Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
945/06.4TTVIS.C2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: INSTITUTO PÚBLICO
CEDÊNCIA ILÍCITA
REINTEGRAÇÃO
DESPEDIMENTO ILÍCITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :


I - Nas situações em que é admissível o regime do contrato de trabalho com ente público, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados trabalhadores comuns.

II - Na verdade, no que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de «gestão privada», ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam-se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.

III - Daí que, estabelecendo a Constituição que todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso (artigo 47.º, n.º 2), traduziria ofensa ao diploma fundamental a adopção do regime de contrato individual de trabalho que previsse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.

IV - E, ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de acesso.

V - A interpretação segundo a qual o artigo 329.º, do Código do Trabalho de 2003, tem virtualidade para afastar as exigências legais constantes dos artigos 34.º, n.º 3, da Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro, e 5.º da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, conferindo ao trabalhador, em caso de cedência ocasional ilícita em que a entidade cessionária é um instituto público, o direito de optar pela reintegração na entidade cessionária, em regime de contrato de trabalho sem termo resolutivo, viola o disposto no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

VI - Assim, pese embora verificada uma situação de cedência ilícita de trabalhadora, não pode esta optar pela sua integração na entidade cessionária como trabalhadora sem termo – na medida em que a entidade cessionária era um Instituto Público – e não podendo esta aceitá-la nessa condição – pois que tanto importaria o não cumprimento dos requisitos exigidos para a admissão de pessoal previstos na Portaria n.º 66/90, de 27 de Janeiro – a conduta do Instituto Público, ao não admitir ao seu serviço a trabalhadora a partir de determinada data, não configura qualquer despedimento ilícito.

VII - Pelas mesmas razões é de rejeitar o pedido da trabalhadora no sentido de permanecer ao serviço da entidade cessionária – Instituto Público – até à abertura de concurso público a que pudesse candidatar-se, pois que tal conduziria, afinal, ao reconhecimento de um contrato que continuaria a ser executado, sem termo definido, sem qualquer cobertura legal, à margem das normas concretizadoras das garantias consignadas no referido artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

VIII - Face ao dever imposto aos Tribunais no artigo 204.º, da Constituição da República Portuguesa – dever de não «aplicação normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» – não tem fundamento a alegação da trabalhadora segundo a qual o artigo 329.º do Código do Trabalho não pode deixar de aplicar-se enquanto não for declarada, pelo Tribunal Constitucional, a sua inconstitucionalidade, naufragando, por conseguinte, a pretensão de, até lá, se manter a relação de trabalho.
Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I

1. No Tribunal do Trabalho de Viseu, em acção com processo comum, intentada em 21 de Dezembro de 2006, AA demandou o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e O...& R... - Organização e Contabilidade das Empresas, Lda. alegando, em síntese, que:

— Celebrou, em 1 de Julho de 2005, com a 2.ª Ré um contrato de trabalho a termo certo, onde se consignou que o mesmo tinha por objecto “satisfazer uma consulta prévia para aquisição de serviços técnicos administrativos para o Centro de Emprego de Viseu”;

— Aparentemente, a 2.ª Ré seria uma empresa prestadora de serviços, e teria celebrado com o Centro de Emprego de Viseu um contrato de fornecimento de serviços, mediante o pagamento de determinado preço;

— Porém, a Autora nunca realizou qualquer actividade na instalações da 2.ª Ré, antes o fez sempre nas instalações do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul, e também nunca recebeu qualquer instrução da 2.ª Ré sobre os serviços que esta se comprometera a prestar ao Centro de Emprego, sendo que o seu vencimento era pago pela 2.ª Ré, através de cheque que lhe era entregue por esta nas instalações do Centro;

— Foram sempre os responsáveis do aludido Centro de Emprego quem determinou diariamente os serviços a prestar pela Autora e lhe deram as respectivas instruções, laborando em condições iguais às dos restantes trabalhadores do Centro;

— A vontade real de ambos os demandados foi assim, não a de prestação de quaisquer serviços pela 2.ª ao 1.º, mas antes a de que a 2.ª Ré fornecesse ao 1.º uma trabalhadora (a Autora), como de facto sucedeu para que esta realizasse no aludido Centro uma determinada actividade.

— Tratou-se, pois, de uma cedência ilícita de um trabalhador por uma empresa a outra, o que confere à Autora o direito de optar por ser integrada nos quadros da empresa cessionária, em regime de contrato sem termo resolutivo.

— A Autora comunicou essa sua intenção a ambos os Réus e apresentou-se, em 2 de Janeiro de 2006, nas instalações do mencionado Centro para aí laborar por contrato sem termo, como sua trabalhadora, o que não foi admitido pelo respectivo Director que se opôs mesmo à sua presença nas instalações do dito Centro, conduta esta que configura um despedimento ilícito.

Pediu:

i) Que fosse declarado que:

— É nulo o contrato de prestação de serviço celebrado entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré;

— Tal convénio é um contrato de utilização de trabalho temporário e é nulo;

— A 2.ª Ré não é uma empresa de trabalho temporário;

— É nulo o contrato de trabalho temporário celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré;

— A Autora é trabalhadora do 1.º Réu por contrato sem termo resolutivo, conforme o consagrado no n.º 3 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro.

ii) Que fosse declarada a ilicitude do despedimento e a reintegração da Autora no 1.º Réu e este condenado:

A reintegrá-la no seu posto de trabalho e atribuir-lhe e reconhecer-lhe a categoria de técnica superior de 2.ª;

— A pagar-lhe as diferenças salariais que forem devidas desde 1 de Julho de 2005 até 31 de Dezembro de 2005, com juros de mora desde a citação até integral pagamento;

— A pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial; e

— A pagar-lhe uma indemnização, por danos não patrimoniais, de valor não inferior a € 5.000,00.

iii) Que fosse a 2.ª Ré condenada a pagar solidariamente com o 1.º Réu a referida indemnização.

iv) Que fossem ambos os demandados condenados solidariamente a pagar juros vencidos e vincendos até integral pagamento.

Apenas contestou o 1.º Réu, por excepção, invocando a sua ilegitimidade e a incompetência do tribunal do trabalho, em razão da matéria, e por impugnação, alegando, em súmula, que a Autora nunca foi sua trabalhadora e que os serviços que ela prestou se inseriram no âmbito do dito contrato de prestação de serviço celebrado entre os dois Réus, por isso que pediu a sua absolvição do pedido.

Após resposta da Autora às excepções, foi proferido despacho saneador em que se declarou o tribunal competente e o 1.º Réu parte legítima para a acção. Este agravou no tocante à questão da incompetência material do tribunal de trabalho, mas não obteve vencimento já que o agravo não foi provido.

Prosseguindo o processo seus regulares termos veio, a final, a ser proferida sentença que, na parcial procedência da acção, e considerando que se estava perante uma cedência ilícita de trabalhador e que a conduta do 1.º Réu configurou, por isso, um despedimento ilícito, decidiu condená-lo «a reintegrar a A. no seu posto de trabalho com a categoria profissional e antiguidade que lhe pertencem e a pagar-lhe a importância de € 13 933,33 (treze mil novecentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), a título de retribuições em dívida e vencidas até à presente data, e, ainda, a pagar-lhe as demais retribuições com vencimento a partir de 01.8.2008 até ao trânsito em julgado da presente decisão ou à efectivação da reintegração, e respectivos juros moratórios à taxa de 4 % ao ano, a contar da citação (excepto no tocante às retribuições vencidas posteriormente, computando-se os juros a partir do seu vencimento) e até efectivo pagamento, deduzindo-se, contudo, os montantes eventualmente obtidos depois da cessação do contrato e em virtude do despedimento (nomeadamente, o valor do subsídio de desemprego auferido a partir de 21.11.2006, a entregar, pelo Réu, à Segurança Social), ficando absolvidos, o Réu IEFP, do demais pedido e, a 2.ª Ré, de todo o pedido».

2. Apelou o Réu IEFP, arguindo a nulidade da sentença, solicitando, ao abrigo do disposto no artigo 690.º-A, do Código de Processo Civil, a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, bem como a eliminação, por conclusiva, de alguma matéria dela constante, e impugnando o juízo relativo à caracterização do relacionamento entre as partes, para concluir pela sua absolvição dos pedidos.

O Tribunal da Relação de Coimbra desatendeu a arguição da nulidade da sentença, considerou não se verificar nenhuma das situações previstas no artigo 712.º do Código de Processo Civil, para poder ser alterada a factualidade firmada na 1.ª instância (designadamente por não ter havido gravação das provas), teve por não escrita, face à natureza conclusiva do seu teor, a alínea s) dos factos provados e, quanto ao mérito, julgou a apelação procedente e absolveu o Réu IEFP de tudo o peticionado.

Não se conformou a Autora, por isso que veio pedir revista, tendo formulado, a terminar a alegação, conclusões assim redigidas:

«1.ª - O douto acórdão recorrido viola o disposto no artigos 322.º, 324.º, alínea a), 329.º, e 429.º, do Código de Trabalho, e dos artigos 18.º, n.º 1 e 2, 47.º, n.º 1, 53.º, 58.º, 266.º n.º 1 e n.º 2 da CRP, e n.º 3 do artigo 16.º do D.L. 358/89 de 17 de Outubro.

2.ª - O 1.º Réu está sujeito ao princípio da legalidade, (cfr. artigo 18.º e 266.º da CRP).

3.ª - O artigo 329.º do CT é aplicável à Administração Pública, por força da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho da Administração Pública.

4.ª - Não podia o 1.º Réu furtar-se a aplicar o artigo 329.º do C.T., sob o pretexto que tal aplicação à Administração Pública, é inconstitucional por ofender o artigo 47.º, n.º 2 da CRP.

5.ª - Pois, não cabe à Administração Pública fazer tal controlo da constitucionalidade das normas jurídicas.

6.ª - Pelo que a recusa do 1.º Réu em manter ao seu serviço a Autora é ilícita e ilegal.

7.ª - Devendo a Autora considerar-se ao serviço do 1.º Réu até ocorrer extinção válida da relação laboral (por decisão judicial).

8.ª - A aplicação do artigo 329.º do CT à Administração Pública não ofende o princípio constitucional ínsito no artigo 47.º, n.º 2 da CRP.

9.ª - Pois que, por um lado, o que está em causa na presente acção e que o douto Tribunal de 1.ª Instância condenou, é ser a ora Autora reconhecida como trabalhadora do 1.ª Réu, por contrato sem termo resolutivo, n.º 3 do artigo 16.º do D.L. 358/89 de 17 de Outubro.

10.ª - E ser o 1.º Réu condenado a reintegrar a Autora no posto de trabalho com a categoria profissional e antiguidade que lhe pertencem, para além da condenação do pagamento das retribuições vencidas e vincendas.

Por outro lado,

11.ª - O artigo 47.º, n.º 2 da CRP, não é em si um princípio absoluto, que não comporte excepções.

12.ª - De facto, o concurso público não é a única forma de aceder à Administração Pública.

13.ª - Sendo que, como se disse, aqui está em causa o princípio da segurança no emprego (artigo 53.º e 58.º da CRP).

14.ª - Princípio violado no douto Acórdão recorrido.

15.ª - O princípio da igualdade, proporcionalidade, justiça, da imparcialidade e da boa fé que regem a actuação da Administração Pública (artigo 266.º da CRP).

16ª - O douto Acórdão recorrido, salvo melhor entendimento, restringiu as garantias constitucionais da segurança no emprego, e os princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no principio do Estado de Direito - artigo 2.º da CRP.

17.ª - O douto Acórdão recorrido, viola o princípio da proibição do excesso próprio do Estado de Direito, e expressamente acolhido no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

18.ª - Os direitos da Autora, recorrente, enquanto trabalhadora, foram violados de forma desadequada, desproporcional, desproporcionada, violadora da justiça, da boa-fé, da segurança do emprego e não indispensável para garantir a prossecução do interesse público.

19.ª - A actuação do 1.º Réu (instituto público) foi ilícita, recorrendo ao trabalho da Autora através de empresa que não é empresa de trabalho temporário devidamente autorizada nos termos do D.L. 358/89 de 17 de Outubro, de forma ilegítima e violadora dos direitos destas e das normas jurídicas ordinárias (artigo 329.º do CT) [e] constitucionais (artigo 18.º, 53.º, 58.º e 266.º, da CRP), como aliás reconhece o douto Acórdão recorrido.

20.ª - Salvo devido respeito, o douto Acórdão recorrido ao decidir como decide, abre a porta a um comportamento de verdadeira fraude à lei pelo 1.º Réu, de que foi vítima a Autora, trabalhadora cedida e o próprio interesse público, veiculado pelas normas imperativas contornadas.

21.ª - Permitindo-se, desta forma, que o agente da ilegalidade e inconstitucionalidade, o 1.º Réu, fique sem qualquer sanção e a vítima sem qualquer reparação dos danos sofrido[s].

22.ª - Só porque se trata de Ente Público.

23.ª - Abrindo-se assim as portas a uma actuação ilícita da administração pública.

24.ª - Quando cabe à administração pública, porque a tal está obrigada, o cumprimento da legalidade e da C.R.P..

25.ª - A solução preconizada no douto Acórdão recorrido não é a única solução possível e constitucionalmente admissível, nem sequer a solução mais justa.

26.ª - Pois, desconsidera os demais interesses em causa nos presentes autos, designadamente os direitos e interesses do trabalhador que é vítima da fraude e também o interesse público aqui traduzido no respeito devido às normas imperativas, veiculadoras.

27.ª - O disposto no artigo 329.º n.º 2 do C.T. é aplicável aos Entes públicos, por força da [L]ei 23/2004 de 22 de Junho.

28.ª - Ainda, sempre se dirá, caso se entenda que o artigo 329.º, n.º 2 do CT, não [é] de aplicar à Administração Pública, o que só se admite por mera hipótese académica,

29.ª - Sempre, à semelhança do que vem s[en]do decidido na nossa vizinha Espanha, a solução que melhor harmoniza os direitos e interesses em presença é a da manutenção do vínculo contratual em causa até à abertura de concurso público, a que sob pena de perder o emprego, deveria a Autora candidatar-se, em igual circunstâncias dos demais concorrentes, e com todas as consequências daí decorrentes.

30.ª - Assim, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que mantenha a Autora ao serviço d[o] 1.[º][u], por contrato individual de trabalho sem termo resolutivo ou, caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se admite, que seja a Autora mantida ao serviço d[o] 1.[º][u] até abertura de concurso público, devendo então esta concorrer em igualdade de circunstância[s] com os demais candidatos.

31.ª - A relação de trabalho existente entre Autora e 1.[º][u] deve manter-se até que a norma do artigo 329.º do C.T. seja declarada inconstitucional pelo Tribunal competente.

32.ª - Pois que não pode deixar de aplicar-se a pretexto que viola norma constitucional (que no nosso modesto entendimento, não viola).

33.ª - Mas ainda que se possa pugnar [pel]a sua constitucionalidade, não implica necessariamente a perda do emprego pela Autora.

34.ª - Até lá, a Autora deve manter-se ao trabalho sendo que a relação de trabalho deve manter-se até que o Tribunal Constitucional declare que a referida norma é inconstitucional.

35.ª - Com todos os direitos e deveres decorrentes da existência da relação de trabalho.

36.ª - Pois que a declaração de inconstitucionalidade de norma pelo Tribunal Constitucional pode ter efeitos retroactivos ou futuros.

37.ª - Nenhuma das partes invocou a inconstitucionalidade da norma do artigo 329.º do C.T..

38.ª - Sendo que o artigo 329.º do C.T. deve aplicar-se nos presentes autos.

Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de V. EXAS., se requer seja dado provimento ao presente recurso, julgado procedente e provado, revogando-se o douto acórdão recorrido.»

O Réu apresentou a sua alegação de recorrido, na qual defende a confirmação do acórdão.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser negada a revista, sobre o qual apenas o recorrido se pronunciou para manifestar a sua concordância.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


II

1. Na sentença da 1.ª instância os factos provados foram narrados nos seguintes termos:

«a) - O Réu IEFP, criado pelo DL n.º 519-A2/79, de 29.12, é um organismo dotado de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira e património próprio.

b) - Tem cinco Delegações Regionais, enquadrando 86 Centros de Emprego.

c) - Da matrícula da 2.ª Ré, de que o Réu IEFP tinha conhecimento, consta o seguinte objecto: “contabilidade de empresas, apoio aos contribuintes, comércio de artigos de papelaria e equipamento informático”. Na respectiva declaração de início de actividade foi indicada como “actividade principal” a actividade de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal (CAE 74 120).

d) - No dia 01.7.2005, a A. celebrou com a 2.ª Ré um contrato designado no texto que o formalizou como contrato de trabalho a termo certo, conforme documento de fls. 67 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

e) - Contrato que teria início no referido dia 1 de Julho e termo no dia 31 de Dezembro do mesmo ano, destinando-se “a satisfazer uma consulta prévia para a aquisição de serviços técnico-administrativos para o Centro de Emprego de Viseu, efectuada pelo IEFP/Expediente Administrativo n.º 2005410 0295, nos termos da alínea g) do n.º 2 do art.º 129.º da Lei 99/2003, de 27 de Agosto” (sic), devendo a prestação de trabalho da A. ter lugar nas instalações da 1.ª outorgante/2.ª Ré, sitas na Rua de S. Sebastião, n.º 41, São Pedro do Sul, embora a A. tivesse dado, desde logo, o seu consentimento a eventuais alterações do local de trabalho; à A. foi contratualmente atribuída a categoria profissional de “1.ª escriturária” (cfr. cláusulas 1.ª, 4.ª e 5.ª do referido contrato).

f) - A 2.ª Ré assumia-se assim como empresa prestadora de serviços, designadamente de serviços técnico-administrativos (cláusula 4.ª do aludido contrato) e o Centro de Emprego de Viseu/IEFP surgia como um seu cliente com o qual a 2.ª Ré celebrou o “contrato de fornecimento de serviços de natureza técnico-administrativa n.º 2005410 0032”, datado de 01.7.2005, recebendo, em contrapartida, o preço global (IVA incluído) de € 9 075 (nove mil e setenta e cinco euros) (cfr. documento de fls. 132 cujo teor se dá aqui por reproduzido).

g) - A A. realizou a sua actividade, dita em e), sempre e apenas, nas instalações do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul (sitas em Rua do Querido, 108, R/C direito, em S, Pedro Sul).

h) - Efectuando, no período inicial, as mesmas funções que eram executadas pela trabalhadora E...de A..., técnica administrativa ao serviço do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul (desde 1997), então, na situação de licença por maternidade.

i) - A A. nunca recebeu instruções ou ordens da 2.ª Ré sobre os “serviços” que a mesma se obrigou a prestar ao Centro de Emprego, nem sobre quaisquer outros.

j) - O vencimento mensal da A., no montante de € 550 (e respectivo subsídio de alimentação de € 5,75 por cada dia de trabalho efectivamente prestado) era pago através de cheque emitido pela 2.ª Ré; esta recebia do IEFP/Delegação Regional do Centro a importância mensal de € 1.512,50 (IVA incluído).

l) - Foram sempre os responsáveis do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul que determinaram diariamente os serviços a efectuar pela A., dando-lhe instruções sobre o modo de os realizar.

m) - A A. recebia ordens directas do Director do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul (cfr., v.g., documento de fls. 69 cujo teor se dá aqui por reproduzido).

n) - Durante os seis meses de execução do contrato cumpriu o mesmo horário (das 09.00 às 12.30 e das 14.00 às 17.30 horas, de 2.ª a 6.ª feira) e recebeu o mesmo tipo de instruções dos restantes trabalhadores do referido Centro de Emprego, embora não assinasse qualquer livro de ponto ou utilizasse o sistema de ponto electrónico.

o) - No período compreendido entre 01.7.2005 e 15.10.2005, as funções desempenhadas pela A. foram de recepcionista e técnica administrativa, tendo sido responsável, nomeadamente, pela introdução e tratamento de dados na aplicação informática referente à assiduidade dos funcionários do Centro (“consit”); atendimento telefónico; recepção, triagem e encaminhamento dos utentes; recepção e expedição de correspondência; arquivo de documentação; recepção de candidaturas à Certificação de Aptidão Pedagógica de Formadores; introdução de dados nas aplicações informáticas SIEF (introdução dos processos no sistema relativos a candidaturas aos Programas Ocupacionais, Estágios Profissionais, CPE e Iniciativas locais de Emprego) e SIGAE/Sistema Integrado de Gestão da Área de Emprego (introdução de dados de identificação pessoal dos utentes e entidades empregadoras; emissão de declarações); colaboração na apresentação dos resultados do controlo postal e do controlo presencial dos desempregados; apresentação de resultados das convocatórias de oferta feitas pelas Técnicas de Emprego e de resultados das entidades empregadoras.

p) - Posteriormente e até 31.12.2005, a A. deixou a recepção e passou a desempenhar tarefas de apoio às técnicas do Centro de Emprego, designadamente, contactava telefonicamente as entidades, elaborava e procedia à impressão de ofícios a partir de modelos/minutas existentes e segundo a orientação das aludidas técnicas, preenchia os formulários, arquivava a documentação (inclusive, os mapas físicos e financeiros no dossier de cada entidade).

q) - À data que desempenhou as referidas funções tinha o grau de bacharel, presentemente é licenciada em Secretariado e Assessoria de Direcção.

r) - Consta do documento que formalizou o contrato dito em f), supra, que a 2.ª Ré se obrigava a fornecer ao Centro de Emprego/1.º Réu um serviço «técnico-administrativo» não especificado, obrigando-se este, em troca do serviço por esta via por si adquirido, a pagar àquela um determinado preço.

s) - O que, na realidade, a 2.ª Ré quis, foi fornecer ao 1.º Réu um trabalhador para que prestasse ao mencionado Centro de Emprego, sob orientação deste, uma determinada actividade (beneficiando a 2.ª Ré da diferença entre o preço acordado e o que iria ser pago à A.) e o 1.º Réu quis que a 2.ª Ré colocasse um trabalhador por aquele previamente seleccionado - a A. - à disposição do Centro de Emprego para que, sob a direcção deste, realizasse, nas suas instalações, uma determinada actividade.

t) - A 2.ª Ré nunca foi uma empresa de trabalho temporário.

u) - Em 27.12.2005, depois de esclarecida sobre a respectiva situação laboral, a A. remeteu duas cartas registadas com aviso de recepção, uma dirigida ao 1.º Réu e outra dirigida à 2.ª Ré, pelas quais e, para efeitos do artigo 329.º do Código do Trabalho, comunicou a opção pela integração na “Empresa Cessionária”/Réu IEFP, em regime de contra-to sem termo resolutivo (cfr. documentos de fls. 73 a 78 cujo teor se dá aqui por reproduzido).

v) - Considerando-se, a partir de então, trabalhadora sem termo resolutivo do Réu IEFP, a A. apresentou-se, no dia 02.01.2006, nas instalações do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul, à semelhança do que vinha fazendo ao longo dos seis meses anteriores.

x) - O Director do Centro opôs-se, porém, à sua permanência naquelas instalações, recusando ao mesmo tempo, com carácter definitivo, a sua prestação de trabalho.

z) - Em 05.01.2006, reportando-se a uma carta da A. de 03.01.2006 (fls. 79), o Subdelegado Regional do Centro do IEFP remeteu à 2.ª Ré e à A. os ofícios de fls. 72 e 82, respectivamente carta e ofícios cujo teor se dá aqui por reproduzido), ratificando/confirmando a descrita actuação do Director do Centro de Emprego de S. Pedro do Sul.

aa) - A A. passou a receber subsídio de desemprego.»

O Tribunal da Relação, como acima se referiu, teve por não escrito o teor da alínea s), decisão que não vem questionada, por isso que, e atendendo a que a decisão proferida sobre a matéria de facto não se mostra impugnada e não ocorre qualquer das situações a que se refere o artigo 729.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, é com base no quadro factual fixado pelo acórdão recorrido que há-de resolver-se o problema central suscitado no presente recurso, que se reconduz a saber se o disposto no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa — que consagra a regra do concurso para acesso à função pública — não impede a aplicação do artigo 329.º do Código do Trabalho de 2003, em caso de cedência ilícita de trabalhador a pessoa colectiva de direito público, e, pois, se à Autora assiste o direito de optar pela sua integração no Réu IEFP.

2. Tal como a sentença da 1.ª instância, o acórdão recorrido considerou, em face da materialidade dos factos, estar-se em presença de uma cedência ocasional da trabalhadora — a cedência da Autora ao Réu IEFP pela Ré “O...& R...” — e entendeu ser tal cedência ilícita, por não se verificar uma das condições cumulativas para ser admitida — a de o trabalhador se encontrar vinculado ao empregador cedente por contrato sem termo resolutivo, estatuída na alínea a) do artigo 324.º do Código do Trabalho, já que a Autora estava vinculada à 2.ª Ré por contrato a termo —, juízo que não vem questionado na revista.

Observou o Tribunal da Relação que, nos termos do artigo 329.º do Código do Trabalho, em caso de cedência ilícita, fica o trabalhador cedido com o direito de optar pela integração na empresa cessionária, como trabalhador efectivo, desde que comunique tal intenção às entidades cedente e cessionária, mediante carta registada com aviso de recepção, até ao termo da cedência, e notou que a Autora deu cumprimento a tal requisito, o que poderia levar à conclusão de que a conduta do Réu IEFP, ao não admiti-la ao seu serviço, em Janeiro de 2006, configuraria um despedimento ilícito, desde logo por não precedido do competente procedimento disciplinar.

Adversativamente, aquele tribunal superior, ponderou:

«Todavia e salvo o devido respeito, não é assim.

É que não podemos olvidar a qualidade do 1.º R - Organismo dotado de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira e património próprio -.

Estamos assim perante um verdadeiro Instituto Público, cujas regras de admissão de pessoal estão até plasmadas nos art.ºs 7.º a 10.º da Portaria 66/90 de 27/1 e que, sendo embora permitida a contratação através do regime do contrato individual de trabalho (seu art.º 1.º), não deixa de exigir uma série de requisitos para que alguém possa fazer parte dos seus quadros, sendo que o recrutamento não pode ser feito sem a realização de concurso documental e/ou de prestação de provas.

Logo e por esta via se poderia argumentar que a A. nunca poderia tornar-se trabalhadora efectiva do 1.º R.

Mas contra isto sempre se poderia dizer que, sendo a cedência ilícita, a admissão da trabalhadora nessas circunstâncias corresponderia a uma sanção aplicável à entidade cessionária, responsabilizando-se depois (eventualmente)

os seus dirigentes por tal prática ilícita.

Contudo mesmo que assim se entenda, o certo é que por força da legislação vigente e nomeadamente da nossa lei fundamental, a A. nunca poderia adquirir o estatuto que pretende.

É que em virtude do disposto na C.R. - revisão de 2004 - (seu art.º 47.º, n.º 1) todos os cidadãos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições impostas pelo interesse colectivo ou inerente à sua própria capacidade.

E acrescenta o n.º 2 que todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.

Ora, dúvidas não há que um instituto público faz parte da Administração Pública.

Na realidade, a administração pública num sentido orgânico é constituída pelo conjunto de órgãos, serviços e agentes do Estado e demais entidades públicas que asseguram, em nome da colectividade, a satisfação disciplinada, regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem estar - João Caupers, in Direito Administrativo, 3.ª ed., pág. 33.

Sabe-se também, por outro lado, que a A. Pública é integrada por três tipos de elementos:
- as pessoas colectivas, os órgãos e os serviços públicos.
De entre as pessoas colectivas contam-se os institutos públicos (A. e ob. citada, pág. 87/88 e Freitas do Amaral ali referido).

Portanto o disposto no art.º 47.º n.º 2 citado aplica-se a toda a função pública, conceito que naquele normativo se deve interpretar no seu sentido mais amplo em direito administrativo englobando pois os institutos públicos.

E sendo assim como refere Vital Moreira (Projecto de lei-quadro dos institutos públicos, Relatório Final e Proposta de Lei-Quadro para os Institutos Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao art.º 45), que adopta uma posição que tem sido seguida pelo T. Constitucional: “No entanto, mesmo quando admissível o regime de contrato de trabalho, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns”.

No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de “gestão privada”, ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam--se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade, da boa-fé (art.º 266.º, n.º 2 da Constituição) todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.

Além disso, estabelecendo a Constituição que “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso (CRP art.º 47.º, n.º 2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição, se a adopção do regime do contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento de trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade”. Cfr. Ac T. Constitucional de 11/7/07.

Ora, seria isto mesmo que sucederia se se considerasse que a A. estava integrada nos quadros do 1.º R..

Ficava assim ligada sem qualquer concurso, ou prestação de provas devidamente publicitadas e abertos a todos os cidadãos (que para tal tivessem os necessários requisitos, claro), à Administração Pública, com vínculo intemporal.

Cremos que, salvo o devido respeito, tal solução (e que flui da sentença recorrida) ofenderia frontalmente o disposto no mencionado n.º 2 do art.º 47.

Aliás, em casos análogos (embora que não propriamente da aplicação do regime legal da cedência ocasional ilícita) tem sido seguida a orientação de que no que concerne à contratação de pessoal para a função pública (lato sensu), não se podem tomar em conta as normas que regem os contratos individuais de trabalho privados, nomeadamente no que concerne à impossibilidade de conversão de contratos de trabalho a prazo ilegais, em [contratos] sem termo. - cfr. p. ex. o Ac. do STJ de 26/9/06, proferido no Rec. Revista 4470/06 da 4.ª Secção.

E isso exactamente porque, se assim não sucedesse, frustar-se-ia o princípio que o legislador quis determinar para o acesso à função pública e que consta do mencionado n.º 2 do art.º 47.

Entendemos, salvo melhor opinião, que as razões que levam a essa solução são igualmente válidas para o caso da cedência ilícita de trabalhadores.

Pelos mesmos motivos, não é de admitir que nesse caso um trabalhador se veja investido na qualidade de funcionário público, sem se submeter ao regime de que a lei fundamental faz depender para a sua admissão.

Pensamos, por isso, que a possibilidade do trabalhador optar pela sua integração nos quadros da empresa cessionária, prevista no art.º 329.º n.º 2 do C.T., é de excluir se esta for uma pessoa colectiva pública (mormente instituto público).

Só esta interpretação do mencionado art.º é consentânea com o princípio constitucional ínsito no já várias vezes citado art.º 47.º, n.º 2, da CRP (redacção aplicável).

E sendo assim, como julgamos ser, não podendo a A. optar pela sua integração na empresa cessionária como trabalhadora sem termo (e não podendo, mesmo até por força da citada Portaria 66/90, o 1.º R. aceitá-la nessa qualidade, dado o não cumprimento dos requisitos ali exigidos para a admissão de pessoal), então a solução a preconizar é que a conduta do 1.º R., ao não a admitir ao seu serviço em 2/1/06, não configura qualquer despedimento e muito menos ilícito.

Do que resulta não ter a A. direito, nem a ser reintegrada, nem a perceber qualquer quantitativo que derivaria da existência de um despedimento ilegal (direitos esses que resultariam - se existissem - do disposto nos art.ºs 436.º, 1, a) e b) e 437.º n.º 1, ambos do C.T.).

E claro que todo o raciocínio que se vem desenvolvendo a propósito vale também para hipótese de se analisar a ilicitude da cedência, com base no facto (provado) de que a 2.ª Ré não é uma empresa de trabalho temporário, sendo certo que as consequências dessa ilicitude eram as mesmas (para o que ao caso importa) das que decorrem do art.º 329.º já mencionado (cfr. art.º 30.º do D.L. 358/89 de 17/10).»

3. Na revista, a Autora exprime a sua discordância relativamente ao veredicto do Tribunal da Relação, defendendo, em resumo, que:

— O artigo 329.º do Código do Trabalho é aplicável à Administração Pública por força da Lei n.º 23/2004, de 2 de Junho, e, assim, a recusa do Réu IEFP em mantê-la aos seu serviço é ilícita;

— A aplicação daquele preceito à Administração Pública não ofende o princípio ínsito no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa, dado que tal princípio não é absoluto, comportando excepções, e estão em causa os princípios da segurança no emprego (artigos 53.º e 58.º da Constituição), da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade, boa fé (artigo 266.º da Constituição), da confiança e da segurança jurídica (artigo 2.º da Constituição), e da proibição do excesso próprio do Estado de Direito (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição);

— Ainda que se entenda que aquele artigo do Código do Trabalho não é aplicável à Administração Pública, deve, face aos interesses em presença, manter-se a Autora ao serviço do Réu até à abertura de concurso público, permitindo-se-lhe, então, concorrer, em igualdade de circunstâncias com os demais candidatos, ou até que a norma em causa venha a ser declarada inconstitucional.

4. A Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que estabeleceu o regime jurídico do contrato de trabalho nas pessoas colectivas públicas (artigo 1.º, n.º 1), consignou, no seu artigo 2.º, n.º 1, que «[a]os contratos de trabalho celebrados por pessoas colectivas públicas é aplicável o regime do Código do Trabalho e respectiva legislação especial, com as especificidades constantes da presente lei», entre as quais importa assinalar as que constam do artigo 5.º, cujo n.º 1 estipula que «[a] celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado no âmbito da presente lei deve ser precedida de um processo de selecção que obedece aos seguintes princípios: a) [p]ublicitação da oferta de trabalho; b) [g]arantia de igualdade de condições e oportunidades; c) [d]ecisão de contratação fundamentada em critérios objectivos de selecção».

Como, bem, nota a Exma. Magistrada do Ministério Público, no seu proficiente parecer, a exigência legal ali consignada constitui corolário do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, segundo o qual «[t]odos os cidadãos têm direito de acesso à função pública, em condições de igualdade, em regra por via de concurso».

Sobre a questão da admissibilidade da aplicação do regime do contrato individual de trabalho nas pessoas colectivas de direito público, designadamente no ponto em que aquele regime, de algum modo, impõe a conversão do vínculo contratual precário em contrato por tempo indeterminado, podendo conflituar com a regra do concurso estabelecida na referida norma da Lei Fundamental, e, pois, com o direito de acesso à função pública, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tornou firme o entendimento segundo o qual a postergação da regra do concurso público, no estabelecimento da relação jurídica de emprego público, carece de uma justificação material.

No Acórdão n.º 409/07, de 11 de Julho de 2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, pode ler-se:

«[...] No Acórdão n.º 61/2004, na sequência dos Acórdãos n.os 140/2002 e 406/2003, todos proferidos em sede de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade e tendo por objecto a questão da admissibilidade da aplicação do regime do contrato individual de trabalho, designadamente quanto à conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos sem termo, expendeu-se:

«6.1. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a jurisprudência constitucional

[...]

Como se afirmou no Acórdão n.º 683/99 (Diário da República, II Série, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 2000, pág. 2351):

«Entre nós, retira-se do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, como concretização do direito de igualdade no acesso à função pública, um direito a um procedimento justo de recrutamento e selecção de candidatos à função pública, que se traduz, em regra, no concurso (embora não um direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação – assim, v. recentemente o Acórdão n.º 556/99).

Este não pode, por outro lado, ser procedimentalmente organizado, ou decidido, em condições ou segundo critérios discriminatórios, conducentes a privilégios ou preferências arbitrárias, pela sua previsão ou pela desconsideração de parâmetros ou elementos que devam ser relevantes (cf., recentemente, o Acórdão n.º 128/99, que fundou no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, embora com votos de vencido quanto à sua aplicação ao caso, um julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 36.º, alínea c), da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que, para a candidatura a Juiz do Tribunal de Contas, em concurso curricular, não considerava o exercício durante três anos de funções de gestão em sociedades por quotas).

É certo que o direito de acesso previsto no artigo 47.º, n.º 2, não proíbe toda e qualquer diferenciação, desde que fundada razoavelmente em valores com relevância constitucional – como exemplos pode referir-se a preferência no recrutamento de deficientes ou na colocação de cônjuges um junto do outro (assim G. Canotilho/V. Moreira, Constituição..., cit., pág. 265). Poderá discutir-se se do princípio consagrado no artigo 47.º, n.º 2, resulta, como concretização dos princípios de igualdade e liberdade, que os critérios de acesso (em regra, de decisão de um concurso) tenham de ser exclusivamente meritocráticos, ou se pode conceder-se preferência a candidatos devido a características diversas das suas capacidades ou mérito, desde que não importem qualquer preferência arbitrária ou discriminatória – assim, por exemplo, o facto de serem oriundos de uma determinada região, ou de terem outra característica (por exemplo, uma deficiência) reputada relevante para os fins prosseguidos pelo Estado.

Seja como for, pode dizer-se que a previsão da regra do concurso, associada aos princípios da igualdade e liberdade no acesso à função pública, funda uma preferência geral por critérios relativos ao mérito e à capacidade dos candidatos (de «princípio da prestação» fala a doutrina alemã – v., por exemplo, Walter Leisner, «Das Leistungsprinzip», in idem, Beamtentum, Berlim, 1995, pág. 273 e seguintes –, sendo certo, contudo, que o respectivo texto constitucional é, como vimos, explicitamente mais exigente).

E o concurso é justamente previsto como regra por se tratar do procedimento de selecção que, em regra, com maior transparência e rigor se adequa a uma escolha dos mais capazes – onde o concurso não existe e a Administração pode escolher livremente os funcionários não se reconhece, assim, um direito de acesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits., anotação XI; sobre o fundamento do procedimento concursal, v. também Ana Fernanda Neves, Relação jurídica de emprego público, cit., págs. 147 e seguintes).

Assim, para respeito do direito de igualdade no acesso à função pública, o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso – fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função pública (e no direito a um procedimento justo de selecção) – poderia ser inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional (assim Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.; Ana F. Neves, ob. cit., págs. 153-4).»

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º 368/2000 (Diário da República, I Série-A, n.º 277, de 30 de Novembro de 2000, pág. 6886). E, anteriormente, no Acórdão n.º 53/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 303 e seguintes) já se expressara o seguinte entendimento, relativamente ao n.º 2 do artigo 47.º da CRP:


«Como decorre do seu próprio enunciado, este preceito compreende três elementos: a) o direito à função pública, não podendo nenhum cidadão ser excluído da possibilidade de acesso, seja à função pública em geral, seja a uma determinada função em particular, por outro motivo que não seja a falta dos requisitos adequados à função (v. g., idade, habilitações académicas e profissionais); b) a regra da igualdade e da liberdade, não podendo haver discriminação nem diferenciações de tratamento baseadas em factores irrelevantes, nem, por outro lado, regimes de constrição atentatórios da liberdade; c) regra do concurso como forma normal de provimento de lugares, desde logo de ingresso, devendo ser devidamente justificados os casos de provimento de lugares sem concurso.»


E, neste mesmo acórdão, ainda se acrescentou que «não existe aqui nenhuma garantia de igualdade quando o provimento depende decisivamente de uma escolha discricionária do serviço» e que «é precisamente contra o poder de os serviços escolherem livremente o seu pessoal que se dirigem os princípios constitucionais da igualdade e do concurso no acesso à função pública».

Ainda quanto à questão do direito de acesso à função pública e da regra do concurso, no já citado Acórdão n.º 683/99 afirmou-se igualmente que «visando assim o concurso possibilitar o exercício do próprio direito de acesso em condições de igualdade, a sua dispensa não pode deixar, como se afirmou, de se basear em razões materiais – isto é, designadamente, em razões relevantes para o cargo para o qual há que efectuar uma escolha (assim, por exemplo, para a escolha de pessoal dirigente, para o qual poderá eventualmente revelar-se adequada a selecção sem concurso). Considerando esta necessidade de justificação material da postergação da regra do concurso não pode, pois, tirar-se qualquer argumento do facto de o concurso não ser previsto imperativamente pela Constituição como único meio de acesso à função pública».

Este Acórdão n.º 683/99 firmou, pois, o entendimento segundo o qual a postergação da regra de concurso carece de uma justificação material, entendimento esse que não foi questionado nos votos de vencido a ele apostos.

Próxima da apreciação da justificação material da postergação do concurso, situa-se a argumentação desenvolvida pelo Acórdão n.º 556/99 (Diário da República, II Série, n.º 63, de 15 de Março de 2000, pág. 4987). Neste acórdão discutiu-se a questão da conformidade constitucional do disposto na alínea a) dos n.os 1 e 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 46/88, de 11 de Fevereiro, através do qual o legislador permitiu o ingresso nos quadros do Ministério da Defesa Nacional a pessoal que, à data de 31 de Dezembro de 1987, não tendo a qualificação legal de funcionário, quisesse obtê-la; e, a propósito de tal questão, afirmou-se no citado aresto:

«No entanto, o direito de acesso à função pública não é um direito de exercício incondicionado.

O n.º 2 do artigo 47.º da Constituição estabelece a regra do concurso público, que será realizado sempre que as necessidades de preenchimento de lugares de quadro se verificarem. Este concurso é uma forma de selecção de candidatos, em função das aptidões demonstradas, não se podendo afirmar, à partida, o direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação.

Da norma constitucional também não decorre uma exigência absoluta de realização de concurso, em todos os casos, para o acesso à função pública.

O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro (diploma que aprova instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração Pública), proíbe, como regra, que, nos casos de criação ou alteração de quadros de pessoal, se estabeleçam ‘promoções automáticas ou reclassificações de pessoal’ [alínea a)] ou ‘integração directa em lugares de quadro a pessoal que não tenha a qualidade de funcionário ou que, sendo agente, não desempenhe funções em regime de tempo completo, não se encontre sujeito à disciplina, hierarquia e horário do respectivo serviço e conte menos de três anos de serviço ininterrupto’ [alínea b)].

Esta norma é uma concretização do imperativo constitucional do recurso ao concurso público para preenchimento de lugares nos quadros da função pública, em atenção, precisamente, ao respeito pela igualdade de oportunidades dos candidatos e à transparência nas relações jurídicas administrativas.

O artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 46/88 surge como uma derrogação a este regime. Derrogação, porém, que, como se demonstrou, obedece a imperativos de interesse público e à qual subjaz um critério objectivo, não incompatível com a Constituição. A desigualdade no tratamento legislativo das situações, ou seja, na fixação dos critérios de acesso aos quadros de funcionários do Ministério da Defesa Nacional, tem uma base constitucionalmente aceitável, que justifica a excepção à regra da realização do concurso público.»


6.2. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a celebração de contratos individuais de trabalho

A primeira linha de argumentação da resposta do Primeiro-Ministro assenta na ideia de que o n.º 2 do artigo 47.º se destina à função pública, interpretando esta expressão no sentido de a limitar ao universo dos elementos ao serviço da Administração Pública a que corresponda o qualificativo de funcionário público, com exclusão dos agentes não funcionários e dos demais trabalhadores da Administração Pública não funcionários nem agentes.

Seguindo, uma vez mais, a argumentação desenvolvida no Acórdão n.º 406/2003, recordar-se-á que uma solução intermédia parece ser defendida por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando referem (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 264, nota VIII ao artigo 47.º):

«A definição constitucional do conceito de função pública suscita alguns problemas, dada a diversidade de sentidos com que as leis ordinárias utilizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais, formais) defendidos para a sua caracterização material. Todavia, não há razões para contestar que o conceito constitucional corresponde aqui ao sentido amplo da expressão em direito administrativo, designando qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado, região autónoma, autarquia local, instituto público, associação pública, etc.), qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato individual de trabalho), independentemente do seu carácter provisório ou definitivo, permanente ou transitório.»

No entanto, Vital Moreira, mais tarde, viria a pronunciar-se em sentido mais amplo (Projecto de lei-quadro dos institutos públicos, Relatório Final e Proposta de Lei-Quadro, Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao artigo 45.º), adoptando uma posição que tem também sido defendida pelo Tribunal Constitucional, ao ponderar que:


«No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de trabalho, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns.

No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de «gestão privada», ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam-se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.

Além disso, estabelecendo a Constituição que ‘todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso’ (CRP, artigo 47.º, n.º 2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.»


Estas últimas considerações afiguram-se inteiramente procedentes, principalmente quando, como é o caso, o regime laboral do contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é que um serviço público personalizado.

Com efeito, a exigência constitucional de «acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso» apresenta duas vertentes. Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro lado, numa vertente objectiva, constitui uma garantia institucional destinada a assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que «os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público» (n.º 1 do artigo 269.º da CRP). Na verdade, procedimentos de selecção e recrutamento que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a necessidade de actuação «com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé» (n.º 2 do artigo 266.º da CRP).

Esta perspectiva é particularmente importante quando se trate de recrutamento e selecção de pessoal para entidades que exerçam materialmente funções públicas (...).

[...]

Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de acesso.

A recente Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro (Lei quadro dos institutos públicos), no seu artigo 34.º, sob a epígrafe Pessoal, veio justamente dispor:

«1 – Os institutos públicos podem adoptar o regime do contrato individual de trabalho em relação à totalidade ou parte do respectivo pessoal, sem prejuízo de, quando tal se justificar, adoptarem o regime jurídico da função pública.

2 – O pessoal dos institutos públicos estabelece uma relação jurídica de emprego com o respectivo instituto.

3 – O recrutamento do pessoal deve, em qualquer caso, observar os seguintes princípios:

a) Publicitação da oferta de emprego pelos meios mais adequados;

b) Igualdade de condições e oportunidades dos candidatos;

c) Fundamentação da decisão tomada.

4 – Nos termos do artigo 269.º da Constituição, a adopção do regime da relação individual de trabalho não dispensa os requisitos e limitações decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente respeitantes a acumulações e incompatibilidade legalmente estabelecidas para os funcionários e agentes administrativos.

(...).»

Tratou-se da generalização para todos os institutos públicos de soluções que já vinham sendo adoptadas pelo legislador, como, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, que criou o Instituto Geográfico Português (vide o n.º 6 do artigo 46.º dos Estatutos por ele aprovados), e no Decreto-Lei n.º 96/2003, de 7 de Maio, que criou o Instituto do Desporto de Portugal (vide o artigo 33.º dos Estatutos por ele aprovados), o que demonstra que não existe qualquer incompatibilidade entre o regime do contrato individual de trabalho e a definição de garantias de liberdade e igualdade no acesso ao exercício de funções nos institutos públicos.

[...]»

As considerações em que assenta esta jurisprudência encontram pleno acolhimento no caso em apreciação nos presentes autos, porquanto o Réu, ora recorrido, é um instituto público, sendo que, como observou o acórdão impugnado, e se assinala no parecer do Ministério Público, a aplicação do artigo 329.º do Código do Trabalho conduziria ao estabelecimento de um vínculo laboral por tempo indeterminado com a Autora, sem que tivesse sido realizado procedimento concursal destinado a garantir a igualdade e liberdade de acesso à função pública, e sem que se mostre justificada a sua dispensa com fundamento em razões materiais de raiz constitucional.

Com efeito, nenhum dos princípios constitucionais que a recorrente invoca, acima referidos, colidem com a exigência legal de procedimento concursal ou justificam a sua dispensa, que seria fundada numa contratação ilícita, como é a cedência ocasional fora das condições estabelecidas na lei, sendo aqui de aceitar, com as necessárias adaptações, a doutrina que decorre da mencionada jurisprudência constitucional, firmada a propósito de outras formas ilícitas de estabelecimento de relações jurídicas de emprego público, em regime de contrato individual de trabalho, em relação às quais se não consente a aplicação da disciplina que regula as relações entre privados, enquanto esta implica que de uma ilicitude originária no estabelecimento de uma relação laboral surja, necessária e inevitavelmente, o direito a um vínculo laboral permanente.

Deste modo, a interpretação segundo a qual o artigo 329.º do Código do Trabalho de 2003 tem virtualidade para afastar as exigências legais constantes do artigo 34.º, n.º 3, da Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro, e 5.º da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, conferindo ao trabalhador, em caso de cedência ocasional ilícita em que a entidade cessionária é um instituto público, o direito de optar pela integração na entidade cessionária, em regime de contrato de trabalho sem termo resolutivo, viola o disposto no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Bem decidiu, pois, o douto acórdão impugnado, ao não aplicar com o referido sentido aquele artigo do Código do Trabalho ao caso dos autos, deste modo observando o dever consignado no artigo 204.º da Constituição, decisão cujos fundamentos não merecem crítica.

Esses mesmos fundamentos, complementados pelas considerações que, extraídas da jurisprudência do Tribunal Constitucional, se transcreveram, suportam o juízo quanto à inviabilidade da pretensão formulada pela recorrente no sentido de permanecer ao serviço do Réu até à abertura de concurso público em que pudesse candidatar-se.

Na verdade, a permanência do vínculo nos termos pretendidos equivaleria, afinal, ao reconhecimento de um contrato que continuaria a ser executado, sem termo definido, sem qualquer cobertura legal, à margem das normas concretizadoras das garantias consignadas no referido artigo 47.º, n.º 2.

Por outro lado, face ao dever imposto aos tribunais no citado artigo 204.º — de não «aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» —, não tem fundamento a alegação da recorrente segundo a qual o artigo 329.º do Código do Trabalho não pode deixar de aplicar-se enquanto não for declarada, pelo Tribunal Constitucional, a sua inconstitucionalidade, naufragando, por conseguinte a pretensão de, até lá, se manter a relação de trabalho.

Termos em que improcedem as conclusões e pretensões formuladas no presente recurso.


III

Por tudo o exposto, decide-se negar a revista.

Custas a cargo da Autora.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010.

Vasques Dinis (Relator)
Bravo Serra
Mário Pereira