Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | AFONSO CORREIA | ||
Descritores: | INVENTÁRIO DOAÇÃO INOFICIOSIDADE LEGÍTIMA | ||
Nº do Documento: | SJ200210290019341 | ||
Data do Acordão: | 10/29/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL COIMBRA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 3110/01 | ||
Data: | 01/29/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIR CIV - DIR SUC. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 2025 ARTIGO 2162 N1 ARTIGO 2169. | ||
Sumário : | 1. Só os herdeiros legitimários ou seus descendentes têm legitimidade para requerer a redução das liberalidades inoficiosas. 2. Ao herdeiro meramente testamentário da quota disponível do de cujus não assiste tal direito. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: No Tribunal Judicial de Aveiro foi instaurado inventário para partilha dos bens deixados por óbito de A e de sua esposa B, residentes que foram na Rua Cândido dos Reis, n.º ...., em Aveiro, em que é inventariante o filho de ambos C. No momento próprio, tanto o inventariante como a herdeira testamentária D se pronunciaram sobre a forma da partilha, se bem que em sentidos divergentes. De seguida, foi proferido despacho determinativo da forma da partilha, não concordante com a forma dada por aquela interessada E. Elaborado que foi o mapa da partilha e proferida a respectiva sentença homologatória, a interessada E apelou para a Relação de Coimbra, insistindo pela revogação, por inoficiosidade, da doação pelo inventariado, por conta da quota disponível, a favor de seus filhos, por forma a manter a eficácia do testamento da inventariada. Mas sem êxito, pois a Relação manteve inteiramente a decisão recorrida. Ainda inconformada, a E pede revista, pugnando pelo reconhecimento do seu direito, enquanto herdeira da falecida, a obter a redução da doação inoficiosa feita pelo falecido marido da inventariada aos filhos de ambos e, em qualquer caso, o direito a haver o remanescente da quota disponível da testadora. Como se vê da alegação que coroou com as seguintes Conclusões 1 - Instaurou-se inventário por óbito de A, e, depois, cumulativamente, por óbito da mulher, B, falecida mais tarde, sendo ambos casados no regime de comunhão geral de bens. 2 - Na respectiva relação de bens figura a verba 49, um prédio doado pelos inventariados, por conta da quota disponível, aos Recorridos, únicos filhos que tiveram, o qual, em licitações atingiu o valor de 21.256.000$00, somando os restantes bens o valor de 23.943.531$00. 3 - O inventariado instituiu os filhos, ora Recorridos, herdeiros da quota disponível, e a inventariada, depois de, por conta da quota disponível, instituir um legado de 500.000$00, instituiu a Recorrente herdeira do remanescente dessa quota. 4 - O, aliás, douto acórdão recorrido entendeu que a Recorrente nada tem a receber por virtude de tal testamento, uma vez que, não sendo herdeira legitimária dos doadores, nem descendente da testadora, a inventariada, que, em vida, não obteve a redução por inoficiosidade da doação feita pelo inventariado a seus filhos, não tem o direito de obter a redução da referida doação por conta da quota disponível, fundando tal decisão no disposto nos art.s 2168, 2156, 2157, 2161 no. 2, 2160 e 2169 C.C. 5 - Assim, implicitamente, nos termos do art. 660 n.º 2 considerou prejudicada, dela não conhecendo, a questão por que os Recorridos se opõem à pretensão da Recorrente herdar da inventariada: ter esta esgotado a quota disponível na doação que, em conjunto com o inventariado, fez aos Recorridos da verba n.º 49 da relação de bens (art. 2171 C.C.). 6 - Reservando para último o conhecimento desta pretensão, acerca da qual o, aliás, douto acórdão recorrido não se pronunciou, ainda que fosse exacto não ter a Recorrente como sucessora da inventariada, direito à redução da doação feita pelo inventariado aos Recorridos (meia conferência), teria direito, depois de pago o legado de 500.000$00, ao remanescente da quota disponível da inventariada nos restantes bens, no valor, como se viu (conclusão 2ª), de 23.943.531$00, o qual resulta da sua meação nesse valor (11.971.765$00) mais a sua legitima na herança do inventariado (2.666.392$00), o que totaliza 14.638.157$00. 7 - Nesta conformidade, nos termos do disposto nos art.os 1732, 2161 n.º1, 2179, 2024 e 2025 n0. 1 C.C., que o, aliás, douto acórdão recorrido violou, a Recorrente, como herdeira do remanescente da quota disponível, teria a receber 4.379.385$00 (QUATRO MILHÕES TREZENTOS E SETENTA E NOVE MIL TREZENTOS E OITENTA E CINCO ESCUDOS) - 14.638.157$00: 3 - 500.000$00. 8 - Mas a Recorrente tem, ainda, o direito, como sucessora da inventariada, por virtude do testamento, de obter a redução por inoficiosidade, da doação que ofendeu a legítima desta, direito esse que, nem por lei, nem por sua natureza, caducou com a sua morte, e direito esse de que a inventariada podia dispor por acto inter vivos ou por testamento, sucedendo mais que, em sua vida, corria termos o processo de inventário, em que a inventariada podia exercer esse direito - art.s 2168, 2156, 2157, 2161 n.º 2, ,2169, 405 n.º 1, 2179 e 2025 n.º 1 C.C. 9 - A questão que ficou por decidir (conclusão 5ª) não pode deixar de ser resolvida favoravelmente à Recorrente. 10 - A doação pela qual os inventariados doaram aos Recorridos, únicos filhos que tiveram, por conta da quota disponível, a verba 49 da relação de bens, nunca poderia ofender, nos termos do art. 2168 C.C., a legitima destes, dado dela serem os beneficiários, mas a legítima de um dos doadores, que, por morte do outro com eles concorresse à herança. 11 - A quota disponível é, apenas, a outra face da legítima, e a lei o que protege é a legitima, e não a quota disponível. 12 - Mas se se desse o caso de os donatários serem titulares do direito de obter essa redução e os sujeitos passivos desse direito (o que sucederia se lhes fosse transferido tal direito pelo herdeiro cuja legítima foi ofendida por essa liberalidade), tal direito e sujeição extinguir-se-iam por confusão (art. 868 C.C.). 13 - Por outro lado, a referida doação, feita aos únicos herdeiros legitimários dos doadores, somente pode produzir o efeito de sacrificar o segundo doador, na partilha por morte do primeiro, (que é o caso vertente), mas não pode produzir o efeito de renúncia ao direito de testar, porque a tanto impede o disposto nas disposições conjugadas dos art.s 69 e 2179 CC. 14 - Pelo exposto, o, aliás, douto acórdão recorrido, não reconhecendo, apesar do testamento quer a instituiu como tal, à Recorrente a qualidade de herdeira do remanescente da quota disponível da inventariada, inclusive, de obter a redução por inoficiosidade da doação que afecta a legítima da Autora da herança, violou o disposto nos art.s 2168, 2156, 2157, 2161 n.º 2, 2160, 2169, 1732, 2161 n.º 1, 2179, 405 n.º 1, 2024, 2025 n.º 1, 2168, 868 e 69 C.C., pelo que deve ser revogado. Temos, pois, para decidir as questões de saber se: I - A recorrente, enquanto herdeira testamentária do remanescente da disponível da falecida, tem legitimidade para requerer a redução, por inoficiosidade, da metade da doação feita por seu defunto marido, na medida em que ofende a sua legítima de cônjuge sobrevivo - conclusões 4ª e 8ª; e se, mesmo em caso negativo e sem atender ao bem doado, II - sempre a Recorrente tem direito a haver o remanescente da quota disponível da falecida - conclusões 6ª e 7ª, III - sob pena de esta ficar privada do direito de testar - conclusões 9ª a 13ª. Mas antes hemos de ver que a Relação teve por assentes, sem qualquer oposição, os seguintes Factos 1 - O inventariado A faleceu em 27-6-96; 2 - A inventariada B faleceu em 15-7-98; 3 - Os inventariados eram casados em únicas núpcias de ambos, segundo o regime da comunhão geral de bens; 4 - O inventariado A, por testamento público de 2-10-92, deixou a sua quota disponível aos seus únicos filhos C e E; 5 - Por doação de 16-9-94, os ora inventariados A e esposa B doaram, em comum, àqueles já referidos e únicos seus filhos C e E, a raiz do prédio urbano inscrito na freguesia de Cacia sob o art.º 2723, reservando para eles o usufruto do mesmo prédio que nos autos constitui a verba n.º 49; 6 - Por sua vez, a inventariada B, por testamento de 12-12-97 e para pagamento dos serviços que lhe prestaram em vida, legou a quantia de 500.000$00 a F e deixou o remanescente da sua quota disponível à ora Recorrente D, com o encargo de lhe fazerem e suportarem os custos do funeral. O Recorrido C respondeu em defesa do decidido. Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões acima elencadas, para o que veremos o aplicável Direito Com os factos agora vistos, o Ex.mo Juiz mandou proceder à partilha pela forma seguinte: «Somam-se os valores dos bens não doados com os aumentos resultantes das licitações, e o total assim obtido divide-se em duas partes iguais, constituindo uma a meação do inventariado e a outra a da inventariada. À que constitui a meação do inventariado, adicionada da meia conferência dos bens doados, subtrai-se o respectivo passivo e o produto assim obtido divide-se, por seu turno, em três partes iguais, constituindo uma delas a sua quota disponível, na qual se imputará a meia conferência do bem doado aos referidos filhos e o excedente, se o houver, será adjudicado aos mesmos filhos, por força do testamento; a soma das outras duas partes constituem a sua quota indisponível e divide-se em três partes iguais, adjudicando-se uma a cada um dos referidos filhos e a outra, que constituiu a legitima da inventariada, somar-se-á à sua referida meação acrescida da restante meia conferência dos bens doados e à qual se deduzirá o respectivo passivo; o total assim obtido divide-se em três partes iguais, constituindo uma delas a quota disponível dos seus bens, na qual se imputará a restante meia conferência do bem doado; se a não exceder, dela sairá o referido legado e o remanescente, se o houver, será adjudicado à herdeira testamentária; as outras duas, que constituem a legítima dos filhos será divida por ambos em partes iguais». A Secretaria elaborou o mapa de partilha em conformidade: encontrou a herança da inventariada somando a sua legítima de cônjuge sobrevivo (5.002.392$00), a meação (10.099.765$50) e a meia conferência dos bens doados (12.500.000$00), tudo deduzido do passivo (181.100$00). A quota disponível era de 9.140.352$50, tal como a legítima de cada um dos filhos. Numa destas três partes, a disponível, imputou-se a meia conferência do bem doado aos filhos, não restando qualquer excedente para adjudicar quer à legatária quer à herdeira testamentária aqui recorrente. Por isso esta herdeira pretende se reduza a doação de metade do prédio da verba n.º 49 feita pelo seu defunto marido aos filhos do casal na medida em que ofende a legítima dela cônjuge sobrevivo, e se mantenha intacta a doação de metade dela inventariada por não poder afectar a legítima dos donatários, seus únicos herdeiros legitimários. A Relação decidiu que a Recorrente não tinha legitimidade para assumir a defesa da legítima da falecida e requerer agora em seu benefício a redução, por inoficiosidade, da doação feita pelo falecido A. Cremos que bem se decidiu. Consabido é que a sucessão legitimária, a que se impõe mesmo contra a vontade do de cuius, corresponde a interesses tão imperiosos aos olhos do legislador que este transforma as respectivas normas num verdadeiro ius cogens, inderrogável pela vontade do de cuius. De entre essas normas destacam-se as que definem e quantificam a legítima - art. 2156º e 2158º a 2162º CC - e a que reconhece a qualidade de herdeiros legitimários ao cônjuge, aos descendentes e ascendentes - art. 2157º CC. Claro que os proprietários dos bens são inteiramente livres de, em vida e a título oneroso, dispor deles como entendam, sem necessidade de se preocuparem com as simples expectativas dos que serão os seus herdeiros legitimários. Mas já não é assim no tocante a doações, pois a lei - art. 2162º CC - manda atender, para o cálculo da legítima, ao valor dos bens doados pelo autor da sucessão, dispõe que, sendo a doação de bens comuns feita por ambos os cônjuges, conferir-se-á metade por morte de cada um deles (art. 2117º, n.º 1) e classifica de inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos legitimários (art. 2168º CC). As razões que justificam a instituição da legítima não são bastantes para impor a redução ipso jure das doações inoficiosas, antes tal redução só pode verificar-se a requerimento do interessado cuja legítima seja ofendida. É quanto dispõe o art. 2169º do CC: as liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tudo quanto for necessário para que a legítima seja preenchida. Claro que o herdeiro testamentário é sucessor do de cuius, nos termos dos art. 2024º, 2026º e 2030º, n.os 1 e 3, do CC. Não quer isto dizer, porém, que o herdeiro testamentário possa exercer todos os direitos que cabiam ao falecido pois, como diz o art. 2025º do CC, não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que, em razão da sua natureza ou por força da lei, devam extinguir-se por morte do respectivo titular. Atento o regime e natureza da sucessão legitimária e os interesses que vimos estarem-lhe subjacentes, temos por seguro que o direito de pedir a redução das liberalidades inoficiosas apenas cabe ao sucessor do herdeiro legitimário que seja, ele próprio, também herdeiro legitimário de quem se finou sem exercer tal direito. É que o herdeiro testamentário da quota disponível não tem qualquer legítima a defender se o de cuius não lhe transmitiu tal direito. Por isso os Prof. Pires de Lima e A. Varela (CC Anotado, VI, 374) lêem assim este art. 2169º: «as liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus descendentes ...». Nem se diga que se a falecida tivesse vendido o seu direito à herança indivisa de seu falecido marido e a sua meação no casal igualmente indiviso, ninguém poria em dúvida o direito da adquirente a obter a redução da doação inoficiosa. São diferentes as situações, a requerer tratamento diferenciado. Na venda do quinhão hereditário vai incluído tudo quanto integra a herança da cedente, seja a legítima seja a disponível; na deixa testamentária da quota disponível o de cuius dispõe apenas da parte do seu património que a lei lhe permite distribuir como entender. Termos em que se decide a I questão e se desatende o concluído em 4ª e 8ª. Carece a Recorrente de razão quando pretende receber a quantia de 4.379.385$00, mesmo sem direito a obter a redução da doação, por inoficiosa. O mapa de partilha foi elaborado de acordo com o despacho que a determinou e deu pleno cumprimento ao disposto no art. 2162º, n.º 1, do CC, o que não acontece com as contas elaboradas pela Recorrente. Como do mapa se vê, a legítima da falecida na herança do pré-defunto marido era de 5.002.392$00 e a sua disponível ascendia a 9.140.352$50. Porque nesta se imputa a meia conferência do bem por si e marido doado por conta da disponível, no valor de 12.500.000$00, é claro que nada sobrava da disponível para que o testamento produzisse qualquer efeito. Pelo que improcede o concluído em 6ª e 7ª. Por último, dir-se-á que o facto de se não reconhecer à herdeira testamentária o direito de pedir a redução da doação ou o de haver o remanescente da quota disponível, apesar do testamento que como tal a instituiu, nada tem a ver com a protecção da legítima do doador sobrevivo ou com o seu direito de testar a que se referem os art. 69º e 2179º e ss, maxime 2188º, todos do CC. O doador sobrevivo que, juntamente com seu cônjuge, doou aos filhos, por conta da disponível, bem que a excede, continua a ter capacidade pata testar. O que não tem é bens de que possa dispor, sob pena de afectar a legítima dos legitimários. De resto e como resulta do art. 2171º do CC, se houvesse lugar a redução, cairiam primeiramente a deixa à recorrente e o legado, só depois sendo atingida a liberalidade feita em vida do autor da sucessão. O que demonstra proteger a lei a doação em vida em detrimento das disposições testamentárias. Assim se decide a III questão e se desatende o mais concluído. Decisão Termos em que se nega a revista e se condena a Recorrente nas custas. Lisboa, 29 de Outubro de 2002 Afonso Correia, Afonso de Melo, Fernandes Magalhães. |