Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3129/09.6TBVCT.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
LEGES ARTIS
ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESPONSABILIDADE CIVIL / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Doutrina:
- Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, pp. 440, 448.
- Clara Gonzalez, “Responsabilidad Civil Médica”, Tratado da Responsabilidade Civil coord. de Reglero Campos, vol. II, p. 736.
- Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, em Responsabilidade Médica em Portugal, cit. por Dias Pereira, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, vol. 9, Centro de Direito Biomédico, F.D.U.C., p. 424.
- Mafalda M. Barbosa, “A jurisprudência portuguesa em matéria de responsabilidade civil médica: o estado da arte”, nos Cadernos de Direito Privado, nº 38, pp. 14 e segs..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 443.º, 487.º, N.º1, 799.º, N.º1, 800.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30-11-11, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 15-11-12, DE 15-12-11, CJSTJ, TOMO III, P. 163, DE 22-9-11, CJSTJ, TOMO III, P. 50, DE 18-9-07, CJSTJ, TOMO III, P. 54, OU DE 11-7-06, CJSTJ, TOMO II, P. 325, E MAIS RECENTEMENTE, DE 12-3-15, TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. A actuação do médico, no âmbito ou fora de um contexto contratual, implica, por regra, a satisfação de uma obrigação de meios que se traduza em práticas médicas que, de forma diligente, respeitem as leges artis ajustadas a cada situação.

2. Inscreve-se no âmbito da responsabilidade extracontratual a situação em que a lesada invoca a existência de violação do seu direito à saúde numa circunstância em que a intervenção do médico ocorreu no âmbito de uma empresa para a qual a A. fora destacada como trabalhadora temporária e o médico como profissional da  área da medicina do trabalho por conta de uma clínica de serviços médicos que fora contratada pela empresa onde a lesada desempenhava as suas funções.

3. A aferição pelo Supremo Tribunal de Justiça da ilicitude e da culpa do médico devem ser aferidas tendo em conta a matéria de de facto considerada provada e não provada pelas instâncias e relacionada com as circunstâncias conhecidas e cognoscíveis que se verificavam aquando da prática do acto médico.

4. O facto de o profissional destacado para uma empresa como médico do trabalho ter tido conhecimento, na ocasião em que foi chamado a examinar uma trabalhadora, que esta, cerca de 15 minutos antes, apresentara sintomas compatíveis com a ocorrência de um acidente isquémico transitório (AIT), e o facto de a mesma ainda apresentar tonturas e dores de cabeça, sendo portadora de alguns factores de risco (obesidade, colesterol acima da média, hábitos tabágicos e hábitos sedentários) não permitem imputar ao médico a posterior ocorrência de um acidente vascular cerebral (AVC) se, tendo submetido a doente, naquela ocasião, aos testes protocolares adequados à detecção de AVC, o resultado foi negativo e se, além disso, não se provaram os factos atinentes ao nexo de causalidade entre a actuação do médico e o posterior AVC.

5. Não importa violação das leges artis o facto de, naquelas circunstâncias, o médico ter diagnosticada uma crise de ansiedade e ter optado por submeter a trabalhadora, de forma preventiva, a um período de observação e de repouso de 3 horas, período que foi interrompido pela trabalhadora que, declarando sentir-se melhor e sem dores de cabeça, revelou vontade de se deslocar para o seu domicílio, o que fez conduzindo o seu próprio veículo automóvel.

Decisão Texto Integral:
I - AA intentou acção com processo comum ordinária contra BB e CC, Ldª, pedindo que estes sejam condenados a pagarem-lhe, solidariamente, a importância de € 378.021,12, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação até à data do trânsito em julgado da sentença condenatória, acrescidos, a partir desta data, de mais 5%, de sanção pecuniária compulsória, até integral pagamento, e a pagarem-lhe ainda as despesas que venha a suportar com medicamentos, tratamentos, consultas a médicos, fisioterapia, terapia da fala, intervenções cirúrgicas, etc., bem como no custo das viagens para esse efeito, em quantia a liquidar em execução de sentença.

Alegou que foi contratada para trabalhar para e nas instalações da 2ª R., onde o 1º R. prestava serviços médicos no âmbito da medicina no trabalho. No dia 27-10-08, estando no seu posto de trabalho, a A. foi acometida de um AVC e, tendo sido assistida pelo 1º R., este negligenciou os sintomas que se tinham manifestado e não a encaminhou para o Hospital, a fim de aí receber o tratamento adequado. Por não ter recebido este tratamento, veio a sofrer forte hemorragia cerebral que lhe causou dores e lhe deixou sequelas que a impossibilitam totalmente para o trabalho.

Fundamenta a responsabilidade da 2ª R. no incumprimento, por esta, da imposição legal de estar dotada de serviços internos de segurança, saúde e higiene no trabalho.

Os RR. contestaram, recusando qualquer responsabilidade no ocorrido por terem sido prestados à A. os cuidados exigidos.

Foram chamados a intervir, como parte principal, a sociedade DD, Ldª, clínica contratada pela 2ª R., para a qual o 1º R. trabalhava, e como partes acessórias da 2ª R. EE - Companhia de Seguros, S.A.., e do 1º R., FF - Compª de Seguros, S.A.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que absolveu a 2ª R. e a Chamada DD e condenou o 1º R. a pagar à A.:

a) A quantia de € 160.000,00 de indemnização pelos danos patrimoniais que esta sofreu, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar da data da citação;

b) A quantia de € 80.000,00 de indemnização pelos danos não patrimoniais também sofridos, acrescida de juros de mora à mesma taxa a contar da data da sentença;

c) E a quantia que se vier a liquidar ulteriormente relativa a tratamentos, intervenções médicas, ajuda de terceira pessoa e ajuda medicamentosa que a A. venha a necessitar.

A A. apelou da decisão de absolvição das R. e da Chamada. Apelou também o 1º R.

A Relação julgou improcedente a apelação da A. e procedente a apelação do 1º R., sendo este totalmente absolvido do pedido.

A A. interpôs recurso de revista em que suscita as seguintes questões:

a) O AVC vulgarmente chamado de derrame cerebral é caracterizado pela perda rápida de função neurológica, decorrente do entupimento (isquemia) ou rompimento (hemorragia) de vasos sanguíneos cerebrais. É uma doença de início súbito, na qual o paciente pode apresentar paralisação ou dificuldade de movimentação dos membros de um mesmo lado do corpo, dificuldade na fala ou articulação das palavras e déficit visual súbito de uma parte do campo visual. Pode ainda evoluir com coma e outros sinais. Trata-se de uma emergência médica que pode evoluir com sequelas ou morte, sendo a rápida chegada ao hospital importante para a decisão terapêutica.

b) De entre os principais factores de risco para AVC estão a idade avançada, hipertensão arterial (pressão alta), tabagismo, diabetes, colesterol elevado, acidente isquémico transitório (AIT) prévio, estenose da válvula atrioventricular e fibrilação arterial.

c) O AIT ou ataque isquémico transitório pode ser considerado um tipo de AVC isquémico. Corresponde a uma isquemia (entupimento) passageira que não chega a constituir uma lesão neurológica definitiva e não deixa sequela. Ou seja, é um episódio súbito de deficit sanguíneo numa região do cérebro, com manifestações neurológicas que se revertem em minutos ou em até 24 h, sem deixar sequelas (se deixar sequelas por mais de 24 h, passa a se chamar acidente isquémico vascular por definição).

d) O diagnóstico do AVC é clínico, ou seja, é feito pela história e exame físico do paciente. Os principais sintomas são: dificuldade de mover o rosto; dificuldade em movimentar os braços adequadamente; dificuldade de falar e se expressar; fraqueza nas pernas; problemas de visão.

e) É pacífico na comunidade médica que, diante desses sintomas, quanto mais rápido o socorro, menor a probabilidade de sequelas. Os médicos recomendam que a hipótese seja confirmada por um exame de imagem, tomografia computadorizada e ressonância magnética, que permitam ao médico identificar a área do cérebro afectada e o tipo de AVC.

f) O R. BB, conhecedor dos sintomas que a A. havia apresentado, tais como cefaleia intensa e súbita, sem causa aparente, dormência e falta de força no lado direito do corpo, dificuldades em falar e perda de equilíbrio e boca torta, e tendo por obrigação saber que os mesmos podiam indicar a ocorrência de um AIT (muitas vezes secundado por AVC), pela circunstância de, aquando da sua observação, não ter denotado défices neurológicos, diagnosticou à A. ansiedade e administra-lhe um ansiolítico e permitiu, sem que se tenha dito no processo que alguma vez tenha avisado a A. de qualquer risco que corria (sendo certo que impõe-se perguntar qual o risco de ir para casa se o diagnóstico é apenas ansiedade?) que a A. fosse para casa descansar.

g) Tendo conhecimento desses sintomas, o R. BB, na sua qualidade de médico de medicina de trabalho, tinha a obrigação de encaminhar rapidamente a A. para um Hospital para que pudesse ser conveniente e atempadamente atendida e pudesse receber tratamento médico adequado urgente, nem que fosse por mera precaução.

h) Impunha-se pois ao R. outro tipo de comportamento. Devia, de imediato, não obstante a ausência de défices neurológicos, ter encaminhado a A. para o Hospital para exames complementares, designadamente TAC. Ao não tê-lo feito não praticou uma assistência diligente, existindo, uma desconformidade da concreta actuação do agente, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura. Daí que possamos dizer que a obrigação do médico - obrigação de meios - não foi cumprida.

i) Nada se exigia ao médico (e nem haveria processo) se a atitude deste tivesse sido a de um médico diligente e cauteloso. Se o R. tivesse cumprido com o que lhe era exigido ao tempo em que a doente estava sob a sua alçada e esta, a final, tivesse o mesmo resultado - o AVC com a gravidade verificada e com as sequelas com que ficou - nenhuma responsabilidade lhe podia ser assacada. No entanto, não foi essa a atitude do médico. É esta, a nosso ver, a negligência do médico. Há uma conduta objectiva e subjectivamente ilícita e culposa.

j) Quanto ao referido nexo de causalidade, este seria de exigir à A. que estabelecesse, caso entendêssemos que a questão se situa no âmbito da responsabilidade civil extracontratual ou ao R. (demonstrando não haver esse nexo) caso estivéssemos perante responsabilidade contratual.

k) Perante um caso de um AVC, com todos os contornos e especificidades referidas, em que os procedimentos médicos são decididos em função de vários critérios, mas que, dependem, desde logo (independente da existência ou inexistência dos restantes) da rapidez da actuação médica e da localização precisa, no tempo, da fixação dos défices neurológicos, temos que concluir - porque que o R., com a sua omissão impediu que qualquer destes parâmetros fosse avaliado em tempo útil - que o resultado final só a ele lhe pode ser imputado.

l) Aliás, partindo do enquadramento contratual da situação, também o R. não demonstra que o resultado e sequelas teriam ocorrido mesmo com uma actuação conforme/desconforme à legis artis. Consequentemente há responsabilidade do R. e, como tal, cumpre indemnizar a A. com base na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos.

m) Mas mesmo que assim não se entenda, a responsabilidade do R. tem também uma fonte contratual. Na verdade, enquanto a responsabilidade civil extracontratual os requisitos previstos no art. 483° do CC têm de ser provados pelo lesado, na responsabilidade civil contratual, por força da presunção de culpa do art. 799º, não compete ao lesado provar a culpa do lesante.

n) No caso em apreço, a A. não celebrou directamente o contrato com o médico. Há, de facto, uma relação quase quadrangular - a A. é contratada por empresa de trabalho temporário, que "cede" à R. CC, sendo que esta, por sua vez, por imposição legal, faculta aos trabalhadores (através de uma empresa contratada) acesso a médico de medicina do trabalho. Na verdade, o contrato não deixa de existir, apesar da referida quadrangulação.

o) Deste modo, entendemos também que tem aplicação ao presente caso a presunção de culpa prevista no art. 799°/1 do CC, incumbindo ao médico a sua elisão, demonstrando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados. No entanto, o R. BB não demonstrou tal facto, tendo a obrigação de indemnizar a A. também com base na responsabilidade contratual.

p) A DD é uma clínica que explora profissionalmente a actividade de prestação de serviços de medicina do trabalho, retirando lucros da sua actividade. Ora, no âmbito dessa sua actividade profissional, encarregou o seu colaborador, o R. BB, para, sob a sua orientação, prestar esses mesmos serviços de medicina do trabalho, tendo a sua conduta sido praticada no exercício da função que lhe foi confiada pela sua entidade patronal

q) Tal como uma clínica médica profissional ou uma sociedade de advogados que explora uma actividade médica ou de advocacia deve ser responsável pelos prejuízos que um dos seus colaboradores provoque no exercício das suas funções, ao serviço das primeiras. Tratam-se, pois, de organizações profissionais que visam retirar rendimentos dessas actividades, explorando (no sentido de servindo-se) de profissionais com autonomia técnica. Essa autonomia técnica é uma característica que lhes é inerente, mas não deve limitar a responsabilidade daqueles que obtêm os seus maiores rendimentos (comitente), responsabilizando apenas o mero comissário. Se beneficiam dos respectivos rendimentos e lucros, devem também ser responsabilizados pelos respectivos prejuízos.

r) Com efeito, servindo-se a DD de outra pessoa para, sob sua orientação, explorar profissionalmente a actividade de prestação de serviços de medicina de trabalho, colhendo as vantagens dessa utilização, é justo que sofra também as consequências prejudiciais dela resultantes.

s) Além disso, de acordo com Antunes Varela, este não é o único fundamento da responsabilidade civil do comitente, concluindo que o alcance desta disposição é ainda tornar o comitente garante do comissário.

t) Ora, todos estes argumentos justificam-se e têm aplicação no caso dos autos, não existindo qualquer motivo para excluir/absolver a DD de responsabilidades pelo sucedido.

u) Nos termos do art. 500°/1 do CC, deve a DD ser solidariamente responsável com o R. Dr. BB pelo pagamento da indemnização devida à A. tanto mais que, citada para o efeito, nem apresentou contestação própria, nem aderiu às contestações apresentadas pelos Réus.

v) Também a R. CC é responsável pelo sucedido, quer com base na responsabilidade contratual assumida perante a A. (art. 800°/1 CC), quer com base na responsabilidade objectiva do comitente pelo comissário (art, 500°/1 CC).

w) Desde logo, resulta dos factos provados a existência de uma relação contratual triangular com a R. CC e a empresa de trabalho temporário GG: a A., apesar de ser colaboradora da empresa de Trabalho Temporário GG Recursos Humanos, SA (contrato de trabalho temporário), prestava o seu trabalho directamente sob as ordens e instruções da R. CC, ao abrigo de contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre esta e a referida GG Recurso Humanos.

x) Com efeito, não nos podemos esquecer que, conforme resulta da al. c) do art. 2° da Lei 19/07 de 22/05 (regime jurídico de trabalho temporário), o trabalhador temporário fica sujeito à autoridade e direcção da empresa utilizadora, neste caso da R. CC.

y) Aliás, nos termos do art. 36°, nº 1, da Lei nº 19/07 de 22-05, em virtude da celebração desses dois contratos (contrato de utilização de trabalho temporário e contrato de trabalho temporário), a R. CC, enquanto utilizadora de trabalho temporário, assumiu a obrigação de assegurar à A., enquanto sua trabalhadora temporária, o mesmo nível de protecção em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho que os restantes trabalhadores da empresa.

z) Sendo certo que, também nos termos do art. 273°/4 do CT2003, em caso de utilização de trabalhadores em regime de trabalho temporário, as obrigações relativas à protecção da sua segurança e saúde competem à empresa utilizadora dessa mesma mão-de-obra, ou seja à aqui R. Leoni.

aa) Assim, nos termos do art. 273°/1 e 2, al. i) do CT2003, então em vigor, a R. CC tinha a obrigação legal de aplicar as medidas necessárias para assegurar as condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, nomeadamente, com especial interesse para este caso, estabelecer, em matéria de primeiros socorros, as medidas que devem ser adoptadas e a identificação dos trabalhadores responsáveis pela sua aplicação, bem como assegurar os contactos necessários com as entidades exteriores competentes para realizar aquelas operações e de emergência médica.

bb) Acrescentando o art. 220° da Lei nº 35/04, de 29-07 (que regulamenta a Lei nº 99/03, de 27/08, de agora em diante designado RCT), que a R. CC tinha a obrigação de ter uma estrutura interna que assegurasse as actividades de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação de trabalhadores em situações de perigo grave e iminente, designando os trabalhadores responsáveis por essas actividades.

cc) Sendo uma grande empresa (tinha cerca de 400 trabalhadores), nos termos do art. 224°/1, 2 e 4 do CT2003, a R. CC, para cumprir aquelas obrigações legais de assegurar as actividades de primeiros socorros e evacuação de trabalhadores em situações de perigo grave e eminente, estava obrigada a manter serviços internos que fizessem parte da estrutura da empresa e dependessem do empregador

dd) Face ao exposto, todas essas obrigações são acessórias e decorrentes da relação contratual tripartida ou triangular existente entre A. (trabalhadora temporária), a GG Recursos Humanos (empresa de trabalho temporário) e a R. CC (empresa utilizadora do trabalho temporário).

ee) Consequentemente, decorrente dessas relações contratuais, era a R. CC a responsável perante a A. por assegurar os serviços de medicina do trabalho.

ff) Para cumprir essa sua obrigação contratual acessória perante a A., a R. CC contratou os serviços da DD que, por sua vez, escolheu e designou o seu colaborador R. BB para prestar tais serviços.

gg) Nos termos do art. 800°/1 do CC, o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.

hh) Assim, tendo a R. CC utilizado para o cumprimento da sua obrigação inerente à relação contratual mantida com a A. os serviços da DD e do R. BB é responsável perante a A. pelos actos dessas entidades como se os mesmos tivessem sido por si praticados.

ii) Nos termos do art. 800°, nº 1, do CC, a R. CC deve ser solidariamente responsável com o R. BB pelo pagamento da indemnização devida à A.

jj) Mesmo que assim não se entendesse, sempre a R. CC seria responsável nos termos do art. 500° do CC (responsabilidade objectiva do comitente pelo comissário), pois, escolheu e encarregou a DD para lhe prestar as funções de medicina de trabalho na empresa mediante o contrato de prestação de serviços e, por sua vez, foi a DD quem, no cumprimento das obrigações contratuais por si assumidas para com a R. CC, escolheu e encarregou o R. BB para exercer o cargo/função de médico de trabalho nas suas instalações.

kk) Atendendo à cadeia/sequência dos referidos vínculos jurídicos (contrato de prestação de serviços celebrado entre a R. CC e a DD e, por sua vez, o contrato de trabalho existente entre esta e o R. BB), a R. CC pode e deve também ser responsável, nos termos previstos no art. 500° do CC, pelos danos sofridos pela A. no exercício dessas funções. Se a R. CC optou por se servir de terceiros para cumprir com as suas obrigações legais, beneficiando assim desse serviço, e se estes não cumpriram como seria exigível as mesmas, é justo que se responsabilize pelas consequências dessa sua escolha.

ll) Face ao exposto, também nos termos do art. 500°, nº 1, do CC, deve a R. CC ser solidariamente responsável com o R. BB pelo pagamento da indemnização devida à A.

Houve contra-alegações por parte dos recorridos.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

1. A A. nasceu no dia 31-8-71;

2. Em Outubro de 2008, era trabalhadora da empresa de trabalho temporário GG Recursos Humanos, SA, com a categoria profissional de operador especializado de 3ª;

3. Por contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre ambas as empresas, a GG Recursos Humanos, SA, na qualidade de empresa de trabalho temporário, obrigou-se a ceder os seus trabalhadores temporários, incluindo a A., à 2ª R., à empresa CC, Ldª, na qualidade de utilizador, para que esta os ocupasse;

4. Assim, no exercício das suas funções, e tal como havia acontecido nos meses anteriores, no dia 27-10-08, a A. prestava o seu trabalho na 2ª R., ao abrigo do contrato supra mencionado;

5. A 2ª R. tinha e tem mais de 200 trabalhadores ao seu serviço, sendo que na altura ali prestavam serviços mais de 400 trabalhadores e escolheu a empresa para a qual trabalhava o R. BB (recorrendo a serviço externo) para exercer as funções de médico de trabalho na empresa;

6. A 2ª R. tem nas suas instalações um consultório médico, uma enfermaria e uma sala de fisioterapia e dispunha de serviços capazes de assegurar as actividades de primeiros socorros e evacuação de trabalhadores em situações de perigo e com a formação adequada para tal, pese embora os mesmos não fizessem parte da estrutura da empresa e dependessem do empregador;

7. O consultório médico está equipado com audiograma, visiograma, espirometria, farmácia, aparelho para medir a tensão arterial, aparelho para medir o colesterol;

8. Em cada posto de trabalho – seja de produção, seja administrativo – está disponível uma caixa de primeiros socorros, composta por luvas descartáveis, betadine dérmico, soro fisiológico, pensos rápidos, gaze esterilizada, algodão, ben-u-ron, queimax, visine, hirudoid, saco de gelo e sacos para resíduos;

9. Para assegurar os serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho, a 2ª R. contratou, em 24-4-08, os serviços da DD, Ldª, nos termos do acordo que se encontra junto aos autos de fls. 102 a 108;

10. É esta empresa, a DD, que escolhe e designa, de entre os seus colaboradores, os técnicos especializados que, no dia-a-dia e sob sua orientação, asseguram os serviços que aquela se obrigou a prestar nas instalações da 2ª R., entre os quais figura o R. BB;

11. Em 14-1-08, a A. foi submetida ao exame médico de admissão e ao exame à sua capacidade auditiva e no seu historial clínico apresenta obesidade, depressão, tromboflebite, tumor benigno, hábitos tabágicos (20 ou mais por dia), hábitos sedentários e colesterol acima da média;

12. No dia 27-10-08, o R. BB encontrava-se nas instalações da 2ª R., segundo determinação da DD, a exercer as funções de médico do trabalho;

13. Cerca das 13.30 h, enquanto prestava o seu trabalho na 2ª R., a A. começou a queixar-se de cefaleia intensa e súbita, sem causa aparente, e queixou-se ainda de dormência e falta de força no lado direito do corpo, bem como manifestou dificuldades em falar e perda de equilíbrio; além disso, a boca da A. ficou torta;

14. Preocupados com o estado de saúde da A., alguns dos trabalhadores foram chamar o médico de trabalho de serviço para que lhe fossem prestados os primeiros socorros;

15. No entanto, como o mesmo não se encontrava nas instalações, chamaram-no telefonicamente;

16. O médico foi avisado dos sintomas da A. por outros trabalhadores;

17. Quando compareceu no consultório médico a A. queixava-se de tonturas e de dores de cabeça e apresentava-se algo agitada e ansiosa;

18. Quando o R. BB chegou ao consultório médico, cerca das 13.45 h, poucos minutos depois de ter sido chamado, já a A. lá se encontrava, na companhia apenas da enfermeira HH que fora escalada para aquele dia pela empresa DD;

19. Existem procedimentos básicos e estandardizados que os médicos reconhecem e que permitem identificar o Acidente Vascular Cerebral, nomeadamente:

1. Pedir para a pessoa sorrir: se ela mover a face para um dos lados é sinal de AVC;

2. Pedir para que levante os braços: caso haja dificuldade para levantar um deles ou, após levantar os dois, um deles caia, é sinal de AVC;

3. Dar uma ordem ou pedir que repita uma frase: se não conseguir corresponder ao pedido é também sinal de AVC;

20. O R. BB, assistido pela referida enfermeira, solicitou à A. que lhe apertasse as mãos, levantasse os braços, levantasse as pernas, sorrisse, examinou-lhe as pupilas e pediu-lhe que abrisse e fechasse os olhos repetidamente, o que a A. fez; pediu-lhe para abrir a boca e mostrar os dentes, o que aquela fez, sem que daquele movimento resultasse algum desvio da rima labial; tocou ainda com uma espátula na parte interior da garganta da A. para verificar se esta reagia e sentia o toque da espátula, o qual foi sentido pela A.;

21. Depois, o R. BB mediu a tensão arterial da A., encontrando-se aquela dentro dos valores normais, e procedeu à auscultação do coração e do pulmão e nenhuma dificuldade foi manifestada pela A. durante estes procedimentos;

22. O R. BB concluiu que a A. padecia de uma crise de ansiedade e ministrou-lhe um ansiolítico, Diazepan, um comprimido de 10 mg, colocando-a, de seguida, sob observação e em repouso no gabinete médico por um período de 3 horas;

23. Durante os procedimentos supra descritos a enfermeira HH não abandonou, por um único momento, o consultório médico;

24. Por volta das 15.00 h, a A. informou o R. BB que se sentia melhor, uma vez que já não sentia qualquer dor de cabeça e que queria ir para casa; e quando falou que queria ir-se embora para casa, aventou-se a hipótese de ir de ambulância;

25. Por volta das 15.00 h, a A., pelo seu próprio pé, abandonou o gabinete médico e, depois, as instalações da 2ª R., conduzindo o seu veículo automóvel;

26. A A., depois de ter ido para casa, deitou-se na cama;

27. Cerca das 18.30/19.00 h, o seu ex-marido foi a casa da A. e, face ao seu estado de saúde, levou-a imediatamente ao Centro de Saúde de …, onde a médica de serviço se apercebeu imediatamente do seu estado, mandando-a com urgência para o Centro Hospitalar do Alto Minho (CHAM), em Viana do Castelo;

28. A A. foi internada de urgência no CHAM devido a enfarte extenso no território da artéria cerebral média esquerda, apresentando afasia motora, hemiplegia direita e hemianópsia direita;

29. Se a A., antes ou enquanto esteve a ser examinada pelo R. BB, tivesse sofrido o AVC da artéria cerebral média esquerda com a extensão, gravidade e a localização descritas, jamais poderia ter saído a caminhar, pelo seu próprio pé, do gabinete médico até ao seu automóvel, localizado no parque de estacionamento da 2ª R., e muito menos deslocar-se para sua casa a conduzir o veículo automóvel, porque quando ocorre, como ocorreu à A., um bloqueio de um vaso sanguíneo no segmento proximal M1, logo no início, da artéria cerebral média esquerda, os efeitos da falta de irrigação sanguínea no cérebro fazem-se sentir de forma instantânea, impossibilitando a pessoa de caminhar, e manifestaria dificuldades na fala e na visão;

30. A eficácia dos medicamentos trombolíticos na remoção do coágulo nas primeiras 3 horas depende de vários factores, para além da celeridade da sua aplicação, afigurando-se determinante saber-se o local do coágulo, a gravidade e a extensão do mesmo, e mesmo que tais medicamentos sejam aplicados no espaço de 3 horas após o aparecimento dos primeiros sintomas de AVC, o paciente pode vir a sofrer graves lesões ou a morrer;

31. O AVC sofrido pela A. podia ter sido minorado, designadamente quanto aos efeitos que daí advieram, se ela fosse rapidamente encaminhada para um hospital adequado logo que se manifestaram os principais sintomas;

32. Alguns AVC têm tratamento se forem administrados os medicamentos trombolíticos adequados nas primeiras 3 horas após a ocorrência dos primeiros sintomas, pois os mesmos têm a propriedade de dissolver o coágulo sanguíneo que se encontra a entupir o vaso sanguíneo cerebral em causa;

33. Após esta fase inicial, os medicamentos trombolíticos já não são eficientes e a sua administração pode vir a revelar-se contra-indicada, pois pode provocar uma reperfusão de um tecido necrótico, transformando o AVC num acidente hemorrágico que pode levar a sequelas mais graves ou mesmo à morte;

34. Havia a hipótese de, estando reunidos todos os pressupostos medicamente estabelecidos, ministrar à A. um medicamento que minorava as consequências do AVC.

35. Em 28-10-08, em virtude do agravamento do seu estado de saúde, com agravamento do estado de consciência e maior efeito sobre a área enfartada, havendo necessidade de realizar uma craniectomia descompressiva, a A. foi transferida para o Hospital de S. Marcos, em Braga;

36. Após estabilização neurológica, a A. regressou ao CHAM em 3-11-08, onde se manteve internada até 19-11-08, tendo sido transferida para a UCC para terapia da fala, fisioterapia e terapia ocupacional, actividades que ainda mantém;

37. Durante o internamento a que esteve sujeita, a A. foi submetida a diversos exames e tratamentos, nomeadamente:

1. Em 29-10-08 - TAC CE que revelou extenso enfarte fronto-temporo-parietal com extensão nucleocapsular;

2. Em 29-10-08 - ecodopler carotídeo que revelou extensa placa ACIE, heterogénea emóvel (trombo);

3. Em 30-10-08 - TAC CE que revelou extenso enfarte fronto-temporo-parietal-insular esquerdo, com envolvimento estriato capsular, desvio das estruturas da linha média;

4. Em 31-10-08 - RM Cerebral que revelou extensa lesão isquémica fronto-temporo-parietal-insular esquerda com envolvimento estriato capsular, caracterizada por T1 e T2 prolongados e pequena área hemorrágica dos gânglios da base, caracterizado por discreto hipossinal em T2;

5. Em 31-10-08 – Angio RM Cerebral que revelou oclusão da ACM esquerda (segmento proximal M1), um defeito de preenchimento da porção vertical da carótida interna ipsilateral e igualmente um defeito de preenchimento na porção cervical da carótida interna (porção bulbar) e menos acentuadamente da carótida primitiva ipsilateral, podendo corresponder a trombos endoluminais;

6. Em 31-10-08 - Ecodopler Cervical que revelou possível trombo endoluminal na carótida com extensão a carótidas interna; aumento do índice de resistência na carótida primitiva esquerda, muito provavelmente por oclusão distal, intracraniana de ramos da carótida interna;

7. Em 6-11-08 - TAC CE que revelou redução da Hipo densidade cortiço-subcortical, fronto-temporo-parietal esquerda, não se evidenciando hemorragias;

38. Depois de ter alta, a. continuou em tratamentos de terapia da fala, fisioterapia e terapia ocupacional, actividades que ainda mantém até hoje, quase diariamente;

39. A A. ficou a padecer de marcha espástica/atáxica, afasia motora/expressiva, com erros de nomeação, acentuadamente pouco fluentes, erros de escrita e da repetição com compreensão normal, hemiparesia grau 3 do membro superior direito e grau 4 do membro inferior direito, espástica, de predomínio braquio-facial, babinski à direita;

40. Devido a tais lesões, a A. foi submetida a várias intervenções médicas e cirúrgicas, recebeu inúmeros tratamentos e teve de tomar grande quantidade de medicamentos e terá de ser submetida a outras, bem como a novas terapias da fala, fisioterapia e terapia ocupacional;

41. A A. obteve a sua consolidação médico-legal em 27-10-10, permanecendo totalmente incapacitada para o trabalho;

42. Ficou a padecer de uma incapacidade permanente global de 70 pontos e de uma incapacidade permanente para o trabalho de 100%;

43. Tem e vai continuar a ter dificuldade em falar, caminhar, bem como em movimentar de modo coordenado os braços e pernas e não mais vai poder correr, saltar ou fazer esforços;

44. Ficou sem força nos membros superiores e inferiores, com especial incidência nos membros superiores e inferiores direitos e ficou com a cara desfigurada, sendo que a boca ficou torta;

45. Antes do AVC, a A. sofreu as doenças referidas em 11.  era uma pessoa trabalhadora, auferindo o vencimento mensal de € 566,00, acrescidos de € 37,55 de subsídio nocturno e € 12,00 de prémio, sendo este vencimento e restantes quantias apontadas a única fonte de rendimento da A. e, juntamente com o auxílio do ex-marido, a dos seus dois filhos menores;

46. A A. sente-se triste e angustiada com o que lhe aconteceu, temendo não poder cuidar dos seus filhos como devia e por causa das suas limitações sente-se inferior aos seus amigos e conhecidos e evita confraternizar com familiares e amigos;

47. A sujeição a inúmeras intervenções médicas e cirúrgicas, suturas, exames e tratamentos, provocou-lhe dores e sofrimento psicológico;

48. A A. em virtude dos factos enunciados será ainda sujeita a tratamentos e intervenções médicas cujo número e valor ainda não é possível quantificar, necessitando, para sempre de ajuda de terceira pessoa e ajuda medicamentosa.


III – Decidindo:

1. Importa apreciar as seguintes questões essenciais que emergem das alegações da recorrente:

a) Aferir se a situação clínica em que a A. se encontra, depois de ter sido afectada por um AVC, é de imputar a algum facto ilícito culposo do R. BB revelado através do incumprimento de deveres profissionais e da falta de diligência no acompanhamento médico quando, na sua qualidade de médico da empresa onde a A. trabalhava, foi chamado a examiná-la;

b) Se necessário, definir o quadro da responsabilidade, ou seja se se trata de responsabilidade de génese contratual ou extracontratual, com reflexos essenciais ao nível da distribuição do ónus da prova quanto à existência de culpa do profissional de saúde.


2. A A. era funcionária da empresa de trabalho temporário GG Recursos Humanos e, por via de um contrato celebrado entre esta empresa e a sociedade CC, estava destacada para trabalhar nas instalações desta sociedade.

Relativamente à matéria da saúde no trabalho, a R. CC outorgou com a empresa DD, Ldª, um contrato de prestação de serviços que envolvia, além do mais, a permanência de um médico e de um profissional de enfermagem nas instalações daquela.

Era nessa qualidade de médico que o R. BB se encontrava nas instalações da CC quando foi chamado a intervir por causa de sintomas que a A. revelou durante o período laboral.

Quando o médico chegou e observou a A., foi-lhe dado conhecimento de sintomas que a mesma havia revelado cerca de 15 minutos antes, ou seja, que a A. se queixara de cefaleia intensa e súbita, sem causa aparente, de dormência e falta de força no lado direito do corpo, tinha dificuldades em falar e perda de equilíbrio e boca torta. Na altura da observação médica a A. ainda se queixava de tonturas e de dores de cabeça e apresentava-se algo agitada e ansiosa.

Foi então que o R. BB realizou os procedimentos básicos e estandardizados, de acordo com o protocolo de acidentes do foro cárdio-vascular (leges artis), que permitem identificar o Acidente Vascular Cerebral (AVC). Solicitou à A. que lhe apertasse as mãos, levantasse os braços, levantasse as pernas e sorrisse; examinou-lhe as pupilas, pedindo-lhe que abrisse e fechasse os olhos repetidamente, o que a A. fez; pediu-lhe para abrir a boca e mostrar os dentes, o que aquela fez, sem que daquele movimento resultasse algum desvio da rima labial; tocou ainda com uma espátula na parte interior da garganta da A. para verificar se esta reagia e sentia o toque da espátula, o qual foi sentido pela A.

São estes efectivamente os procedimentos ajustados a detectar sinais de AVC: pedir para a pessoa sorrir, a fim de verificar se ela move a face para um dos lados; pedir para levantar os braços, para verificar se algum deles cai ou dar uma ordem; ou pedir que repita uma frase, a fim de verificar se a pessoa não consegue corresponder ao pedido. Cada um destes testes pode sinalizar a existência daquela patologia. Complementarmente o R. BB ainda mediu a tensão arterial da A., encontrando-se aquela dentro dos valores normais, e procedeu à auscultação do coração e do pulmão, sem que alguma dificuldade fosse manifestada pela A. durante estes procedimentos.

Na sequência deste conjunto de procedimentos, o R. BB concluiu que a A. padecia de uma crise de ansiedade, ministrando-lhe um ansiolítico, ficando a A. sob observação e em repouso no gabinete médico, devendo permanecer assim por um período de 3 horas, na companhia da enfermeira.

A verdade é que, cerca de 1 h e 30 m depois, disse que se sentia melhor e que pretendia ir para sua casa, o que acabou por fazer, deslocando-se para o seu veículo estacionado nas instalações, seguindo a conduzir o referido veículo.

A matéria de facto não é totalmente clara relativamente ao momento em que a A. acabou por sofrer o acidente vascular cerebral AVC, sabendo-se, no entanto, que nesse mesmo dia, depois de ter sido levada para uma instituição hospitalar, lhe foi diagnosticado um AVC que foi determinante da incapacidade de que ficou a sofrer.

O AVC sofrido pela A. podia ter sido minorado, designadamente quanto aos efeitos que daí advieram, se ela fosse rapidamente encaminhada para um hospital adequado logo que se manifestaram os principais sintomas desse AVC.

Este aspecto é importante, mas terá que ser contextualizado.

Com efeito, enquanto a 1ª instância considerou que entre aqueles sintomas de AVC se encontravam os mencionados nas respostas aos pontos 6º a 9º (ou seja, os sintomas que a A. revelara ainda na empresa antes de ser obervada pelo médico), a Relação retirou este segmento da matéria de facto provada, concluindo simplesmente que o AVC sofrido pela A. podia ter sido minorado, designadamente quanto aos efeitos que daí advieram, se ela fosse rapidamente encaminhada para um hospital adequado logo que se manifestaram os principais sintomas (ou seja, os sintomas do AVC e não aqueles primeiros sintomas do episódio).

Provado está ainda que alguns AVCs têm tratamento se forem administrados os medicamentos trombolíticos adequados nas primeiras 3 horas após a ocorrência dos primeiros sintomas, pois os mesmos têm a propriedade de dissolver o coágulo que se encontra a entupir o vaso sanguíneo cerebral em causa. E que, após esta fase inicial, os medicamentos trombolíticos já não são eficientes e a sua administração pode vir a revelar-se até contra-indicada, pois pode provocar uma reperfusão de um tecido necrótico, transformando o AVC num acidente hemorrágico que pode levar a sequelas mais graves ou mesmo à morte.

Relevante ainda para a integração jurídica do caso é o facto de a Relação ter considerado não provado que “a conduta do R. Pessolato tivesse impedido que a A. fosse medicada adequada e atempadamente, dentro das 3 horas seguintes ao aparecimento dos primeiros sintomas de AVC”, matéria que fora assumida no ponto 52 da sentença e que foi retirado depois.

Acresce ainda que, tendo a sentença considerado provado que o anterior facto (ou seja, o que constava do ponto 52 da sentença) “agravou o estado de saúde da A. e as consequências do AVC sofrido, e vem impedindo e limitando a sua recuperação, dada a gravidade e extensão das áreas afectadas” (53º), a Relação também considerou “não provado” tal facto.

Por fim, no que concerne à factualidade relevante para a atribuição de responsabilidade ao R. P..., há que reter que, tendo a sentença considerado provado que “em consequência directa e necessária da não prestação atempada dos cuidados adequados à situação da A., esta ficou a padecer”, nos termos que constavam do ponto 59, a Relação restringiu esse facto e considerou provado simplesmente que “a A. ficou a padecer de uma incapacidade permanente global de 70 pontos e de uma incapacidade permanente para o trabalho de 100%”.


3. Discute-se em primeiro lugar a que título poderia ser responsabilizado o R. BB relativamente à responsabilidade civil que lhe é assacada pela A: a título de responsabilidade contratual ou antes de responsabilidade extracontratual. A diferença fundamental de regimes estabelece-se ao nível da prova da culpa, pois que na responsabilidade contratual, uma vez apurado o incumprimento da obrigação contratual (ilicitude), se presume a culpa do devedor (art. 799º, nº 1, do CC), ao passo que na responsabilidade extracontratual, em situações em que a lei não presuma a existência de culpa, o ónus da prova da sua ocorrência recai sobre o lesado (art. 487º, nº 1, do CC).

Pretende a A. que a resolução do litígio se inscreva na responsabilidade contratual. Para o efeito alega que a empresa L..., para a qual trabalhava efectivamente, contratara com a DD a prestação dos serviços de medicina do trabalho e que, por seu lado, o R. BB agia por conta da referida DD, vinculando-a nos termos do art. 800º, nº 1, do CC.

Trata-se de um encadeamento de laços interessante mas que não suporta o efeito jurídico que a A. pretende. Posto que a divergência de regime probatório quanto aos factos reveladores da culpa ou da sua ausência não prescinda da prova dos factos que integrem a ilicitude, sem os quais não haverá responsabilidade contratual ou extracontratual, não se configura no caso concreto uma relação contratual entre a A. e a DD que, por essa via, permita à A. invocar perante essa R. e perante o seu agente, o R. BB, o regime da responsabilidade contratual.

Independentemente dos motivos legais que levaram a R. CC a contratar com a R. DD a prestação de serviços de medicina do trabalho, não estamos perante uma vinculação contratual que possa ser invocada pela A. A conexão principal da A. deu-se por via do contrato de trabalho celebrado com a R. GG Recusos Humanos correndo paralelamente a outro contrato de cedência temporária de trabalhador que esta outorgou com a R. CC.

Ademais, ainda que porventura se tratasse de um contrato de trabalho celebrado directamente com a R. CC nem assim seria legítimo à A. sustentar a existência de um segundo vínculo contratual relativamente à R. DD cuja contraparte no contrato de prestação de serviços era unicamente a R. CC e não os seus trabalhadores efectivos ou os que temporariamente foram cedidos por outra empresa de trabalho temporário.

Por outro lado, as obrigações da R. CC em relação aos trabalhadores, mesmo os cedidos por terceira entidade, a respeito da saúde no trabalho, nos termos que estavam previstos, na ocasião, no art. 273º do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/03, de 27-8 (Regulamentado pelos arts. 218º e segs. da Lei nº 35/04, de 29-7), e também, especificamente a respeito do trabalho temporário, no art. 36º da Lei nº 19/07, de 22-5, não abarcam todos os aspectos relacionados com a saúde dos trabalhadores, mas apenas aqueles que são postos em causa pelas específicas condições de trabalho, não se detectando qualquer relação entre tal dever e o episódio clínico que ocorreu com a A.

Seja como for, independentemente da natureza e do âmbito da obrigação da R. CC perante trabalhadores como a A., não existe fundamento algum para que esta invoque, perante a R. DD e, depois, perante o R. BB, um vínculo contratual que permita invocar directamente o incumprimento de uma obrigação de génese contratual e, por dependência disso, a presunção de culpa relativamente a um aventual incumprimento da obrigação contratualmente assumida.

Enfim, nem sequer seria viável sustentar para a presente situação uma conexão contratual fundada na figura do contrato a favor de terceiro (art. 443º do CC), pois que a prestação de serviços em que intervio a R. DD teve como contraparte a R. CC, visando o cumprimento de uma obrigação legal que sobre esta impendia, atento o número de trabalhadores que a mesma detinha.

Por conseguinte, a apreciação da pretensão da A. será integrada exclusivamente nass regras da responsabilidade extracontratual, sendo a pretendida ilicitude dependente da prova de factos reveladores do incumprimento de deveres que tutelam o direito à saúde da A.


4. É pressuposto da responsabilidade civil extracontratual a prática de um facto ilícito e, em regra culposo, causador de danos.

Aquilo que no plano contratual constitui incumprimento de obrigação preexistente, na responsabilidade extracontratual integra simplesmente a negligência. Ambos os aspectos devem ser aferidos em função das leges artis ajustadas a cada situação, como critério valorativo de correcção do acto médico executado pelo profissional de medicina, tendo em conta as especiais características do seu autor e a complexidade ou a transcendência vital do paciente (Clara Gonzalez, em Responsabilidad Civil Médica, inserida no Tratado da Responsabilidade Civil (coord. de Reglero Campos), vol, II, pág. 736).

Assim, mostra-se crucial aferir, a partir da apreciação da realidade consolidada pelos factos apurados pelas instâncias, da existência ou não de uma situação de incumprimento do dever de cuidado, sendo certo que, no âmbito da prática médica, o profissional tem sobre si, como regra praticamente absoluta, uma obrigação de meios e não de resultado.

Discute-se se a prática de actos médicos implica em absoluto obrigações de meios ou se é possível detectar em algumas situações excepcionais (v.g. análises, meios de diagnóstico que se servem de tecnologia avançada) verdadeiras obrigações de resultado (no sentido da detecção das patologias que efectivamente podem ser detectadas através desses meios). Porém, no caso presente, não importa tomar posição sobre essa questão, já que nos defrontamos com uma situação em que é indiscutível a existência de uma obrigação de meios que se deve ter por cumprida – excluindo-se, assim, a ilicitude e a culpa – desde que o profissional médico actue com o grau de diligência exigível segundo os adequados padrões impostos pelas leges artis.

Para além de a própria recorrente se mostrar concordante com esta conclusão, é vasta a literatura jurídica e/ou médica a este respeito, a qual se respiga dos numerosos arestos deste Supremo Tribunal que têm incidido sobre a matéria.

A par do Ac. do STJ de 15-11-12 (Rel. Abrantes Geraldes) que se assinala pela coincidência de relator deste acórdão, semelhante juízo extrai-se designadamente dos Acs. do STJ, de 15-12-11, CJSTJ, tomo III, pág. 163 (Rel. Gregório de Jesus), de 22-9-11, CJSTJ, tomo III, pág. 50 (Rel. Bettencourt de Faria), de 18-9-07, CJSTJ, tomo III, pág. 54 (Rel. Alves Velho), ou de 11-7-06, CJSTJ, tomo II, pág. 325 (Rel. Nuno Cameira), igualmente acessíveis através de www.dgsi.pt, onde também se pode aceder ao recentíssimo Ac. do STJ, de 12-3-15 (Rel. Hélder Roque)

Como referem Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, em Responsabilidade Médica em Portugal (cit. por Dias Pereira, (O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, vol. 9 da referida colecção do CDB da FDUC, pág. 424), “só por absurdo se pode admitir que o doente, para obter uma indemnização, além de outros pressupostos gerais, tenha apenas de provar a não obtenção de um resultado, isto é, de forma típica, a não recuperação da saúde”, concluindo que “a natureza de obrigação de meios só tem por consequência que o paciente tenha de provar o incumprimento das obrigações do médico, isto é, tem de provar objectivamente que não lhe foram prestados os melhores cuidados possíveis”.

Deste modo, em circunstâncias como a dos autos, ao profissional médico não será assacada responsabilidade por facto ilícito se, nas concretas circunstâncias, usar da diligência que é exigível, cuja dimensão é medida segundo as leges artis, cujo cumprimento ou incumprimento, com relevo para efeitos de verificação ou não de responsabilidade civil, deve ser aferido em função do empenho, da diligência ou da aplicação dos conhecimentos e técnicas adequadas à concreta situação. Em tais circunstâncias, o facto de não ser alcançado o resultado projectado pelo interessado que solicita ou que é submetido aos serviços médicos não corresponde necessariamente a uma situação de incumprimento dos deveres legais ou contratuais, sendo relevante, isso sim, apreciar se existiu ou não incumprimento das leges artis que, em concreto, se mostravam exigíveis.

Nem as partes nem o intérprete podem deixar de ponderar que toda a actuação médica comporta uma certa margem de risco. Dependendo das concretas circunstâncias objectivas, assim será maior ou menor a possibilidade de o profissional de saúde controlar todo o processo, desde o diagnóstico da situação, à sua cura, passando pela prescrição ou pelo tratamento.

Como refere Álvaro Dias, “aqueles que empreendem uma certa actividade que exige especiais qualificações não deverão contentar-se em proceder de modo diligente e empenhado, antes deverão referenciar a sua conduta ao padrão de proficiência que é legítimo esperar das pessoas que exercem uma tal profissão e que na verdade se lhes exige”, sendo naturalmente maior o grau de perícia exigível a um profissional que se arroga a qualidade de especialista. Acrescenta ainda que “o ponto de partida essencial para qualquer acção de responsabilidade médica é, por conseguinte, a desconformidade da concreta actuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data” (Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, pág. 440, pág. 448).

Perante uma resposta negativa a tais normas de conduta, considerar-se-á preenchido o primeiro pressuposto da responsabilidade, sendo disso exemplo o caso que apreciado no Ac. do STJ, de 30-11-11 (www.dgsi.pt), em que, estando em causa a necessidade de uma intervenção cirúrgica numa veia, foi intervencionada uma artéria.


5. A acção, na parte em que é dirigida ao R. BB, é sustentada no erro de diagnóstico quanto à verificação de um Acidente Vascular Cerebral alegadamente sofrido pela A. quando se encontrava nas instalações da empresa onde trabalhava e onde o referido R. exercia a sua profissão de médico do trabalho.

Um tal pressuposto não foi apurado.

Mais do que apreciar as características distintivas de um AVC relativamente a outros episódios do foro clínico, como o Acidente Isquémico Transitório (AIT), a matéria de facto apurada é reveladora da falta de demonstração daquela alegação, pois se provou que “se a A., antes ou enquanto esteve a ser examinada pelo R. Pessolato, tivesse sofrido o AVC … jamais poderia ter saído a caminhar, pelo seu próprio pé, do gabinete médico até ao seu automóvel, localizado no parque de estacionamento da 2ª R. e muito menos deslocar-se para sua casa a conduzir o veículo automóvel, porque quando ocorre, como ocorreu à A., um bloqueio de um vaso sanguíneo, no segmento proximal M1 … os efeitos da falta de irrigação sanguínea no cérebro fazem-se sentir de forma instantânea, impossibilitando a pessoa de caminhar, e manifestaria dificuldades na fala e na visão”.

A sintomatologia da A. antes da chegada do médico que foi chamado para a assistir é porventura compatível com um Acidente Isquémico Transitório (AIT). E sendo verdade que este constitui um sério problema de saúde que pode evoluir para um Acidente Vascular Cerebral embólico ou trombolítico, a matéria de facto apurada (influenciada pela literatura médica e pelos juízos de natureza médico-legal que ao caso se ajustam) não permite concluir que a referida consequência mais grave se suceda necessária e imediatamente à verificação de um episódio de AIT. O que é possível concluir, por via das leges artis que devem ser aplicadas nestas situações, é que o AIT constitui um sintoma de problemas do foro vascular-cerebral que merece ser acompanhado medicamente, designadamente com posterior realização de exames de diagnóstico complementares que permitam detectar o verdadeiro estado das artérias cerebrais, por forma a que o paciente possa receber a medicação ou o tratamento necessários a evitar a ocorrência de um AVC.


6. Prosseguindo com a enunciação da matéria de facto relevante para este efeito, verifica-se que, ocorrido um AVC, “a eficácia dos medicamentos trombolíticos na remoção do coágulo nas primeiras 3 horas depende de vários factores, para além da celeridade da sua aplicação, afigurando-se determinante saber-se o local do coágulo, a gravidade e a extensão do mesmo”. Além disso, “mesmo que tais medicamentos sejam aplicados no espaço de 3 horas após o aparecimento dos primeiros sintomas de AVC, o paciente pode vir a sofrer graves lesões ou a morrer”.

Por outro lado, provou-se ainda que “o AVC sofrido pela A. podia ter sido minorado, designadamente quanto aos efeitos que daí advieram, se ela fosse rapidamente encaminhada para um hospital adequado logo que se manifestaram os principais sintomas”, embora nada permita concluir (por ter sido alterada a matéria pela Relação) que entre esses sintomas se encontrassem os que a A. revelou antes de ter sido examinada pelo R. BB.

Apurou-se ainda que “alguns AVC têm tratamento se forem administrados os medicamentos trombolíticos adequados nas primeiras 3 horas após a ocorrência dos primeiros sintomas, pois os mesmos têm a propriedade de dissolver o coágulo sanguíneo que se encontra a entupir o vaso sanguíneo cerebral em causa”. E que, “após esta fase inicial, os medicamentos trombolíticos já não são eficientes e a sua administração pode vir a revelar-se contra-indicada, pois pode provocar uma reperfusão de um tecido necrótico, transformando o AVC num acidente hemorrágico que pode levar a sequelas mais graves ou mesmo à morte

Além disso, também se provou que “havia a hipótese de, estando reunidos todos os pressupostos medicamente estabelecidos, ministrar à A. um medicamento que minorava as consequências do AVC”.

Simplesmente esta matéria apenas seria revelante caso se pudesse afirmar que, aquando da realização do exame por parte do R. BB, a A. apresentava sinais de ocorrência de AVC, o que, como se disse, é infirmado não apenas pelos resultados dos exames a que foi submetida, que nem sequer permitiram confirmar os sintomas que antes a A. revelara, como ainda pelo seu comportamento posterior e designadamente pelo facto de espontaneamente ter saído do local onde se encontrava sob observação, deslocando-se para sua casa a conduzir o seu veículo automóvel.

Por conseguinte, considerando o fundamento da responsabilidade que foi imputada ao R. BB, a acção não poderia proceder, uma vez que aquando da sua intervenção clínica não existia qualquer sintomatologia compatível com um AVC, reagindo a A. de forma aparentemente normal à bateria de testes que foram efectuados.


7. Mas o facto de a A. sustentar a responsabilidade do R. na não detecção de um AVC e na omissão de comportamentos diligentes relativamente ao tratamento e acompanhamento dessa patologia não explica, por si só, a improcedência da acção.

Com efeito, em abstracto, a responsabilidade poderia advir ainda, através da qualificação jurídica do comportamento assumido pelo R. BB, do facto de este não ter detectado a existência de um Acidente Isquémico Transitório ou de, apesar da detecção dessa patologia vascular, não ter accionado os meios preventivos tendentes a evitar a posterior ocorrência do AVC que efectivamente veio a afectar a A. Isto é, poderia advir ou de um erro de diagnóstico de AIT ou de uma omissão de conduta adequada ao tratamento ou acompanhamento médico dessa patologia, a fim de evitar consequências mais graves como as que estão associadas ao AVC e que na realidade se vieram a verificar poucas horas depois do evento.

Porém, nem assim se colhe da matéria de facto apurada a necessária sustentação, de tal modo que a imputação da responsabilidade civil médica a esse título também nos parece prejudicada pela ausência de elementos que permitam afirmar que, ao agir como agiu, o R. BB tenha desrespeitado as leges artis que a ciência médica prescrevia para situações semelhantes às que o R. encontrou.

O R. não ignorava (nem poderia ignorar) os sintomas que a A. apresentara 15 minutos antes, os quais, aliás, lhe foram comunicados pelos colegas da A. Por outro lado, a A., que anteriormente, em 14-1-08, fora submetida a um exame médico de admissão, apresentara então obesidade, depressão, tromboflebite, tumor benigno, hábitos tabágicos (20 ou mais por dia), hábitos sedentários e colesterol acima da média, elementos que tendo sido identificados pela empresa que a contratara estariam disponíveis para serem ponderados pelo respectivo médico. Finalmente, verifica-se que, aquando da realização do exame médico pelo R. BB, a A. se queixava ainda de tonturas e de dores de cabeça e apresentava-se algo agitada e ansiosa.

Ocorre, no entanto, que, em tal circunstancialismo, a A. foi imediatamente submetida aos procedimentos básicos e estandardizados, de acordo com o protocolo de acidentes do foro cárdio-vascular (leges artis), nada revelou de anormal a esse respeito. Mais concretamente, respondeu de forma totalmente normal aos testes habituais, aconselháveis e exigíveis que consistiram em apertar as mãos, levantar os braços, levantar as pernas e sorrir. Também passou pelo exame das pupilas, pelo abrir e fechar de olhos repetidamente, por abrir a boca e mostrar os dentes e pela reacção ao toque da espátula no interior da garganta.

Mais ainda. O R. BB mediu a tensão arterial da A., encontrando-a dentro dos valores normais e procedeu à auscultação do coração e do pulmão, sendo que nenhuma dificuldade foi manifestada pela A. durante estes procedimentos.

Foi por tudo isso que o R. BB concluiu que a A. padecia de uma crise de ansiedade, ministrando-lhe um ansiolítico e colocando a A. sob observação e em repouso no gabinete médico.


8. Nada na matéria de facto nos permite afirmar – o que suporia um juízo médico-legal nesse sentido que tivesse sido reflectido positivamente na matéria de facto provada – que, ao agir como agiu, o R. BB tenha desrespeitado as leges artis ajustadas à situação.

São inequívocas as dificuldades com que se defronta o lesado ou o credor da prestação de serviços médicos no tocante à prova dos factos relevantes para efeitos de responsabilidade civil, quer extracontratual - prova da culpa, nos termos do art. 487.º do CC -, quer contratual - prova da situação de incumprimento ou de cumprimento defeituoso da obrigação de tratamento assumida pelo profissional de saúde, nos termos do art. 799º do CC (analisadas por Mafalda M. Barbosa, no trabalho intitulado “A jurisprudência portuguesa em matéria de responsabilidade civil médica: o estado da arte”, nos Cadernos de Direito Privado, nº 38, págs. 14 e segs.).

É verdade que algumas horas depois a A. veio a ser acometida por um AVC e que a mesma revelava alguns factores de risco quanto a eventuais problemas do foro cárdio-vascular.

Porém, não podemos partir do trágico acontecimento posterior para sindicar a actuação anterior. Ao invés, a apreciação dos pressupostos da responsabilidade, como a ilicitude e a culpa do R. BB, deve ser feita em face dos elementos que estavam disponíveis na ocasião em que se deu o primeiro evento e em que a A. foi observada medicamente, em conjugação com as regras que as boas práticas da actividade médica aconselhavam ou impunham em face de uma sintomatologia semelhante à que a A. apresentava.

Ora, em face dos sinais que a A. apresentava, não é possível afirmar que lhe viesse a suceder um AVC, nem asseverar que se impunha outra actuação de natureza preventiva mais assertiva do que aquela que o R. adoptou.

Se é verdade que os sintomas de AIT aconselham a que seja feito o acompanhamento médico, na ocasião em que foram efectuados os testes a A. nem sequer revelou qualquer sintoma de AVC ou mesmo de AIT, reagindo de forma completamente normal aos testes protocolares que, em boa verdade, se mostraram compatíveis com o diagnóstico de ansiedade que foi feito pelo R.

Por certo que se, em lugar das cautelas que foram tomadas, a A. fosse deslocada, de imediato, para um estabelecimento hospitalar, aí estariam disponíveis meios de diagnóstico mais eficazes para detectar a possível ocorrência de AVC ou anterior verificação de AIT. Então, poderiam ser ministrados tratamentos médicos ou medicamentosos capazes de detectar um bloqueio vascular ou de dissolver algum coágulo que porventura já existisse e fosse identificado, posto que naturalmente não existisse certeza absoluta nem quanto à eficácia dos exames de diagnóstico, nem quanto à eficácia do tratamento que ao caso se ajustasse.

Porém, a matéria de facto provada e não provada, que é da competência das instâncias, delimita o âmbito da formulação de juízos de natureza técnico-jurídica por este Supremo Tribunal de Justiça atinentes com os pressupostos da responsabilidade, seja a ilicitude e a culpa, seja o nexo de causalidade entre o evento e o dano.

Não existe na matéria de facto provada base para sustentar a responsabilidade do profissional médico a quem naturalmente não se exige que, perante cada situação, desenvolva os mecanismos que, com absoluta certeza, impeçam a verificação de outras consequências que não sejam sequer previsíveis, devendo ajustar o tratamento ou o aconselhamento médico à realidade observada e observável no momento da intervenção.

Ora, como transparece do anterior excurso, a matéria de facto apurada e especialmente a que resultou fixada depois da última intervenção operada pela Relação, alterando substancialmente alguns pontos de facto que haviam sido dado como provados pela 1ª instância, impede que se formule relativamente à actuação do R. BB um juízo de imputação subjectivo revelador da existência de um comportamento que, sendo violador do direito à saúde da A., tenha ficado a dever-se a comportamento negligente da parte daquele consistente no incumprimento das regras da medicina ponderada.

Por conseguinte, quer por ausência de ilicitude, quer por ausência de culpa da parte do R. BB, não é viável a atribuição de qualquer responsabilidade pela situação em que a A. se encontra depois de ter sofrido o AVC posterior ao momento em que aquele R. foi chamado a intervir profissionalmente.


9. Fica, assim afastado o interesse no tratamento das demais questões suscitadas pela A. nas alegações de recurso e que estavam dependentes da atribuição de alguma responsabilidade civil ao R. BB.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas da revista e nas instâncias a cargo da A.

Notifique.

Lisboa, 28-5-15


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Bettencourt de Faria