Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B4287
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: FORMA DO CONTRATO
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
CONTRATO DE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO COMERCIAL
ESCRITURA PÚBLICA
FALTA DE FORMA LEGAL
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200402120042872
Data do Acordão: 02/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 845/01
Data: 06/03/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- O artº. 220º, do C.Civil, determina que, a forma legalmente prescrita é necessária para a substância do negócio, salvo previsão expressa de outro tipo de sanção.
II- O que significa que, quando a lei exigia para o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a forma de escritura pública, sem ressalvar qualquer sanção para a sua falta, tinha de se entender que tal forma era ad substantiam.
III- Não basta, para a existência do abuso de direito, a convicção, daquele que está sujeito à acção de nulidade por falta de forma do contrato, de que esta não será interposta. É necessário que tal convicção resulte duma conduta por parte do autor dessa acção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- "A" e Outros moveram a presente acção ordinária contra B, C e "D, Lda.", pedindo que os réus fossem condenados a:
- reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre determinado imóvel, restituindo-o àqueles, e dele retirando todos os móveis, que ali hajam depositado e que não façam parte do seu estabelecimento, bem como os indemnizando pela privação da posse, pelo montante de 6.000.000$00.
- mais pedem que in futurum e condicionalmente os rés sejam condenados a indemnizarem os autores pelos prejuízos emergentes da eventual perda do contrato de concessão de exploração de águas minerais pelo montante a liquidar em execução de sentença.
Os réus apresentaram contestação, a que se seguiu a réplica dos autores.
No despacho saneador, foi declarado nulo o contrato de cessão de exploração celebrado verbalmente entre o 1º autor e o os réus e, em consequência, foi ordenada a restituição do estabelecimento aos autores.
Recorreram os réus, mas foi-lhes negada a apelação.

Recorrem eles novamente, apresentando, em síntese, nas suas alegações de recurso, as seguintes conclusões:
1- A julgadora de 1ª instância, ao considerar nulo por falta da forma legal escritura pública - o contrato verbal de cessão de exploração celebrado, em 1997, entre os réus e o 1º autor, fundando a sua decisão no disposto nos artºs. 220º do C. Civil e 89º alínea K) do C. do Notariado, na versão vigente à data da celebração, não teve em conta o preceituado noutras disposições legais.
2- Com efeito, o DL 64 A/00 de 24.04, veio revogar o artº. 80º nº. 2 alíneas 1) e m) do C. do Notariado e dar nova redacção ao artº. 111º do RAU, que passou a estabelecer no seu nº. 3 que "A cessão de exploração do estabelecimento comercial deve constar de documento escrito, sob pena de nulidade".
3- Assim, como anteriormente a citada disposição do C. do Notariado não estabelecia expressamente que a falta de escritura pública constituiria nulidade, ao contrário do que agora preceitua o artº. 111º, nº. 3 do RAU, que estabelece expressamente a nulidade do contrato na falta de documento escrito, poderá logicamente entender-se que a anterior exigência legal de escritura pública era apenas uma formalidade ad probationem e não uma formalidade ad substantiam.
4- Caso em que o contrato de cessão de exploração em causa haveria que ser tido como válido e não como nulo.
5- Ainda que assim se não entenda, os réus alegaram:
que o 1º autor sempre os considerou como cessionários e destes sempre receberam a remuneração ou renda estipulada como contrapartida da cessão de exploração;
que a exploração do Hotel São Vicente já vem de há muitos anos e que os contratos de cessão de exploração celebrados pelos proprietários do hotel com os diversos exploradores, uma vez eram celebrados verbalmente, outras por escritura pública;
que sempre os proprietários do hotel tinham cumprido os contratos que celebravam;
que nunca os autores tomaram qualquer iniciativa ou exigiram que o contrato celebrado com os réus fosse titulado por escritura pública.
6- Criaram assim os autores nos réus a expectativa e até a convicção de que nunca viriam a invocar a nulidade do contrato por falta de escritura pública.
7- Ao fazê-lo, entraram em contradição com uma sua conduta anterior, em que fundadamente a outra parte havia confiado, pois criaram a convicção de que o direito nunca seria exercido, o que é contrário aos princípios impostos pela boa fé - cf. Vaz Serra RLJ 111º 296, ACRC de 01.07.79 CJ 1977 800, ACRP de 11.05.89 CJ 1989 3º 192 e ACRL de 17.07.86 CJ 1986 4º 134.
8- A presente acção integra, pois, por parte dos autores um manifesto abuso de direito, não devendo admitir-se a nulidade por falta de forma - Mota Pinto Teoria Geral 2º ed. 435.
9- O abuso de direito é do conhecimento oficioso.
10- A decisão recorrida violou os artºs. 80º, nº. 2 alínea m) do C. do Notariado, na sua primitiva redacção, 111º, nº. 3 do RAU, aprovado pelo DL 64-A/00, 334º do C. Civil, e 510º, nº. 1 alínea b), C. P. Civil, devendo ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos, dado não estarem ainda adquiridos todos os elementos necessários para o conhecimento do pedido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II- As instâncias deram por assentes os seguintes factos:
1- Na Conservatória do Registo Predial de Penafiel, sob o nº. de descrição 01042, da freguesia de Pinheiro, do concelho de Penafiel, mostra-se descrito o prédio urbano "Hotel de São Vicente", sito no lugar da Várzea, constituído por casa de três andares, dependência e parque, com as seguintes áreas: coberta 1291m2, dependência 611m2 e parque 4.000m2. Tem como confrontações, a Norte, ribeiro, a Nascente, estrada, a Sul, E e a Poente caminho. O valor patrimonial é o de 1.179.360$00.
2- O prédio está inscrito a favor de A, F e G, pelas cotas G1 2 G2.
3- Os autores H, I e J são os únicos e habilitados herdeiros de seu pai F.
4- No prédio identificado existe, há quase um século, um estabelecimento industrial de hotelaria, denominado Hotel São Vicente.
5- Estabelecimento industrial que os autores, por si e anteproprietários e possuidores, vêm explorando, ininterruptamente, pessoalmente e por intermédio de cessionários.
6- Em 1997, os réus e o autor A celebraram verbalmente um contrato de cessão de exploração relativo ao estabelecimento industrial referido.

III- Apreciando
1- Da forma do contrato de cessão de exploração
Pretendem os recorrentes que a forma de escritura pública, exigida para o contrato de cessão de exploração, ao tempo em que foi celebrado aquele em causa, tratava-se de mera formalidade ad probationem, cuja falta não prejudicava a validade do negócio.
Argumenta com a alteração do preceituado no artº. 11º do RAU, que, agora, comina com a nulidade a falta da forma legal, quando antes não o fazia.
Contudo, já antes, regia esta questão o artº. 220º do C. Civil que determina que a forma legal é necessária para a substância do negócio, salvo outra sanção especialmente prevista na lei. O que significa que, não havendo ressalva expressa, a forma legal é sempre ad substantiam. E esta não existe efectivamente para o contrato em apreço.
Aliás, a jurisprudência ia no sentido que vimos defendendo.
Aragão Seia refere - Arrendamento Urbano, 7ª ed. 653 - "Anteriormente à introdução do actual nº. 3, a al. M) do nº. 2 do artº. 80º do Código do Notariado, aditado pelo artigo 1º do Dec-Lei nº. 40/96 de 7 de Maio, impunha que se celebrasse por escritura pública a locação de estabelecimento comercial, expressão correspondente, como se viu, à de cessão de exploração de estabelecimento comercial.
Se não se observasse este requisito formal o contrato seria nulo - artº. 220º do C.C.".
Desta forma, não merecem censura as judiciosas observações feitas a este respeito na decisão em recurso, para as quais se acaba remetendo, nos termos dos artºs. 726º e 713º, nº. 5 do C. P. Civil.

2- Do abuso de direito na invocação da falta de forma
A jurisprudência tem seguido a orientação de que o arguente da falta de forma do negócio, apesar de vir contra facto próprio, pode pedir em juízo o reconhecimento da correspondente nulidade.
Aliás, se assim não fosse, estava descoberto o caminho para tornar irrelevante a forma legal. Ora, esta, como excepção ao princípio da liberdade de forma é de interesse público. Donde que não seja de admitir a sua completa subversão.
No entanto, também tem-se entendido, que, quando esse arguente, não se limitou a invocar a nulidade no sentido que lhe é mais favorável, mas criou ele próprio as condições para essa invocação, se está num caso limite em que os ditames da boa fé devem prevalecer, nos termos do abuso de direito previsto no artº. 334º do C. Civil.
No AC do STJ de 05-02-02 - Sumários 2002 53 - consignou-se: "Não havendo elementos que permitam afirmar que os avalistas, deliberadamente, prepararam aquela causa de nulidade, ou que dela então se aperceberam, ou que criaram no exequente a convicção de que não viriam mais tarde a invocar a irregularidade da assinatura, ... não ocorre abuso de direito. (sublinhado nosso)".
No caso dos autos os recorrentes alegaram constar da sua contestação os factos que lhes teriam feito criar essa convicção e que constam do ponto 5 das suas alegações: que os autores sempre consideraram os réus como cessionários, deles recebendo as rendas; que há muitos anos que as cessões de exploração era feitas ou não por escritura pública; que os autores sempre as respeitaram em qualquer dos casos; que nunca exigiram que o contrato passasse a ser titulado por escritura pública.
Todos estes factos, mesmo que viessem a ser provados em julgamento, não demonstram qualquer conduta dos autores especialmente dirigida à invocação da nulidade. São, pois, irrelevantes para efeitos de se determinar da existência do alegado abuso de direito.
Por isso, bem andou a decisão em apreço, quando entendeu que os autos não deviam seguir para julgamento, por considerar que os factos alegados não integram um comportamento censurável e intolerável por parte dos recorridos, de acordo com os limites impostos pela boa fé.

Consequentemente, improcedem, as conclusões do recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2004
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida