Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
044441
Nº Convencional: JSTJ00021686
Relator: TEIXEIRA DO CARMO
Descritores: HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
TENTATIVA
DOLO EVENTUAL
ARMA NÃO MANIFESTADA
Nº do Documento: SJ199401050444413
Data do Acordão: 01/05/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N433 ANO1994 PAG195
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PESSOAS / CRIM C/SOCIEDADE.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 14 N3 ARTIGO 22 N1 N2 B ARTIGO 23 N2 ARTIGO 74 N1 A ARTIGO 78 N1 N2 ARTIGO 131 ARTIGO 144 N2 ARTIGO 260.
CPP87 ARTIGO 120 N2 A N3 C ARTIGO 127 ARTIGO 163 N2 ARTIGO 409 ARTIGO 410 N2 N3 ARTIGO 433.
Jurisprudência Nacional: ASSENTO STJ DE 1989/04/05 IN DR DE 1989/05/12.
Sumário : A intenção, em Direito Penal, é um produto de elaboração normativa, só assim se compreendendo que ainda haja dolo, quando a realização do facto se apresenta como meramente possível, embora conformando-se o agente com semelhante eventualidade.
Decisão Texto Integral: Na 1. Subsecção Criminal do Supremo Tribunal de
Justiça, acordam os seus juizes:
Mediante acusação deduzida pelo Ministério Público em que lhe imputa a prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131, 132 (ausência de qualquer motivo o ser irmão da vitima), 22, ns. 1 e
2 alínea b), e 74, todos do Código Penal, e de um crime p. e p. pelo artigo 260 do Código Penal, com referência ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5/4/89, publicado no Diário da República, 1. Série, de 12/5/89, acusação que foi recebida nesses precisos termos, a folhas 39 e verso, sendo assim pronunciado, foi submetido a julgamento, em Processo Comum e com a intervenção do Tribunal Colectivo, na Comarca de Fafe, o arguido.
A, casado, operário têxtil, nascido em 05/02/63, com os demais sinais dos autos.
No final do julgamento, foi proferido o acórdão constante de folhas 54 a 56 e datado de 18/12/92, no qual, julgando-se a acusação provada e procedente, foi o mesmo arguido condenado, como autor material, de:
1 - um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131, 22 e 74, do Código Penal, na pena de dois (2) anos de prisão: e,
2 - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 260 do Código Penal, na pena de seis (6) meses de prisão.
E feito o cúmulo jurídico de tais penas, foi o arguido condenado na pena única de dois (2) anos e três (3) meses de prisão.
Foi declarada perdida a favor do Estado a arma apreendida nos autos.
Foi o arguido ainda condenado no pagamento dos mínimos da taxa de justiça e de procuradoria, fixando-se em
10000 escudos os honorários do seu defensor.
Ordenou-se finalmente, na decisão, que, transitada em julgado, se passassem mandados de captura contra o arguido, com vista ao cumprimento da pena de prisão imposta.
Inconformado com o acórdão proferido, do mesmo veio interpôr recurso o arguido, que motivou, desde logo requerendo que as alegações fossem produzidas por escrito, em conformidade com o disposto no artigo 434, ns. 1 e 2, do Código Processo Penal.
Na respectiva motivação, e em sede conclusiva, o arguido recorrente, aduz o seguinte:
1 - Dos factos dos autos vertidos no inquérito, verifica-se que na acusação não há indícios suficientes para se criar um juízo de probabilidade de condenação do crime de homicídio tentado do qual o recorrente vem acusado (sic);
2 - O Tribunal "a quo" na qualificação jurídica e dos factos provados na audiência de julgamento devia julgar a acusação parcialmente provada e procedente, convolando o crime de homicídio tentado para o crime de ofensas corporais com dolo de perigo previsto pelo artigo 144, n. 2, do Código Penal.
3 - Na aplicação da pena (medida) aplicada ao recorrente o Tribunal "a quo" deveria atender a todas as circunstâncias atenuativas, nomeadamente ao perdão publico e espontâneo expresso pelo ofendido, sendo que o acórdão recorrido violou, além do mais, as normas dos artigos 131, 22 e 74, do código Penal, imputando ao recorrente á comissão de homicídio na forma tentada; as declarações do arguido e do ofendido são insuficientes para se decidir quanto à prática de tal ilícito - como se explicita adiante, em sede de alegações escritas
(ver fls. 87 e segs.), no acórdão recorrido, não ficou provado que o recorrente tenha disparado a arma com intenção de matar o ofendido, seu irmão; tal facto, já em sede de fundamentação do acórdão recorrido, abona-se apenas nas declarações do ofendido e nos depoimentos do Agente policial, não tendo este presenciado os factos, como resulta das declarações do aqui recorrente, nas circunstâncias de lugar e tempo descritas nos autos, houve uma agressão mútua, resultante da discussão no interior do café; mordido pelo ofendido no polegar da mão direita, com dores físicas e ameaçado, o recorrente fugiu, perseguindo-o seu irmão na fuga; é nessa perseguição que o recorrente, e com o recuo necessário para repelir a agressão actual e ilícita, disparou, mas sem intenção de matar o irmão; resulta assim, sustenta o recorrente, haver inequívoco erro na apreciação da prova -
4 - Deve ser excluído o dolo na forma directa e eventual quanto ao crime de homicídio.
Em suma impetra o recorrente que, na procedência do recurso, se decida no sentido da revogação parcial do acórdão recorrido, condenando-se o mesmo recorrente pelo crime de ofensas corporais com dolo de perigo p. p. pelo artigo 144, n. 2 do Código Penal, tendo-se "em consideração as circunstâncias com grande relevo atenuativo atrás referidas - boa conduta, confissão parcial dos factos, arrependimento, situação económica modesta, acrescendo arguido e ofendido serem irmãos, vivendo em paredes meias; o ofendido, em plena audiência, espontaneamente e publicamente perdoou ao recorrente, não deduzindo oportunamente pedido civil para ser indemnizado dos danos morais e patrimoniais suportados; vivem em sã harmonia e a prisão efectiva poderá prejudicar o bom ambiente familiar -, avançando-se com a pena unitária de 9 meses de prisão.
Veio responder ao recurso o Ministério Público, fazendo-o nos termos constantes de folhas 71 a 72, batendo-se pela manutenção da decisão recorrida, recurso aquele que foi admitido a folhas 69.
Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça.
Teve vista dos autos o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que mostrou o parecer de folhas 78 a 79, nada invocando ou trazendo aos autos que obste ao conhecimento do recurso.
Foi proferido o despacho preliminar, nada obstando ao conhecimento do recurso.
Foi fixado prazo para apresentação de alegações escritas, tendo-o feito o Ministério Público e o recorrente, respectivamente a folhas 81 e seguintes e
87 e seguintes.
Nas suas alegações, o recorrente conclui em termos idênticos aos da sua motivação, enquanto que o Ministério Público esgrime no sentido da correcta subsunção jurídico penal da conduta do arguido na decisão recorrida, confrontando a tentativa quer o dolo directo, quer o necessñrio, quer o dolo eventual, que a pena aplicada ao recorrente só peca por defeito, não por excesso, e, que deverá, em suma, negar-se provimento ao recurso interposto, mantendo-se na
íntegra decisão recorrida.
São corridos os vistos legais.
O que tudo visto, cumpre agora decidir:
No tocante á insuficiência indiciaria na acusação, tem razão o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça quando afirma não se atingir qual o objectivo processual que o recorrente pretende atingir com a invocação da aludida deficiência.
A fase acusatória ou do libelo recorta-se plenamente ultrapassada, nesta altura, podendo tão somente, nesta fase processual, arguir-se vícios sobre a matéria de facto relativos á sentença, como expressamente se prevê e permite no artigo 410 para onde remete o artigo 433, ambos do Código de Processo Penal.
De resto, estatui o artigo 120, n. 2, alínea d), e n.
3, alínea c), do mesmo diploma, que a insuficiência do inquérito (no caso não houve instrução) deve ser arguida até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito. Ora, não tendo havido tal arguição, sanada está a sua eventual nulidade. De resto, se o aqui recorrente pretendia discutir a insuficiência da prova indiciaria, se discordava da acusação, impunha-se que tivesse requerido a instrução, o que não fez, ignorando, deste modo, o disposto no artigo 287, n. 1, alínea a), do Código de Processo
Penal.
Também.
Nesta parte, o recurso está votado á improcedência, sendo manifesta a falta de fundamento.
Segue-se, pois, que estivemos na apreciação dos factos dados como provados, ou seja, no conhecimento do fundo.
Tais factos são os seguintes:
- Em 5 de Agosto de 1991, cerca das 0,30 horas, perto do café "Africano", em Casadela, Guinchães, Fafe, após breve discussão entre ambos, o arguido A disparou três tiros de uma pistola de que se encontrava munido na direcção do seu irmão
B;
- Dos três disparos efectuados, dois vieram a atingir a vitima, causando-lhe as lesões descritas nos exames médicos a que se procedeu em 27/9/91 e 19/11/91 - no primeiro, apresentava no respectivo exame físico, cicatriz circular na região retro-auricular esquerda, outra com as mesmas características no ombro esquerdo e pequena incisão própria para situação cirúrgicas com 2 centímetros de extensão a nível da região da omoplata esquerda, no segundo, consta que os elementos colhidos nos hospitais onde foi assistido (hospital distrital de
Fafe, hospital distrital de Guimarães e hospital de S.
João do Porto) "confirmam as descrições feitas no exame directo feito em 27/9/91 a folhas 7 e verso; que segundo os mesmos elementos aparentemente não resultaram sequelas graves e definitivas provocadas pelas lesões sofridas. Como sequelas definitivas descrevem-se as cicatrizes já mencionadas anteriormente. Deverão ser atribuídos sessenta dias com incapacidade para o trabalho para cura das lesões
(folhas 22 e v.) - cicatriz retro-auricular e cicatriz circular no ombro esquerdo, além de dor física e pequena incisão própria para situação cirúrgicas com dois centímetros de extensão a nível da região da omoplata esquerda, que lhe determinaram definitivamente as cicatrizes referidas e doença por sessenta dias com incapacidade para o trabalho;
- A pistola utilizada era uma arma pitada para utilizar munições reais de calibre 6,35 mm, sem marca, número identificativo, tendo o cano o comprimento de sete centímetros e que não se encontrava manifestada ou registada.
- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente; sabia que a sua conduta não lhe era permitida.
- Representou como possível que os projecteis disparados contra o ofendido seu irmão lhe causassem a morte mas tal resultado possível foi-lhe indeferente;
O arguido tem tido boa conduta, confessou parcialmente os factos provados, mostrou arrependimento, tem situação económica modesta, é operário fabril e casado, com dois filhos menores.
Não ficou provado que o arguido tenha disparado a arma com a intenção de matar o ofendido seu irmão.
Atento o disposto no artigo 433 do Código de Processo
Penal, remissivo para os ns. 2 e 3 do artigo 410, do mesmo diploma, temos que considerar a matéria fáctica assim apurada por definitivamente assente? Entendemos que sim, mas com uma restrição e tal reside no facto de a "intenção" de que se fala nos factos não provados se terá de compreender como pura intenção psicológica, puro querer determinado, sendo certo que, como resulta do disposto no artigo 14, n. 3, do Código Penal, a "intenção" avocada pelo direito penal excede aquele aquele conceito meramente psicológico esgotado no puro querer.
A intenção, em direito penal, é resultado da elaboração normativa, assumindo tal natureza, só assim se compreendendo que ainda haja dolo "quando a realização de um facto fôr representado como uma consequência possível da conduta, se o agente actuar confirmando-se com aquela realização", no sentido desta lhe ser indiferente.
Em suma, somos confrontados com a existência de dolo eventual, e este da morte, que não somente de perigo.
Não cabe discussão sobre o modo como o tribunal formou a sua convicção, imperando a regra do artigo 127 do
Código de Processo Penal, sendo que não adianta trazer-se a terreiro qualquer argumento a extrair do exame pericial, cujo relatório, de resto foi acatado sendo ele omisso quanto à intenção de matar, o tribunal era livre na indagação de tal elemento. A aplicação aqui do exposto no artigo 163 do Código de Processo
Penal - valor da prova pericial -, nomeadamente o seu n. 2, só valeria se o tribunal divergisse do juízo pericial. Mas, tal não ocorreu. O que acontece é que relativamente a tal juízo, entrando o tribunal na indagação da intenção ou não de matar, se limitou a completá-lo, a alugá-lo, sem exceder nunca os seus poderes de arguição, confinando-se ao thema decidendum, condicionador do thema probandum (a imputação constava da peça acusatória que foi recebida. Sendo jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de
Justiça a de que, na tentativa, como forma de crime de imperfeito, a contrapôr-se ao crime consumado, dito também de perfeito, abarcando aquela hoje a antiga figura do crime frustrado, apenas se deve ter por excluída a conduta negligente ou de mera culpa, comportando, assim, qualquer tipo de dolo, incluindo o eventual, temos que a conduta do arguido é subsumivel à previsão dos artigos 131, 22: ns. 1 e 2 alínea b), 23 n. 2, e 74, n. 1 alínea a), todos do Código Penal - - autoria material de um crime de homicídio simples tentado. - , e, nesta incriminação já entra excessiva benevolência, tendo em conta o facto de se ter utilizado arma de fogo e de o ofendido ser irmão do arguido, mas que agora não podemos tomar em consideração sob pena de colidíamos com a proibição da "reformalio in pejus", sendo certo que não houve recurso por parte do Ministério Público, a que acresce, em concurso real, a autoria de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 260 do Código Penal também, e Assento do Supremo Tribunal de Justiça de
5/4/89, publicado no Diário da República I. série, de
12/5.
Superado todo o circunstancionalismo emergente e fixado na decisão recorrida, sem esquecermos ou deixar de querer pôr em destaque a benevolência havida e contra a qual não se reage por imperativo legal - artigo 409 do
Código de Processo Penal - têm-se por adequadas, dentro destes limites as aprontadas penas de 2 (dois) anos de prisão para o crime de homicídio tentado, e de 6 (seis) meses de prisão para o crime de detenção de arma proibida, e, consequentemente, e atento o estatuído no artigo 78, ns. 1 e 2, do Código Penal, equacionando os factos com a personalidade do agente, é de dar aqui guarida, tendo-a por ajustada, à pena única encontrada, expressão do cúmulo jurídico operado, ou seja, a pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.
A pretensão do recorrente no sentido de lhe ser aplicada a pena de 9 meses de prisão está, por natureza, excluída, uma vez que parte de um pressuposto errado, como se demonstra atrás, ou seja, a de que o seu comportamento seria enquadrável na tipologia prevista no artigo 144, n. 2 do Código Penal.
Nestes termos, face a tudo quanto exposto fica, e porque, quanto ao mais constante e decidido no acórdão aqui em apensação não nos merece reparo, acordam os juizes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se, sim, inteiramente, a decisão recorrida.
Vai o recorrente, face à sucumbência, condenado no pagamento de 3 u.c.s. de taxa de Justiça, fixando-se a procuradoria em um quatro.
Lisboa, 5 de Janeiro de 1994.
António Teixeira do Carmo,
Amado Gomes,
Ferreira Vidigal,
Ferreira Dias.
Decisão Impugnada:
Ac. 92.12.18 da 2. Secção do Tribunal Judicial de Fafe.