Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3444/11.9TBTVD.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA MATERNIDADE
LEGITIMIDADE
DESCENDENTE
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
FILIAÇÃO MATERNA
DIREITO PESSOAL
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL / DIREITO DA FAMÍLIA / ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA MATERNIDADE / LEGITIMIDADE / PRAZO PARA A PROPOSITURA DA ACÇÃO / CADUCIDADE / DIREITOS FUNDAMENTAIS
Doutrina:
Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, «Curso de Direito da Família», vol. II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação. Adopção, Coimbra, 2006;
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra, 1995, págs. 88-89.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: ARTS. 18.º, 26.º E 36.º, N.º 1;
CÓDIGO CIVIL: ARTS. 287.º, N.º 1, 289.º, N.º 1, 1787.º, 1796.º, 1797.º, N.ºS 1 E 2, 1803.º, 1810.º, 1814.º. 1817.º, 1818.º, 1825.º, 1873.º E 1987.º;
LEI 14/2009, DE 01-04;
LEI 32/2006, DE 26-07: ARTS. 10.º E 21.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TC 451/89;
ACÓRDÃO DO TC N.º 23/2006, DE 10-01-2006;
ACÓRDÃO DO TC N.º 411/2011;
AC. STJ 29-01-2002, PROC. N.º 01ª3796;
AC. STJ 08-07-2010, REVISTA N.º 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1;
AC. STJ 10-01-2012, REVISTA 193/09.1TBPTL.G1.S1;
AC. STJ 13-09-2012, PROC. N.º 146/08.7TBSAT.C1.S1;
AC. STJ 09-04-2013, PROC. N.º 187/09.7TBPFR.P1.S1
AC. STJ 15-05-2013, PROC. N.º 787/06.7TBMAI.P1.S1;

Sumário :
I - O art. 1818.º do CC consagra um direito próprio dos descendentes e do cônjuge sobrevivo a proporem acção de investigação da maternidade/paternidade ou a prosseguirem com ela, se o pretenso filho faleceu ainda em prazo para a sua propositura ou na sua pendência.

II - O direito de investigação da maternidade é um direito eminentemente pessoal e insusceptível de transmissão, razão pela qual a legitimidade processual que o art. 1818.º do CC confere aos familiares, ali identificados, decorre da titularidade do direito que lhes é reconhecido.

III - Não é apenas no âmbito das acções de investigação da maternidade e paternidade que a lei portuguesa condiciona o direito de estabelecer juridicamente uma filiação coincidente com a filiação biológica; exemplo disso é o disposto no art. 1987.º do CC, para a adopção plena, e nos arts. 10.º e 21.º da Lei n.º 32/2006, de 26-07, para a procriação medicamente assistida.

IV - Estas opções legislativas levam-nos à conclusão que o legislador ordinário entende que o valor do reconhecimento jurídico da filiação biológica – da identidade pessoal – tem de ser confrontado com outros valores individual e socialmente relevantes e que podem justificar a definição de condicionamentos à sua prossecução.

V - O Acórdão do TC n.º 23/2006, 10-01-2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 1817.º, n.º 1, do CC (na medida em que previa um prazo de 2 anos, a partir da maioridade do investigante, para intentar a acção de investigação da paternidade) não julgou constitucionalmente censurável a definição legal de prazos de caducidade, apenas excluiu a legitimidade de fixação de um prazo de 2 anos, por este significar uma diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, onde se inclui o direito ao conhecimento da paternidade e maternidade.

VI - Os valores da certeza e segurança das relações jurídicas, em particular quanto à vida privada do investigado e sua família, são tanto mais merecedoras de tutela quanto mais recuados no tempo forem os factos a investigar.

VII - Se não viola a lei fundamental que o exercício do direito de investigação esteja condicionado pelo prazo actualmente fixado no n.º 1 do art. 1817.º do CC – orientação relativamente à qual não há consenso no STJ, mas q se encontra estabilizada na jurisdição constitucional – também não contraria a aplicação do mesmo prazo ao filho que, após a morte do progenitor, decide instaurar acção de investigação da maternidade deste.

VIII - É manifestamente extemporânea a propositura de acção de investigação de maternidade decorridos que são 89 anos sobre o nascimento do pretenso filho (mãe da autora), 68 anos sobre a data em que este atingiu a maioridade e 13 sobre a sua morte.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, nascida em … de Janeiro de …, na qualidade de filha e herdeira de BB, “veio intentar acção de averiguação oficiosa de maternidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1808º do Código Civil contra CC (em representação de DD)”, “única herdeira sobreviva de BB que se conhece”.

Pediu que se declare que BB, nascida em …de Março de …, filha de EE e de FF, era mãe de BB, sua mãe, nascida em … de Fevereiro de … e filha de “GG (‘) …”.

A ré contestou, sustentando: que a autora “não pode intentar acção de investigação oficiosa contra a ré, pois este tipo de acção é da competência do Ministério Público” e por já ter decorrido o prazo de dois anos previsto no artigo 1809º do Código Civil., ocorrendo assim manifesto “erro de meio processual utilizado”; que a petição inicial era inepta; que a autora era parte ilegítima, por ter a maternidade estabelecida – “é a sua mãe (…) quem aparenta não ter a respectiva maternidade estabelecida”; que o direito da mãe da autora, de investigar a maternidade, se extinguiu por caducidade, quando ainda era viva; que ela própria, ré, era também parte ilegítima, como resultava do artigo 1819º do Código Civil, por ser apenas “alegada sobrinha” da “alegada mãe” da autora; que nunca “poderia estar em juízo desacompanhada dos demais familiares da alegada mãe”; e que desconhecia e não tinha de conhecer os factos que a autora alega para fundar a declaração de maternidade.

A autora replicou e requereu a intervenção principal de HH, II, JJ, KK e LL, requerendo ao tribunal que “proceda às buscas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 244º do CPC, junto das entidades e serviços de identificação civil, da segurança social, DGI e IMTT” a eles relativas e, ainda, que “se digne notificar a Ré para que venha aos autos informar os elementos de que dispõe acerca dos mesmos”.

Foi produzida antecipadamente prova testemunhal.

No despacho saneador, a autora foi absolvida da instância, por ilegitimidade, com base no disposto nos artigos 1818º e 1817º do Código Civil:

Em síntese, a 1ª Instância entendeu tratar-se de uma acção de investigação da maternidade de BB, nascida em …; e que a lei aplicável era a que se encontrava em vigor à data do exercício do direito, ou seja, “o regime dos artigos 1803º e seguintes [do Código Civil], na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril”. Assim, concluiu que se encontrava já esgotado o prazo resultante da conjugação entre os artigos 1817º, nº 1 e 1818º do Código Civil e que, nos termos deste último preceito, a autora não tinha legitimidade para propor a acção: “Ora, entendendo-se ser de aplicar o postulado no artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, aplica-se, por conseguinte, à presente acção o prazo de caducidade de 10 anos após a maioridade ou emancipação da pretensa filha, demonstrando-se esta conclusão relevante para aferir, como supra referimos, da legitimidade da autora em propor a presente acção, uma vez que o prescrito no artigo 1818.º do Código Civil faz depender a legitimidade para intentar a acção dos descendentes do direito do pretenso filho não ter caducado.”

A decisão foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls.151.

2. A autora interpôs recurso de revista excepcional, que foi admitido pela decisão de fls. 233.

Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

“1- O artigo 26.º da CRP prevê o direito à identidade pessoal, considerado enquanto um direito à historicidade pessoal, origem/ascendência biológica de cada um;

2- Considera a Recorrente que o direito a propor acção de investigação de maternidade (1814.º e seguintes, do CC.) não deve depender de nenhum prazo, mas apenas da vontade do filho (investigante) uma vez que se trata de um direito íntimo e pessoal.

3- Direito esse que é transmissível ao cônjuge não separado de pessoas e bens ou aos descendentes, cfr. Artigo 1818.º do Código Civil.

4- E que pode (e deve, dizemos nós) ser reconhecido mesmo após a morte do titular deste direito, ou seja, mesmo após a morte do filho investigante.

5- Para além disto, a investigação da maternidade e/ou paternidade tem também um interesse geral, se pensarmos, por exemplo, nas situações, infelizmente nada raras, de doenças hereditárias, onde a informação é essencial para a cura e ou prevenção de doenças, nas situações de doenças para as quais é urgente encontrar um dador compatível de sangue, transplante de medula, ou outro. E tem também influência nas situações dos chamados "impedimentos matrimoniais".

6- Do estabelecimento da filiação advêm, inclusivamente, vários poderes e deveres, os quais só são atendíveis se a filiação se encontrar legalmente estabelecida, vide artigo 1797.º do C.C ..

7- Antes da entrada em vigor da Lei 14/2009, de 1 de Abril, já existiam limites temporais para o exercício do direito de acção de investigação de maternidade, os limites agora estabelecidos baseiam-se, ao fim e ao cabo, nos mesmos pressupostos que deram origem à redacção da norma do 1817.º, embora agora ligeiramente alterada.

8- Os quais estão absolutamente desajustados à sociedade dos nosso dias e contrariam de forma gritante todo o espírito do capítulo I, do Título III, do Livro IV do Código Civil.

9- Isto porque alegada insegurança proporcionada pela inexistência de prazo de caducidade funcionaria para os dois lados –  para o investigante e para o investigado.

10- E porque negar a possibilidade que o investigante veja reconhecida a sua condição de filho ou neto, por via de um prazo de caducidade, é nada mais, nada menos do que, premiar o pai ou a mãe pela sua irresponsabilidade, negligência e desinteresse pelo filho.

11- No que concerne ao argumento do "interesse patrimonial" que poderia estar por de trás da propositura da acção de investigação, não podemos deixar de referir que, se o exercício e o consequente reconhecimento do parentesco entre uma mãe e um filho tem ou não, consequências, nomeadamente, ao nível sucessório, atribuindo determinados direitos patrimoniais, trata-se de uma questão secundária, mas inevitável e que também não pode ser, por via da norma do artigo 1817.º do CC, restringida.

12- Aliás o legislador pronunciou-se quanto aos efeitos da filiação de forma bem clara e não deixando margem para dúvidas no artigo 1797.º do CC quando referiu que a filiação tem efeitos retroactivos.

13- Não se queira por via do prazo dos dez anos limitar este efeito retroactivo do 1797.º.

14- Mas pense-se que, para além dos benefícios patrimoniais que um filho pode vir a usufruir por via da procedência de uma acção de investigação de maternidade/paternidade,

15- Existe o reverso da medalha, ou seja, os deveres constantes do artigo 1874.º do CC, como por exemplo, dever de respeito, auxílio e assistência mútua.

16- E o dever de prestar alimentos, de contribuir para os encargos da vida familiar, aquando da vida em com um.

17- Por tudo quanto fica exposto, entendemos que, a norma do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, que estabelece um prazo de caducidade para propor a acção de investigação de maternidade, viola os artigo 26.º, 18.º e 36.º, n.º 1 e 4 da CRP, bem assim como os artigos 1796.º e 1797.º, n.º 1 e 2, ambos do Código Civil.

18- Padecendo por isso, de ilegalidade e de inconstitucionalidade e que aplicação da referida norma deve de ser afastada.

19- Por outro lado, entendendo-se como entendeu que o aresto recorrido que, o prazo contido no artigo 1817.º do CC só tem aplicação à pretensa filha e não à filha da pretensa filha, a única conclusão que se pode retirar é a de que, se o prazo só se aplica à pretensa filha, então não se aplica à filha da pretensa filha, pelo que a acção deve prosseguir, devendo os autos serem devolvidos à primeira instância, para julgamento

Nestes termos e nos mais de direito que V. Exa. muito doutamente suprirá, a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da pela Lei n.º 14/2009, de 01.04, padece de ilegalidade e de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 26.º da CRP que consagra expressamente o Direito à Identidade Pessoal, violação do disposto nos artigos 18.º e 36.º, n.º 4 da CRP, bem assim como pela violação do artigo 1796.º e artigo 1797.º ambos do CC, pelo que a sua aplicação ao presente caso deve de ser recusada, inexistindo portanto, qualquer prazo para a Recorrente intentar acção de investigação, improcedendo assim a excepção da caducidade e da ilegitimidade da Recorrente.

Posto isto, os autos devem retomar os seus termos, renovando-se o pedido da Recorrente de que a acção deve de ser procedente por provada e por via da mesma, declare que BB (BB1) era mãe da BB (BB2), e consequentemente, mande suprir a omissão do registo civil, devendo constar no nome da Mãe: BB.”

CC contra-alegou, concluindo (quanto ao que agora releva) nestes termos:

“(…) 3a - O recurso funda-se na questão da inconstitucionalidade da fixação de um prazo de caducidade para intentar acção de investigação da maternidade, como previsto no n" 1 do artigo 1817° do C. C., na redacção da Lei 14/2009, de 01-04, questão esta há muito debatida na jurisprudência e na doutrina, que já equacionaram e ponderaram todos os motivos e interesses em presença, como sejam: a estabilidade da ordem jurídica, reserva da vida privada, direito à identidade pessoal e a conhecer a ascendência biológica, encontrando-se a mesma estabilizada, quer ao nível do Tribunal Constitucional quer ao do STJ, no sentido de que a fixação de um prazo de 10 anos, contado da maioridade ou emancipação do investigante, é proporcional e razoável e não coarcta o exercício do direito do investigante à sua identidade pessoal. Pelo que,

43 - A questão relevante já foi apreciada e debatida em vista a uma melhor aplicação do direito, bem assim como os interesses de particular relevância social envolvidos ponderados, não trazendo a apreciação da questão, do ponto de vista dos descendentes do filho investigante nos termos do artigo 1818° do C. Civ, interesse social acrescido, por não ser gerador de alarme social causador de intranquilidade, que justifique uma nova apreciação do STJ da temática do prazo de caducidade para intentar acção de investigação da maternidade em sede de revista excepcional.

A assim se não entender, sempre se verifica que,

5a - Os descendentes do investigante só têm legitimidade para intentar a acção se o filho, sem a haver intentado, morrer antes de terminar o prazo em que o podia fazer, conforme dispõe o artigo 1818° do C. C.

6a - A norma do n° 1 do artigo 1817° do c.c., na redacção da Lei 14/2009, que fixa um prazo de caducidade para a propositura da acção de investigação da maternidade/paternidade, não é inconstitucional, não violando os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, consagrados nos artigos 260 n" 1 e 360 na 1 da CRP.

7ª - Já assim foi decidido pelo Plenário do Tribunal Constitucional, no acórdão na 401/2011, de 22-09-2011, que considerou que o prazo de 10 anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, fixado no nº 1 do artigo 18170 do C.C., não é desproporcional, por não impossibilitar nem dificultar excessivamente o

exercício maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica, constitucionalmente consagrado.

8a - A doutrina deste acórdão tem sido seguida e aplicada pelo mesmo Tribunal quando chamado a pronunciar-se sobre a (in)constitucionalidade da citada norma, referindo-se, entre outros, os acórdãos nas 445/2001, de 11-10-2011; 446/2011, de 11-10-2011; 476/2011, de 12-10-2011; 545/2011, de 16-11-201l; 106/2012, de 06-03-2012 e 247/2012, de 22-05-2012.

9a - Tem igualmente sido seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos acórdãos de 29-11-2012, de 13-09-2012, de 09-04-2013 e 20-06-2013, para citar os mais recentes.

10ª - A opção por um regime de imprescritibilidade do direito de intentar acção de investigação da maternidade/paternidade, conduziria a situações intoleráveis de desprotecção do direito à paz social, à reserva da vida privada e familiar, inerentes ao princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações pessoais e familiares, também constitucionalmente consagrados, mormente quando a acção não é intentada pelo titular do direito, o filho investigante, como sucede na presente acção.

11ª- A presente acção foi intentada por uma das filhas da titular do direito, com 71 anos de idade e 14 anos após a morte da titular, quando apenas se encontram vivas alegadas sobrinhas da pretensa mãe e pretensa avó da Autora, todas com mais de 80 anos.

12ª - O acórdão recorrido fez, assim, correcta interpretação e aplicação da Lei, ordinária e constitucional, pelo que não violou os artigos 26°, n° 1, 18° e 36° nº 1 e 4 da CRP, nem os artigos 1796° e 1797° nºs 1 e 2 do C. C, contrariamente ao invocado pela Recorrente.”

3. Resulta dos autos que os factos relevantes para decidir este recurso são os seguintes:

1º. A presente acção considera-se proposta em 5 de Dezembro de 2011 (cfr. data da expedição da petição inicial, fls. 24).

2º. A autora, AA, nasceu em  de Janeiro de …(cfr. fls. 29).

3º. A mãe da autora, BB (2), nasceu em … de Fevereiro de … (cfr. fls. 35) e morreu em … de Dezembro de … (cfr. fls. 35)

4º. No respectivo assento de nascimento não se encontra indicada a filiação materna (cfr. fls. 35)

5º. BB (1), cuja maternidade em relação à mãe da autora esta pretende estabelecer, nasceu em … de Março de … (cfr. fls. 14) e morreu em … de Fevereiro de … (cfr. fls. 33).

4. A questão em causa neste recurso é a de saber se a recorrente tem legitimidade para propor uma acção de investigação da maternidade de sua mãe, falecida quando a acção foi proposta.

Ambas as instâncias entenderam que não, com o fundamento de que o prazo de que dependia essa legitimidade – dez anos contados da data em que a mãe da autora atingiu a maioridade – já tinha decorrido quando a acção foi proposta (artigos 1818º e 1817º, nº 1, do Código Civil); consequentemente, absolveram a ré da instância, sem apreciarem os demais obstáculos suscitados na contestação.

            Com efeito, a mãe da autora, nascida em … de Fevereiro de …, atingiu a maioridade em … de Fevereiro de … (ou seja, aos 21 anos, nos termos dos artigos 97º e 311º do Código Civil então em vigor); assim sendo, quando foi proposta esta acção, já tinham passado muito mais de dez anos sobre a data da maioridade da mãe da autora; mais precisamente, haviam passado cinquenta e oito anos sobre esse momento, uma vez que se aplica o prazo previsto na lei em vigor no momento do exercício do direito (ou seja, da propositura da acção), a Lei nº 14/2009, de 1 de Abril (assim, por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2002, www.dgsi.pt, proc nº 01A3796).

            5. A autora afirma a inconstitucionalidade da fixação de um prazo de caducidade para a propositura da acção de investigação da maternidade, sustentando a imprescritibilidade do direito correspondente; e sustenta ainda que essa inconstitucionalidade tem como consequência necessária a eliminação do prazo previsto no artigo 1818º do Código Civil, razão pela qual lhe deve ser reconhecida legitimidade para a presente acção.

            No entanto, não tem. É certo que, concluindo-se no sentido da legitimidade constitucional da subordinação a um prazo de caducidade do direito de investigar a maternidade ou a paternidade, será inevitável concluir igualmente que não é inconstitucional a previsão de um prazo de caducidade para a hipótese de a acção ser proposta por um descendente do pretenso filho.

            Mas já não é certo que um juízo de inconstitucionalidade tenha necessariamente que levar à segunda inconstitucionalidade. Como observam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. II, Direito da Filiação, tomo I, Estabelecimento da Filiação. Adopção, Coimbra, 2006, ainda que se entenda ser inconstitucional a existência de prazo para o filho instaurar a acção de investigação, “(...) ainda não foi discutida a questão de saber se a determinação de um prazo para os familiares seria também inconstitucional; a lei italiana, que considera a acção imprescritível, determina um prazo de dois anos para os familiares intentarem a acção (art. 270º)”.

            Tenha-se presente, para além do mais, que não se afigura correcto entender que o direito de investigar a maternidade, encabeçado pela mãe da autora, se transmitiu a esta. O que resulta do disposto no artigo 1818º do Código Civil, quando permite aos descendentes e, desde a reforma do Código Civil de 1977, ao cônjuge sobrevivo, que continuem com a acção iniciada pelo investigante-filho, ou que a proponham, se este morreu ainda no prazo legalmente definido para a iniciar, é antes a atribuição de um direito próprio desses familiares (assim, acórdão deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 2013, n.º 787/06.7TBMAI.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, V, Coimbra, 1995, págs. 88-89 ou Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit.,, pág.214: “eles agem no exercício de um direito próprio que lhes advém da relação conjugal ou do vínculo de sangue, e que tutela um interesse de ordem pessoal, um interesse familiar”.

            O direito de investigação da maternidade é um direito eminentemente pessoal, insusceptível de transmissão. A legitimidade (processual) que o artigo 1810º do Código Civil confere aos familiares ali identificados decorre da titularidade do direito que lhes é reconhecido.

            6. De qualquer modo, seguro é que a não inconstitucionalidade da norma contida no nº

1 do artigo 1817º do Código Civil, segundo a qual o direito do (pretenso) filho de instaurar a acção de investigação da maternidade caduca se a acção não for instaurada durante a sua menoridade ou nos dez anos posteriores à maioridade ou à emancipação, implica a não inconstitucionalidade da norma segundo a qual o filho do (pretenso) filho, se este último não tiver proposto a acção de investigação, só a pode propor “antes de terminar o prazo” de dez anos, contados a partir da maioridade daquele.

            A recorrente sustenta que “a norma do artigo 1817º, nº 1 do Código Civil”, ao estabelecer um prazo de caducidade, é

            – ilegal, por infringir o disposto nos artigos 1796º (estabelecimento da filiação) e 1797º, nºs 1 e 2 do Código Civil (atendibilidade da filiação e eficácia retroactiva do estabelecimento da filiação),

            – e inconstitucional, por: violação do direito à identidade pessoal entendido como “um direito à historicidade pessoal, origem/ascendência biológica de cada um” – artigos 26º18º e 36º, nº 1 da Constituição),

            7. Em primeiro lugar, cumpre observar que não ocorre a apontada ilegalidade – admitindo, apenas para efeitos de raciocínio, que se poderia identificar tal vício numa hipótese de relações entre normas do mesmo grau hierárquico; o que, no caso presente, se não afigura plausível.

            Por um lado, não há nenhuma incompatibilidade entre prever um prazo para a propositura da acção de investigação e afirmar que a filiação se estabelece “nos termos dos artigos 1803º a 1825º” do Código Civil, entre os quais se encontra o reconhecimento judicial, obtido em acção de investigação da maternidade (artigo 1814º do Código Civil).

Por outro, também não se vê que a existência de um prazo seja contraditória com a atribuição de eficácia retroactiva ao estabelecimento da filiação. Pense-se, por exemplo, na anulação de um negócio jurídico, que só pode ser pedida no prazo de um ano, contado da cessação do vício que lhe deu causa (nº 1 do artigo 287º do Código Civil), mas que, se tempestivamente invocada, destrói retroactivamente os respectivos efeitos (nº 1 do artigo 289º do mesmo Código).

Nem tão pouco contradiz a regra de que os efeitos jurídicos da filiação “só são atendíveis” se a mesma “se encontrar legalmente estabelecida”.

Da conjugação destes preceitos decorre antes que, se a filiação se não encontrar estabelecida por outra forma, a produção dos respectivos efeitos, que é retroactiva, só se alcança se a acção de investigação correspondente for instaurada dentro do prazo legalmente previsto.

8. A inconstitucionalidade suscitada pela recorrente foi já apreciada por diversas vezes, quer por este Supremo Tribunal, quer pelo Tribunal Constitucional., embora no âmbito de acções de investigação da paternidade (às quais se aplica, por remissão, o prazo previsto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil). Apesar da existência de divergências no Supremo Tribunal de Justiça (no sentido da não inconstitucionalidade, vejam-se, apenas a título de exemplo, os acórdãos de 13 de Setembro de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 146/08.7TBSAT.C1.S1 ou de 9 de Abril de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 187/09.7TBPFR.P1.S1); em sentido diverso, cfr., por exemplo, os acórdãos de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1 ou de 10 de Janeiro de 2012, www.dgi.pt, proc. nº 193/09.1TBPTL.G1.S1), a verdade é que se encontra estabilizada, na jurisdição constitucional, a orientação que nega a inconstitucionalidade.

9. Não é apenas no âmbito das acções de investigação de maternidade ou de paternidade que a lei portuguesa vigente condiciona o direito de estabelecer juridicamente uma filiação coincidente com a filiação biológica; assim sucede, por exemplo, no caso de ter sido decretada a adopção plena, em que “não é possível estabelecer a filiação natural do adoptado nem fazer a prova dessa filiação fora do processo preliminar de publicações” (artigo 1987º do Código Civil), ou no âmbito da procriação medicamente assistida, nas situações previstas nos artigos 10º e 21º da Lei nº 32/2006, de 26 de Julho, nas quais se exclui a possibilidade de estabelecimento de relações de filiação dos dadores com a criança que vier a nascer, como aliás se recorda no acórdão nº 411/2011 do Tribunal Constitucional, já citado.

Estas opções significam que o legislador ordinário entende que o valor do reconhecimento jurídico da filiação biológica – da identidade pessoal, para cuja construção indubitavelmente releva o conhecimento da ascendência, pelo menos imediata ou mais próxima – tem de ser confrontado com outros valores individual e socialmente relevantes, e que podem justificar a definição de condicionamentos para a sua prossecução.

No caso que agora nos interessa, a lei civil condiciona o exercício do direito de estabelecer juridicamente a maternidade ou a paternidade à necessidade de observância de um prazo de caducidade. Trata-se, aliás, um prazo bastante alargado, desde que a Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, alterou o nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, na sequência do acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, de 10 de Janeiro de 2006, que declarou «a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.” Com este julgamento, como se sabe, o Tribunal Constitucional não julgou constitucionalmente censurável a definição legal de prazos de caducidade; apenas excluiu a legitimidade da fixação de um prazo impreterível e objectivo de dois anos a contar da maioridade, por significar “uma diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, que incluem o direito ao conhecimento da paternidade ou da maternidade.” (acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional).

Manteve assim este acórdão a orientação que vinha sendo seguida pelo Tribunal Constitucional, quanto à legitimidade constitucional, em abstracto, da fixação de um prazo que, como veio a escrever-se no acórdão nº 401/2011 do mesmo Tribunal Constitucional, seja “suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação da paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada”; ou seja: desde que sejam respeitados os princípios da adequação e da proporcionalidade a que se refere o acórdão nº 451/89 do Tribunal Constitucional, www.tribunalconstitucional.pt.

Atendem-se, simultaneamente, os valores da certeza e segurança das relações jurídicas, em particular quanto à vida privada do investigado e da sua família, tanto mais merecedores de tutela quanto mais recuados no tempo forem os factos a investigar.

10. Aqui chegados, há que concluir pela não inconstitucionalidade do prazo indirectamente fixado pelo artigo 1818º do Código Civil para delimitar o momento até ao qual o filho do falecido progenitor que, em vida, não propôs a acção de investigação, pode propor a acção de investigação. No fundo, a lei reconhece ao interessado directo – o filho do investigado – o direito de decidir sobre o reconhecimento jurídico da relação de filiação de que será parte; e, se não infringe a Constituição que o exercício do direito de investigação esteja condicionado pelo prazo fixado no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, também não a contraria a aplicação do mesmo prazo ao filho que, após a morte do progenitor, decide instaurar a acção.

Resta observar que, no caso, é particularmente visível a extemporaneidade da propositura da acção, que se reflecte na (i)legitimidade da autora. À data da propositura da acção, como se viu, haviam decorrido já 89 anos sobre o nascimento, 68 anos sobre a data em que atingiu a maioridade e 13 anos sobre a morte da mãe da autora, que manifestamente não quis fazer reconhecer a sua filiação materna (não vindo agora ao caso analisar o regime que hipoteticamente lhe seria aplicável).

No caso concreto, são pois manifestamente insusceptíveis de relevar as observações desenvolvidas pela recorrente quanto aos “poderes e deveres” resultantes do estabelecimento da filiação, nomeadamente o “dever de respeito, auxílio e assistência mútua”, o dever de alimentos ou o “dever de contribuir para os encargos da vida familiar, aquando da vida em comum”.

11. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente

Lisboa, 15 de Maio de 2014

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego