Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1357
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SUPRIMENTOS
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200407010013572
Data do Acordão: 07/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 625/03
Data: 02/02/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - O recurso de revista é o adequado para o STJ conhecer apenas da questão da litigância de má fé, tendo em conta que está em causa um ilícito substantivo, um problema de responsabilidade civil.
II - Os vocábulos liberalidade e suprimentos fazem parte dos que, traduzindo embora determinado conceito jurídico, têm também um significado de uso corrente facilmente identificável e integrarão matéria de facto ou matéria de direito consoante a sua contextualização.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Nesta acção ordinária, o dr. A pede a condenação da ré "B, S.A.", a pagar-lhe a quantia de 5.992.609$70 (5.451.957$00 de capital e 540.652$40 de juros vencidos), com juros de mora vincendos, alegando, em síntese, ser accionista da ré e que a quantia ora por si peticionada consta de uma conta a seu favor na ré, sob a rubrica «suprimentos», como forma de compensação pela ausência da distribuição de dividendos, procedimento este que teve lugar quanto a todos os accionistas.
Na contestação, a ré confessa a existência do crédito, mas contesta a sua proveniência, bem como a sua exigibilidade, alegando, em suma, que, o crédito do autor corresponde a adiantamentos para reforço dos capitais próprios da sociedade, sendo certo, porém, que o seu reembolso é uma obrigação sem prazo, condicionada pelas disponibilidades de caixa da contestante, inexistentes nesta altura.
Na réplica, o autor respondeu a esta matéria exceptiva e pediu a condenação da ré, como litigante de má fé, em multa e indemnização.
A ré treplicou e, realizado o julgamento, foi proferida sentença que:
- julgando procedente a acção, condenou a ré a pagar aos autor a quantia de 5.451.957$300, como juros de mora desde 9/7/1999, à taxa legal;
- condenou ainda a ré na multa de 50 UCS e em indemnização favorável ao autor, a fixar posteriormente nos termos do artigo 457º, nº. 2 do C. P. Civil (CPC), por alteração dolosa da verdade dos factos, uma vez que se veio a provar, contrariamente ao defendido pela ré, que o autor jamais emprestou dinheiro à ré e que o seu crédito, ora pedido, resulta de uma liberalidade da administração daquela.
A ré apelou desta sentença, mas a Relação do Porto manteve-a, à excepção da condenação da ré por litigância de má fé, decisão que revogou, com o fundamento de que o «motivo avançado neste particular na dita sentença nem sequer foi mantido e aceite.».
Considerou ainda o acórdão como não escrita a palavra liberalidade constante da decisão sobre matéria de facto, por ser um «termo conceitual» e que o acto praticado pela ré - um «acto intra-societário» traduzido na «inscrição na contabilidade da empresa de verbas em favor dos sócios» -, embora anulável, consolidou-se na ordem jurídica, por prescrição do direito de invocar (a tempo e por parte legítima) essa anulabilidade.
Recorreram deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça ambas as partes, sendo certo que o recurso interposto pelo autor, circunscrito à absolvição da ré como litigante de má fé, foi recebido como de revista, embora o recorrente o tenha qualificado como agravo no requerimento de interposição.
Houve contra-alegações a ambos os recursos no sentido da sua improcedência e a ré suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso interposto pelo autor.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Antes de entrarmos na apreciação do objecto de ambos recursos, há que decidir a questão prévia da indamissibilidade do recurso interposto pelo autor, suscitada pela ré com o fundamento de ser de agravo, com um valor de condenação (50UCS) aquém da alçada da Relação, sendo certo ainda que o vigente nº. 2 do artigo 754º do CPC - aplicável ao caso, por a acção ter sido proposta em 4/12/2000 - proíbe o agravo dos acórdãos da Relação «sobre decisões da 1ª Instância.
Na sua resposta, pugna o autor pela admissibilidade do recurso, com o fundamento de que é de revista, sendo ainda desconhecido o valor da indemnização a fixar a seu favor, pelo que se deve atender apenas ao valor da causa, nos termos do nº. 1 do artigo 678º do CPC.
Este recurso é limitado, como se disse, à parte do acórdão que decidiu revogar a sentença quanto à condenação da ré como litigante de má fé (não podia, aliás, o autor estender o objecto do seu recurso para além desta questão, uma vez que foi só quanto a ela que o recorrente ficou vencido - cfr. nº. 1 do artigo 680º do CPC).
O recurso em apreço foi admitido e processado como de revista.

Entende, no entanto, a ré que a espécie adequada aos recursos que têm por objecto as decisões por litigância má fé é a de agravo, pelo que, atento não só o valor da condenação (50 UCS de multa), como ainda o disposto na redacção vigente do nº. 2 do artigo 754º do CPC, o recurso não pode ser conhecido.
Não tem razão, porém.
Por um lado, estão subjacentes a uma condenação por litigância de má fé faltas aos deveres de probidade e de conduta ética das partes (interesses imateriais, portanto), consubstanciadoras de verdadeira responsabilidade civil.
Ora, como se decidiu no acórdão de 13/12/2000, proferido na revista nº. 3123/00, da 7ª secção deste Tribunal, o recurso de revista é o adequado para o STJ conhecer apenas da questão da litigância de má fé, considerando que está em causa um ilícito substantivo, um problema de responsabilidade civil (cfr. Sumários, ano 2000, página 371).
Por outro lado, estando ainda por liquidar a indemnização a favor do recorrente, o valor a atender para efeito da admissibilidade do recurso só pode ser, como determina o nº. 1 do artigo 678º do CPC, o valor processual da causa (in casu muito acima da alçada da Relação).
O recurso do autor está, assim, carregado na espécie devida, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, pelo que improcede a questão prévia levantada pela ré.

A Primeira Instância considerou provados os seguintes factos:
1º- O autor é accionista da sociedade ré, cujo capital é de 100.000.000$00, titulando 3% do capital social, ou seja 3.000 acções com valor nominal de 1.000$00 cada;
2º- O autor é credor de quantia pecuniária, relativamente à ré, que em 26/5/1999 se cifrava no montante de 5.451.957$30;
3º- Por carta registada com aviso de recepção, recepcionada pela ré a 8 de Junho de 1999, o ora autor exigiu o pagamento dessa dívida, fixando-lhe o prazo de pagamento para 30 dias após a respectiva recepção, ou seja, 8 de Julho de 1999;
4º- O crédito do autor sobre a ré resultou de uma liberalidade da administração desta (continuada pelo Presidente do respectivo Conselho - Engº C), a qual mandou creditar a conta de cada sócio na proporção da respectiva participação social;
5º- O autor jamais emprestou dinheiro à ré, seja com a natureza de suprimentos, seja com a natureza de simples empréstimo.

Como se disse, o acórdão recorrido aceitou este factos, à excepção da palavra liberalidade (constante do facto relatado supra sob o nº. 4), vocábulo este que considerou não escrito, ao abrigo do nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, por ser um «termo conceitual».
É este um dos pontos que integra o recurso da ré, cujo objecto passaremos já a apreciar.

RECURSO INTERPOSTO PELA RÉ
Conclusões da recorrente:
1. A elevação da liberalidade a conceituologia jurídica posterga o direito. E,
2. outrotanto, o derroga a redução dos suprimentos a mero facto.
3. A liberalidade pode ser, simultaneamente, um conceito de direito ou um mero facto, à luz do contextualizado em que se insere que,
4. no processo em presença, se fixa no segundo. Pelo que,
5. o acórdão recorrido não deveria ter considerado o termo liberalidade por não escrito, assistindo, desta forma,
6. ao STJ o poder e o dever de censurar e modificar essa qualificação que é, indubitavelmente,
7. uma questão de direito. E, assim,
8. radicado o crédito reclamado nessa liberalidade a acção teria de improceder e o recurso de conhecer pleno provimento. Sem prejuízo,
9. o acórdão recorrido é nulo pela contradição insanável em que incorre, a que, aliás,
10. se associa a sua falta de pronúncia. De facto,
11. toma a liberalidade por um conceito de direito e,
12. ao arrepio dos princípios elementares, considera o contrato típico de suprimento como matéria de facto; o que,
13. inequivocamente, é um conceito de direito pelo seu pendor específico de contrato típico regulado nos artigos 243º a 245º do C.S.C. dedicado às sociedades por quotas e extensivo às anónimas. Por isso,
14. a menos que a escrituração mercantil da sociedade do crédito como suprimentos não mereça só por si, do Tribunal a credibilidade e a fé pública dessa sua natureza, será
15. então, de ampliar a matéria de facto para ser ou não concluída aquela que,
16. se for pela afirmativa, produz a improcedência da acção carecida da prévia fixação judicial de prazo.
17. O cognominado acto inter-societário «descoberto» pelo acórdão recorrido é falho de qualquer materialidade que o configure. E,
18. reveste natureza igual à liberalidade ou à doação que contrariam os fins da sociedade guiada apenas pelo escopo do lucro. Logo,
19. esse acto intra-societário ficcionado pelo acórdão recorrido cai na proibição do artigo 6º do C.S.C..
20. A decisão recorrida violou os artigos 6º e 245º-1 do C.S.C. e o artigo 668º, nº. 1, c) e d) do CPCivil.

