Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A318
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: PESSOA COLECTIVA
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
SOCIEDADE COMERCIAL
GRUPO DE SOCIEDADES
FIM SOCIAL
CAPACIDADE JURÍDICA
GARANTIA REAL
GARANTIA DO PAGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200305130003181
Data do Acordão: 05/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3425/01
Data: 06/04/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - "A", por apenso à execução contra si instaurada pelo B, deduziu embargos de executado.

Alegou que o título é insuficiente ou nulo e improcedente o pedido de juros.
Contestando, o embargado defendeu a insubsistência dos embargos.
O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela procedência dos embargos.
Veio a ser atendida uma reclamação da embargante.


Apelou o embargado.
O Tribunal da Relação julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida.
Inconformada, recorre a embargante para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- O artigo 6º do CSC regula a questão da capacidade das sociedades comerciais, e não um mero problema de vinculação das sociedades por actos contrários ao seu objecto praticados pelos seus representantes legais;
- O artigo 6º, nº 3 do CSC determina que, salvo casos excepcionais, as sociedades não têm capacidade para prestar garantias pessoais ou reais a dívidas de outras entidades;
- A violação desta disposição legal, mediante a prestação de garantias, a título gratuito, a favor de outras entidades, determina a nulidade do acto, nos termos do disposto no artigo 294º do CC;
- Nos termos do disposto no artigo 6º, nº 3 do CSC, conjugado, com o artigo 342º do CC, compete ao beneficiário da garantia provar a inexistência de justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia;
- Ao entender que compete à sociedade garante o ónus da prova da inexistência de justificado interesse próprio na prestação da garantia, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 6º, nº 1 e 3, do CSC, 294º e 342º do CC;
- Ao considerar também preenchidas, em face da factualidade provada, as excepções da 2ª parte do artigo 6º do CSC, o acórdão recorrido violou esta disposição legal, uma vez que os factos provados não importaram o preenchimento de qualquer dessas duas hipóteses;
- Subsidiariamente, o acórdão recorrido deveria ter ordenado a remessa dos autos à 1ª instância para serem apreciados e julgados os factos alegados na petição de embargos da recorrente sobre a inexistência de interesse próprio na prestação da garantia, pelo que, ao actuar diversamente, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 684º-A, nº 3 do CPC;
- Subsidiariamente, a exigibilidade da obrigação é questão de conhecimento oficioso do tribunal, pelo que, ao declarar parcialmente nula a decisão da 1ª instância, por excesso de pronúncia, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 495º do CPC.

O recorrido, contra-alegando, defende a manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:
Na Conservatória do Registo Comercial de Tomar, com a matrícula 00149/561114, encontra-se inscrita "C";
A "C" foi constituída para execução de obras públicas ou particulares, de qualquer natureza: a construção civil, incluindo compra e venda de prédios rústicos e urbanos, loteamentos, urbanizações, construção de edifícios e instituição em propriedade horizontal; indústrias de serração de madeiras; de carpintaria; de serralharia e metalização e comércio de materiais de construção por grosso e a retalho;
A gerência é composta por um Conselho de Administração que integra três membros: um presidente e dois vogais;
Para os triénios de 1988/1990 e 1991/1993, foram nomeados para desempenhar tais cargos, D, E e F;
Para o triénio de 1994/1996, foram nomeados presidente e vogais do Conselho de Administração da C, D, G e F, respectivamente;
Na Conservatória do Registo Comercial de Tomar, com a matrícula nº 00157/580214, encontra-se inscrita "A";
A "A" foi constituída para o exercício das actividades de engenharia, materiais, equipamento e obras;
A sua gerência é composta por um Conselho de Administração que integra um presidente e dois vogais;
Para o triénio de 1991/1993, foram nomeados para presidente do Conselho de Administração, J e para vogais do mesmo órgão, H e M;
Por renúncia de J ao cargo, em 1 de Dezembro de 1993, passou a desempenhar as funções de presidente do Conselho de Administração da "A", D;
Para o triénio de 1994/1996, foram nomeados para o Conselho de Administração da A, como presidente, D e H e I , como vogais;
Para o triénio de 1997/1999, o Conselho de Administração da A, passou a ser composto por D, como presidente e H e I, como vogais;
