Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
051141
Nº Convencional: JSTJ00008401
Relator: MOURISCA
Descritores: SIMULAÇÃO
DIVIDA
ANULAÇÃO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ194112190511411
Data do Acordão: 12/19/1941
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DG IªS 03-01-1942; BOMJ ANO1,485
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 5/1941
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV867 ARTIGO 341 ARTIGO 682 ARTIGO 1031 ARTIGO 1792 ARTIGO 2019 ARTIGO 2115 ARTIGO 2536.
Sumário :
Os filhos podem pedir, mesmo em vida dos pais, a anulação de dividas por estes simuladamente contraidas, com o intuito de os prejudicar, não sendo, portanto, preciso demonstrar a efectividade do prejuizo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A e esposa, B, propuseram a presente acção ordinaria contra os reus:
1 -C;

2 - D;

3 - E e esposa,F;

4 - G e esposa, H;

5 - I e marido, J;

6 - L e marido, M, alegando:

Que por escrituras de 5 de Junho de 1904 e 19 de Junho de 1906, outorgadas por Jose Estevão V.

Barahona, pai do autor, e N, pai dos reus Charnecas, confessou-se aquele, o primeiro, devedor ao segundo, respectivamente, de 20000 escudos e 19000 escudos;

Que esses contratos foram celebrados com o fim de defraudar o autor na sua legitima, no seu direito a integral herança de seu pai;

Que a declaração de entrega dos 39000 escudos e falsa, pois o mutuario não recebeu mais de 10000 escudos, sendo esta a quantia aprovada como passivo na interdição do pai do autor;

Que ja ao tempo das escrituras o pai do autor, interdito por prodigalidade, doente e enfraquecido, diminuira para com o autor os sentimentos paternais, especialmente depois de saber que o Dr. Francisco Barahona testara o solar da familia a favor do autor;

Que isso explica o seu proposito de, com a colaboração do agiota Charneca, prejudicar o autor;

Que a 1 re tambem outorgou por procuração nas referidas escrituras.
Concluiram por pedir que fossem julgadas inexistentes ou nulas as ditas escrituras e que os reus, com excepção da 1 re, fossem condenados a pagar ao autor as quantias falsamente indicadas como emprestadas, com os rendimentos que indicaram, etc.

Na contestação excepcionou-se o caso julgado, arguiu-se a ilegitimidade do autor e impugnou-se a simulação, alegando-se:

Que a importancia da escritura de 1904 e a soma das parcelas emprestadas antes por letras, que depois foram inutilizadas;
Que a importancia da escritura de 1906 tambem e a soma das parcelas emprestadas depois da de 1904;

Que não houve, nem podia haver, intuito de o pai prejudicar o filho, porque, ao tempo, não tinha bens sobre que recaisse a legitima;
Que, por morte, deixou mais de 2000000 escudos, e assim os 39000 escudos não lesaram a legitima;

Que a legitima e herança são valores que existem no patrimonio a morte do de cujus e que o que ele gastou ou deu sem renumeração não e patrimonio, não afectando assim a legitima, que incide sobre os valores na posse efectiva ao tempo do falecimento;

Que foi o pai do autor quem, para efeitos de chicana, propalou que so tinha recebido 10000 escudos; e que as 5 e 6 res são partes ilegitimas; concluindo-se ut folhas 87.

Houve replica e treplica, em que cada parte procura sustentar o seu ponto de vista.

O saneador desatendeu as arguidas inviabilidade da acção e inaptidão, bem como a excepção de caso julgado, julgou legitimas as partes e que os reus eram terceiros.

Seguiu o processo os seus termos, respondendo o colectivo a folhas 234 ao questionario e sendo depois a acção julgada improcedente por sentença de folhas 250.

Recorreram os autores a folhas 261 para a Relação, que, por acordão de folhas 370, revogou essa sentença, anulou as ditas escrituras e condenou os reus a restituir aos autores as importancias que deles ja receberam a titulo de capital e juros, acrescendo os juros legais desde a data do recebimento, etc.

A folhas 381 recorreram os reus da revista para este Supremo Tribunal, que, por acordão de folhas 465, concedeu, em parte, provimento ao recurso, julgando a acção improcedente quanto a 10000 escudos, negando a revista quanto ao mais.

A folha 472 recorreram os reus desse acordão para o tribunal pleno.
Foi admitido esse recurso por despacho de folhas 487 e mandado seguir por acordão de folha 496. A folhas 509 foi limitado o recurso a parte do acordão que negou a revista.

Tudo visto:

São as seguintes as conclusões da minuta dos recorrentes:
1 - Os herdeiros legitimarios que pretendem a anulação dos actos simulados praticados pelos pais so podem ser considerados terceiros, para os efeitos do artigo 1031 do Codigo Civil, quando a sua cota legitimaria seja prejudicada por aqueles actos;

2 - A protecção desse artigo tem de fundamentar-se no prejuizo efectivo da legitima, demonstrado posteriormente a abertura da herança;
3 - E inoperante a simulação praticada pelos pais com o intuito de prejudicar os herdeiros legitimarios se posteriormente a abertura da herança não se provar prejuizo da cota legitimaria;

4 - Consequentemente, deve ser revogado o acordão recorrido, so na parte em que negou a revista Vejamos:

A acção, como se relatou, foi proposta para se anularem duas dividas constituidas pelo pai do autor, arguidas por este autor de simuladas. Foi julgada procedente em parte, ou seja quanto a 29000 escudos, etc. E essa parte que agora esta em causa.

As escrituras em que se constituiram as dividas foram celebradas em 1904 e 1906, mas a acção so foi proposta em 25 de Maio de 1936, depois da morte do pai do autor, ocorrida em 10 de Janeiro de 1923 (certidão de folhas 99).
Vem provado que quanto aos referidos 29000 escudos e falsa a constituição da divida e que houve o intento de prejudicar o autor (resposta do colectivo aos quesitos 1 e 6).

O autor foi considerado terceiro no saneador. Estão assim comprovados os requisitos da simulação e do fim de defraudar direitos de terceiro, exigidos no citado artigo 1031.

Quanto ao prejuizo:

E preciso provar-se o prejuizo efectivo, real, ou basta a ameaça, a possibilidade, a eventualidade do prejuizo? Muito se tem escrito na doutrina e na jurisprudencia a tal respeito, sendo divergentes as opiniões.
Mesmo, porem, que se seguisse a opinião de que era preciso mostrar-se a existencia de prejuizo efectivo, nada lucravam com isso os recorrentes, porque existe tal prejuizo.

E certo que o colectivo disse que o autor não foi prejudicado em direito seu proprio e que o valor dos bens deixados pelo pai do autor excederam em mais do dobro as quantias referidas nas escrituras (respostas aos quesitos 16-A e 18).

Mas o autor foi o unico herdeiro de seu pai, como se alegou no artigo 4 da petição inicial, o que não foi contrariado na contestação. Foi ate ali corroborado, como se ve dos artigos 3 e 22, e o mesmo se depreende de folha 117.

Como unico herdeiro de seu pai, o autor tinha obrigação de pagar as dividas daquele, em virtude do disposto nos artigos 1792, 2019 e 2115 do Codigo Civil.

Chegou a efectuar o pagamento, como acentua o acordão da Relação a folha 371, pelo que os reus foram condenados a fazer a respectiva restituição.
Era, pois, manifesto o prejuizo efectivo e real que para os autores advinha da referida simulação.

Mesmo, porem, que não houvesse tal prejuizo, havia a ameaça dele, havia a sua possibilidade e eventualidade, e isso bastava, como decidiu o acordão recorrido.

Podiam, assim, os autores ter proposto esta acção antes mesmo da abertura da herança de seu pai e sogro, o dito Jose Estevão Vieira de Barahona.
Razões:
O direito dos filhos a herança dos pais e um direito proprio, que deriva do nascimento, não dependendo da abertura da herança.

Os filhos tem, por isso, o direito de fazer garantir a sua legitima, mesmo futura, pelos meios legais.

Tanto assim que o artigo 341 do Codigo Civil da aos filhos o direito de requererem a interdição dos pais no caso de prodigalidade destes.
Ve-se dai e doutras disposições legais que o legislador quis assegurar a legitima dos filhos antes mesmo da abertura da herança.
O artigo 682 do mesmo Codigo admite a pratica de actos necessarios a conservação dos direitos e o artigo 2536 alude a ameaça de direitos.
Se apenas fosse licito requerer a anulação dos actos e contratos simulados apos a morte dos pais, podia ate la completar-se a prescrição ou desaparecerem as provas da simulação.

A fraude dos contraentes precisa de ser reprimida logo que dela ha conhecimento.
A esperança de herdar e um direito eventual.

Vem, pois, provados todos os requisitados legais para a procedencia da acção, na parte em que assim foi julgada.

Pelo exposto, e pelo mais que se pondera no acordão recorrido:
Fica negado provimento ao recurso, com todas as custas deste pelos recorrentes, e firma-se o seguinte assento:

Os filhos podem pedir, mesmo em vida dos pais, a anulação de dividas por estes simuladamente contraidas com o intuito de os prejudicar, não sendo, portanto, preciso demonstrar a efectividade do prejuizo.

Lisboa, 19 de Dezembro de 1941

- Mourisca - Teixeira Direito - Heitor Martins - Miguel Crespo - F. Mendonça - Luis Osorio - Avelino Leite -
- Magalhães Barros - Adolfo Coutinho - Flores - M.
Pimentel - Miranda Monteiro.