Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B4728
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CONTRATO DE FACTORING
LIVRANÇA
ACORDO DE PREENCHIMENTO
REQUISITOS
LITERALIDADE
RELAÇÕES IMEDIATAS
BOA-FÉ
LETRA EM BRANCO
Nº do Documento: SJ200305270047287
Data do Acordão: 05/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : 1. O contrato de factoring envolve, por um lado, a cedência pelo aderente ao factor de direitos de crédito com vista à realização por este da respectiva cobrança e, por outro, mediante contrapartida remuneratória, a cobertura do risco inerente àquela cobrança e a gestão ou o financiamento a curto prazo através da antecipação fundos.
2. Quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com as cláusulas convencionadas entre ambos, em jeito de delegação de confiança, incumbindo ao emitente a alegação e a prova do facto impeditivo do seu preenchimento abusivo.
3. O factor não viola o pacto de preenchimento da livrança envolvente do valor devido pelo aderente decorrente da execução do contrato de factoring, se nela inscrever esse débito de montante superior ao limite do adiantamento de fundos constante no clausulado daquele contrato.
4. A irregularidade decorrente da utilização para a livrança de um impresso próprio da letra de câmbio não afecta a sua validade como tal.
5. No domínio das relações imediatas, não obsta o princípio da literalidade inerente às livranças a que se interprete a vontade das partes, à luz da impressão do declaratário normal, como promessa de pagamento de determinada quantia, o texto expressante no seu vencimento pagará (ão) V.Exª (s) por esta única via de letra, aliás livrança.
6. À luz do princípio da boa fé, apurada a vontade do factor, do aderente e dos avalistas do último no sentido de garantir o pagamento pelo segundo ao primeiro do débito decorrente da execução do contrato de factoring, o preenchimento pelo primeiro aquele de uma livrança em vez da letra referida naquele contrato e no pacto de preenchimento não afecta a responsabilidade dos últimos pelo pagamento do valor da livrança.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

"A" intentou, no dia 31 de Dezembro de 1997, contra B, C, D e E, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, com base em livrança, a fim de haver deles 153 315 885$80 e juros.
Os executados deduziram embargos, com fundamento em o título dado à execução não ter o valor de livrança e na violação do acordo de preenchimento, e a exequente contestou-os, afirmando inexistirem impressos próprios para livranças e que, para além do por si referido não constituir limite à dívida, o valor da livrança incluir juros, despesas, comissões e outros encargos.
A execução deixou entretanto de prosseguir contra B por haver sido declarada falida.
Na fase da condensação foram os embargos julgados parcialmente procedentes, com fundamento no preenchimento abusivo da livrança e, em face disso, reduzida a quantia exequenda a 50 000 000$, acrescida de juros desde 26 de Dezembro de 1997.
Apelaram a embargada e os embargantes C, D e E, a primeira com fundamento em não ter havido preenchimento abusivo da livrança, e os segundos com base na sua invalidade e preenchimento abusivo, mas a Relação apenas julgou procedente o recurso da embargada, revogando o segmento decisório de redução do valor da livrança operado na 1ª instância.

E, D e C interpuseram recurso de revista.
Os dois primeiros formularam, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- à recorrente e aos restantes avalistas, porque eram sócios de B foi solicitado que avalizassem uma letra em branco para garantia das obrigações resultantes do contrato de factoring celebrado com A;
- o montante do capital adiantado pela exequente a B a incluir na referida letra não poderia exceder 50 000 000$, nos termos do contrato aceite pelos avalistas, e as comissões, juros contratuais e de mora eram apenas os devidos por esse montante de capital;
o pacto de preenchimento não pode ser visto isoladamente, devendo ser remetido para o contrato de factoring, dado que aquele só existe dada a existência deste e, pelos seus termos , o plafond máximo de adiantamentos não poderia exceder 50 000 000$.
- a vontade real dos avalistas e da exequente à data da emissão do referido documento era a emissão de uma letra em branco, podendo o seu montante ser preenchido com o capital em dívida, não podendo exceder 50 000 000$, acrescido de comissões e juros sobre esse capital;
- para se concluir pela existência de abuso no preenchimento da letra em branco não necessitavam os recorrentes de provar qual o montante da dívida;
- não obstante existir pacto de preenchimento expresso, não é suficientemente elucidativo, dado que ambas as partes sempre o idealizaram em conjunto com o contrato que lhe estava subjacente;
- ao preencher a letra com determinada quantia e ao incluir nela, a título de capital adiantado, montante superior a 50 000 000$ e comissões e juros contratuais e de mora contabilizados sobre capitais superiores a 50 000 000$, a exequente preencheu abusivamente o documento dado à execução;
- a quantia exequenda terá de ser reduzida a 50 000 000$, comissões e juros contabilizados sobre esse montante, na eventualidade de se considerar a validade do documento dado à execução enquanto título cambiário;
- o acórdão recorrido ao decidir de forma diferente fez incorrecta interpretação e análise dos documentos juntos ao processo;
- deve declarar-se a existência de preenchimento abusivo do título dado à execução e reduzir-se a quantia exequenda.

C, formulou conclusões idênticas às apresentadas pelos outros dois recorrentes, salvo as duas últimas, acrescentando em sentido diverso, em síntese, as seguintes:
- a inserção da expressão aliás livrança não transforma a ordem de pagamento em promessa de pagamento;
- o documento não reúne as formalidades essenciais a que se reportam imperativos artigos 75º e 76º, n.º 1, da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, para valer como livrança, por não conter a promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada, mas uma ordem de pagamento, pelo que não constitui título executivo;
- os factos provados não permitem a conclusão no sentido de a vontade das partes haver sido a subscrição de uma livrança, dado que os avalistas sempre se referiram a aceite de letra e nunca a livrança;
- ainda que o documento pudesse valer como título executivo contra B por incorporar uma ordem de pagamento por ela aceite, as assinaturas apostas no verso não poderiam valer como título cambiário;
- o acórdão recorrido põe em causa a segurança do comércio jurídico, quebra a imperatividade das normas jurídicas e viola o princípio da literalidade dos títulos cambiários e os artigos 8º da Constituição e 75º, n.º 2 e 76º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças;
- o documento executivo não produz efeitos como livrança nem como letra, por lhe faltar um dos seus requisitos fundamentais, obstáculo à sua exequibilidade e, consequentemente deverão ser absolvidos do pedido executivo;
- deve declarar-se a inexequibilidade do título dado à execução ou reduzir-se a quantia exequenda a 50 000 000$ mais comissões e juros.

Respondeu a recorrida, nos recursos interpostos por E, D, em síntese de conclusão de alegação:
- a carta consubstancia um pacto de preenchimento com todos os critérios por que se havia de definir a prestação;
- o pacto de preenchimento não se confunde com as obrigações decorrentes do contrato de factoring para a qual o primeiro foi celebrado;
- o valor de 50 000 000$ constante do contrato de factoring não constitui limite ao valor a inserir na livrança mas aos adiantamentos a realizar pela recorrida no âmbito daquele contrato;
- a livrança foi preenchida com o valor que à data correspondia ao saldo em dívida, acrescido de comissões, juros contratuais e moratórios e imposto de selo e a dívida não foi contestada pelos recorrentes.

No que concerne ao recurso interposto por C, para além do que referiu nas conclusões de resposta aos recursos interpostos pelos outros recorrentes, a recorrida concluiu, em síntese, o seguinte:
- não obsta à qualificação como promessa de pagamento o facto de a mesma vir expressa em impresso próprio da letra e se manter a expressão pagará em vez de pagarei;
- mesmo que faltasse um elemento essencial, havia título executivo, nos termos da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil, por dever prevalecer a vontade das partes no âmbito das relações cambiárias imediatas e por o documento provar a obrigação nele mencionada;
- mesmo que assim não fosse, improcederiam os embargos por abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A enviou a B, no dia 14 de Abril de 1993, um fax, do seguinte teor: "Na sequência da V/ consulta, que agradecemos, vimos comunicar a V.Exª a nossa proposta de contrato, nas seguintes condições: Taxa de comissão 1,1%, antecipação de fundos 75%, plafond 50 000 000$, taxa de juro (líquida) APB (90 dias) acrescida de 0,75%, tipo de juros mensais postecipados, devedoras F, G, C.M. Sesimbra, H (poder-se-ão futuramente outros a acordar previamente), garantias letra com montante e data de vencimento em branco, subscrita pela firma e avalizada pelos sócios e respectivos cônjuges (acompanha a letra a carta cuja minuta anexamos para V. apreciação. Juntamos também minuta do contrato cujo original podemos emitir logo que se chegue a acordo com as condições do mesmo".
2. A e B, esta representada pela embargante C, outorgaram, em 19 de Abril de 1993, o documento denominado contrato de factoring, segundo o qual a segunda submetia à aceitação da primeira os seus créditos sobre terceiros, que os aceitava em documento, avançando esta fundos e cobrando uma comissão sobre o valor dos mesmos, o saldo acumulado dos fundos antecipados não poderia exceder 50 000 000$ e a taxa de juro a praticar nas antecipações era a de referência da APB (90 dias) em vigor na data do cálculo de juros, acrescida de 0,75%.
3. B, C, D e E enviaram a A uma carta, datada de 20 de Abril de 1993, na qual declararam: "Para garantir a segurança das operações de factoring que mantemos com V.Exªs, actuais e futuras, nomeadamente saldos em dívida, comissões e juros de mora, junto remetemos um Aceite a favor de A, com montante e data de vencimento em branco, subscrito por B e avalizada por C, D e E, e que A fica desde já autorizada a preencher o referido Aceite, na data que tiver por conveniente, fixando-lhe o vencimento, mesmo à vista, pelo valor então em dívida, e que todos os restantes intervenientes dão o seu assentimento aos termos e condições da presente autorização".
4. A enviou a B, com data de 12 de Dezembro de 1997, uma carta, declarando-lhe que o respectivo saldo devedor totalizava a quantia de 152 553 119$, que aguardava o seu pagamento até 26 de Dezembro, data a partir da qual procederia ao preenchimento da livrança pelo montante da dívida, enviando a mesma de seguida para cobrança, e remeteu-lhe um anexo com a descrição dos montantes que considerava serem devidos em termos de capital e juros.
5. A exequente é detentora de um documento, com data de emissão de 12 de Dezembro de 1997 e vencimento em 26 de Dezembro de 1997, onde se expressa que "no seu vencimento pagará (ão) V.Exª(s) por esta única via de letra, Aliás Livrança, a A, a quantia de cento e cinquenta e três milhões, trezentos e quinze mil, oitocentos e oitenta e cinco mil escudos e oitenta centavos".
6. Ao lado da menção "assinatura do sacador" encontra-se aposto um carimbo a óleo com o nome da B, e uma assinatura sob a menção "o gerente", no local destinado ao nome e morada do sacado consta a expressão B, e, no seu canto esquerdo, inexiste assinatura sob a menção "aceite".
7. No verso do mesmo documento sob a menção "por aval à firma subscritora" encontram-se apostas, entre outras, as assinaturas de C, de D e de E .
III
As questões essenciais decidendas são as de saber se o documento dado pela recorrida à execução foi ou não por ela preenchido abusivamente e se é ou não susceptível de valer como título executivo.
Tendo em linha de conta o conteúdo dos acórdãos recorridos e das conclusões de alegação dos recorrentes e da recorrida, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre B e a recorrida?
- estrutura da convenção de preenchimento de títulos de crédito;
- violou ou não a recorrida o pacto de preenchimento do título cambiário no que concerne ao valor?
- deve ou não o referido título cambiário ser qualificado de livrança e relevar como título executivo?
