Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A844
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO DE ALMEIDA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
FIM CONTRATUAL
FACTO IMPEDITIVO
ESCRITURA PÚBLICA
Nº do Documento: SJ200404200008446
Data do Acordão: 04/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1014/03
Data: 10/08/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I- Se o prédio rústico objecto da preferência for adquirido para fim diverso da cultura fica excluída a preferência.
II- O fim não tem que constar da escritura e pode ser provado por qualquer meio.
III- O adquirente tem ainda que provar que a finalidade da aquisição é lícita e viável, para o que deve haver nos autos concretização e prova bastante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A) A e marido, intentaram a presente acção de preferência, sob a forma de processo ordinário, contra B e mulher e C e marido, pedindo:

a) Se declare reconhecido o direito de preferência dos Autores aquisição do prédio identificado na p.i., reconhecendo-se estes como dono de tal prédio.

b) Condenar-se os segundos Réus a entregar aos Autores o referido prédio rústico com todas as suas pertenças, dele largando mão. Declarar-se não ser exigível, por não ser devida pelos executados ao exequente/embargado a quantia dada à execução.

Alegam, sumariamente, serem donos de dois prédios rústicos, sitos no lugar do Alto da Veiga, freguesia de Seixas, concelho de Caminha, que confinam a nascente com o prédio rústico em causa nos autos. Este prédio pertencia aos 1°s Réus e estes, por escritura de 16/08/2000, outorgada no Cartório Notarial de Caminha, venderam-no aos 2°s Réus, pelo preço de 3.000.000$00.

Tendo essa venda sido feita sem conhecimento dos Autores, cujos contornos só vieram a descobrir em meados de Dezembro de 2000.
Face à confinância entre os prédios, invocam o direito de preferência nessa venda.
Devidamente citados os 2°s Réus contestaram – por excepção invocaram a renúncia dos Autores ao direito que agora pretendem fazer valer bem como a caducidade desse mesmo direito, uma vez que, alegam, estes terão declarado expressamente, cerca de 15 dias antes da realização da escritura, que não tinham interesse no negócio atendendo aos valores em causa, sendo certo que nesse mesmo dia terão tomado conhecimento dos elementos desse mesmo negócio. Para além disso, alegam ainda, sempre o eventual direito de preferência estaria excluído, pelo facto dos prédios terem destino diferente, ou seja, o imóvel dos autos seria afecto a um fim urbano e o dos Autores estaria votado ao mais completo abandono. Por fim, impugnam parte da matéria vertida na p.i. e concluem peia improcedência da acção.

B) Foi elaborado despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e a controvertida relevante para a decisão da causa, que constituiu a base instrutória.

A final a acção veio a ser julgada improcedente.
C) Inconformados com tal decisão recorreram os Autores para a Relação, mas sem êxito.

Mais uma vez inconformados recorrem para este Supremo os Autores que, alegando, concluem assim:

1. Está sobejamente comprovado nos autos que é perfeitamente inviável aos Réus ampliarem a área do logradouro da sua habitação através do terreno preferente;

2. O prédio preferente destina-se apenas ao cultivo de pinheiros;

3. Apesar de os terrenos referidos na planta de fls. 55, se encontrarem situados em área que o Plano Director Municipal, do concelho de Caminha, classificar como zona urbana de alta densidade, não é suficiente para se concluir que em tal terreno poderá vir a ser edificada uma qualquer construção, importa ainda curar se as autoridades administrativas autorizavam tal construção;

4. É condição essencial para a entidade administrativa viabilize qualquer construção, que os terrenos dos Autores – alíneas a) e b) da matéria assente – e o terreno preferente – alínea c) da matéria assente –, confrontassem com caminho público e, atendendo à sua dimensão, 240 m2, falta-lhe os requisitos essenciais para que a Edilidade permitisse ser aí edificado o que quer que fosse;

5. Em homenagem ao princípio do dispositivo, a alegação dos factos compete às partes, suportando cada uma das partes, o ónus de provar o que alega.
Assim, incumbia aos Réus a afirmação dos actos correspondentes à previsão da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pêlos Autores, competindo-lhes, portanto, a prova dos factos impeditivos ou extintivos da pretensão da contraparte determinados de acordo com a norma que assenta a excepção por eles invocada;

6. Donde, resulta, com a máxima evidência que, da matéria dada como provada pelas instâncias, não se encontram verificados os pressupostos exigidos pelo art. 1381° do Código Civil;

7. Em consequência disso, deve a decisão ser revogada, considerando-se a acção provada e procedente, com as legais consequências, por se considerar que o Acórdão da Relação violou o correcto entendimento de tais preceitos legais;

8. O douto Acórdão da Relação violou ainda o disposto no nº 1 do art. 371 do Código Civil, ao não considerar um documento autêntico, que fez prova plena, no qual consta que o prédio se encontra afecto à cultura de pinheiros.

Nas suas contra alegações os recorridos batem-se pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


D) Os factos:

1- A propriedade do prédio rústico constituído por terreno de pinhal, situado no Alto da Veiga, na freguesia de Seixas, com a área de 185 m2, a confrontar de norte com D, do sul com E, nascente com A e poente com F, inscrito na matriz predial sob o art. 1306°, descrito na ficha nº 01873/111200, da Conservatória do Registo Predial de Caminha, encontra-se inscrita a favor dos autores.

2- A propriedade do prédio rústico constituído por terreno de pinhal, situado no Alto da Veiga, na freguesia de Seixas, com a área de 295 m2, a confrontar de norte com G, do sul com E, nascente com H e poente com I e J, inscrito na matriz predial sob o art. 1304°, e descrito na ficha nº 01872/111200, da Conservatória do Registo Predial de Caminha, encontra-se inscrita a favor dos autores.

3- Até ao dia 17 de Agosto de 2000, o prédio rústico composto de terreno de monte, sito no Alto da Veiga, freguesia de Seixas, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 318, e inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 1305°, pertenceu aos primeiros réus.

4- Os prédios rústicos referidos em 1) e 2) confinam de nascente com o prédio descrito em 3).

5- Por escritura outorgada no dia 17 de Agosto de 2000, no Cartório Notarial de Caminha, exarada a fls. 61 a 62 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 32-D, os primeiros réus declararam vender aos segundos réus e estes declaram comprar-lhes, pelo preço de 3.000.000$00, o prédio identificado em 3).

6- Os segundos réus são proprietários e legítimos possuidores de imóvel urbano composto por casa de habitação e logradouro implantado e localizado na planta junta a fls. 55 dos autos como a parcela designada pela letra "A".

7- Os segundos réus foram negociando com os diferentes proprietários dos respectivos terrenos, as parcelas indicadas sob as letras "B", "C", "D" e "E", da planta junta a fls. 55 dos autos, que adquiriram.

8- Os segundos réus, à data da celebração da escritura notarial referida em 5), não eram confinantes com o prédio rústico objecto do negócio aí referido.

9- Os autores e seus antecessores, por mais de 15, 20, 25 e 50 anos, ininterruptamente, detiveram e possuíram os prédios referidos em 1) e 2) factos deles colhendo os frutos e demais utilidades, o que faziam publicamente, sem oposição de quem quer que fosse e de boa fé.

10- Entre os dias 29 e 31 de Julho do ano 2000, os primeiros réus deslocaram-se a casa dos autores dando-lhes conta da falta do marco situado a sul-poente do prédio descrito em 5) dos factos assentes.

11- Poucos dias depois os primeiros réus, acompanhados por Fernando Rua, deslocaram-se a casa dos autores informando-os da existência de contradições entre os valores da descrição predial e dos elementos matriciais, relativos à área do prédio.

12- Os primeiros réus solicitaram aos autores que assinassem um esboço de confinantes para assim procederem à rectificação de áreas.

13- Os segundos réus celebraram os negócios referidos em 5), 6) e 7) dos factos assentes com a intenção de aumentar a área de construção e logradouro do seu prédio, assim alcançando acrescida privacidade.

14- Com esse mesmo objectivo, pretendiam também adquirir o imóvel descrito na planta de fls. 55, sob a designação de parcela "F", que corresponde aos prédios identificados em 1) e 2) da matéria assente.

15- Todos os terrenos referidos na planta de fls. 55 encontram-se situados em área urbanizável, em que o Plano Director do Concelho de Caminha admite a construção de edifícios de rés-do-chão e dois andares, no máximo, e índices de construção em relação à área total de 0,7, no máximo.

16- Os autores não tomaram conhecimento, até à data da celebração da escritura, dos elementos da venda, nomeadamente, preço, condições de pagamento, compradores e data de celebração da escritura, relativos ao negócio descrito em 5) dos factos assentes.

17- O imóvel referido em 3) dos factos assentes foi vedado com rede.


E) Decidindo:

Pretendem os autores que lhes seja reconhecido o direito de preferência na aquisição do prédio em causa nos autos e, consequentemente, assumir a posição dos 2°s réus, na qualidade de compradores, no contrato de compra e venda titulado pela escritura de 17 de Agosto de 2000, exarada no Cartório Notarial de Caminha, a fls. 61 e 62 do Livro de Notas para Escrituras Diversas, e que lhes seja adjudicado o direito de propriedade e posse sobre tal prédio.

O Artigo 1380 do Código Civil estabelece que:

"Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante."

Para o exercício com êxito de tal direito é necessário que tenha sido vendido um prédio com área inferior à unidade de cultura; que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio vendido; que o prédio daquele que prefere tenha área inferior à unidade de cultura; e que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.

