Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3527
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS MORAIS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ200406030035272
Data do Acordão: 06/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 2204/02
Data: 03/18/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - É conforme à equidade, à luz do artigo 496.º, n.º 3, última parte, do Código Civil, a indemnização de 3 500 contos pelos danos morais que sofreu a viúva de ciclomotorista falecido em acidente de viação por culpa do condutor do veículo segurado na ré, provando-se, nomeadamente, que marido e mulher constituíam um casal feliz, nutrindo um pelo outro um forte amor conjugal; que a morte interrompeu esta afectividade furtando à esposa a alegria de viver e envelhecendo-a física e psiquicamente; que o falecimento do marido a impediu de partilhar com ele o que de bom lhes trouxe o nascimento da filha Jéssica Gabriela cerca de um mês e meio antes, passando a sofrer sozinha as vicissitudes e dificuldades de a criar e educar sem o acompanhamento do pai;
II - É igualmente equitativa a indemnização de 1 800 contos a título de danos morais próprios a cada um dos três filhos do primeiro casamento do falecido, dissolvido por divórcio, Catarina Alexandra de 20 anos, Vera Lúcia quase com 16 e o João Carlos a fazer 13, na data do acidente, atendendo a que sofreram um grande desgosto pela morte do pai, com o qual mantinham uma relação muito estreita apesar do divórcio; que sempre os incentivava a prosseguirem nos estudos, tranquilizando-os quanto a dificuldades económicas e a preocupações de futuro; que tinham programado um jantar de família para o dia do seu aniversário, tudo revelando uma interacção de múltiplos significados e uma dimensão afectiva que a morte malogrou;
III - No quadro esboçado, a indemnização dos danos não patrimoniais próprios da filha Jéssica Gabriela, recém-nascida a 21 de Maio de 1997, quando da eclosão do acidente e da morte em 7 de Julho seguinte, deve segundo a equidade ser mais elevada que a dos irmãos, uma vez que ficou privada da assistência moral e afectiva paterna na formação e desenvolvimento da primeira infância e, bem assim, dos incentivos que aqueles sempre receberam;
IV - Tratando-se, com efeito, de dano existencial relevante na formação da sua personalidade moral, o mesmo não justifica, contudo, uma reparação de 3 500 contos - coincidente com a dos danos de sua mãe e assaz superior à dos irmãos, quando a Jéssica Gabriela não padeceu os sofrimentos que todos eles experimentaram por ser recém-nascida à morte do pai -, mas a indemnização de 3 000 contos mais conforme à equidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Os autores A, B e C, filhos do matrimónio de D - falecido no acidente de viação a que respeitam os presentes autos - com D. E, dissolvido por sentença de divórcio transitada a 8 de Novembro de 1996, os dois primeiros então menores representados por sua mãe e residentes em Viseu, aos quais depois se juntaram por apensação da acção respectiva 2.os D. F, viúva das 2.as núpcias do falecido, por si e em representação da filha menor deste outro casamento, G, residentes em Vila Chã de Sá do mesmo concelho, demandaram no Tribunal Judicial da cidade, em 30 de Abril de 1998, a Companhia de Seguros H, com sede em Lisboa, mediante acção sumária tendente a fazer valer a responsabilidade civil da ré por danos emergentes do acidente de viação aludido.
O sinistro ocorreu a 7 de Julho de 1997, num entroncamento da E.N. n.º 231 com a Rua da Regada, do concelho de Viseu, por colisão entre o ciclomotor do D, que o mesmo tripulava, e o automóvel ligeiro de mercadorias EJ de I, na altura conduzido por J e seguro na ré mediante contrato titulado pela apólice n.º 130660.
Alegam os autores que o acidente, imputável exclusivamente a facto ilícito e culposo deste condutor, originou a morte do D e consequentes danos patrimoniais e não patrimoniais dos autores, pelos quais pedem a condenação da ré a indemnizá-los: aos 1.os autores na quantia global de 12 056 250$00 e aos 2.os na soma de 32 600 000$00, discriminadas como segue, acrescendo juros legais a contar da citação.
No tocante aos 1.os autores, para o filho L, o quantitativo de 4 518 750$00 (1 500 000$00 por danos patrimoniais; 1 800 000$00 por danos não patrimoniais próprios; 1 218 750$00 a título de participação, na «percentagem legal», quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido e ao dano da morte). Para a B, idênticas quantias global e parcelares. Para a C 3 018 750$00 por danos morais, compreendendo parcelas iguais às dos irmãos.
Os 2.os autores pediram, por seu turno, para a viúva, D. F, 18 300 000$00 (12 000 000$00 por danos patrimoniais; 3 000 000$00 por danos morais próprios; e 3 300 000$00 relativos à sua parte na indemnização dos danos não patrimoniais do marido e do dano da morte). Para a filha G, 14 300 000$00, dos quais 8 000 000$00 a título de danos patrimoniais, e 6 300 000$00 por danos morais das mesmas três espécies.
Contestando a ré, e prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 1 de Fevereiro de 2001, a qual, considerando o acidente imputável a culpas concorrentes dos dois condutores, na proporção de 70% para o condutor do veículo segurado e 30% para o malogrado condutor da motorizada, procedeu a determinados acertos nas verbas peticionadas, e condenou a Tranquilidade, em suma: no pagamento destas aos autores em consonância com a aludida repartição de responsabilidades; no pagamento ao Centro Nacional de Pensões das prestações da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte solvidas a familiares da vítima, desde logo estipulando o respectivo desconto nas concernentes indemnizações; e nos juros de mora, a partir da citação relativamente aos danos patrimoniais, mas não quanto aos danos morais, calculados com actualidade na sentença e vencendo-se, por conseguinte, tão-somente a contar da data desta.
Apelaram todos os autores e a ré, tendo a Relação de Coimbra negado provimento à apelação desta, e conferido procedência às duas apelações dos autores, alterando parcialmente a sentença em conformidade.
Do acórdão neste sentido proferido, em 18 de Março de 2003, traz a ré inconformada a presente revista, cujo objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, se resume à quantificação, que adiante se precisará, das indemnizações pelos danos não patrimoniais, consideradas excessivas pela recorrente.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, para a qual, devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de alusões pertinentes.
Com base nessa factualidade, que manteve inalterada a despeito da impugnação deduzida pela ré apelante contra certos aspectos da decisão de facto, preliminarmente decidiu a Relação que o acidente fora da única e exclusiva responsabilidade do condutor do ligeiro de mercadorias, por excesso de velocidade e invasão da sua contra-mão, rejeitando a tese da desobediência a um sinal stop pelo ciclomotorista que, tendo prevalecido na 1.ª instância, conduzira à repartição de responsabilidades pelos dois condutores ditaminada na sentença, com os inerentes reflexo nos montantes indemnizatórios.
2. Assim definida nesta tónica a medida da responsabilidade da ré seguradora pela totalidade dos danos derivados do acidente, o acórdão sub iudicio debruçou-se em seguida sobre a determinação das verbas ressarcitórias dos danos não patrimoniais, chegando a resultados de sobressaliente concordância com as quantificações da sentença.
Na verdade, o cálculo, por sua vez, dos danos patrimoniais - futuros, isto é, as perdas patrimoniais dos lesados em consequência do desaparecimento dos rendimentos do trabalho do falecido -, computados segundo a equidade na 1.ª instância em 15 000 000$00, assim como as quotas de repartição pela viúva e os filhos, exceptuada a C, não foram questionados por qualquer dos recorrentes, resultando a sentença neste ponto confirmada, mas agora, assim necessariamente se interpreta, sem a dedução dos 30% ali atribuídos à culpa do D, aspecto em que a decisão foi revogada, como vimos.
3. Pois bem. No tocante, portanto, ao cômputo dos danos não patrimoniais, o acórdão recorrido considerou, em primeiro lugar, insusceptíveis de reparo os montantes, fixados pelo Tribunal de Viseu, de 6 000 contos pelo dano da morte e 2 500 contos a título de indemnização dos danos morais da própria vítima.
Homem gozando de perfeita saúde, na força da vida e dotado de grande alegria de viver, o sinistrado sobreviveu ao acidente durante seis horas de intenso e consecutivo sofrimento físico e moral, com lesões torácicas tão graves como a secção completa da aorta, tomado de pânico e de uma enorme angústia na consciência da aproximação da morte e da grande perda que representa o fim da vida de um homem de 41 anos, saudável, recém-casado, pai de 4 filhos, a G nascida apenas a 21 de Maio de 1997.
Na sentença atribuiu-se, por outro lado, a título de danos morais sofridos pela viúva e pela filha G, 3 500 contos a cada uma, e 1 000 contos a cada um dos três filhos do primeiro casamento.
Neste ponto a Relação considerou desde logo não merecer censura a indemnização arbitrada à viúva. D. F e D constituíam um casal feliz, nutrindo um pelo outro um forte amor conjugal que a morte rompeu tirando-lhe a alegria de viver e envelhecendo-a física e psiquicamente, quando a G tinha apenas cerca de um mês e meio de idade. Deixou assim de poder partilhar com o marido o que de bom lhe trouxe o nascimento da filha, passando a sofrer as vicissitudes e dificuldades de criar e educar uma criança sem acompanhamento do pai.
Quanto à G, entendeu-se na 2.ª instância que se justificava um montante indemnizatório por danos morais próprios mais elevado que o dos irmãos. Aquela perdera o pai com pouco mais de um mês de idade. A "C" tinha na altura 20 anos, a B quase 16 e o A a fazer 13. Ora a primeira infância é decisiva no processo de formação e crescimento, e a G ficou privada do pai nessa fase crucial de desenvolvimento.
De resto, ele sempre incentivara os filhos a seguirem a vida académica, asseverando que nunca lhes faltaria dinheiro para terminarem o curso que desejassem. E a G ficou também privada desse incentivo, que os irmãos receberam, além de, em termos afectivos e emocionais, não ter tido tempo para guardar na memória «as recordações que constituem o consolo das perdas».
Daí que o aresto trazido à nossa apreciação tenha considerado equitativamente ajustada no caso a indemnização de 3 500 contos à G.
Mas nem por isso admitiu como acertada à luz da equidade a quantia de 1 000 contos arbitrada no Tribunal de Viseu a cada um dos seus três irmãos.
Estes sofreram um grande desgosto pelo passamento do pai, com o qual mantinham uma relação muito estreita apesar do divórcio, que os incentivava a prosseguirem nos estudos, tranquilizando-os quanto a dificuldades económicas e preocupações de futuro. Tinham inclusivamente programado um jantar familiar no dia do seu aniversário, tudo revelando uma interacção de múltiplos significados e uma dimensão afectiva que aquela morte malogrou.
Nestas condições, entendeu a Relação de Coimbra que a reparação por danos morais próprios atribuída na sentença ao A, à B e à C era insuficiente, fixando-a em 1 800 contos a cada um.
Em conclusão. Declarou-se o condutor do veículo EJ único e exclusivo culpado pela produção e consequências do acidente que vitimou D, condenando-se a H: a pagar a cada um destes três autores 1 800 contos por danos morais próprios e 1 593 750$00 a título de quinhão na indemnização por dano da morte e por outros danos não patrimoniais sofridos pelo falecido antes do decesso (artigo 2139.º, n.º 1, do Código Civil); a pagar a D. F e a sua filha G, por estes tipos de danos não patrimoniais, respectivamente, 2 125 000$00 e 1 593 750$00 (citado normativo do mesmo corpo de leis).
No mais confirmou-se a sentença.
4. Da decisão dissente a ré H, mediante a presente revista, limitando-se na alegação e suas conclusões a impugnar os montantes indemnizatórios exagerados dos danos não patrimoniais.
O dano da morte ficaria adequadamente compensado com 5 000 contos em lugar de 6 000, e os sofrimentos da vítima não deveriam ser valorados em 2 500 contos, mas em quantia não superior a 1 500. A importância de 1 800 contos a título de danos morais próprios dos filhos do primeiro matrimónio seria segundo a recorrente igualmente imoderada, devendo preferir-se-lhe a reparação, mais justa e razoável, de 1 000 contos a cada um arbitrada na 1.ª instância, valor, aliás, consonante com os níveis praticados pelos tribunais superiores em casos semelhantes. Também as indemnizações por danos morais próprios de D. F e sua filha G, computadas em 3 500 contos a cada uma, se teriam de considerar, em suma, manifestamente excessivas, «ultrapassando, até, os valores a tal título fixados para o célebre acidente da ponte de Entre-os-Rios», pelo que deveriam ser reduzidas a 2 500 contos para a primeira e 1 500 contos para a segunda.
5. Os recorridos contra-alegam, pronunciando-se pela improcedência da revista.
III
Coligidos de conformidade com o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. Cingindo-se o objecto da revista à determinação dos montantes das parcelas ressarcitórias dos danos não patrimoniais, como se adiantou no início, deve imediatamente sublinhar-se que o acórdão recorrido teve o cuidado de fundamentar judiciosamente cada uma delas, recorrendo a factos e a elementos de razoabilidade ou a valores de justiça primaciais no nível do julgamento equitativo, assaz convincentes de acerto em geral nas quantificações operadas.
Trata-se efectivamente de uma estrutura referencial que a alegação da recorrente, limitando-se, salvo o devido respeito, a comparações jurisprudenciais questionáveis (1), e omitindo a adução de critérios de valoração materialmente fundados, não pôde contradizer.
Essa motivação permitiu inclusivamente estabelecer com apurada sensibilidade, assim o cremos, as distinções necessárias entre as pretensões concorrentes no litígio originado pelo doloroso evento dos autos.
Por isso merece inteira concordância e confirmação o acórdão proferido pela Relação de Coimbra, e sua fundamentação, para que nos remetemos, sem prejuízo do que seguidamente se observará.
2. Um único ponto da decisão nos suscita realmente reservas, qual seja o quantitativo de 3 500 contos de indemnização a título de danos morais próprios da G, idêntico ao de sua mãe e assaz superior ao de 1 800 contos atribuído a cada um dos irmãos, quando aquela não padeceu os sofrimentos que estes experimentaram, por ser recém-nascida quando o pai faleceu.
Como sabemos, a Relação fez justamente apelo, neste plano, à privação da assistência moral e afectiva paterna na formação e desenvolvimento da primeira infância. E cremos na verdade que se trata de um dano existencial de relevo na personalidade moral da criança.
Não julgamos, todavia, que possa justificar reparação coincidente com a dos danos morais da mãe e uma tão expressiva diferenciação relativamente aos danos dos irmãos.
Entende-se, por conseguinte, fixar segundo a equidade a indemnização à G pelos danos não patrimoniais próprios em apreço, no quantitativo de 3 000 000$00.
3. Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcialmente a revista no tocante à parcela ressarcitória a que vem de se aludir, confirmando o acórdão recorrido quanto ao mais.
Custas em proporção pela ré recorrente e pela autora parcialmente vencida (artigo 446.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário a esta concedido (cfr. supra, nota 1).

Lisboa, 3 de Junho de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) Consulte-se apenas, quanto a certos aspectos dos danos aqui implicados, o acórdão deste Supremo, de 13 de Maio de 2004, na revista n.º 1845/03, 2.ª Secção, bem como um certo número de outros recentes arrestos aí citados.