F, G e J são sócios da "A" e da "C";
Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, encontra-se descrito, sob o nº 00503/160739, o conjunto fabril constituído por seis pavilhões, estando dois por concluir (com as estruturas em betão armado e paredes, posto de transformação de energia eléctrica, conjunto de tulhas e tanques, estação de serviço para viaturas, com a área de oito mil metros quadrados, parque de material com área de vinte e dois mil metros quadrados e logradouro, com a área de trinta mil metros quadrados, no sítio de Carvalhos de Figueiredo, freguesia da Madalena, concelho de Tomar;
Tal prédio encontra-se inscrito, sob o artigo 1468º, em nome de "A";
O B instaurou execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra "A", para haver desta a importância de 210.446.953$20, acrescida de juros de mora, à taxa de 26,5%;
Para o efeito, apresentou uma escritura pública com a designação de "hipoteca", datada de 8 de Julho de 1993;
Nessa escritura, J , na qualidade de presidente do Conselho de Administração da A e G, na qualidade de administrador da mesma, declararam o seguinte: "que em nome da sociedade sua representada constituem a favor do B hipoteca voluntária, com plenitude legal, sobre o prédio referido para segurança e garantia do bom pagamento e liquidação:
De todas e quaisquer responsabilidades ou obrigações assumidas ou a assumir pela sociedade C, com sede na cidade de Tomar e por F, até ao limite de 200.000.000$00, provenientes de todas e quaisquer operações em direito permitidas, nomeadamente em descobertos de contas depósitos à ordem ou de outras de qualquer natureza;
Dos juros remuneratórios, até à taxa anual de 22,5%, elevável, da sobretaxa de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, o que se traduz em 26,5% ao ano, ou a mais elevada de outra ou outras taxas que venham a ser fixadas por alteração legal;
Das despesas judiciais ou extrajudiciais que o Banco tenha de fazer, incluindo honorários de advogados, computados em 8.000.000$00 para efeitos de registo";
Na mesma escritura, ficou estabelecido que a hipoteca tinha duração por tempo indeterminado, enquanto subsistirem quaisquer das obrigações ou responsabilidades mencionadas, perante o B;
Segundo a referida escritura, todos os documentos, sejam de que natureza forem, em que a C figure como responsável e que se encontrem em conexão com aquela escritura, dela ficarão a fazer parte integrante, para efeito de execução;
Ainda nos termos da mesma escritura, a hipoteca pode ser executada quando vencida qualquer das responsabilidades que assegura e não haja prorrogação, renovação, reforma ou substituição permitidas pelo Banco e ainda se o prédio hipotecado vier a ser objecto de execução, arresto ou qualquer outra forma de apreensão judicial, caso em que se consideram vencidas as responsabilidades que assegura;
O B, na mesma data referida, declarou aceitar a hipoteca, nas condições descritas;
A conta depósito à ordem nº 745701/2610418 do B, titulada por "C", em 20.01.94, tinha um saldo a favor do exequente de 89.806.183$30;
Resultante de levantamentos de dinheiro feitos pelo F, no período compreendido entre 29.06.93 e 21.12.93;
A executada realizou o acordo mencionado, sem ter recebido qualquer importância monetária do B;
Bem como da "C" ou de F;
Entre a A e a C existiam fornecimentos de materiais e serviços recíprocos, no âmbito das actividades aludidas;
O acordo descrito destinava-se a assegurar a viabilidade económica da C e de F;
O B, por carta registada com aviso de recepção de 15.01.94 interpelou a "C" para proceder à regularização do saldo devedor;
Decorrido o prazo fixado nessa carta, a "C" não regularizou o saldo devedor de Esc. 89.806.183$00;
O B interpelou F, por carta registada com aviso de recepção, datada de 15.01.94;
Decorrido o prazo de 15 dias fixado na carta, F não regularizou o seu saldo de Esc. 64.758.371$00;
A hipoteca aludida, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Tomar através da inscrição C-1, feita à descrição nº 00503/160739, da freguesia da Madalena, do concelho de Tomar;
Aquela inscrição foi feita como provisória por natureza, através da apresentação 05/070793, a favor do B - Porto, "para garantia de pagamento e liquidação de todas e quaisquer responsabilidades ou obrigações assumidas ou a assumir pela sociedade "C" e F e mulher L, na comunhão de adquiridos, até ao montante de 200.000.000$00; juros compensatórios à taxa de 22,5%, acrescida da sobretaxa de 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal; despesas emergentes do contrato 8.000.000$00; montante máximo 367.000.000$00;
A mesma inscrição foi convertida em definitiva através da apresentação 04/210793.

III - O Banco embargado e ora recorrido, instaurou execução contra a embargante e aqui recorrente, baseado numa escritura pública onde o presidente do Conselho de Administração da embargante e um administrador da mesma declararam que em nome da sociedade sua representada constituíam a favor do Banco hipoteca voluntária sobre um prédio, para segurança e garantia do pagamento e liquidação de responsabilidades ou obrigações assumidas ou a assumir pela C .
No acórdão recorrido (revogando-se a decisão da 1ª instância) considerou-se que é válida e bastante a garantia prestada, já que o ónus da prova da inexistência de justificado interesse recaia sobre a sociedade garante e não sobre o destinatário da garantia, pelo que nessa parte improcediam os embargos.
Daí o recurso da embargante.
O cerne da questão suscitada nas conclusões das alegações (que delimitam, em princípio, o âmbito do recurso) consiste em saber se a garantia prestada vincula ou não a sociedade recorrente, surgindo como subquestão essencial, a problemática do ónus da prova, ou seja, saber a quem cabe o ónus de provar que existe justificado interesse próprio da sociedade garante ou que se trata de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
O artigo 160º do C. Civil estabelece para as pessoas colectivas o princípio da especialidade, segundo o qual a capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, exceptuando-se os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular.
O artigo 6º nº 1 do C. das Sociedades Comerciais veio reproduzir na prática o referido artigo do C. Civil.
A capacidade de gozo das pessoas colectivas sofre assim restrições de três ordens: só integra os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins; direitos e obrigações esses que não sejam vedados por lei; direitos e obrigações que não sejam inseparáveis da personalidade singular.
Em conformidade com os enunciados limites, o nº 3 do mencionado artigo 6º determina que se considera contrária ao fim da sociedade, a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
Consistindo a capacidade jurídica na aptidão para ser titular de um círculo maior ou menor de relações jurídicas, é o conjunto das competências dos seus órgãos que assegura a actuação da capacidade de gozo de cada pessoa colectiva. Mas uma coisa é o complexo dos poderes funcionais conferidos a cada órgão para o desempenho dos fins da pessoa colectiva, outra é a medida dos direitos ou vinculações de que a pessoa colectiva pode ser titular ou estar adstrita.
A actuação ultra vires - para além das forças do mandato recebido - diz respeito aos meios ou condições de exercício de que a pessoa se pode servir para o desempenho da sua actividade e não propriamente ao fim ou objecto social - Prof. Oliveira Ascensão - "Direito Comercial" IV, Lisboa 2000, designadamente págs. 59/62; Prof. Carvalho Fernandes - "Teoria Geral de Direito Civil", 2ª ed., 1995, I, págs. 489/493.
O que aqui está em causa é a capacidade jurídica ou capacidade de gozo da pessoa colectiva e não a problemática que se prende com a sua capacidade de exercício ou capacidade de agir, segundo outra terminologia.
Sendo lucrativo o fim das sociedades Comerciais, e mesmo que se considere que o lucro não tem de ser aferido acto a acto, mas sim no conjunto da actividade da pessoa colectiva, a verdade é que parece inquestionável que a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, em princípio, afastar-se-ia do intuito lucrativo. Mas, para de dúvidas não possam subsistir, o nº 3 do artigo 6º determina expressamente que tal prestação é contrária ao fim da sociedade. Consagram-se, contudo, duas importantes ressalvas: salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou tratando-se de sociedades em relação de domínio ou de grupo.
Da matéria de facto apurada pelas instâncias não é possível concluir pela existência de qualquer das excepções previstas.
Vem, a propósito, unicamente provado que entre a sociedade garante (ora recorrente), e a sociedade garantida existiam fornecimentos de materiais e serviços recíprocos, no âmbito das suas actividades. O acordo em causa destinava-se a assegurar a viabilidade económica da sociedade a favor de quem foi prestada a garantia e ainda a viabilidade económica de um sócio comum às duas sociedades e foi feito sem que a sociedade tenha recebido "qualquer importância monetária".
É evidente que desta factualidade não é possível concluir sobre a existência ou inexistência de um justificado interesse próprio da sociedade garante.
Se o Juiz fica em dúvida sobre determinado facto, por não saber se ele ocorreu ou não, o non liquet do julgador converte-se, na sequência do comando do nº 1 do artigo 8º do C. Civil num liquet contra a parte a quem incumbe o ónus da prova do facto. A doutrina do ónus da prova pode assim ser chamada a doutrina dos efeitos da falta de prova - Prof. Antunes Varela - "Manual de Processo Civil", 2ª edição, pág. 447.
Importa pois saber a quem incumbe a prova dos factos.
O princípio geral é conhecido: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extensivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (artigo 342º nºs. 1 e 2 do C. Civil).
Em concreto, foi instaurada execução com base numa escritura pública onde a sociedade ora recorrente constituiu hipoteca voluntária a favor do Banco. O exequente invocou um direito e fez prova dele através do documento em causa.
A sociedade-garante embargou, sustentando que a prestação da garantia é contrária ao fim da sociedade, já que não existiu justificado interesse próprio da sociedade nem se trata de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
A prova deste facto impeditivo do direito invocado pelo exequente compete à sociedade embargante.
Afigura-se-nos que não é correcto o entendimento de que o nº 3 do artigo 6º do CS Comerciais para efeitos do ónus da prova deve ser cindido em duas partes, considerando-se que "salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante" é facto a provar pela pessoa colectiva a quem foi prestada a garantia.
Aliás, a entender-se que é a sociedade garantida que tem que provar a existência de interesse próprio por parte da sociedade garante, estar-se-ia perante uma prova que na prática seria muito difícil ou impossível de fazer, salvo, obviamente, se existissem prévias cautelas à prestação da garantia.
Tirando casos limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os actos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que por um lado a lei não diz o que entender por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da actividade social da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada.
Acresce até que no caso em análise, como correctamente se salientou no acórdão recorrido, a existência de sócios comuns às duas sociedades e as relações comerciais existentes entre elas fazem criar, pelo menos ao nível dos factos, uma presunção da existência do interesse próprio.
Embora a solução não seja pacífica - como o demonstram, aliás, as bens estruturadas e fundamentadas alegações da recorrente - é aquela que se vem afirmando neste Supremo e que não vemos razão para alterar - Ac. STJ de 21.09.2000, CJ III, pág. 36; Ac. STJ de 24.04.2001, Revista nº 911/01, desta 1ª Secção, "Sumários", 2001, pág. 133.
Nem se vê como nesta fase processual se pode reagir, pela forma que a recorrente pretende, relativamente aos factos constantes ou não constantes da base instrutória, quando a embargante não alegou, nem, consequentemente, provou factos demonstrativos da sua falta de interesse na garantia prestada.
Nem há qualquer nulidade do acórdão por se ter entendido que na 1ª instância se conheceu de questão cujo conhecimento lhe estava vedado, que era a exigibilidade da obrigação exequenda, já que não tendo a questão sido colocada, a problemática não era do conhecimento oficioso.
Pelo exposto, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Maio de 2003
Pinto Monteiro
Reis Figueira
Barros Caldeira