Insurge-se, portanto, a recorrente contra a decisão do acórdão em ter arredado da matéria de facto o vocábulo liberalidade e não ter feito o mesmo relativamente ao termo suprimentos, ínsito no facto supra enumerado em 5º, quando é certo que o vocábulo suprimento traduz «um conceito de direito específico pelo seu pendor específico de contrato típico regulado nos artigos 243º a 245º do C.S.C. dedicado às sociedades por quotas e extensivo às anónimas», enquanto que «liberalidade pode ser simultaneamente, um conceito de direito ou um mero facto, à luz do contextualizado em que se insere.».
Assim, além de propugnar a manutenção do vocábulo liberalidade - com a consequente declaração de nulidade do correspondente acto, por violação do artigo 6º do CSC -, defende que o acórdão sob recurso está inquinado com as nulidades de contradição insanável e de omissão de pronúncia, previstas nas alíneas c) e d) do nº. 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Ora, começando por estes vícios processuais, diremos que estamos, mais uma vez, perante o procedimento - corrente, mas incorrecto - de se impugnar um suposto erro de julgamento com a arguição de (inexistentes) nulidades da decisão.
Na verdade, o acórdão sindicando pode ter errado ao decidir dar por não escrito o vocábulo liberalidade e não ter feito o mesmo em relação ao termo suprimentos.
Mas o hipotético erro dessa decisão não é confundível com o chamado erro lógico que caracteriza a nulidade prevista na alínea c) do nº. 1 do artigo 668º do CPC, pois, como é evidente, não há qualquer contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos se o julgador, por um lado, entende eliminar do elenco da matéria de facto determinado vocábulo, por o considerar «conceitual» e, pelo outro, não se pronuncia sobre um outro vocábulo, que, segundo a opinião da recorrente - só agora expendida no recurso de revista - deveria merecer a mesma solução.
E se o acórdão silenciou a análise, sob a mesma perspectiva, do termo «suprimentos» é porque, como é óbvio, a questão nem sequer se colocou aos excelentíssimos desembargadores - quer por iniciativa das partes, quer oficiosamente -, pelo que também não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia, prevista na alínea d) do mesmo normativo, que a recorrente lhe imputa.

Vejamos, então agora, se o acórdão decidiu bem ou mal a questão, isto é, se houve ou não erro de julgamento.
É notória realidade sociológica a da tendência do léxico corrente em ir-se apropriando de terminologia com específica significação técnica, designadamente a jurídica.
Daí que seja entendimento jurisprudencial pacífico o de não se justificar a aplicação do disposto no nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil à decisão da matéria de facto que inclua vocábulos ou expressões, que, traduzindo embora determinado conceito técnico-jurídico, têm também um significado de uso corrente, fácil e inequivocamente identificável (v., entre muitos outros, o acórdão do STJ, de 2/12/1982, BMJ 322º-308).
Cremos que quer o vocábulo liberalidade, quer o vocábulo suprimento revestem esta característica de ubiquidade lexical - de uso corrente e de uso científico.
Como bem diz a recorrente, o vocábulo liberalidade pode ser, simultaneamente, um conceito de direito ou um mero facto, à luz do contextualizado em que se insere.
Mas esta asserção tanto se aplica ao vocábulo liberalidade, como ao vocábulo suprimento.
Liberalidade, em termos jurídicos, é definida pelo acto de que resulta, intencionalmente, um enriquecimento para outrem (Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, 1967, 3º-476), sendo certo que o vocábulo surge, em várias disposições da legislação ordinária, fazendo parte da respectiva estatuição, com esse sentido de acto de generosidade - v.g. nos artigos 197º (liberalidades em favor de associações sem personalidade jurídica), 940º (espírito de liberalidade que caracteriza o contrato de doação), 1890º (aceitação e rejeição de liberalidades a favor de menores), 2168º a 2173º do Código Civil (redução de liberalidades), todos do Código Civil e 6º, nº. 2 do Código das Sociedades Comerciais (liberalidades usuais).
E é também precisamente com este significado de generosidade, magnanimidade, munificiência que liberalidade é entendida pela generalidade das pessoas e empregue na linguagem corrente.
Pode, assim, dizer-se que o genérico conceito jurídico de liberalidade e o seu significado corrente se interpenetram completamente por forma a que seja, pela generalidade das pessoas, fácil e rapidamente, identificável na sua essência significante, independentemente da sua concreta catalogação jurídica (doação, legado, deixa testamentária, etc).
Não há, assim, razão para eliminar a palavra liberalidade da decisão da matéria de facto.

O mesmo sucede com o vocábulo suprimento, embora se deva reconhecer que a sua carga conceitual jurídica seja, relativamente a liberalidade, mais acentuada.
Mas, se é certo ser um vocábulo de ligação muito estreita ao conceito do específico contrato de suprimento, regulado nos artigos 243º a 245º do Código das Sociedades Comerciais - e, por isso, mais facilmente detectável na sua correcta significação pelos especialistas -, não se pode negar que a linguagem corrente também o usa com o sentido de empréstimo por um sócio à sua sociedade, como, grosso modo, é caracterizado o referido contrato.
De qualquer forma e como acertadamente frisa a própria recorrente, impõe-se sempre ponderar o contexto processual da alegação e da inserção na base instrutória destes vocábulos de uso dúplice.
Ora, na presente acção, a existência do crédito peticionado pelo autor nunca foi negado pela ré.
Antes, pelo contrário, foi por ela expressamente aceite na contestação e, por isso, a existência do crédito a favor do autor ficou logo a constar como facto assente.
O que a recorrente impugnou foi a proveniência e a exigibilidade do crédito, pois que não aceitou tratar-se de uma liberalidade da administração societária (para compensar a ausência de distribuição de dividendos), como alegou o autor, contrapondo, antes, que o crédito estava relacionado com adiantamentos feitos pelos sócios para reforço dos capitais próprios da sociedade e acrescentando que o reembolso desse crédito - tal como o dos congéneres dos demais sócios - não tinha prazo certo, dependendo da sua disponibilidade de caixa, inexistente na altura da propositura da acção.
A defesa da ré, ora recorrente, assentou, por conseguinte, na alegação de factos integradores do crédito do autor num contrato de suprimento, regulado nos artigos 243º a 245º do CSC - específico das sociedades por quotas, mas analogicamente extensível às sociedades anónimas (cfr. acórdão do STJ, de 9/2/1999, CJSTJ, ano VII, I-100/103) -, cujo prazo de reembolso teria que ser fixado judicialmente, nos termos do nº. 2 do artigo 777º do Código Civil, ex vi nº. 1 do artigo 245º do Código das Sociedades Comerciais.
Só que estes factos, submetidos a julgamento, não lograram comprovação, conforme resulta das respostas negativas às quatro primeiras perguntas da base instrutória.
Neste contexto, a inserção do vocábulo suprimentos na decisão da matéria de facto, supra sob o nº. 5 - onde se lê que «o autor jamais emprestou dinheiro à ré, seja com a natureza de suprimentos, seja com a natureza de simples empréstimo» - assume uma faceta meramente enfática de que o crédito não provém de qualquer empréstimo do autor à ré, designadamente do contrato de suprimento, que esta alegara, mas que não conseguiu provar, como lhe competia nos termos do artigo 342º, nº. 2 do Código Civil.
(Diga-se, a propósito e em breve parêntesis, que não há qualquer fundamento para este Tribunal, como sugere a recorrente, ordenar a ampliação da matéria de facto para averiguar se houve ou não contrato de suprimento, face à «credibilidade e a fé pública» que a recorrente atribui à sua escritura comercial.
E não há fundamento para essa sugerida ampliação, porque, por um lado, a faculdade excepcional prevista no nº. 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil não pode servir para o Supremo, em violação do disposto no nº. 2 do artigo 722º do mesmo Código, sindicar eventuais erros na apreciação da prova e na fixação dos factos provados pelas instâncias e, por outro lado, a recorrente não alegou mais factos sobre a questão para além dos que já constam das referidas primeiras quatro perguntas da base instrutória e que mereceram resposta negativa, sendo certo ainda que a escrituração comercial da recorrente não é um facto, mas um meio de prova, sem força probatória bastante para, só por si, anular a demais prova produzida - adequada a provar o contrato de suprimento, uma vez que a validade deste não depende de forma especial, conforme o nº. 6 do artigo 243º do CSC.).
Fechado este parêntesis, conclui-se de todo o exposto que deve ser revogada a decisão da Relação de considerar não escrita a palavra liberalidade, que, por isso, se manterá no elenco dos factos provados, tal como o vocábulo suprimentos.
Mas daí - especialmente da manutenção na matéria de facto do vocábulo liberalidade - não decorre o provimento da revista, como pretende a recorrente.
Efectivamente, não se pode dizer, como a recorrente, que a liberalidade (ou o acto inter-societário, na neologística terminologia do acórdão) originador do crédito do autor é nulo, por violação do artigo 6º do CSC, «atentos os fins da sociedade guiada apenas pelo escopo do lucro».
E isto pela simples razão de que não constam da decisão de facto, nem foram trazidos aos autos quaisquer elementos fácticos relativos à liberalidade em causa que nos permitam decidir se ela contraria ou não os condicionamentos legais previstos no nº. 2 do referido artigo, segundo o qual as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.
Improcede, assim, o recurso da ré.

RECURSO DO AUTOR
As conclusões do recorrente são do seguinte teor:
1. O que se pretende condenar através da litigância de má fé é a má fé instrumental ou a má fé material.
2. Má fé considerada quer se verifique uma actuação dolosa quer no caso de actuação com grave negligência.
3. No caso sub judice verificou-se dolo nos factos invocados pela ré, pois que foi efectuada a prova dos factos contrários a estes.
4. E sendo tais factos pessoais da ré, aos invocá-los bem sabia que eram falsos.
5. Acontece que o motivo apontado na sentença de primeira instância, fundamentador da condenação por litigância de má fé foi o seguinte: a ré fundou a sua defesa no facto de o crédito do autor se fundar em entregas ou adiantamentos por si feitos à ré a título de empréstimos - cfr. o alegado nos artigos 15º a 28º da contestação da ré.
6. Outrossim, foram dois os quesitos dados por provados de sentido contrário aos factos invocados pela defesa, nomeadamente através da resposta dada aos quesitos 5º e 6º da base instrutória.
7. Mas ainda que não tivesse sido formulado o quesito 5º seria bastante a resposta dada ao quesito 6º da base instrutória, através da qual se dá por provado que o autor jamais emprestou dinheiro à ré, seja com a natureza de suprimentos seja com a natureza de simples empréstimo, para cristalinamente concluir que a ré invocou factos falsos.
8. Factos falseados conscientemente pela ré, pois se tratavam de factos pessoais da ré.
9. Ou seja, não foi condição sine qua non daquela condenação os factos dados por provados através da resposta dada ao quesito 5º da base instrutória, mas outrossim, os factos dados por provados através da resposta dada ao quesito 6º da base instrutória.
10. O venerando acórdão do Tribunal da Relação do Porto, tendo considerado que o esforço e a credibilidade da tese jurídica preconizada deve fazer cair a condenação por litigância é, com o devido respeito, fruto de confusão entre má fé instrumental e má fé material.
11. O objecto de condenação foi exclusivamente a má fé material, a qual se mantém inalterada: o uso da MENTIRA.
12. Ora, em nada foi alterada a prova de que foi utilizada exclusivamente a mentira: os factos essenciais provados e fundamentadores da condenação por litigância de má fé mantêm-se inalterados: nunca houve quaisquer suprimentos ou empréstimos efectuados pelo autor e, portanto, nunca houve quaisquer acordos relacionados com algo que nunca existiu, obviamente.
13. Os factos invocados pela ré de que «o crédito do A sobre a Ré resulta do somatório das várias contribuições, entregas ou adiantamentos que ao longo do tempo o Autor foi fazendo à Ré» por serem factos falsos, de conhecimento pessoal de quem os invocou, e serem relevantes para a decisão da causa, são subsumíveis na previsão legal da condenação por litigância de má fé.

Adiante-se, desde já, que é manifesta a procedência deste recurso.
A sentença da 1ª Instância condenou a ré, por litigância de má fé, em multa de 50 UCS e indemnização favorável ao autor, de liquidação futura nos termos do nº. 2 do artigo 457º do CPC, por alteração dolosa dos factos, uma vez que se veio a provar, contrariamente ao defendido pela ré, que o autor jamais emprestou dinheiro à ré e que o seu crédito resulta de uma liberalidade da administração daquela.
A Relação revogou esta decisão com o fundamento de que «o motivo avançado neste particular na douta sentença nem sequer foi mantido ou aceite» - ou seja, o ter sido dada como não escrita a palavra liberalidade pelo acórdão recorrido - e de que o esforço da ré na defesa de uma tese jurídica credível arredariam a sua condenação como litigante de má fé.
Contudo, como bem acentua o recorrente, a condenação da ré nos termos do artigo 456º do CPC assentou na má fé material, que não na instrumental.
Na verdade, a 1ª Instância condenou a ré por, dolosamente, ter fundamentado a sua defesa na alegação de que o crédito do autor provinha de adiantamentos e entregas de dinheiro por ele feitos em reforço do capital da sociedade, quando, a final, se veio a provar que isso não era verdade, com a já analisada resposta de que o autor jamais emprestou dinheiro à ré, seja com a natureza de suprimentos, seja com a natureza de simples suprimento (supra, nº. 5).
Foi a peremptoriedade desta resposta, comprovativa de que a ré alegou factos falsos - relativos à sua actividade administrativa e que são, por isso, necessariamente do seu conhecimento -, que justificou a sua condenação.
Não foi:
- nem a derrocada da sua tese jurídica resultante da resposta negativa às quatro primeiras perguntas da base instrutória, onde se continha a expressão factual do contrato de suprimento, por ela alegado (aliás, de acordo com o entendimento doutrinal e jurisprudencial corrente, a condenação por litigância de má fé nunca poderá decorrer da sustentação, por mais especiosa e temerária que se apresente, de teses controvertidas, sob pena de ilegitimamente se coarctar o direito de defesa dos pleiteantes).
- nem o facto de a 1ª Instância ter dado como provado que o crédito do autor provinha de uma liberalidade da administração da ré - e daí que seja de todo irrelevante, para a questão em apreço, que a expressão liberalidade tenha sido dada como não escrita pelo acórdão recorrido e, agora na revista da ré, tenha sido repristinada.
O que relevou na condenação em apreço foi - repete-se e para terminar - o ter-se, clara e expressamente, provado que a ré alterou dolosamente a verdade dos factos, conforme prevê a lei (alínea b) do nº. 2 do artigo 456º do CPC).

DECISÃO
Por todo o exposto nega-se provimento ao recurso da ré e concede-se provimento ao do autor, de que resulta a revogação do acórdão recorrido na parte em que revogou a sentença da primeira instância, a qual ficará, assim, a subsistir por inteiro.
Custas de ambos os recursos (incluindo a questão prévia) pela ré.

Lisboa, 1 de Julho de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho