Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2727
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: TRIBUNAL MARÍTIMO
TRABALHO PORTUÁRIO
NAVIO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CULPA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200510200027272
Data do Acordão: 10/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8512/03
Data: 02/17/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A verificação da culpa fundada na inobservância dos deveres gerais de diligência integra matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, apenas constituindo matéria de direito, susceptível de apreciação pelo tribunal de revista, a culpa normativa, resultante da infracção de normas legais ou regulamentares;

II - O princípio é aplicável ao caso sub iudicio, da responsabilidade pelos danos ocasionados à autora, Administração dos Portos do Douro e Leixões (Empresa-A, ), mercê de colisão de um pau de bordo de navio da ré, Portline - Transportes Marítimos Internacionais, em atracação no Porto de Leixões, com a lança de um pórtico da autora aprestado para a descarga de contentores transportados naquele.
Efectivamente, a repartição pela Relação a quo da responsabilidade entre as partes, ao abrigo do artigo 570, n.º 1, do Código Civil, fundou-se na circunstância de ambos os manobradores do pórtico de terra e da grua do navio terem contribuído de igual modo para a produção dos danos com a sua falta de cuidado e atenção, em violação do dever de diligência sempre exigível em manobras do género, estando consequentemente fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça a questão das culpas por se tratar de matéria de facto aqui insindicável;
III - Tanto mais que não foram violados específicos deveres de diligência prevenidos no artigo 40 do Regulamento de Exploração dos Portos do Douro e Leixões, aprovado pela Portaria n.º 207/91, de 13 de Março - o qual em lugar de definir qualquer culpa específica concernente a trabalhos portuários, isto é, peculiares deveres objectivos de cuidado configurando uma culpa normativa, antes contém prescrições de manobras portuárias de acostagem não implicadas na situação litigiosa -, mas tão somente os deveres gerais que fluem do artigo 487, n.º 2, do Código Civil, sem prejuízo das regras da arte.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Empresa-A, sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com sede em Matosinhos, instaurou no Tribunal Marítimo de Lisboa, em 18 de Junho de 2002, contra Empresa-B, sediada nesta cidade, acção ordinária tendente a fazer valer a responsabilidade civil desta por, no dia 12 de Julho de 1999, ter provocado a colisão de um pau de bordo (grua) do seu navio Port Douro em atracação no Porto de Leixões, com a lança de um pórtico da autora aprestado para a descarga de contentores naquele transportados, ocasionando avarias no pórtico cuja reparação montou a 4.920.490$00, e a paralisação do mesmo, com lucros cessantes no quantitativo de 5.000.000$00, prejuízos pelos quais pede a condenação da ré a pagar--lhe a indemnização global de 49.483,20 € (9.920.490$00), acrescida dos juros moratórios legais a contar da citação.

Contestou a ré atribuindo a colisão à conduta precipitada e negligente do operador do pórtico ao baixar a respectiva lança antes de o navio se encontrar pronto para descarga.

O processo prosseguiu a legal tramitação, vindo a ser proferida sentença final em 26 de Março de 2003, que, considerando não reunidos os pressupostos da responsabilidade civil accionada, devido a falta de demonstração da ilicitude e culpa da demandada, e ainda por se registar em contraponto procedimento negligente da demandante, julgou a acção improcedente, absolvendo a ré Portline do pedido.

A apelação da autora obteve parcial sucesso na Relação de Lisboa, a qual atribuiu a responsabilidade pelo acidente a concorrência de culpas de ambas as partes em igual proporção, nos termos do artigo 570 do Código Civil, condenando a ré a indemnizar a autora em 50% dos prejuízos sofridos, sendo os de paralisação, por falta de elementos acerca do seu quantitativo, a liquidar em execução, ou seja, na indemnização de 12.271,65 € (2.460.845$00), acrescida de juros moratórios legais desde a citação, mais 50% da quantia a liquidar em execução.

2. Do acórdão neste sentido proferido, em 17 de Fevereiro de 2004, traz a ré a presente revista, formulando na respectiva alegação as conclusões que se reproduzem:

2.1. O ‘Port Douro’ entrou no Porto de Leixões e atracou ao cais que lhe fora destinado pela administração portuária com as lanças recolhidas e em posição de descanso, em obediência ao determinado no Regulamento de Exploração dos Portos do Douro e Leixões, aprovado pela Portaria n.º 207/91, de 13 de Março;

2.2. «Era indispensável que a tripulação do navio rodasse a lança da grua n.° 2, de bordo, para permitir que o pórtico do cais pudesse iniciar a descarga, visto que alguns dos contentores a descarregar se encontravam debaixo da lança da grua do navio;

2.3. «Após concluída a manobra de atracação do navio ao cais, o manobrador do pórtico da Empresa-A, movimentou-o, baixando a lança deste antes de lhe ter sido comunicado que o navio estava na situação de ‘pronto’, não esperando a tripulação essa manobra porque ainda desenvolvia as tarefas de ‘aprontar’ o navio;

2.4. «Na execução dessas indispensáveis tarefas de pôr o navio em ‘situação de pronto’, a tripulação não desobedeceu a quaisquer instruções dos serviços da administração portuária, o que a recorrida nem sequer alegou, nem a embarcação realizou quaisquer outras manobras;

2.5. «Para concluir pela conculpabilidade do manobrador do pórtico da Empresa - A, e da tripulação do navio ‘Port Douro’, a douta decisão recorrida entendeu que esta teria violado o disposto no artigo 40 do Regulamento referido na primeira destas conclusões;

2.6. «O douto acórdão recorrido não indicou em concreto qual a norma ou normas concretas constantes daquele artigo 40.° que teriam sido violadas, o que desde logo constitui nulidade, tal como se estatui na alínea b) do n.° 1 do artigo 668.° do Código de Processo Civil, o que aqui se invoca acessoriamente;

2.7. «Ainda que, por mera hipótese, se admita que basta a invocação genérica do artigo 40.° do Regulamento, certo é que a douta decisão recorrida invocou erradamente tal preceito ao concluir pela conculpabilidade dos agentes dado que a matéria de facto provada não permite subsumir a actuação da tripulação à previsão naquele inciso;

2.8. «Ao invés, a manobra do navio (atracação) e a actuação subsequente da tripulação, decorreram com inteira observância do disposto no Regulamento em apreço, tendo a ocorrência resultado exclusivamente da actuação culposa do manobrador da Empresa - A,;

2.9. «Assim, contrariamente ao sustentado no aresto impugnado, não houve violação de qualquer dever de diligência e cuidado, exigidos às embarcações acostadas, que o ‘Port Douro’ tivesse culposamente violado;

2.10. «Não sendo, em consequência, invocável o disposto no artigo 570, n.° 1, do Código Civil, o qual, tal como as normas anteriormente referidas, foi violado (a contrario sensu);

2.11. «Acresce que não tendo havido qualquer ilicitude da recorrente nem violação culposa de qualquer preceito legal ou do mencionado Regulamento por parte da tripulação do navio, não estão reunidos os elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que ao decidir nos termos em que o fez, o douto acórdão recorrido violou ainda o disposto no artigo 483 do Código Civil;

2.12. «O que conduz à conclusão de que a recorrente Empresa-B, deve ser absolvida do pedido in totum uma vez que não se mostram reunidos os requisitos legais da responsabilidade civil extracontratual.»

3. Contra-alegou a autora, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.

E o objecto da revista, considerando as conclusões que vêm de se extractar, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste estritamente na questão de saber se o acidente sub iudicio deve realmente ser imputado a culpas concorrentes de autora e ré, ou de quem por elas agia, consoante vem decidido.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de alusões pertinentes.

2. E nesse conspecto factual, recordando que a sentença não atribuíra qualquer procedimento ilícito à tripulação do navio, antes imputando a responsabilidade do acidente ao procedimento negligente da autora, por isso absolvendo a ré do pedido, o acórdão recorrido analisa a situação destacando os aspectos seguintes.

Pelas 16h40, o operador do pórtico dirigia-se para a respectiva cabina para daí comandar a operação de descarga, quando se deu o embate da lança ou pau de carga de uma das gruas do navio, manobrada por um elemento da tripulação, com a lança do pórtico, o qual estava já posicionado para dar início à descarga.

A manobra de atracação do navio fora concluída às 16h30 e o operador do pórtico encarregado de efectuar a descarga tinha já baixado a lança do aparelho para dar início à movimentação deste.

Pois bem. Segundo a Relação de Lisboa, ainda que se tenha provado ter o manobrador do pórtico movimentado este antes de lhe haver sido comunicado que o navio estava na situação de pronto, e que a tripulação não esperava esta mesma manobra, pois não tinha efectuado ainda o posicionamento da grua do navio, a verdade é que igualmente se provou que o referido embate, entre a lança da grua e a lança do pórtico, se deu quando a tripulação da nave procedia à movimentação da grua, rodando-a para bombordo.

Ora, ao efectuar esta deslocação da grua a fim de permitir que o pórtico fosse movimentado e pudesse iniciar-se a descarga - pondera o acórdão recorrido -, «a tripulação do navio não estava dispensada da atenção e do cuidado que são exigidos a este tipo de manobras, designadamente para se aperceber de qual era o posicionamento concreto da lança do pórtico.»

E é neste circunstancialismo que o acórdão sub iudicio conclui terem sido «as referidas condutas dos manobrados do pórtico e da grua do navio», «exercidas inoportunamente e com falta de cuidado e atenção, em violação do dever de diligência que sempre é exigido em manobras deste género», a causa do «acidente em apreço, de que resultaram os danos que se provou terem sido sofridos pela autora».

Em suma. A responsabilidade pelo ressarcimento destes danos impende, «em conculpabilidade», sobre as «condutas do manobrador do pórtico da autora (lesada) e do manobrador da grua do navio da ré (lesante)», entendendo a Relação de Lisboa, à luz dos critérios do artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil, reduzir a indemnização em termos de uma repartição de responsabilidades em igual proporção, visto que ambos os manobradores «contribuíram, de igual modo, com a sua conduta negligente, para a produção dos danos sofridos pela autora».

3. Ora, constitui jurisprudência constante deste Supremo Tribunal a doutrina, segundo a qual a verificação da culpa fundada na inobservância dos deveres gerais de diligência é matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, apenas constituindo matéria de direito quando resultar da infracção de normas legais ou regulamentares (1) ..
Dito por outras palavras, não cabe na competência do tribunal de revista a apreciação da culpa assente na infracção dos deveres de diligência gerais, mas tão-somente a culpa normativa, resultante da infracção de normas legais ou regulamentares.

Daí que esteja fora dos poderes de cognição deste Supremo, na espécie submetida à nossa apreciação, a atribuição de culpas concorrentes a ambas as partes, por se tratar de matéria de facto aqui insindicável.

4. Poderia objectar-se que a Relação considerou antes violados específicos deveres de diligência prevenidos no artigo 40.º do Regulamento de Exploração dos Portos do Douro e Leixões, aprovado pela Portaria n.º 207/91, de 13 de Março, concitando, à luz da jurisprudência referenciada, a cognoscibilidade da culpa por esta estância jurisdicional.

Não seria essa, porém, uma posição avisada, dado que, se bem se lê, não se define no citado artigo, normativamente, qualquer culpa específica concernente a trabalhos portuários. Trata-se aí, sim, de prescrições de manobras portuárias de acostagem, e não da prescrição de peculiares deveres objectivos de cuidado configurando uma culpa normativa.

Não se vislumbrando outrossim, por isso mesmo, que específica matéria de direito no domínio em apreço se ofereceria à apreciação do tribunal de revista.

Aliás, como a recorrente demonstra em minuciosa análise do preceito, a manipulação da grua do navio que originou a colisão não é rigorosamente nenhuma daquelas que o artigo 40.º tipifica.

Consoante a prova, o navio estava acostado, e a lança do pórtico fora, bem ou mal, colocada em posição de trabalho. De modo que, nesta situação, se era realmente necessário rodar o pau do navio para bombordo, é evidente que os cuidados e a diligência a adoptar não se encontram de modo algum descritos no artigo 40.º, fluindo bem ao invés dos critérios gerais definidos no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, sem prejuízo, bem entendido, das regras da arte.

Tais, por consequência, os deveres gerais de diligência que a Relação, se bem se interpreta, considerou inobservados pela tripulação do «Port Douro».
III
Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido com as nuances apontadas.

Custas pela ré recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 20 de Outubro de 2005
Lucas Coelho, (Relator)
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) Citem-se, a título exemplificativo, os seguintes arestos desta 2.ª Secção, das mais recentes datas: de 5 de Junho de 2003, revista n.º 1148/03; 15 de Janeiro de 2004, revistas n.º 3074/04 e n.º 3718/04; 3 de Junho de 2004, revista n.º 1666/04.