- a expectativa dos recorrentes de criação de uma letra em vez de livrança é ou não susceptível de os desvincular da cumprimento da obrigação exequenda?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões:

1. A actividade parabancária de factoring é caracterizada no Decreto-Lei nº 171/95, de 18 de Junho, como aquisição de créditos a curto prazo derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, e colaboração das empresas de factoring com os seus clientes em estudos dos riscos de crédito e de apoio jurídico, comercial e contabilístico à boa gestão dos créditos transaccionados (artigo 1º).
As instituições parabancárias que exerçam a actividade em causa são designadas por factor, os cedentes dos créditos àquele por aderente, e os clientes destes por devedores (artigo 2º).
O factor deve pagar aos aderentes o valor dos créditos nas datas dos seus vencimentos ou na data de um vencimento médio presumido estipulado no contrato de factoring ou antecipadamente em relação à totalidade ou parte os créditos cedidos, sem exceder a posição credora do aderente na data da efectivação do pagamento (artigo 4º, nºs 1 e 3).
Por via do referido contrato, o factor passa a ter o direito a cobrar ao aderente comissões de factoring sobre os montantes dos créditos adquiridos e juros nos casos de pagamento antecipado (artigo 5º, nº 1, alíneas a) e b)).
Assim, o contrato de factoring envolve, por outro lado, a cedência pelo aderente ao factor de direitos de crédito, com vista à realização por este da respectiva cobrança e, por outro, a cobertura do risco inerente àquela cobrança e a gestão ou o financiamento a curto prazo através da antecipação de fundos, mediante contrapartida remuneratória. De harmonia com o convencionado no contrato de factoring, distingue-se entre a cessão financeira própria e a imprópria, consoante o risco do incumprimento do terceiro devedor seja ou não transferido para o factor, ou porque este só paga ao aderente após a boa cobrança do crédito, ou porque o primeiro fica com direito de regresso contra o segundo.
A factualidade disponível constante de II 1 e 2 revela que B e a recorrida celebraram um contrato de cessão financeira ou factoring, a primeira como aderente e a segunda como factor.
Por força do referido contrato, B cedia direitos de crédito sobre terceiros à recorrida, esta avançava àquela fundos, até determinado limite, relativos àqueles créditos, e procedia à sua cobrança sob remuneração envolvente de comissão e juros compensatórios.
O limite máximo do saldo acumulado dos fundos antecipados pela recorrida a B era de 50 000 000$.

2. A lei expressa que se a letra ou a livrança ficou incompleta no momento em que foi emitida e tiver sido completada contrariamente ao acordo para o efeito, não pode esse acordo ser oposto ao portador, salvo se a tiver adquirido de má fé ou adquirindo-a, cometer uma falta grave (artigos 10º e 77º da LULL).
Resulta, pois, da lei que as letras e as livranças podem ser incompletamente preenchidas, caso em que são designadas por letras e livranças em branco, e entregues a outrem, que assim passa a assumir a posição de portador delas.
A lei permite, pois, que antes de liquidada a obrigação subjacente, pode a letra ou a livrança incompleta, designadamente só assinada, entrar em circulação, no pressuposto de que vai ser completada no futuro, altura em que atingirá a sua perfeição como título cambiário.
Dir-se-á que as letras e livranças em branco são válidas, embora os concernentes efeitos cambiários só surjam plenamente depois de completado o convencionado preenchimento.
Quem emite uma letra ou uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com as cláusulas convencionadas entre ambos, em jeito de delegação de confiança.
Trata-se de um contrato de preenchimento definidor dos termos da definição da obrigação cambiária, designadamente o montante, condições de conteúdo, tempo de vencimento, local de pagamento e estipulação de juros.
A entidade a quem é entregue o título de crédito a fim de o preencher deve, naturalmente, fazê-lo de harmonia com o convencionado, sob pena de incumprimento do pacto, ocorrendo uma situação de preenchimento abusivo se o tomador do título cambiário desrespeitar a convenção.
O preenchimento abusivo do título de crédito constitui um facto impeditivo do direito invocado pelo seu portador e primeiro adquirente, pelo que incumbe a quem o pagamento é exigido a respectiva alegação e prova (artigos 342º, nº 2, do Código Civil e 467º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
No caso vertente, B, de quem os recorrentes eram sócios, delegou na recorrida o complemento do referido título de crédito, o que a ela fez.

3. Estamos perante uma cláusula de um contrato de factoring sobre o limite máximo do saldo acumulado de adiantamentos de fundos pela recorrida a B, em relação ao qual os recorrentes são terceiros, naturalmente porque nele não outorgaram. Aquele limite foi, naturalmente, estabelecido a favor da recorrida e não de B, mas foi ultrapassado, naturalmente no interesse da última, mediante acordo, pelo menos, tácito de ambas.
Afirmam os recorrentes não estar em causa o montante da dívida mas aquele pelo qual avalizaram a letra, para garantir o valor máximo previsto no contrato de factoring, acrescentando que o pacto de preenchimento não pode ser visto isoladamente daquele.
A este propósito, importa, porém, ter em conta que B e os recorrentes,
em carta dirigida à recorrida expressaram-lhe que, para garantia e segurança das operações de factoring, actuais e futuras, nomeadamente saldos em dívida, comissões e juros de mora remetiam um aceite a favor dela subscrito pela primeira e avalizada pelos últimos, com a autorização para o preencher o referido na data por ela tida por conveniente, fixando-lhe o vencimento, mesmo à vista, pelo valor então em dívida, acrescentando que todos os restantes intervenientes davam o seu assentimento aos termos e condições de tal autorização.
Assim, o pacto de preenchimento do título de crédito em causa, conforme resulta do comportamento dos representantes da recorrida e de B, visou garantir o pagamento pela segunda à primeira do montante que aquela devia a esta, e não menos do que isso.
A conexão entre o pacto de preenchimento e o contrato de factoring só tem a ver com o facto de o primeiro, na data da respectiva execução, dever corresponder ao direito de crédito dele decorrente da titularidade da recorrida contra B.
Tal conexão, porém, não vai para além disso, ou seja, não limitava o pacto de preenchimento do título de crédito em causa ao montante convencionado como limite de adiantamento de fundos, irrelevando o interesse ou a expectativa em contrário dos recorrentes D e E, terceiros em relação a ele.
A conclusão não pode, por isso, deixar de ser no sentido de que a recorrida, ao preencher o título cambiário com o montante de 153 315 885$80, correspondentes ao valor do seu direito de crédito relativamente a B ao tempo do preenchimento, não infringiu o respectivo pacto de preenchimento.

4. A letra é um título cambiário de natureza formal, que deve conter essa palavra, o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a indicação da data em que e o lugar onde é passada (artigo 1º da LULL).
Tal como a letra, também a livrança é título cambiário de natureza formal que deve conter essa palavra, a promessa de pagar uma quantia determinada, a época do pagamento, o lugar onde este deve ser feito, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a data em que e o lugar onde é passada (artigo 75º da LULL).
A diferença essencial entre a letra e a livrança consubstancia-se no facto de a primeira enunciar uma ordem de pagamento e a segunda uma simples e directa promessa de pagamento.
O escrito em que faltar a ordem pura e simples de pagar uma quantia determinada não pode valer como letra, tal como não pode valer como livrança o escrito que não enuncie uma promessa de pagamento (artigos 2º e 76º da LULL).
Decorrentemente se um título dado à execução não for uma livrança, por lhe faltar um requisito essencial de forma, designadamente a promessa pura e simples de pagar uma determinada quantia, ocorrerá vício de forma implicante da nulidade da obrigação da subscritora e dos respectivos avalistas (artigos 32º, 1ª e 2ª parte, e 77º, parte final, da LULL).

O artigo 1º do Decreto-Lei n.º 387-G/87, de 30 de Dezembro, deu nova redacção ao artigo 118º do Regulamento do Imposto de Selo, este em vigor ao tempo da emissão da livrança em causa, segundo o qual o modelo das letras e livranças e suas características seriam estabelecidos em Portaria do Ministro das Finanças.
Visou o referido diploma a adaptação da Tabela Geral do Imposto do Selo então em vigor à normalização das letras e livranças, com vista ao seu tratamento informático.
Na sequência do referido diploma, a Portaria n.º 142/88, de 4 de Março, aprovou e definiu o modelo uniforme das letras e das livranças e fixou as características técnicas dos respectivos impressos, distinguindo entre livranças tomadas por instituições bancárias e por outras entidades, que deveriam conter todos os elementos que constituíam os requisitos enunciados na Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças.
A Portaria n.º 545/88, de 12 de Agosto, deu nova redacção ao artigo 2º, n.º 2, da Portaria n.º 142/88, de 4 de Março, eliminando a distinção entre o modelo das livranças tomadas por instituições bancárias e outras entidades, introduzindo o modelo para preenchimento por computador, passando esse modelo a ser obrigatório em Portugal.
A recorrida não utilizou no documento dado à execução o modelo das livranças legalmente estabelecido, certo que usou o modelo existente próprio para as letras.
Todavia, a exigência legal de adopção do referido modelo de livrança é envolvida do desiderato de normalização, para facilitação do seu tratamento informático, e por exigências de carácter fiscal.
Como se não trata de um requisito essencial de validade de livranças que possa acrescer aos previstos no artigo 75º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, a irregularidade de utilização para a livrança de um impresso próprio das letras não afecta a sua validade como tal.
Expressa o documento em causa que "no seu vencimento pagará (ão) V.Exª(s) por esta única via de letra, aliás livrança, a quantia de cento e cinquenta e três milhões, trezentos e quinze mil, oitocentos e oitenta e cinco mil escudos e oitenta centavos".
Ao lado da menção assinatura do sacador encontra-se aposto um carimbo a óleo com o nome da B, e uma assinatura sob a menção o gerente, no local destinado ao nome e morada do sacado consta a expressão B, no seu canto esquerdo inexiste assinatura sob a menção aceite e, no verso do documento, a menção por aval à firma subscritora encontram-se apostas as assinaturas dos recorrentes.
Utilizou-se um impresso de letra para criar uma livrança, mas não foi riscada a expressão V.Exª nem substituída a expressão pagará (ão) por pagarei.
A recorrente C entende que o referido documento não pode validamente valer como letra ou como livrança sob pena de se violar o princípio da literalidade dos títulos cambiários, quebrar a imperatividade das normas jurídicas e pôr em causa a segurança do comércio jurídico, contra o disposto nos artigos 8º da Constituição e 75º, n.º 2 e 76º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças.
Os princípios da literalidade e da abstracção dos títulos de crédito são instrumentais em relação à independência do direito cartular em relação à causa que esteve na origem da sua criação.

O princípio da literalidade significa essencialmente que o conteúdo global da obrigação cambiária é o que a declaração respectiva revela, o que constitui a base necessária para a respectiva circulação do direito de crédito delimitado pelo teor da letra, da livrança ou do cheque.
Mas importa ter presente que a criação dos títulos de crédito envolvidos pelos referidos princípios tem por origem ou fonte uma declaração unilateral de vontade negocial constitutiva de um negócio jurídico unilateral e rigorosamente formal.
Nessa medida, podem surgir dúvidas na interpretação da vontade das partes no que concerne espécie do título cambiário criado, como ocorre no caso vertente, que importe solucionar, naturalmente à luz dos artigos 236º a 238º do Código Civil.
Trata-se de apurar o sentido relevante da vontade do criador do título cambiário segundo o critério normativo da impressão do declaratário normal colocado na posição do real declaratário, com um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigos 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1, do Código Civil).
O sentido decisivo da declaração negocial é, pois, o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente, informado do sector da actividade em causa e capaz de procurar esclarecer-se acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.
O Supremo Tribunal de Justiça pode, excepcionalmente, aferir sobre se a Relação, ao fixar a matéria de facto, respeitou ou não o referido critério, designadamente o mínimo de correspondência entre o sentido da declaração a que chegou e o mínimo da literalidade do documento. (artigo 722º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Coloca-se, na sequência, a questão de saber como conciliar o formalismo que é próprio dos títulos cambiários, designadamente o princípio da literalidade, com a vontade real das partes relativamente à criação do título cambiário, a qual tem algo a ver com a problemática de no plano cambiário se estar no domínio das relações imediatas ou mediatas.
Designam-se nas livranças e nas letras, além do mais, por relações cambiárias imediatas as que se estabelecem entre os sujeitos que nelas intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso do subscritor da promessa de pagamento e do respectivo beneficiário e do sacador e do aceitante, respectivamente.
Correspondentemente, num e noutro título dos referidos títulos cambiários estar-se-á no âmbito das relações imediatas no que concerne ao avalista do subscritor da livrança perante o respectivo beneficiário e ao avalista do aceitante no confronto com o sacador da letra.
Decorrentemente, no que concerne às relações jurídicas cambiárias em causa, os recorrentes e a recorrida estão no plano das relações imediatas, pelo que os primeiros podem opor à última o conteúdo da relação jurídica subjacente causal das primeiras referidas relações.
Nessa hipótese, tudo se passa como se as obrigações cambiárias deixassem de ser literais e abstractas, passando a relevar o conteúdo da convenção extra-cartular, em relação à qual a primeira funcionou como dação em função do cumprimento
No confronto entre a interpretação da vontade das partes na criação dos títulos cambiários à luz do critério da impressão do declaratário normal e o princípio do cambiário da literalidade, há-de prevalecer um ou outro consoante os sujeitos cambiários envolvidos esteja no domínio das relações jurídicas mediatas ou imediatas.
Se os sujeitos cambiários envolvidos estiverem no domínio das relações jurídicas mediatas, a prevalência não pode deixar de ser do princípio da literalidade, e se estiverem no domínio das relações jurídicas imediatas prevalecerá o que resultar da interpretação da vontade das partes.
No caso vertente, como os sujeitos cambiários em causa estão no domínio das relações imediatas, nada obsta que releve a interpretação da vontade das partes em relação do princípio da literalidade que é próprio dos títulos cambiários, sem prejuízo da mínima expressão documental a que se reporta o n.º 1 do artigo 238º do Código Civil.
Importa ter em linha de conta, por um lado, o fim de garantia para o qual a recorrida e B convencionaram a criação do título cambiário, a instrumentalidade deste em relação àquele fim e o exclusivo interesse directo da primeira na emissão do título.
E, por outro, atentar na inserção pela recorrida da expressão livrança no documento, no quadro do aproveitamento e adaptação do impresso de letra de câmbio, no ladeamento da menção assinatura do sacador à denominação da B, na menção dela no local do nome e morada do sacado, na inexistência de assinatura sob a menção aceite no local a tal destinado.
Perante o referido circunstancialismo, um declaratário normal colocado na posição dos representantes de B e dos outros recorrentes interpretaria a vontade da recorrida no sentido da criação do título livrança e não do título letra de câmbio, pelo que inexiste fundamento legal para alterar a conclusão fáctica determinada pela Relação.
Ao invés do que a recorrente C alega, porque se está, na espécie perante sujeitos no domínio das relações cambiárias imediatas, a interpretação da vontade da recorrida na criação do título cambiário livrança em causa não infringe o disposto nos artigos e 75º, n.º 2 e 76º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças ou 8º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, conforma-se o princípio da literalidade, não afecta a segurança do comércio jurídico nem quebra a imperatividade das normas jurídicas.
Por isso, a conclusão é no sentido de que o documento em causa vale como livrança e, consequentemente, nos termos da lei, cumpre a finalidade processual de servir à acção em causa como título executivo (artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil, 47º, 1ª e 2ª parte, 48º, n.ºs 1º e 2º, e 77º da LULL).

5. No âmbito do contrato de factoring celebrado entre a recorrida e B, esta representada pela recorrente C, foi por ambas convencionado, como garantia de cumprimento das respectivas obrigações emergentes daquele contrato, uma letra com montante e data de vencimento em branco, subscrita pela última e avalizada pelos seus sócios e respectivos cônjuges.
Na sequência disso, B e os recorrentes, endereçaram à recorrida uma carta, expressando-lhe que, para garantia a segurança das operações de factoring, actuais e futuras, nomeadamente saldos em dívida, comissões e juros de mora, lhe remetiam um Aceite a favor dela subscrito por B avalizado pelos recorrentes e que lhe autorizavam o preenchimento do referido Aceite na data que tivesse por conveniente, fixando-lhe o vencimento, mesmo à vista, pelo valor então em dívida, e que os restantes intervenientes davam o seu assentimento aos termos e condições dessa autorização.
Foi com base na referida carta que a recorrida preencheu o documento cambiário em causa, nos termos que dele constam, o qual foi por ela dado à execução.
Dir-se-á que tendo sido convencionado entre B e a recorrida, com o assentimento dos recorrentes, que a mencionada garantia revestiria a forma de letra de câmbio e não de livrança, houve nessa medida violação pela primeira do pacto de preenchimento.
Em geral, quando as pessoas minimamente conhecedoras da matéria expressam os vocábulos letra e aceite pretendem referir-se aos negócios cambiários envolvidos por um sacador e um aceitante e, quando expressam os vocábulos livrança e subscritor se referem aos negócios cambiários envolvidos por um subscritor-promitente e um beneficiário.
Tendo em conta a estrutura do impresso de letra de câmbio que B remeteu à recorrida, embora os recorrentes tenham expressado no verso por aval à subscritora, expressão que significa o promitente no âmbito das livranças, a primeira entendeu, naturalmente, que o instrumento de garantia pela última pretendido era efectivamente o que lhe remeteu.
Dir-se-á, por isso, que a recorrida ao preencher ao mencionado documento em forma de livrança desrespeitou a convenção executiva emergente do pacto de preenchimento.
No cumprimento das obrigações, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé (artigo 762º, n.º 2, do Código Civil).
As partes agem de boa fé quando o fazem com a diligência e a lealdade exigíveis as pessoas de bem, no quadro do circunstancialismo do caso espécie, o que se não coaduna com interpretações meramente literais do âmbito da prestação a que estejam vinculadas.
No caso vertente, a vontade dos representantes da recorrida e de B era no sentido de ser constituída uma garantia de cumprimento pela segunda em relação à primeira das obrigações decorrentes do contrato de factoring.
A obrigação dos recorrentes decorrentes do aval a B na posição de subscritora da livrança não difere daquela a que ficariam vinculados se B tivesse subscrito a letra de câmbio na posição de aceitante e sob saque da recorrida.
Tendo em conta a referida exigência da boa fé, estruturante de uma das vertentes do abuso do direito, a que se reporta o artigo 334º do Código Civil, o facto de a recorrida ter criado uma livrança em vez de criar uma letra de câmbio queda irrelevante no quadro das obrigações que os recorrentes assumiram perante ela por virtude dos actos cambiários de aval em causa.

6. Face ao acima exposto, dir-se-á, em síntese, por um lado, que o documento que à execução serve de título executivo é uma livrança válida, que a recorrida não violou o pacto de preenchimento no que concerne ao valor nela inscrito, e que a expectativa dos recorrentes em que fosse criado o título cambiário letra em vez do título cambiário livrança é irrelevante para excluir a sua responsabilidade cambiária.
E, por outro, que os recorrentes, como avalistas da subscritora B são responsáveis perante a recorrida pelo pagamento da quantia exequenda (artigos 32º, 1ª e 2ª parte, 47º, 1ª e 2ª parte, 48º, n.ºs 1º e 2º, e 77º da LULL).

Improcedem, por isso, os recursos, com a consequência da manutenção dos acórdãos recorridos.
Vencidos nos recursos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento aos recursos, mantêm-se os acórdãos recorridos, e condenam os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 27 de Maio de 2003.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís