Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
608/17.5T8GMR-B.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
VALOR DA CAUSA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / RECURSOS / APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, N.º1 E 17.º, Nº.1;
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 1 E 672.º, N.º 1, ALÍNEAS A), B) E C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 13-11-2014, RELATOR PINTO DE ALMEIDA;
-DE 12-08-2016, RELATOR NUNO CAMEIRA;
-DE 13-07-2017, RELATORA ANA PAULA BOULAROT;
-DE 24-10-2017, RELATORA ANA PAULA BOULAROT, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 06-04-1999, ACÓRDÃO N.º 202/99;
-DE 11-02-2015, ACÓRDÃO N.º 11/2015, AMBOS IN WW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT.

Sumário :
I Em sede insolvencial e acções conexas, vg PER, aplica-se o preceituado no artigo 14º, nº1 do CIRE, de onde decorre que os Acórdãos da Relação nesta sede apenas são impugnáveis quando haja oposição jurisprudencial, mesmo nos casos em que se verifique uma dupla conformidade decisória, o que faz afastar a possibilidade de na espécie ser aplicável quer o regime excepcional aludido no artigo 629º do CPCivil, quer o regime da Revista excepcional prevenido no artigo 672º, nº1, alíneas a), b) e c), este como aquele do CPCivil.

II O mencionado ínsito legal – 14º do CIRE - consagra um regime especial no que toca aos recursos interposto em processo de insolvência.

III Contudo, tal regime especial não afasta os demais requisitos legais gerais processualmente exigíveis, máxime o da alçada, aludido no artigo 629º, nº1 do CPCivil, aplicável ex vi do disposto no artigo 17º, nº1 do CIRE e isto porque embora o artigo 14º, nº1 do CIRE não faça qualquer referência ao valor da causa, tem-se entendido que aqui se aplicam subsidiariamente as regras processuais gerais ex vi do artigo 17º, nº1 do CIRE

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

M, Recorrente nos autos de insolvência, nos quais requereu a exoneração do passivo restante, notificada da decisão singular da aqui Relatora que entendeu não ser possível conhecer do objecto do recurso de Revista, vem reclamar da mesma, apresentando, em síntese, a seguinte fundamentação:

- Se perante uma mesma questão fundamental de Direito, no âmbito da mesma legislação, os Tribunais superiores aplicarem normas diferentes, com consequências jurídicas distintas, não deixaremos de estar perante decisões antagónicas, que consagram solução jurídicas diferentes para uma mesma questão - ou seja, não deixaremos de estar perante contradição jurisprudencial que deve ser uniformizada no interesse geral da boa aplicação do Direito.

- Neste caso, o valor da causa inferior ao valor da alçada do tribunal para onde se recorre não pode ser fator que proíba o interesse superior da Justiça que deve prevalecer sobre a materialidade da causa.

- O valor da causa não deve prevalecer sobre a unidade do sistema jurídico consagrada no n.°l do artigo 9.° do Código Civil.

A não se entender assim, incorrer-se-ia numa clara e evidente insegurança

jurídica.

- Na decisão reclamada, considerou-se ainda que não se mostravam verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso contidos na al. d), do n° 2, do art. 629°, do CPC.

- Resulta expressamente desta norma que para o legislador o valor da causa, seja ele qual for, não proíbe este recurso extraordinário, tal como resulta da ressalva no proémio do n.° 2 do art. 629.° do CPC "2 - Independentemente do valor da causa ".

- A intenção do legislador foi a de permitir que divergências das Relações, no âmbito de processos em que o recurso ordinário para o Supremo não é admissível, seja, por esta via, dirimidas por este Tribunal superior, evitando a cristalização de correntes jurisprudenciais contraditórias ao nível da segunda instância.

- O legislador do artigo 629°, n° 2 do CPC, ao colocar expressamente no proémio independentemente do valor da causa, entendeu que devia prevalecer uma decisão de mérito em detrimento de uma decisão de forma (valor da causa), por estar em causa interesses de segurança jurídica.

- Por isso, a interpretação feita no despacho reclamado viola, ainda, o disposto nos artigos 13° e 20.° da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o princípio do Estado de direito democrático.

- O princípio da igualdade, consagrado no n.° 1 do artigo 13.° da Constituição da República, enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, exige que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for fundamentalmente diferente.

- Como se sabe, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções arbitrárias ou discriminatórias, materialmente não fundadas, isto é, desigualdades de tratamento destituídas de fundamentação razoável, objetiva e racional.

- No caso, há arbitrariedade na solução legal em causa (plasmada nos artigos 629°, n°2, ai. d), do CPC e 14°, n° 1 do CIRE), pelo que a norma sindicada, na interpretação contida na decisão reclamada, viola o princípio geral da igualdade, consagrado no n.° 1 do artigo 13.° da Constituição.

Por outro lado:

- As garantias de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva contempladas no art.° 20°, n.° 1, da CRP, são incompatíveis com a existência de regras processuais que violem a garantia do acesso aos tribunais, onde se inclui o direito ao recurso, permitindo-se, no caso, a uma cidadã poder beneficiar dum regime legal mais favorável do que a recorrente, só porque o valor da causa é superior ao da alçada do tribunal de recurso, estabelecendo assim constrangimentos formais que impedem uma decisão justa e igual.

- A interpretação dada pela decisão singular à norma constante do art. 629°, n° 2, d) do CPC, no plano da admissibilidade do recurso, não traduz uma adequada e proporcionada ponderação de todos interesses em presença por parte do legislador ordinário.

Não houve resposta.

Na decisão singular expendeu-se o seguinte argumentário:

«Em sede insolvencial e acções conexas, vg PER, aplica-se o preceituado no artigo 14º, nº1 do CIRE, de onde decorre que os Acórdãos da Relação nesta sede apenas são impugnáveis quando haja oposição jurisprudencial, mesmo nos casos em que se verifique uma dupla conformidade decisória, o que faz afastar a possibilidade de na espécie ser aplicável quer o regime excepcional aludido no artigo 629º do CPCivil, quer o regime da Revista excepcional prevenido no artigo 672º, nº1, alíneas a), b) e c), este como aquele do CPCivil.

O mencionado ínsito legal consagra um regime especial no que toca aos recursos interposto em processo de insolvência.

Contudo, tal regime especial não afasta os demais requisitos legais gerais processualmente exigíveis, máxime o da alçada, aludido no artigo 629º, nº1 do CPCivil, aplicável ex vi do disposto no artigo 17º, nº1 do CIRE e isto porque embora o artigo 14º, nº1 do CIRE não faça qualquer referência ao valor da causa, tem-se entendido que aqui se aplicam subsidiariamente as regras processuais gerais ex vi do artigo 17º, nº1 do CIRE, o que aliás, constitui jurisprudência uniforme neste Supremo Tribunal de Justiça, cfr inter alia os Ac STJ 13 de Novembro de 2014 (Relator Pinto de Almeida), 12 de Agosto de 2016 (Relator Nuno Cameira), de 13 de Julho de 2017 e de 24 de Outubro de 2017 da aqui Relatora, in www.dgsi.pt.

Porque o valor da causa fixado em 18.004,41, é manifestamente inferior ao da alçada deste Supremo Tribunal, não se pode conhecer do objecto do recurso, julgando-se findo o mesmo nos termos do artigo 652º, nº1, alínea h), aplicável por força do disposto no artigo 679º do CPCivil e 17º, nº1 do CIRE.».

As razões aí expendidas que fizeram soçobrar a pretensão recursória da ora Reclamante, mantêm-se, não se mostrando postas em causa pela fundamentação que agora se traz à liça,  sempre se acrescentando, ex abundanti, o seguinte:

Quando se está perante duas decisões antagónicas, a Lei permite, caso se verifiquem todos os pressupostos formais, que possa haver recurso ordinário, ou um recurso extraordinário: no primeiro caso teremos a Revista, no segundo caso teremos o recurso para uniformização de jurisprudência, artigo 627º, nº2 do CPCivil.

Na espécie, apenas poderíamos estar perante um recurso ordinário, por oposição de julgados, a interpor nos termos do artigo 14º, nº1 do CIRE e não face a um recurso para uniformização de jurisprudência nos termos do normativo inserto no artigo 688º, nº1 do CPCivil, sendo que este tipo de impugnação apenas é possível, além do mais, quando a oposição se verifique entre Arestos do Supremo Tribunal de Justiça, o que não é manifestamente o caso. 

Assim sendo, ao contrário do que esgrime a Reclamante, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, em sede de Revista, quando existe contradição entre o Acórdão produzido pela Relação e outro produzido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, a decisão proferenda destina-se a dilucidar a problemática e não a defini-la.

 Contudo, a possibilidade de impugnação com fundamento na oposição de Acórdãos, a que alude o normativo inserto no artigo 14º, nº1 do CIRE, está dependente da verificação dos demais requisitos formais alicáveis, vg, o valor da causa por remissão do disposto no artigo 17º, nº1 do mesmo diploma, sendo que, no caso dos autos, o valor da causa é manifestamente inferior ao da alçada deste Tribunal, sendo certo que, estas regras impeditivas do acesso ao recurso, fazem parte do livre poder de conformação do legislador, veja-se a este propósito, inter alia, o Ac 11/2015 TC, de11 de Fevereiro de 2015 (Relatora Ana Maria Guerra Martins), in www.dgsi.pt, onde se lê  «[A] questão que aqui está em causa é, no fundo, a de saber se, tendo em conta as eventuais diferenças entre o processo de insolvência e o processo civil em geral, é constitucionalmente censurável que o artigo 17.º do CIRE estabeleça que o processo de insolvência se rege pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE, incluindo a matéria dos recursos e seus requisitos de admissibilidade.

Esta questão, contrariamente ao que, numa primeira leitura, poderia parecer, está intimamente relacionada com outras que já foram objeto de jurisprudência deste Tribunal.

Assim, o Tribunal Constitucional reconhece ao legislador uma ampla margem de discricionariedade no que toca à concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos em processo civil (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 202/99, de 6 de abril de 1999, disponível em  ww.tribunalconstitucional.pt). Esta liberdade de conformação tem, porém, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (Acórdão n.º 202/99, de 6 de abril de 1999, acima citado).».

Por outro lado, como já se deixou consignado na decisão singular aqui em crise, a possibilidade de recurso aludida no artigo 14º, nº1 do CIRE, é especialíssima, aplicando-se apenas e unicamente aos processos insolvenciais (e PER), oposição aos mesmos e incidentes nestes processados, fazendo afastar a possibilidade de ser aplicável quer o regime excepcional aludido no artigo 629º do CPCivil, quer o regime da Revista excepcional prevenido no artigo 672º, nº1, alíneas a), b) e c), este como aquele do CPCivil, aplicáveis às demais acções.

Este óbice recursivo, proveniente do valor, não viola quer o princípio da igualdade, quer o princípio do acesso ao direito e aos Tribunais, plasmados nos artigos 13º e 20º da CRPortuguesa, aliás como decorre inequivocamente do teor do Acórdão do Tribunal Constitucional que supra extractamos, não tendo sido efectuada nenhuma interpretação do normativo inserto no artigo 629º, nº2, alínea d) do CPCivil, inaplicável ao caso sujeito, que fosse ou seja, desconforme a tais postulados fundamentais.

Destarte, indefere-se a reclamação, não se conhecendo do objecto do recurso.

Custas pela massa insolvente, mos termos do artigo 303º do CIRE, com taxa de justiça em 3 Ucs.

Lisboa, 12 de Julho de 2018

Ana Paula Boularot (Relatora)

Pinto de Almeida

José Rainho