 4987,98 como compensação por danos não patrimoniais.
Alega, para tanto e em síntese que, como titular do direito à exploração da água do Rio Caima e dona da Central ... do ..., construída para aproveitamento daquela água que explora desde Dezembro de 1989 e com direito a fazê-lo, na normalidade das previsíveis condições normais, durante 35 anos, sofreu prejuízos em valor equivalente ao montante reclamado, decorrentes da execução da empreitada celebrada entre as RR, sendo a primeira como dona da obra, com vista à construção do emissário final de S. Pedro de Castelões.
Contestaram os RR excepcionando ambos a prescrição do invocado direito da A por terem decorrido mais de três anos após a ocorrência dos danos, sustentando a primeira que, a existirem os prejuízos eles são da responsabilidade da R. Empresa-B. A 2ª R alega que a existirem danos eles serão apenas os que resultaram da projecção de algumas pedras sobre a cobertura da central e sobre as máquinas que, aliás, prontamente reparou.
Respondeu a A para rejeitar a excepção de prescrição e, a final, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção de prescrição oposta aos pedidos de indemnização com excepção dos que respeitam à perda de rentabilidade económica decorrente da alteração do leito do rio e diminuição do seu caudal que, porém, foi julgado improcedente.
Conhecendo da apelação interposta pela A, a Relação do Porto julgou-a procedente quanto à R Município de Vale de Cambra que condenou a pagar à A a indemnização correspondente aos prejuízos cujo valor global se fixará em execução de sentença.

Pede revista a apelada Município de Vale de Cambra que nas, extensas e prolixas conclusões que rematam as alegações, suscita estas questões:
1 – Decorre dos princípios gerais e de todo o regime do contrato de empreitada que, a existirem prejuízos decorrentes da execução da obra, estes são sempre da responsabilidade do empreiteiro e não do dono da obra.
3 - São irrelevantes as atitudes do dono da obra quando procura contribuir de modo cordial para a resolução dos conflitos relacionados com eventuais danos causados a terceiros.
4 – Insuficiência dos factos provados como demonstração da interrupção da prescrição.
5 – Violação, pelo acórdão recorrido, das normas dos arts. 236º/1, 323º/1, e 325º do CC e 712º do CPC a contrario.

Respondeu a A recorrida batendo-se pela confirmação do julgado.

Foram colhidos os vistos. Cumpre decidir.

Na 1ª instância julgou-se procedente a excepção de prescrição relativa-mente aos pedidos de indemnização formulados excepto os respeitantes à per-da de rentabilidade económica devida à alteração do leito e diminuição do caudal do rio.
Quanto a estes prejuízos, a 1ª instância julgou a acção improcedente por falta de prova dos necessários pressupostos da obrigação de indemnizar.
A Relação, no entanto revogou a sentença não só na parte em que julgou procedente a excepção de prescrição mas também no que respeita aos fundamentos do direito à indemnização.

A primeira questão suscitada pela recorrente envolve o problema da delimitação da responsabilidade pelos danos decorrentes de factos ilícitos na execução do contrato de empreitada.
Tudo tem a ver com o tipo de relações que ligam o dono da obra ao empreiteiro na vertente de poderem qualificar-se ou não como equivalentes às que se estabelecem entre comitente e comissário para efeitos de aplicação da norma do art. 500º nº 2 do CC.
Ora, sem embargo de o dono da obra poder acompanhar e fiscalizar a execução da obra, é entendimento corrente e tal decorre directamente do regime legal do contrato de empreitada (arts. 1207º e sgts do CC) que a relação entre dono da obra e empreiteiro, por não existir o elemento subordinação, não envolve a responsabilidade solidária pelos danos ocorridos na execução da obra nos termos do referido nº 2 do art. 500º do CC.
É neste sentido a lição de Vaz Serra segundo o qual o dono da obra não é um comitente do empreiteiro (RLJ nº112º pgs. 314) e, entre outros, assim decidiu o STJ no Ac. de 31/01/79 in BMJ 283º/286).
Porém, para bem avaliar do âmbito da responsabilidade dos intervenientes no contrato de empreitada, necessário se torna averiguar do rigoroso conteúdo deste contrato pois a responsabilidade do dono da obra pode resultar, dos específicos contornos da relação entre ambos estabelecida, uma vez que do tipo da obra em questão pode, sem mais, com ou sem responsabilidade concreta do empreiteiro, resultar necessariamente, da sua execução, a ofensa de direitos de terceiros.
Importa pois, salientar, da matéria de facto provada, cujo elenco, conforme o descreve a Relação, aqui se dá por reproduzido, os factos que poderão relevar para a avaliação dessa responsabilidade.
São eles, de modo simplificado e esquemático, os seguintes:

1 – A A, para além do direito à exploração da água do Rio Caima, é proprietária do estabelecimento Central ... do ... para aproveitamento e exploração dessa água.
2 – Em 26/08/97 o Município de Vale de Cambra celebrou com a Empresa-B contrato de empreitada para construção dum emissário competindo a esta executar diversos trabalhos, coincidindo o traçado projectado e definido para o emissário com a margem esquerda do Rio Caima, na zona do percurso onde se situa aquela mini hídrica na margem direita do rio.
3 – Para o desmonte das rochas necessário à abertura do traçado do emissário, a Empresa-B recorreu á utilização de explosivos em Junho de 1999 o que se prolongou até 20 de Setembro de 1999.
4 – Como consequência directa e necessária do rebentamento dos explosivos, inúmeras pedras foram projectadas atingindo e danificando a propriedade da A, no telhado de cobertura resultando orifícios vários em chapas de fibrocimento por terem sido partidas várias dessas chapas.
5 – As máquinas e equipamentos que estavam no interior ficaram danificadas pela queda das pedras que, entrando pelo telhado, caíram sobre elas.
6 – O mesmo sucedeu com piso que constitui o chão da mini hídrica partindo-se o a tijoleira do seu revestimento e a esquina de um degrau das escadas de cimento ali existente.
7 – Por causa dos danos no telhado, a mini hídrica sofreu inundações por causa da chuva que então caiu…
8 – … impedindo a ligação das máquinas e equipamentos à rede eléctrica.
9 – Em Setembro e Outubro de 1999 a mini hídrica esteve parada cerca de dois meses devido, em parte desse tempo, à falta de água no rio para fazer funcionar a turbina, noutra parte, devido àquelas inundações.

Quanto à questão da responsabilidade por tais danos na perspectiva das relações entre a ora recorrente (o dono da obra) e a 2 ª R (empreiteira Empresa-B), analisado o objecto do contrato, logo terá de concluir-se que da sua execução iriam, necessariamente, resultar prejuízos para o estabelecimento da A, a Central ..., que se situa exactamente na zona do rio onde iriam decorrer os trabalhos de construção do emissário final de S. Pedro de Castelões que implicava a utilização de explosivos.
O que significa que era o próprio projecto que abrangia em si mesmo, não apenas a possibilidade da ocorrência de danos, mas a fatalidade da sua verificação.
Não estava em causa o maior ou menor risco da sua ocorrência nem a possibilidade de serem evitados através duma especial destreza na manipulação ou a observância de especiais cuidados ou regras de prudência destinados a evitá-los ou até a minimizá-los.
Os meios a utilizar contratualmente previstos na empreitada continham em si, na sua origem, para adequadamente se cumprir o contrato, a inexorabilidade da eclosão dos prejuízos.
Certamente também por isso o douto acórdão recorrido, não obstante o contrato de empreitada, enquadrou a responsabilidade da R Município, na norma do art. 501º do CC, que prevê uma modalidade de responsabilidade pelo risco qual seja a do Estado e demais pessoas colectivas públicas no caso de danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividades de gestão privada nos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários.
Não oferece, pois, dúvidas a responsabilidade do R Município de Vale de Cambra pelos danos causados à R na execução dos trabalhos de construção do referido emissário.

Tudo está porém em saber se em relação a todos esses prejuízos de-correu já o prazo de prescrição do correspondente direito de indemnização.
Não se discorda da conclusão da Relação quando refere que não se provando o elemento subjectivo do crime – dolo ou negligência – quanto à conduta geradora dos danos sofridos pela A, não pode a pretensão da A beneficiar do alargamento do prazo precaucional – de 5 anos – previsto no art. 483º nº 3 do CC.
Da análise da resposta do Município ao fax da A, de 24/05/2000, que dele reclamava o pagamento dos prejuízos até então contabilizados, entendeu-se que aquele não se furtava à responsabilidade pois referia estar a estudar com o empreiteiro as indemnizações reclamadas limitando-a, porém, às obras e não ao pagamento das indemnizações exigidas.
Concluiu-se assim, ser indispensável interpretar tal declaração como ex-pressão da vontade do Município, de forma articulada com o teor dos faxes a que respondeu, como confissão, clara e expressa reconhecendo que a A tem direito a ser indemnizada pelos danos sofridos em consequência da utilização dos explosivos na obra de que é dono e que ele próprio é responsável ou, pelo menos, corresponsável pela sua reparação.
Tal interpretação da vontade expressa no aludido fax, á luz da norma do art. 236º nº1 do CC equivale, como acertadamente se refere no acórdão, á que um declaratário normal colocado na posição da A – declaratário real – poderia deduzir daquele comportamento.
Ora, tendo os prejuízos ocorridos em consequência de factos – utilização de explosivos - praticados nos meses de Junho a Setembro de 1999, concluiu--se, de acordo com os critérios legais, pela prescrição do direito à respectiva indemnização em Maio de 2000.
Mas tal prescrição respeita apenas aos danos correspondentes aos pre-juízos causados nas instalações da ... uma vez que o respeitante aos da alegada alteração do leito do rio e diminuição do seu caudal, foi julgado improcedente na 1ª instância tendo a sentença transitado nesse segmento.

De tudo decorre a improcedência, no essencial das conclusões do recurso.

Nestes termos, negam a revista com custas pela recorrente.

Lisboa, 14 de Setembro de 2006

Duarte Soares (Relator)
Ferreira Girão
Bettencourt de Faria