Dos factos dados como provados as instâncias reconhecem aos Autores a possibilidade de exercerem a preferência salvo se a invocada excepção proceder.
O cerne da questão reside pois em saber se a relevância do direito de preferência é excluída por o prédio rústico ser adquirido para fim que não o de cultura (cf. Artigo 1381 al. a) in fine)

Ao contrário do que afirmam os recorrentes, do contrato de compra e venda outorgado não consta o fim para que o terreno é comprado. Antes se identifica o prédio objecto do contrato de compra e venda registando-se que o prédio rústico é composto de terreno de monte (cf. escritura de fls. 5 a 8 junta aos autos).
Os Réus compradores não declararam perante o Notário qual o fim a que destinavam o prédio adquirido. Destinando-se o prédio a fim diferente da cultura não tem que constar da escritura esse fim diferente. Assim, a finalidade da aquisição é passível de prova a produzir pelo adquirente. (CJ STJ 1994/1/46 BMJ 293/355; BMJ 381/592 e Henrique Mesquita CJ 1986/V/50).
Não foi violado o disposto no Artigo 371 do Código Civil, como pretendem os recorrentes.

O fim que releva para integrar a situação que a al. a) do Artigo 1381 do Código Civil excepciona não é o que tem ou ao qual está afectado no momento da alienação mas aquele que constitui a finalidade da compra, caso essa finalidade seja legalmente possível.
Como referem Pires de Lima Antunes Varela no Código Civil Anotado Vol. III, página 276, nota 3 ao Artigo 1381 «O fim que releva, para efeito de aplicação do disposto na al. a), não é aquele a que o terreno esteja afectado à datada alienação, mas antes o que o adquirente lhe pretende dar. Este fim não tem necessariamente de constar da escritura da alienação, podendo provar-se por outros meios (…)».
Como facto impeditivo do direito do preferente, tem que ser provado pelo adquirente não confinante. (Artigo 342 n.º 2 do Código Civil e 493 do Código de Processo Civil).
Porém como decorre do já dito, não basta para afastar esse direito a prova da intenção de afectar o terreno adquirido a outro fim que não seja a cultura.
O fim que o adquirente pretende dar ao terreno é decisivo para a procedência da excepção, não se exigindo que o terreno seja de imediato utilizado nesse outro fim bastando que o seu destino posterior passe a ser outro.
Por outro lado e necessário que o facto psicológico «intenção» tenha reflexo na factualidade apurada, ou seja, que a intenção de se dar destino diferente da cultura tenha nos autos concretização e prova bastante. O que interessa estar apurado é que os fins da aquisição sejam viável e lícito.
Atendendo a que a norma do Artigo 1380 é de interesse e ordem pública, por ter como finalidade a luta contra o minifúndio, entende-se que a excepção invocada não passe mesmo disso não seja de mera intenção sem qualquer tipo de viabilidade.
Está provado que os segundos réus celebraram os negócios referidos em 5), 6) e 7) dos factos assentes com a intenção de aumentar a área de construção e logradouro do seu prédio, assim alcançando acrescida privacidade.
Os Réus adquirentes teriam de provar que nada se opõe a que a que a sua intenção se concretize e que portanto a mudança de destino é legalmente possível.
Vem, também provado, que o terreno é assumido pelo PDM como terreno para construção.
O terreno estava inserido em zona apta para construção à data da alienação. A lei não exclui que o prédio adquirido possa ter um fim diferente do de cultura.
O Artigo 25 do Decreto Lei 168/99 de 18/09 classifica os terrenos que são aptos para a construção. Há assim um critério legal que leva a considerar o terreno como de construção. Por outro lado os Planos Directores Municipais – PDM – são regulamentos administrativos que estabelecem as regras a que deverão obedecer a ocupação, uso e transformação do território municipal, que classificam os solos e definem os índices urbanísticos.
Do exposto resulta que não é o facto de determinado terreno estar inserido pelo PDM em zona de construção que esse terreno, sem mais deva ser considerado como tal. Uma da características que o terreno tem que ter é acesso, ou pelo menos que esteja por qualquer dos lados bordejado por caminho que determine a possibilidade de acesso. Os Réus não alegaram nem provaram que o terreno teria as características necessárias para se afecto à construção.
A outra finalidade pretendida, ou seja aumentar o logradouro do prédio urbano dos 2ºº Réus, também não se pode afirmar que a mesma seja possível. Efectivamente vem provado que os 2ºº Réus não são confinantes com o terreno que adquiriram. Não sendo com ele confinante, não há possibilidade de aumentar quer o logradouro do seu prédio, nem lhe pode aumentar a área de construção.
Não confrontando com o prédio dos Réus a sua aquisição nunca pode contribuir para o aumento do logradouro ou da área de construção.
Os Réus teriam que ter provado que a sua intenção era legalmente admissível e não é.

F) Face ao que se deixou exposto acorda-se em conceder a revista e, consequentemente em determinar a procedência da acção.

Custas pelos recorridos neste Tribunal e em ambas as Instâncias.

Lisboa, 20 de Abril de 2004
Ribeiro de Almeida
Nuno Cameira
Sousa Leite