Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1432
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
BANCO
ACÇÃO CÍVEL
INVIABILIDADE
Nº do Documento: SJ200510060014322
Data do Acordão: 10/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 6720/03
Data: 01/22/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - É inviável a acção tendente a fazer valer a responsabilidade civil do banco réu, pelos danos que ilicitamente causou ao autor em violação dos seus direitos de personalidade, tal o direito ao bom nome e reputação (artigo 70 do Código Civil), e de certos direitos patrimoniais, ao demandá-lo judicialmente em solidariedade com a mutuária, para pagamento, na qualidade de fiador e principal pagador, de prestações da quantia mutuada, apesar de o lesado ter avisado o lesante de não haver assumido a qualquer título a aludida posição de fiador e da falsidade da assinatura que como tal lhe era imputada no instrumento da fiança;
II - Na verdade, polarizando-se a problemática sub iudicio em torno do tema da culpa como pressuposto da responsabilidade e requisito da obrigação de indemnizar impendente sobre o banco mutuante, a culpa, nos termos do artigo 487.º, n.º 2, é apreciada em princípio pela diligência de um «bonus pater familiae» em face das circunstâncias do caso, e a mera invocação da falsidade da assinatura pelo putativo fiador não deve sem mais possuir a virtualidade de inibir um credor normal, à luz do critério legal, de exigir o pagamento judicial da dívida afiançada; e não se provando, por outro lado, na acção de mútuo a falsidade da assinatura, resta sem sentido a hipótese de, previamente à sua instauração, ter o banco omitido qualquer dever de diligência na averiguação da falsidade;
III - A imputação persiste outrossim sem justificação quando, na falta de prova da falsidade, se pretende fazer equivaler à omissão de um tal dever de diligência o posterius do incumprimento na mesma acção pelo banco réu do ónus probatório da veracidade delineado no artigo 374, n.º 2, do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. "A", residente em S. João, de Ovar (1) , instaurou no tribunal dessa comarca, em 3 de Março de 2003, contra Banco B, S.A., (antes ...., S.A.), com sede em Lisboa, acção ordinária tendente a fazer valer a responsabilidade civil do réu pelo facto de este o ter instado e assediado a pagar prestações em dívida de um contrato de mútuo outorgado a C para compra de certo bem à sociedade D, alegando a qualidade de fiador desta emergente de termo de fiança, por este assinado, em anexo ao contrato, e ameaçando-o de recurso a tribunal na falta de pagamento, circunstancialismos negociais totalmente alheios ao autor e que ele inteiramente desconhece.

Não obstante ter advertido o réu de não haver assumido a qualquer título a aludida posição de fiador, e da falsidade da assinatura que lhe era imputada, bem como da apresentação inclusive de queixa crime visando o apuramento da responsabilidade pelo facto, apesar de tudo isso o réu demandou-o no tribunal da pequena instância cível de Lisboa, como fiador e principal pagador em solidariedade com a mutuária, mediante a acção n.º 1493/01, do 10.º juízo, para pagamento de 512.052$00, e juros.

O autor contestou essa acção, aduzindo elementos susceptíveis de concorrer para a descoberta da falsificação da sua assinatura, e se bem que a perícia grafológica aí promovida pelo Banco B a não tenha podido comprovar, o certo é que o respectivo relatório do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, entre várias possíveis alternativas, admite como provável que a assinatura aposta no termo de fiança não seja da autoria do ora demandante.

Mas nem assim o aqui réu desistiu dos seus intentos no sentido de alcançar a condenação do autor.

A esboçada actuação do réu e de quem por ele agiu, causou prejuízos ao autor relacionados com perdas de tempo para contactos com o seu advogado, transportes e deslocações ao tribunal de Ovar e a Lisboa, telefonemas para os serviços do réu, refeições, a perda de um dia de férias, e nova deslocação a Lisboa quando for marcado o julgamento, danos patrimoniais cujo ressarcimento computa no valor de 464 €.

Por outro lado, também a descrita conduta do Banco B se reflectiu desfavoravelmente no seu relacionamento com a esposa, os filhos e de mais família, originando nesse círculo mais íntimo da sua vida a suspeita de que o autor poderia vir entretendo uma relação extraconjugal com a jovem mutuária, de todos desconhecida, que o autor, no entanto, afiançava sob falsa imputação do réu.

Pessoa sensível, educada, respeitada e respeitadora no meio social sofreu, pois, o autor com o abalo e as dores morais que atingiram a família, vendo o seu bom nome e reputação, assim como a própria saúde, injustamente afectados.

Pede pelos danos morais sumariados a indemnização 15.000€.

A actuação do réu é ilícita, maxime por ter violado os direitos de personalidade do autor, nomeadamente o direito ao bom nome e reputação (artigo 70 do Código Civil), e bem assim os aludidos direitos patrimoniais.

Trata-se, por outro lado, de uma actuação culposa na forma de negligência, a qual se revela topicamente em três aspectos fundamentais.

Desde logo, o termo de fiança é um documento autónomo do contrato de mútuo, sem qualquer referência identificativa deste último, o que permite a sua utilização avulsa relativamente a qualquer mútuo da pessoa afiançada.

Em segundo lugar, o instrumento da fiança não contém outrossim nenhum campo concernente à localidade da celebração do negócio de garantia, com reflexos, por exemplo, na definição da competência territorial do tribunal, como no caso aconteceu.

Acresce a omissão da pessoa que presenciou ou conferiu a assinatura do dito fiador, o que impede a prova testemunhal da falsidade. Sendo certo que não puderam até ao momento ser identificados os autores do delito, tendo o respectivo inquérito sido por esse motivo arquivado em 8 de Julho de 2002.

A actuação do réu foi, por conseguinte, negligente ao aceitar um documento de fiança enfermando das falhas aludidas.

2. Contesta o réu alegando não ter estado presente ao acto de aposição da controversa assinatura do autor, sempre, porém, havendo estado na convicção, efectuadas as diligências que considerou necessárias, de se tratar de uma assinatura verdadeira.

Impugna a existência ou a exigibilidade dos danos alegados pelo demandante.

Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferido despacho saneador, em 15 de Julho de 2003, que, conhecendo do mérito da causa, considerou a acção improcedente por manifesta inviabilidade.

Apelou o autor sem sucesso, tendo a Relação do Porto negado provimento à apelação, e confirmado o saneador/sentença recorrido.

3. Do acórdão neste sentido proferido, em 22 de Janeiro de 2004, traz o autor inconformado a presente revista, cuja alegação remata em conclusões extensas que nos dispensamos de reproduzir, posto que a argumentação e as questões nelas vertidas, reeditam praticamente a discussão travada no recurso de apelação, onde, com duas excepções, foram em suma abordadas e resolvidas pelo acórdão recorrido:
3.1. Responsabilidade objectiva do réu como comitente (conclusões 1.ª/21.ª);
3.2. Aferição da culpa em abstracto pela diligência de um bónus pater familiae em face das circunstâncias do caso (artigo 487.º do Código Civil; conclusões 22.ª/29.ª);

3.3. Nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão [artigo 668.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil; conclusões 30.ª/33.ª];

3.4. Omissão do dever de diligência do réu quanto à prévia averiguação da falsidade da assinatura (conclusões 34.ª/37.ª).

4. O réu contra-alega, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.

E o objecto da revista, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste na questão de saber se a acção - permita-se a evocação de prestigiosos mestres que já se não encontram entre nós - constitui caso de «inviabilidade stricto sensu» (Castro Mendes), conducente a que «a decisão tenha de ser sempre desfavorável ao autor» (Anselmo de Castro).
II
1. Em face dos articulados e demais elementos constantes do processo, o tribunal de Ovar respondeu afirmativamente, como sabemos, à questão enunciada.

E a Relação do Porto confirmou este entendimento, desenvolvendo ademais ponderosos argumentos em refutação das adversas teses do recorrente, de forma a suscitar inteira concordância, tanto no plano da decisão propriamente dita, como no da fundamentação, para que remetemos, nos termos do n.º 5 do artigo 713.º do Código de Processo Civil.

A problemática em causa polarizava-se, de resto, em torno do tema da culpa como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual e requisito da obrigação de indemnizar.

No ponto de vista do recorrente, o réu, antes de intentar a acção cível tendente ao pagamento de quantias em dívida pela mutuária, deveria ter tido o cuidado de averiguar cabalmente todo o circunstancialismo que rodeou a assinatura do termo de fiança, e só depois assumir uma posição quanto à exigibilidade da responsabilidade do autor como fiador.

Todavia, pondera a Relação em contraponto que a realidade é não se ter provado a falsidade da assinatura, restando, por conseguinte, sem sentido a hipótese de anteriormente à propositura da acção ter o Banco B omitido qualquer dever de diligência na averiguação da falsidade.

Por outro lado, nos termos do artigo 487, n.º 2, do Código Civil a culpa é apreciada em princípio pela diligência de um «bonus pater familiae» em face das circunstâncias do caso, e, a mera invocação da falsidade da assinatura pelo putativo fiador, passe a expressão, não deve sem mais a virtualidade de inibir um credor normal da dívida afiançada, à luz do aludido critério legal, de exigir o pagamento judicial da mesma.

2. E não se objecte com os dois aspectos da alegação da revista não abordados no acórdão recorrido, consoante a prevenção há momentos deixada em suspenso.

2.1. O primeiro refere-se à arguição da nulidade tipificada na alínea c) do n.º 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil, por oposição entre os fundamentos e a decisão, a que se refere a conclusão 33.ª

Na alegação da apelação o autor arguira as nulidades das alíneas b) e d) do mesmo normativo (cfr. a respectiva conclusão 1.ª), julgadas improcedentes. Agora argúi a da alínea c).

Confessa-se, todavia, não se perceberem os fundamentos da nulidade em questão. As premissas das conclusões 31.ª e 32.ª, constituem, sem quebra do devido respeito, modelos de ininteligibilidade.

Trata-se, em todo o caso, de questão nova não cognoscível oficiosamente, pelo que da mesma não poderia em todo o caso tomar-se conhecimento na fase do presente recurso.

2.2. O segundo aspecto relaciona-se ainda com a pretensa omissão do dever de diligência do réu na prévia averiguação da falsidade da assinatura.

Pois bem. Agora que na acção cível não se consegue provar essa falsidade, o autor mantém injustificadamente a mesma acusação, fazendo equivaler àquela omissão o posterius do incumprimento pelo ora réu do ónus probatório da veracidade delineado no artigo 374, n.º 2, do Código Civil.
III
Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo autor recorrente (artigo 446 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário oportunamente concedido.

Lisboa, 6 de Outubro de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) Que litiga com apoio judiciário oportunamente concedido