Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
106/01.9IDPRT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DIREITO AO RECURSO
DESCRIMINALIZAÇÃO
QUESTÃO NOVA
CRIME CONTINUADO
REFORMATIO IN PEJUS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
COMPETÊNCIA MATERIAL
REVERSÃO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - O arguido foi condenado na 1.ª instância, por acórdão de 28-09-2006, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos arts. 105.º, n.º 1, e 107.º do RGIT, na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, sendo tal condenação confirmada integralmente por acórdão do Tribunal da Relação de 18-02-2009, pelo que à luz das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na versão vigente, atendendo à pena aplicada e à dupla conforme, dúvidas não haveria de que não era admissível recurso na parte criminal; e mesmo que a questão fosse analisada à luz da anterior redacção, seria igualmente inadmissível o recurso, nos termos da al. e) do n.º 1 do art. 400.º, atentas as penalidades aplicáveis a cada um dos crimes por que foi condenado o recorrente – pena de prisão até 3 anos.
II - Mas, no caso concreto, encontrando-se o processo na Relação, foi colocada ex novo a questão da extinção do procedimento criminal, por descriminalização, a qual só então surgiu (o diploma em que o recorrente baseia a sua pretensão é de 31-12-2008, tendo entrado em vigor no dia seguinte), motivo pelo qual o acórdão recorrido apreciou tal questão, suscitada por força de alteração legislativa, pela primeira vez, pronunciando-se em sentido desfavorável.
III - A fim de ser assegurado o duplo grau de jurisdição e o direito ao recurso é de admitir o recurso também na parte criminal, quanto a essa específica matéria de direito, tanto mais que a questão da descriminalização, a vingar o seu reconhecimento, mesmo que parcialmente, pode arrastar consigo uma diminuição de ilícito e das verbas cujo pagamento é de exigir como componente da condição de suspensão da execução da pena de prisão.
IV - Com a Lei 64-A/2008, de 31-12, foi dada nova redacção ao art. 105.º, n.º 1, do RGIT, introduzindo-se a locução “de valor superior a (euro) 7500”, com o que o legislador criou um novo elemento objectivo do tipo, eliminando do número das infracções criminais de abuso de confiança fiscal as condutas omissivas traduzidas na não entrega de prestações tributárias deduzidas desde que o respectivo montante seja igual ou inferior àquele valor, passando a configurar o crime em questão apenas as condutas “desviantes” de prestações de valor superior àquele quantitativo; o limite mínimo constitutivo de crime passou assim a ser substanciado por “descaminho” de prestação tributária de valor superior a € 7500.
V - Só fará sentido considerar a descriminalização, desde que se acolha a tese da relevância, nesta sede, dos valores individualizados de cada prestação, que é o critério legal constante do n.º 7 do art. 105.º do RGIT, sendo que a consideração de crime continuado ou de um único crime não afasta esse dispositivo; a regra da relevância do valor de cada declaração consta de forma directa nos arts. 103.º, n.º 3, e 105.º, n.º 7, este reproduzindo aquele ipsis verbis, e por remissão o n.º 7 do art. 105.º é aplicável aos crimes de fraude e abuso de confiança contra a segurança social – arts. 106.º, n.º 2, e 107.º, n.º 2. Significa isto que prevalecerá a norma do n.º 7 do art. 105.º e sendo assim ter-se-ão em conta os valores individuais de cada declaração.
VI - Face a uma conduta repetida no tempo, a uma pluralidade de crimes que se protrai ao longo de um determinado período, poderemos estar face a um concurso de crimes, ou a alguma forma de unificação dessas condutas, como um crime continuado, ou a um único crime, ou crime sucessivo ou de trato sucessivo, ou perante infracções contínuas sucessivas. A solução encontrada pela 1.ª instância e confirmada pela Relação foi a de considerar as várias condutas, num e noutro sector, como unidade de resolução criminosa.
VII - O arguido renovou ao longo do tempo a resolução criminosa, sendo de atender que a prática das condutas consideradas se situa a partir de Janeiro de 2000, correspondendo a uma sucessão do que ocorreu justamente com as faltas de entregas de impostos de 1995 até 1999, e que foram julgadas no Proc. A referido nos factos provados, sendo o arguido então condenado por crime continuado. Todavia, há que ter uma perspectiva global das condutas do recorrente, sendo que a análise da sua conduta não pode ser compartimentada sem atender ao que se passou com as faltas de pagamentos que se verificaram também no plano das contribuições para a segurança social, tendo em vista a consideração da actividade global do arguido e a situação de dificuldades da empresa, que não pode ser dissociada nesta análise ao longo de todo o período.
VIII - Estamos face a uma reiteração de condutas, perante situações que se foram repetindo, com carácter de homogeneidade, violando o arguido o mesmo tipo de ilícito criminal, ao longo de um período temporal apreciável, se bem que com periódicas manifestações de fidelização ao direito, com intermitências de cumprimento, seguidas de novas sucumbências.
IX - Não sendo a qualificação jurídica definitiva, face aos poderes cognitivos do Supremo Tribunal, no caso não há razões para alterá-la, estando em causa apenas a averiguação de descriminalização, que se verifica parcialmente, não devendo a questão ser analisada à luz do novo “alinhamento” temporal dos factos subsistentes, a conferir maiores traços de descontinuidade na sucessão, que sempre daria uma imagem distorcida do panorama envolvente geral em que se inseriram os factos a ter em consideração, em toda a sua extensão, conexão e interligação, sendo que, tratando-se de recurso apenas por arguido interposto, há que ter em atenção a regra da reformatio in pejus.
X - Considerando que a penalidade cabível ao crime em equação é pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, conforme o art. 105.º, n.º 1, do RGIT, na determinação da pena, no caso em apreciação, há que ponderar que o recorrente já fora alvo de uma anterior acção inspectiva por parte dos serviços competentes e que manteve exactamente a mesma conduta, não só após a primeira inspecção, como já depois da condenação no anterior processo. A realização da anterior inspecção e a posterior condenação deveriam ter sido sentidas pelo arguido, como tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta omissiva, e levando-o a agir de molde a que a sociedade arguida passasse a cumprir as suas obrigações fiscais. Em vez disso, o arguido continuou, revelando indiferença, ciente da antijuridicidade, projectando o desvalor da acção para patamar elevado.
XI - De acordo com o art. 13.º do RGIT, na determinação da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime, sendo que no caso presente o valor a ter em consideração atinge o montante global de € 81 987,22. Além disso, não se pode esquecer o grau de culpa do arguido, agindo num quadro de substituição tributária (de acordo com o art. 20.º, n.º 1, da LGT, a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte), com cinco das declarações apresentadas já após o arguido ter recebido uma solene advertência com a condenação anterior que lhe fora imposta, impondo-se a necessidade de consciencialização dos seus deveres cívicos, de forma a prevenir a reincidência, e as fortes necessidades de prevenção geral, pelo que se considera adequada a pena de 9 meses de prisão, cuja execução se suspenderá.
XII - Estabelece o art. 14.º do RGIT que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de 5 anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
XIII - O TC tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por no regime reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.
XIV - Entende-se que nestes casos não é de fazer corresponder o período de suspensão ao da medida da pena substituída, como o impõe o actual art. 50.º, n.º 5, do CP, por se estar face a um caso especial, em que a condição é imposta, quando nos termos gerais de uma faculdade, sendo que a aplicação do novo regime, no concreto, redundaria em agravamento da situação do arguido.
XV - No caso presente, em obediência a um critério de razoabilidade por que tem de pautar-se esta forma de reparação penal forçada, optar-se-á pela solução de não correspondência de prazos.
XVI - Conforme o n.º 2 do art. 51.º do CP, os deveres impostos na suspensão não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, consagrando-se o princípio da razoabilidade a que tem de obedecer a imposição dos deveres.
XVII - Ao impor a condição de pagamento ou outra, o juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão. Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres.
XVIII - Por estas razões, suspender-se-á a execução da pena de prisão imposta pelo período de 3 anos, sob a condição de o arguido recorrente pagar o imposto em falta no referido montante de € 81 987,22 e acréscimos legais.
XIX - A Lei 64-A/2008 alterou o n.º 1 do art. 105.º do RGIT nos termos referidos, e manteve intocado o art. 107.º, não inscrevendo o elemento valor no n.º 1, mas mantendo a remissão para o n.º 6 do art. 105.º, que foi revogado, deixando em aberto a questão de saber se poderá defender-se que o legislador minus dixit quam voluit, interpretando-se extensivamente a remissão da parte final do n.º 1 do art. 107.º para todo o n.º 1 do art. 105.º, operando uma remissão global e não apenas circunscrita à pena, conduzindo à descriminalização do abuso de confiança também na área da segurança social.
XX - Na apreciação da questão haverá que ter presente dois princípios plasmados na LGT, aprovada pelo DL 398/98, de 17-12, a saber: art. 5.º, n.º 2 – a tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material; art. 11.º, n.º 1 – na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
XXI - A Lei 15/2001, de 05-06, instituiu um novo regime – Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) – unificando todas as infracções tributárias, incluindo as fiscais aduaneiras. Na parte III desse diploma – com a epígrafe Das infracções tributárias em especial – inclui-se o Título I - Crimes tributários, com as conseguintes categorias: Capítulo I - Crimes tributários comuns (arts. 87.º a 91.º); Capítulo II - Crimes aduaneiros (arts. 92.º a 102.º); Capítulo III - Crimes fiscais (arts. 103.º a 105.º); Capítulo IV - Crimes contra a segurança social (arts. 106.º e 107.º).
XXII - No crime de abuso de confiança fiscal, previsto no art. 105.º do RGIT, objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é a prestação tributária, conceito referido no art. 1.º, n.º 1, al. a), e definido no art. 11.º, al. a), do RGIT (Anexo), englobando os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária, abrangendo o art. 105.º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime – para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei, prevista no n.º 1, o objecto é “alargado” pela definição extensiva dos n.ºs 2 e 3 (aqui abrangendo prestações com natureza parafiscal) do citado preceito legal.
XXIII - No crime de abuso de confiança contra a segurança social objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é o montante das contribuições devidas ao sistema de solidariedade e segurança social – art. 1.º, n.º 1, al. d), e definidas no art. 11.º, n.º 1, al. a), in fine, do mesmo RGIT, como tributos parafiscais cuja cobrança caiba à administração da segurança social, abrangendo, nos termos do n.º 1 do art. 107.º, o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros de órgãos sociais, deduzido pela entidade empregadora, do valor das remunerações devidas a uns e outros.
XXIV - Em ambas as infracções estão em causa créditos de impostos ou de tributos fiscais ou parafiscais devidos ao Estado, estabelecendo-se uma relação entre o Estado - Administração Fiscal ou Estado - Administração da Segurança Social, enquanto sujeito da relação jurídica tributária, titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, titular do crédito do imposto ou do direito de crédito de quotizações/contribuições; por outro lado, o sujeito passivo que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.
XXV - Pressupõem, ambos os crimes uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado - Administração Fiscal, titular do direito do crédito de quotizações; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.
XXVI - Quer o art. 105.º, quer o art. 107.º, têm em vista situações de substituição tributária, mas no primeiro caso, seja a substituição própria ou imprópria, não se reconduzindo aos casos em que é usada a técnica de retenção na fonte do imposto devido.
XXVII - Em ambos os casos estamos perante crimes omissivos, crimes de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), no caso da segurança social, do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais, que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de entrega do retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária ou às instituições de segurança social.
XXVIII - Assentam ambos os crimes numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão.
XXIX - Objecto de previsão específica do abuso de confiança fiscal é no art. 105.º o que se contém nos nºs. 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as “extensões” do conceito de prestação tributária constantes dos n.ºs. 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.ºs. 2 e 3 do art. 24.º do RJIFNA originário e tratando-se de deduções não são extensíveis ao crime homónimo da segurança social em que a prestação tem sempre a mesma natureza).
XXX - E no crime de abuso de confiança contra a segurança social é o que consta apenas da 1.ª parte do n.º 1 do art. 107.º, descrevendo-se as condutas passíveis de integrar crime, isto é, a acção típica, e a qualidade do agente.
XXXI - O art. 105.º, na abrangência do que se contém nos n.ºs. 1, 2 e 3, aplica-se a todos os tributos e impostos, com excepção das contribuições devidas à segurança social, aplicando-se a estas o art. 107.º.
XXXII - Retirando o que é próprio, específico e exclusivo do crime do art. 105.º, tudo o mais integra o crime do art. 107.º, e assim é, por força da remissão dos n.ºs 1, in fine, e 2, ou seja, a norma do art. 107.º é complementada com os n.º s 4, 5, 6 (até 31-12-2008), e 7 do art. 105.º.
XXXIII - Da aplicação simultânea dos n.ºs 4 e 6 a ambos os ilícitos criminais, resulta a relevância jurídica da regularização tributária, que um e outro assumem no reconhecimento da importância da reposição da verdade fiscal.
XXXIV - Face à incompletude da norma do art. 107.º, que se caracteriza por criar um tipo dependente, e em função da complementaridade assumida pelo art. 105.º, entre os abusos de confiança em causa, como manifestação da sua grande similitude e estreita interconexão, coexistem aspectos normativos absolutamente idênticos, fornecidos pelo art. 105.º, não só na configuração do tipo simples ou qualificado, e no grau de censura, na medida da punição (n.º s 1 e 5), opção pelo critério da declaração individualizada (n.º 7) e anteriormente à última alteração com a revogação do n.º 6, quanto a causa de extinção da responsabilidade criminal.
XXXV - Igualmente no que se reporta a condições de punibilidade – n.º 4 do art. 105.º, aplicável igualmente por força do n.º 2 do art. 107.º –, como definido no Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2008, de 09-04-2008, publicado no DR n.º 94, Série I, de 15-05-2008, em que se fixou o entendimento de que «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade…».
XXXVI - Neste sentido, o art. 107.º contém uma norma em branco, sendo preenchido em aspectos normativos em função da remissão para o art. 105.º, que tipifica o crime congénere, com a mesma matriz, de abuso de confiança fiscal.
XXXVII - Essa dependência do tipo do art. 107.º só pode significar que a sua completude apenas será atingida se reportada a todos os elementos normativos do “tipo integrador”, incluindo os valores mínimos determinativos da qualificação – o que já era – e agora da própria incriminação.
XXXVIII - A remissão para o n.º 5 não é apenas para a pena; pois aquela pena mais agravada só faz sentido, só se justifica, só se equacionará a sua aplicação, se o valor da não entrega de uma determinada declaração (de cada declaração nos termos do n.º 7) for superior a € 50 000. O valor não entregue, quando superior a € 50 000, funciona como circunstância agravante do tipo fundamental.
XXXIX - É de concluir que a remissão que a parte final do n.º 1 do artigo 107.º do RGIT faz para as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art. 105.º, abrange os diferentes valores que justificam o diverso sancionamento da infracção criminal, mais abarcando após a alteração de 2009, a referência ao valor a partir do qual passa a conduta a ser incriminada.
XL - No crime de abuso de confiança contra a segurança social, a acção positiva pressuposto da subsequente conduta típica omissiva, consubstanciada no desconto, na retenção na fonte, das contribuições deduzidas no valor das remunerações pagas aos trabalhadores, incide sobre um valor, consistindo a subsequente omissão, estruturante do crime, na não entrega, no desvio, no descaminho de uma quantia pecuniária, que por via dessa omissão deixa de integrar, como direito de crédito, a esfera jurídica patrimonial da administração da segurança social.
XLI - Sendo a remissão para o n.º 5, inquestionavelmente, uma remissão igualmente para o valor expresso na norma, porque não entender também assim a remissão para o n.º 1? Não há razão para uma remissão conter referência ao valor e outra não, sendo de concluir que o art. 107.º, n.º 1, não remete apenas para as penas previstas no art. 105.º.
XLII - No n.º 1 do art. 107.º há efectivamente uma remissão para os n.ºs 1 e 5 do art. 105.º, tratando-se de uma remissão feita para o regime de punição, para as molduras penais abstractas, as penalidades cabíveis ao crime simples ou qualificado, mas que não se cinge apenas a molduras penais aplicáveis, até porque no mínimo a qualificação traz ínsita a consideração da presença de um determinado valor das prestações (de cada prestação), o que significa que em última análise o valor dirá se o crime é simples ou qualificado.
XLIII - Acresce que na interpretação do art. 107.º, mesmo antes de 2009, estava sempre presente na determinação da penalidade aplicável a necessidade de chamada à colação do critério do valor, o que se impõe, pois as contribuições deduzidas têm uma dimensão económica, traduzida em valor pecuniário, o qual se reflecte na qualificação do crime em termos de maior ou menor gravidade e demais aspectos, o que se reconduz a patrimonialidade. Independentemente da catalogação e definição do bem jurídico tutelado, o que está em causa em ambos os casos é a arrecadação de receitas, o património tributário.
XLIV - O RGIT não se socorre – com excepção do crime de burla tributária, nos n.ºs 2 e 3 do art. 87.º, dos conceitos de valor elevado e consideravelmente elevado do art. 202.º do CP, aqui introduzidos ex vi do art. 11.º, al. d) –, da técnica de indexação, que está presente nos crimes contra o património no CP.
XLV - A fixação do valor da “prestação tributária” em montante superior a € 7500, como limite constitutivo de crime, independentemente de se tratar de crime aduaneiro, fiscal ou contra a segurança social, está presente em várias incriminações do RGIT, tais como o crime de contrabando – art. 92.º, n.º 1, o crime de contrabando de circulação – art. 93.º, n.º 1, crime de fraude no transporte de mercadorias em regime suspensivo – art. 95.º, n.º 1, o crime de introdução fraudulenta no consumo – art. 96.º , n.º 1, o crime de fraude fiscal – art. 103.º (aqui com a especificidade de o valor ser inferior a € 7500, constituindo crime já a partir de € 7500, inclusive, manifestando quebra de coerência interna), e o crime de fraude contra a segurança social – art. 106.º. Em todos estes casos a punição como crime depende do valor mínimo indicado.
XLVI - O critério de quantidade, o valor de referência, é algo que está sempre presente nestas incriminações, como não podia deixar de ser atenta a patrimonialidade subjacente; “dependendo” a pena do valor da prestação, a remissão do n.º 1 do art. 107.º não é apenas para o n.º 5, mas igualmente para o n.º 1 do art. 105.º.
XLVII - Relativamente à autonomia revelada pela sistematização, dir-se-á que, sendo certo que os crimes contra a segurança social estão arrumados em capítulo próprio, autónomo e distinto dos restantes, também certo é que constituem uma das quatro espécies, que se incluem numa mesma categoria geral de “crimes tributários”, cujo denominador comum a todos são no fundo os interesses tributários do Estado.
XLVIII - A simples arrumação em capítulos diferentes não significa que uns e outros tutelem bens jurídicos absolutamente diferentes na sua natureza, pois em ambos os casos no fundo estão em causa interesses patrimoniais da administração, reconduzindo-se por formas diversas embora à tutela do erário público, e em ambos os casos está presente a violação de um dever de colaboração e a feridência de uma relação de confiança sobre a qual se estabeleceu o dever do substituto e depositário de, numa primeira fase arrecadar a receita, operando o desconto e a retenção na fonte, e depois entregá-la ao credor tributário.
XLIX - Se o Estado pode definir as proporções de financiamento da segurança social, porque não entender que nas margens da liberdade de conformação política e legislativa, certamente amplas, não caberá a de ter querido, sem contudo o expressar directamente, a descriminalização das omissões de entrega de contribuições com a mesma medida pecuniária da benesse concedida aos prevaricadores no âmbito fiscal?
L - Daqui resulta não ser decisivo o argumento de que a não obtenção de montantes de “receitas” até € 7500 contribua para a penúria do sistema, impedindo a extensão da norma do art. 105.º, sendo o argumento inclusive de utilizar exactamente para ancorar a posição contrária, pois cabendo o papel financiador da segurança social, para além de todos os outros, também à vertente fiscal, deveria ser igualmente protegido o Estado Fiscal, na sua qualidade de fonte subsidiadora, de “último garante”, ou se se preferir, de “pronto socorro”, a intervir em via supletiva às permanentes, continuadas, sucessivas e persistentes dificuldades do sistema.
LI - Por outro lado, não se pode argumentar como se estivéssemos perante um quadro absolutamente dicotómico em que, ou há crime e o crédito será satisfeito, minimizando os problemas de sustentabilidade, o que de todo não é o papel do direito penal, ou não há crime e não se opera o percebimento das contribuições necessário para o equilíbrio das contas, o que redundará na atribuição ao direito penal de um papel de persuasão ao pagamento, o que manifestamente não pode ser, para além de que a solução de não criminalização não significa nem conduz a insusceptibilidade de cobrança da dívida.
LII - A circunstância de a conduta omissiva em causa não constituir crime não significa que se esteja perante um crédito proscrito, inexistente, inviável, incobrável. O débito do contribuinte, na ausência de crime, continua débito; não há uma dispensa de cobrança; a descriminalização não diminui a eficácia do título executivo, que subsistirá, e com ele a possibilidade de cobrança coerciva, através do processo de execução fiscal.
LIII - E a uma ausência de crime não tem de corresponder uma necessária inserção da conduta no universo contra-ordenacional. Dito de outra forma: não é por a conduta não poder integrar contra-ordenação que não poderá deixar de constituir crime.
LIV - Até porque há outros meios de alcançar o objectivo de fazer cumprir a obrigação – nomeadamente a execução.
LV - Um outro argumento no sentido de entender a descriminalização como abrangendo o abuso de confiança contra a segurança social poderá retirar-se da conjugação do n.º 4 do art. 105.º com a revogação do n.º 6 do mesmo artigo, ambos aplicáveis àquele crime por remissão do n.º 2 do art. 107.º.
LVI - A subsistência do n.º 6 ao longo de dois anos, desde a alteração do n.º 4 do art. 105.º em 2006 (vigorando de 1-1-2007 a 31-12-2008), só fazia sentido para os casos de ocultação. Mas tendo sido agora revogado o n.º 6, desapareceu por completo a possibilidade de regularização de dívidas até € 2000.
LVII - Com a revogação do n.º 6, quando antes existia uma possibilidade de extinção da responsabilidade criminal, condicionada ao pagamento, passou agora a existir uma não criminalização, desde que o montante em dívida não seja superior a € 7500.
LVIII - O desaparecimento do n.º 6 compreende-se, pois já não há que regularizar dívidas até 2000 euros sob pena de responsabilidade criminal.
LIX - Então nestes casos, a não entender-se a descriminalização para o abuso de confiança contra a segurança social, seria o contribuinte substituto confrontado com uma situação mais gravosa, pois enquanto dantes, por recurso ao mecanismo do n.º 6, poderia, no caso de a prestação não exceder os € 2 000, fazer extinguir a responsabilidade criminal, agora, por virtude daquela revogação, desapareceria a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal, vendo assim a sua situação agravada, o que certamente não terá querido o legislador.
LX - A extinção da responsabilidade criminal determina (inexoravelmente) a extinção da acção cível conjunta? A questão fundamental será a de saber se deveremos olhar apenas ao bem fundado (ou não) do pedido cível, independentemente da natureza da responsabilidade que lhe subjaz, abarcando não apenas os casos de responsabilidade aquiliana e de responsabilidade objectiva, mas também outros casos, como o da responsabilidade contratual, em que o pedido cível se pode basear na violação de uma relação creditícia, ou se pelo contrário, o bem fundado do pedido cível se deve confinar, restringir à responsabilidade extracontratual ou aquiliana, ou ainda responsabilidade objectiva, com exclusão da responsabilidade contratual.
LXI - O exposto tem inteiro cabimento no caso concreto, sendo o pedido cível formulado nos autos em obediência ao princípio da adesão, fundamentado na responsabilidade criminal do arguido. Nestes termos, entendendo-se que a ora decretada extinção da responsabilidade criminal não obsta à subsistência da condenação cível.
LXII - A competência do tribunal criminal para conhecer do pedido cível conexo com a acção penal decorre da responsabilidade civil extracontratual do agente que cometa o facto ilícito e culposo. Neste quadro legal, que é o aplicável, não há lugar a qualquer reversão.
LXIII - No caso em apreciação não tem lugar a figura de reversão, própria do processo executivo e que tem por objectivo chamar à acção executiva quem à luz do título executivo não é parte (cf. arts. 55.º, n.º 1, do CPC, e 153.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT), situação completamente diversa da presente em que o recorrente é demandado ab initio, numa acção com estrutura declarativa, sendo contra si invocada uma concreta causa de pedir e formulado um pedido concreto, que pode impugnar nos termos gerais consentidos em processo penal. Aqui o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual – art. 6.º do RGIT – sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo – art. 483.º do CC.
LXIV - Para obter título executivo também contra os sócios gerentes da sociedade devedora fiscal, arguida nos autos, o demandante tem necessariamente de demandar todos em acção de condenação, tendo interesse em agir na demanda contra os mesmos, não relevando o facto de o IGFSS ter outros meios para obter o pagamento das quantias em dívida, designadamente, a execução fiscal.
LXV - Assim, o tribunal criminal tem competência em razão da matéria para julgar a acção cível interposta pelo IGFSS, não havendo lugar neste tipo de processos à figura da reversão, nem se mostrando violados os arts. 212.º da CRP, e 1.º, n.º 1, do ETAF.
Decisão Texto Integral: No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo nº 106/01.9IDPRT, a que se encontra apenso o processo n.º 410/03.1TAPVZ, ambos do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Póvoa de Varzim, integrante do Círculo Judicial de Vila do Conde, foram submetidos a julgamento os arguidos:
1. “AA – Electrodomésticos e Refrigeração, Lda.”, com sede na Rua ............., n.º ........, Póvoa de Varzim,
2. BB, casado, mecânico de frio, nascido a 10.03......, na Póvoa de Varzim, residente na Rua ........., nº ...,.., Vila do Conde,
3. CC, casado, empresário, nascido em 31-.....-....., em Lapela, Monção, residente na Av. dos ............, Edifício ......., n° ....., 3.º Sul, Aver-o-Mar, Póvoa de Varzim,
4. DD, divorciado, vendedor, nascido a 2-1-1947, em Moreira de Cónegos, Guimarães, residente na Rua ............., n° ........, Póvoa de Varzim.

Os 1.º, 3.º e 4.º arguidos foram acusados nos dois processos e o 2.º apenas no processo n.º 410/03.1TAPVZ.
No processo comum singular n.º 410/03.1TAPVZ os 2.º, 3.º e 4.º arguidos eram acusados pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p. pelo artigo 27.º B do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01, na redacção introduzida pelo DL 140/95, de 14-06 e artigo 24.º, n.ºs 1 e 5 daquele DL e, posteriormente, pelos artigos 107.º e 105.º, n.º 5, da Lei n.º 15/2001, de 5-06 (RGIT), sendo a arguida sociedade, nos termos dos artigos 7.º e 9.º do DL n.º 20-A/90 e artigo 7.º da Lei n.º 15/2001.
No processo comum n.º 106/01.9IDPRT os 3.º e 4.º arguidos eram acusados pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º, n.ºs 1, 2, 5 e 6 do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01, na redacção introduzida pelo DL 394/93, de 24-11 e, posteriormente, pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 4 e 5, da Lei n.º 15/2001, de 5-06 (RGIT), sendo a arguida sociedade, nos termos dos artigos 7.º e 9.º do DL n.º 20-A/90 e artigo 7.º da Lei n.º 15/2001.
Por despacho proferido nos autos nº 410/03.1TAPVZ foi ordenada a apensação dos mesmos aos autos nº 106/01.9IDPRT.

Por acórdão do Colectivo competente, de 28 de Setembro de 2006, constante de fls. 1323 a 1375, do 11.º volume, foi deliberado:
Quanto à Parte Criminal
1 - Absolver os arguidos BB e DD;
2 - Condenar o arguido CC, pela prática de:
2.1 - Um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 5-06, na pena de 12 meses de prisão;
2. 2 - Um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. nos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 5-06, na pena de 12 meses de prisão (Aqui a referência ao artigo 107.º deverá ser entendida como lapso de escrita).
2. 3 - E em cúmulo jurídico na pena única de 18 meses de prisão.
2. 4 - Ao abrigo do disposto no artigo 50° do Código Penal e artigos 14° do RGIT e 11.° n.° s 6 e 7, do RJ.I.F.N.A, suspender por 5 anos a execução da pena de 18 meses de prisão aplicada ao mesmo arguido, sob a condição de pagamento ao Estado da quantia de 214.314,89 Euros (85.262,46 + 129.052,43) até ao final do período da suspensão.
3 - Condenar a arguida “AA – Electrodomésticos e Refrigeração, Lda.”:
3.1 - Como co-autora material de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido nos artigos 7.º, 107.º, nº 1 e 105.º, nº 1 e 2, da Lei nº 15/2001, de 5/6, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 50,00 euros.
3.2 - Como co-autora material de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos artigos 7.º, 107.º, nº 1 e 105.º, nº 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 5-06, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 50,00 euros. (Aqui igualmente a referência ao artigo 107.º deverá ser entendida como lapso de escrita).
3.3 - Operando o cúmulo jurídico das referidas penas, foi a arguida condenada na pena única de 500 dias de multa, à taxa diária de 50,00Euros.

Quanto à Parte Cível
4. Julgar parcialmente procedente o pedido cível, por provado e, consequentemente:
Condenar os demandados CC e AA – Electrodomésticos e Refrigeração, Lda. a pagar ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social Norte a quantia de 85.262,46 Euros, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos até integral pagamento.

O arguido CC interpôs, em 16-10-2006, recurso para o Tribunal da Relação do Porto, conforme fls. 1409 a 1432.
Após a entrada em vigor, em 01-01-2007, da nova redacção do n.º 4, com a introdução da alínea b), do artigo 105.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho [RGIT], operada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, a qual aprovou o Orçamento de Estado para o ano de 2007, encontrando-se o processo ainda na 1.ª instância, em 07-02-2007, o mesmo arguido apresentou requerimento, de fls. 1457-1461, em que defende encontrarem-se despenalizados os factos descritos na acusação, devendo ser declarada a extinção do procedimento criminal.
Por despacho de fls. 1466/7, de 28-02-2007, foi considerado não estar em causa uma verdadeira descriminalização, como defendido pelo arguido, sendo determinada a notificação dos arguidos para, em 30 dias, procederem ao pagamento das quantias referentes às prestações em causa e as demais quantias e acréscimos mencionados na referida alínea b), do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
Notificado deste despacho, o arguido interpõe novo recurso em 16-04-2007, conforme fls. 1503 a 1512 do 12.º volume.

Por despacho de 29-05-2008, de fls. 1611, foi ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação do Porto, o que veio a ser cumprido em 30-10-2008 (fls. 1612).

Encontrando-se o processo na Relação do Porto, em 05-01-2009, o recorrente apresentou requerimento de fls. 1626 a 1628.
Invocou então a alteração introduzida pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, que alterou o artigo 105.º do RGIT, descriminalizando a falta de entrega de prestações inferiores ou iguais a € 7.500,00, requerendo a declaração de extinção do procedimento criminal e do pedido cível de indemnização.

Por acórdão de 18-02-2009 (processo n.º 6954/08, da 4.ª secção), constante de fls. 1639 a 1664,o Tribunal da Relação do Porto deliberou do seguinte modo:
1. - Recurso do despacho de fls. 1466-1467 – julgado improcedente;
2. - Recurso do acórdão - negado provimento ao recurso, mantendo as decisões proferidas, quer na parte criminal quer na cível.
3. - Requerimento de fls. 1626-1628 – posterior à motivação de recurso – deliberado não haver razões para julgar extinto o procedimento criminal.


Continuando irresignado, o arguido interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.1688/9), apresentando a motivação de fls. 1690 a 1701, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição):
I. A recente Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro alterou a redacção do artigo 105, n.° 1 do RGIT, passando o mesmo a ter o seguinte teor: quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
II. Dispõe ainda o n.° 7 desse artigo que "Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração fiscal".
III. Ora, nos presentes autos, apenas 4 das prestações de que o Recorrente é acusado de não ter entregue à Fazenda Pública e à Segurança Social são superiores àquele valor.
IV. De acordo com o referido n° 1 do artigo 105°, interpretado em conjugação com o n.° 7 desse artigo, bem como da melhor doutrina e jurisprudência, o valor que releva é o de cada um dos tributos ou entregas que a arguida AA deveria ter entregue e não já a soma de todas elas.
V. O que significa que se se tratar de uma só prestação superior a 7500,00 euros, continua a ser crime. Mas se se tratar de uma ou várias prestações, sendo cada uma delas inferior a 7 500,00 euros, pese embora o seu total ultrapasse largamente aquele montante, não existe crime. Foi uma opção legislativa, mais concretamente uma opção de política fiscal do Estado - cfr. Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 25-02-2009.
VI. Ao considerar que a conduta do arguido não se encontra descriminalizada (com excepção de 4 prestações) o douto Acórdão recorrido violou o n.° 1 e 7 do RGIT e o n.° 2 do artigo 27° da Constituição da República Portuguesa
VII. No que respeita ao pedido de indemnização cível, o arguido deve ser absolvido do mesmo, atento não existir qualquer acto de reversão contra si respeitante à dívida da AA.
VIII. A condenação do arguido no pagamento de uma indemnização viola o disposto no artigo 212°, n.° 3 da Constituição e artigo l°, n.° 1 do ETAF.
IX. De todo o modo, encontrando-se descriminalizada toda a matéria constante do pedido de indemnização cível, deve o mesmo ser considerado improcedente.
X. Porquanto apenas a prática de um facto típico qualificado como crime poderá determinar a responsabilização do arguido, como resulta da conjugação dos artigos 129.º do Código Penal e 71. ° do Código de Processo Penal
XI. Qualquer responsabilidade civil do arguido apenas seria apreciada nestes autos se se verificasse o ilícito criminal; ora, estando os factos em apreço descriminalizados, deve sem dúvida o pedido de indemnização cível ser julgado improcedente
XII. Por fim, sempre deve ser revista a pena a aplicar ao arguido, pelos factos que não foram descriminalizados, devendo, nesse caso, a pena a aplicar ser uma pena de multa, atento o baixo valor das entregas aí em causa.
No provimento do recurso o recorrente pede a revogação da decisão recorrida.

O Exmo. Procurador-Geral Distrital junto do Tribunal da Relação do Porto respondeu, conforme fls. 1705 a 1709, começando por suscitar a questão prévia da irrecorribilidade da decisão à luz dos artigos 400.º, n.º 1, alínea f) e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, defendendo que face à dupla conforme condenatória o acórdão seria irrecorrível, mas atendendo a que a confirmação resultou também da apreciação e indeferimento da invocada descriminalização, questão levantada na pendência do recurso na Relação, sendo questão nova, apreciada e decidida pela Relação em 1ª instância, defende ser a mesma recorrível, devendo o recurso ser admitido.
Relativamente ao mérito, no que toca à pretendida descriminalização, entende que o crime de abuso de confiança em relação à segurança social não está abrangido pela alteração introduzida pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, louvando-se para tanto no acórdão da Relação do Porto, de 25-03-2009, processo n.º 1131/01.5TASTS-1ª.
No mais, quanto à descriminalização do crime de abuso de confiança fiscal defende não poder ser aplicável o disposto no n.º 7 do artigo 105.º do RGIT por se tratar de questão nova, sendo de manter a decisão recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 1710.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer conforme fls. 1717 a 1723.
Quanto à questão prévia, defendeu a admissibilidade do recurso relativamente à questão da descriminalização das condutas do agente, atento o facto de a questão ter sido apreciada em 1.ª instância na Relação e tendo em vista a garantia do duplo grau de jurisdição, assegurado constitucionalmente.
Quanto ao mérito do recurso, considera igualmente que a alteração ao artigo 105.º, n.º 1 e 5 do RGIT, introduzida pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008 não abrange o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por este manter a sua tipificação autónoma e integral na previsão do artigo 107.º do RGIT, tendo apenas em comum com o crime de abuso de confiança fiscal, objecto de previsão no artigo 105.º, a punição estabelecida no n.º 1, por via da remissão expressa no n.º 1 do aludido art.107.º, seguindo de perto a argumentação do referido acórdão da Relação do Porto.
No que tange à descriminalização do crime de abuso de confiança fiscal relativamente às prestações tributárias não entregues e cujo valor não exceda € 7 500,00, à semelhança do considerado pelo Ministério Público na 2.ª instância, alude à circunstância de o arguido não ter impugnado a qualificação jurídica dos factos e defendendo que o desvalor da acção há-de medir-se pelo somatório doas valores parciais das coisas ou bens apropriados, invocando arestos do Supremo Tribunal de Justiça dos anos 90.
Entende ser de manter a decisão impugnada.

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente silenciou.

Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no DR, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ 450, 72), que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

Questões a decidir

Face ao que se extrai das conclusões, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

I – Descriminalização dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social – conclusões I, II, III, IV, V, VI.

II - Medida da pena, relativa aos factos não descriminalizados – conclusão XII.

III - Pedido de indemnização cível – Incompetência material – Reversão -conclusões VII a XI.

Questão Prévia
Admissibilidade do recurso

No caso presente, o arguido ora recorrente foi condenado na 1.ª instância por acórdão de 28-09-2006, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. p. pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107.º do RGIT, na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, sendo tal condenação confirmada integralmente por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-02-2009.
À luz das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na versão vigente, atendendo à pena aplicada e à dupla condenatória conforme, dúvidas não haveria de que não era admissível recurso na parte criminal.
E mesmo que a questão fosse analisada à luz da anterior redacção, seria igualmente inadmissível o recurso, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, atentas as penalidades aplicáveis a cada um dos crimes por que foi condenado o recorrente - pena de prisão até 3 anos – conforme artigos 105.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1, do RGIT.
Acontece, porém, que no caso concreto, encontrando-se o processo na Relação foi colocada ex novo a questão da extinção do procedimento criminal, por descriminalização, a qual só então surgiu (o diploma em que o recorrente baseia a sua pretensão é de 31-12-2008, tendo entrado em vigor no dia seguinte).
O acórdão recorrido apreciou assim tal questão, suscitada por força de alteração legislativa, pela primeira vez, pronunciando-se em sentido desfavorável.
A fim de ser assegurado o duplo grau de jurisdição e o direito ao recurso, inscrito como garantia de defesa desde a 4.ª revisão da CRP com a Lei Constitucional n.º 1/1997, de 20 de Setembro, ao aditar ao artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que estabelecia «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa», a parte final “incluindo o recurso”, é de admitir o recurso quanto a essa específica matéria de direito.
Ademais, a questão da descriminalização, a vingar o seu reconhecimento, mesmo que parcialmente, pode arrastar consigo uma diminuição de ilícito e das verbas cujo pagamento é de exigir como componente da condição de suspensão da execução da pena de prisão, tornando mais exíguo o montante a que ficará subordinada essa suspensão da execução da pena, se for caso disso, o que tudo pode redundar a jusante numa menor margem de possibilidade de a pena substituída se vir a impor em termos de execução, impondo então pena privativa de liberdade.
Assim sendo, é admissível o recurso na parte criminal, passando a conhecer-se do mesmo.
O recurso no que toca à parte relativa à indemnização civil é igualmente admissível, atento o disposto no artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.


Factos Provados

Nota - Como resulta do texto do acórdão existem duas referências absolutamente idênticas com as palavras “A) Matéria de facto provada nos autos nº 106/01”, sendo evidente que se trata de repetição devida a lapso de escrita, pois como emerge do relatório do acórdão do Colectivo, a fls. 1326/7, e no enquadramento jurídico, a fls. 1350, na segunda parte a matéria de facto aí vertida corresponde ao que constava do processo comum singular n.º 410/03.1TAPVZ, em que todos os arguidos foram acusados da prática de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
Impondo-se a correcção ao abrigo do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Penal, já que da mesma não resulta qualquer modificação essencial, procede-se desde já à mesma, no sentido de que onde na segunda menção se lê “A) Matéria de facto provada nos autos nº 106/01”, deverá ler-se: “B) Matéria de facto provada nos autos nº 410/03”.

Vem dado por definitivamente assente o seguinte:

A) Matéria de facto provada nos autos nº 106/01:

1. A sociedade arguida “AA – Electrodomésticos e Refrigeração, Lda.” é uma sociedade por quotas que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Póvoa de Varzim sob o n° 00453/801203 e o seu objecto social é a actividade de comércio de electrodomésticos, máquinas industriais, e material eléctrico; reparações, fabrico e montagem de refrigeração que iniciou em 1980;
2. Na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais mostrava-se enquadrada, pelo menos até finais de 2003, no regime normal de periodicidade mensal em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, e colectada pelo Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim em sede de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas;
3. Por sua vez, os arguidos CC e DD são, desde 1996, os sócios gerentes da sociedade arguida, sendo a mesma exercida em exclusivo pelo primeiro arguido que tomava todas as decisões respeitantes à actividade da mesma e a representava perante terceiros.
4. O arguido DD exerce também as funções de vendedor da AA no Sul de Portugal, limitando-se a apresentar os produtos da AA junto dos seus potenciais clientes e a enviar para esta as notas de encomenda respectivas, desempenhando essa actividade para a AA desde 1997.
5. Desde essa altura, passa longas temporadas afastado da sede da sociedade, pernoitando no Sul de Portugal.
6. Desde então o arguido DD deixou de exercer de facto quaisquer funções de gerente e de interferir na gerência da mesma.
7. A partir de 2001, fixou mesmo a sua residência permanente em Torres Vedras, onde arrendou uma casa e onde actualmente reside.
8. O arguido DD limitava-se a assinar os documentos que o arguido Eng.°CC lhe indicava para assinar.
9. O arguido CC, no desenvolvimento da actividade da empresa representada pelo mesmo (AA), nos períodos que adiante se indicam, geria e administrava a empresa arguida e, em nome e no interesse desta, decidia da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações, sendo responsável pelo desconto das contribuições devidas à Segurança Social no montante dos salários pagos aos trabalhadores, bem como pelo preenchimento e entrega das respectivas folhas de remuneração no Centro Regional de Segurança Social do Porto.
10. O arguido CC, no desenvolvimento da actividade da referida empresa representada pelo mesmo, e nos períodos que a seguir se indicam, procedeu a descontos nos salários pagos aos respectivos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários, a título de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares – Categoria A -, nos seguintes montantes:

Entrega até: Id. Doc.: Data: IRS retido, não entregue ao Estado:
20-5-00 40038 30-4-00 193.070$00
20-6-00 50034 31-5-00 255.640$00
20-10-00 90034 30-9-00 190.240$00
20-11-00 100035 31-10-00 273.710$00
20-12-00 110037 30-11-00 263.690$00
Total 1.176.350$00
( € 5.867,61 )


11. As importâncias acima referidas e retidas na fonte aquando do pagamento dos rendimentos aos seus detentores, não foram entregues nos cofres do Estado decorridos mais de 90 dias sobre a data legalmente fixada para cumprimento da respectiva obrigação fiscal.

12. Por outro lado os arguidos entregaram nos serviços da Administração do IVA as declarações dos períodos a seguir mencionados, sem no entanto as fazerem acompanhar do respectivo meio de pagamento relativo ao imposto exigível, ascendendo, então, o montante recebido e não entregue nos cofres do Estado ao montante global de € 129.052,43, tendo decorrido mais de 90 dias sobre a data legalmente fixada para a entrega do imposto, tudo conforme melhor consta dos quadros que seguem:

Quadro.pdf

13. As quantias retidas a título de IRS aludidas deveriam ter sido entregue nos Serviços da Administração Fiscal até ao dia 20 do mês seguinte ao da retenção, nos termos do art. 91º do CIRS (actual art. 98º).

14. As quantias recebidas a título de IVA deveriam ter sido entregues, juntamente com as respectivas declarações periódicas, até ao dia 10 do 2º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, nos termos dos arts. 26º e 40º do Código do IVA.
15. O arguido CC não entregou aquelas quantias nos Cofres do Estado, delas se tendo apropriado e feito ingressar no acervo patrimonial da sociedade arguida nos períodos acima indicados, utilizando-as na firma arguida para satisfação das despesas desta.
16. Tinha perfeita consciência da obrigação de entregar ao Estado os quantitativos retidos nos montantes e períodos mencionados.
17. O arguido CC agiu do modo descrito em face das dificuldades da sociedade arguida de obtenção de disponibilidades financeiras, tendo, por isso, decidido canalizar para pagamento de outras despesas da sua representada os montantes deduzidos e retidos nas remunerações pagas aos trabalhadores e colaboradores daquela a título de IRS, e as quantias recebidas a título de IVA, bem sabendo que era sua obrigação proceder à respectiva entrega naqueles Serviços.
18. Agiu por si e na qualidade de sócio gerente da sociedade arguida, de forma livre e consciente, bem sabendo que os dinheiros em causa se destinavam e eram devidos ao Estado e que, com a referida conduta, estava a enriquecer o património da sociedade arguida na exacta medida em que empobrecia o património do Estado.
19. Agiu voluntária, livre e conscientemente, em nome e no interesse da sociedade arguida e na qualidade de seu representante legal, bem sabendo que as suas condutas violavam preceitos legais.
20. Desta forma, a segurança social sofreu um prejuízo correspondente à soma dos montantes de que os referidos arguidos se apropriaram, verificado desde o momento da respectiva omissão de entrega.
21. Desde os anos de 1995 e seguintes que a sociedade arguida vem atravessando um período económico-financeiro difícil, sem conseguir obter lucros, tendo inclusive em Março de 1997 sido objecto de um processo de recuperação de empresa;
22. O dinheiro que o arguido CC deveria ter destinado aos Cofres do Estado foi usado na aquisição de matéria-prima indispensável à prossecução do trabalho mínimo da sociedade arguida e pagamento de salários a trabalhadores;
23. A falta de pagamento das contribuições em causa ocorreu num contexto de dificuldades económicas da sociedade arguida, procurando a mesma evitar o seu encerramento e o despedimento de trabalhadores.
24. A sociedade arguida acumulou ao longo dos anos vários créditos incobráveis.
25. Durante o referido período de crise os salários dos trabalhadores só parcialmente eram pagos e inclusive o dos sócios gerentes, que ainda mantém créditos para com a sociedade arguida nessa parte;
26. A sociedade arguida, através do arguido CC entregava nos Serviços da Administração Fiscal, devidamente preenchidas, as declarações referentes às contribuições ora em falta.
27. No referido processo de recuperação, foi aprovada a medida de reestruturação financeira, com o voto favorável do próprio Estado, conseguindo a arguida pagar as prestações a que estava obrigada por força do mesmo processo.

B) - Matéria de facto provada nos autos nº 410/03 * (Ver correcção supra)

1. A sociedade arguida “AA – Electrodomésticos e Refrigeração, Lda.” é uma sociedade por quotas que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Póvoa de Varzim sob o n°0000000/000000 e o seu objecto social é a actividade de comércio de electrodomésticos, máquinas industriais, e material eléctrico; reparações, fabrico e montagem de refrigeração que iniciou em 1980;
2. Por sua vez, os arguidos BB, CC e DD são, desde 1996, os sócios gerentes da sociedade arguida, sendo a mesma exercida em exclusivo pelo primeiro arguido que tomava todas as decisões respeitantes à actividade da mesma e a representava perante terceiros.
3. O arguido DD exerce também as funções de vendedor da AA no Sul de Portugal, limitando-se a apresentar os produtos da AA junto dos seus potenciais clientes e a enviar para esta as notas de encomenda respectivas, desempenhando essa actividade para a AA desde 1997.
4. Desde essa altura, passa longas temporadas afastado da sede da sociedade, pernoitando no Sul de Portugal.
5. Desde então o arguido DD deixou de exercer de facto quaisquer funções de gerente e de interferir na gerência da mesma.
6. A partir de 2001, fixou a sua residência permanente em Torres Vedras, onde arrendou uma casa e onde actualmente reside.
7. O arguido DD limitava-se a assinar os documentos que o arguido CC lhe indicava para assinar.
8. O arguido BB é mecânico de frio, trabalhando diariamente nas oficinas da empresa e nas instalações dos clientes onde eram instalados ou reparados equipamentos fornecidos pela AA.
9. Não tendo qualquer actividade nos escritórios da AA, onde apenas ia para assinar os documentos que lhe indicavam.
10. Este arguido deixou de trabalhar na AA em Abril 1999.
11. Em Junho do ano de 2000 o arguido BB renunciou ao cargo de gerente na sociedade arguida “AA”.
12. O arguido DD não exerceu de facto quaisquer funções de gerente e não interferiu na gerência da mesma.
13. Procedendo em conformidade com o disposto nos arts. 3°, 4°, 5°, n° 2 do DL n° 103/80 de 9-5, 24° da Lei n° 28/84 de 14-8, 62° da Lei 17/00 de 8-8, 45/1 e 47/1 da Lei n° 32/2002 de 20-12, a arguida ‘AA - Electrodomésticos e Refrigeração, Lda.” pagou regularmente os salários devidos aos seus trabalhadores e membros de órgãos estatutários referentes aos meses de Janeiro/98 a Abril/00, Julho/00, Outubro/00 a Janeiro/2001, Maio/2001 a Julho/2001, Novembro/2002 e Janeiro/2003, e, com observância das taxas de 11% e 10% aplicáveis, respectivamente, às situações abrangidas pelo regime geral e às respeitantes aos membros dos órgãos estatutários, deduziu e reteve na fonte as contribuições para a segurança social descontadas naqueles salários.
14. O arguido CC, no desenvolvimento da actividade da empresa representada pelo mesmo (AA), nos períodos que adiante se indicam, geria e administrava a empresa arguida e, em nome e no interesse desta, decidia da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações, sendo responsável pelo desconto das contribuições devidas à Segurança Social no montante dos salários pagos aos trabalhadores.
15. Assim, e em execução da decisão tomada pelo arguido CC, a sociedade arguida não efectuou a entrega daquelas contribuições referentes àqueles meses, num total de 38, à Segurança Social, sendo que essas contribuições deveriam ter sido pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitem, nem regularizou a situação nos 90 dias subsequentes a esse prazo, nos termos dos arts. 5°/3 e 6° do já citado DL n° 103/80 de 9-5, 18° do DL n° 140-D/86 de 14.6 e 10°/2 do DL 199/99 de 8-6.
16. Resulta dos documentos juntos aos autos e, designadamente, dos mapas de valores de fls. 394 a 399 a seguir apresentados em termos que discriminadamente assinalam, com referência aos respectivos anos e meses, os montantes dos salários e remunerações em que incidiram as deduções e os exactos valores das “contribuições efectivamente retidas e não pagas” à Segurança social, que passaram a integrar o património da sociedade arguida:

Mapa.pdf

17. O arguido CC não entregou aquelas quantias nos Cofres do Estado, delas se tendo apropriado e feito ingressar no acervo patrimonial da sociedade arguida nos períodos acima indicados, utilizando-as na firma arguida para satisfação das despesas desta.
18. Tinha perfeita consciência da obrigação de entregar ao Estado os quantitativos retidos nos montantes e períodos mencionados.
19. O arguido CC agiu do modo descrito em face das dificuldades da sociedade arguida de obtenção de disponibilidades financeiras, tendo, por isso, decidido canalizar para pagamento de outras despesas da sua representada os montantes deduzidos e retidos nas remunerações pagas aos trabalhadores e colaboradores daquela a título de IRS, bem sabendo que era sua obrigação proceder à respectiva entrega naqueles Serviços.
20. Agiu por si e na qualidade de sócio gerente da sociedade arguida, de forma livre e consciente, bem sabendo que os dinheiros em causa se destinavam e eram devidos à Segurança Social e que, com a referida conduta, estava a enriquecer o património da sociedade arguida na exacta medida em que empobrecia o património do Estado.
21. Agiu voluntária, livre e conscientemente, em nome e no interesse da sociedade arguida e na qualidade de seu representante legal, bem sabendo que a sua conduta violava preceitos legais.
22. Desta forma, a segurança social sofreu um prejuízo correspondente à soma dos montantes de que os referidos arguidos se apropriaram, verificado desde o momento da respectiva omissão de entrega.
23. Em 23-3-04 foi saldada parte da dívida, no montante Euros 13.388,38, que foi imputada no pagamento das cotizações de Dezembro/00 – Euros 520,01 -, Janeiro/01 – Euros 1.778,46 -, Maio/01 – Euros 1.869,71 -, Junho/01 – Euros 2.514,82 -, Julho/01 – Euros 2.626,70 -, Novembro/02 – Euros 2.215,46 - e Janeiro/03 – Euros 1.863,22.
24. Em 23/05/2006 a arguida efectuou um pagamento concernente ao mês de 10/00, no valor de 2.431,93 Euros.
25. No que concerne ao mês de 11/00, a arguida liquidou as cotizações na data de 22/06/2005, no valor de 2.252,34 Euros.
26. Desde os anos de 1995 e seguintes que a sociedade arguida vem atravessando um período económico-financeiro difícil, sem conseguir obter lucros, tendo inclusive em Março de 1997 sido objecto de um processo de recuperação de empresa;
27. O dinheiro que o arguido CC deveria ter destinado aos Cofres do Estado foi usado na aquisição de matéria-prima indispensável à prossecução do trabalho mínimo da sociedade arguida e pagamento de salários a trabalhadores;
28. A falta de pagamento das contribuições em causa ocorreu num contexto de dificuldades económicas da sociedade arguida, procurando a mesma evitar o seu encerramento e o despedimento de trabalhadores.
29. A sociedade arguida acumulou ao longo dos anos vários créditos incobráveis.
30. Durante o referido período de crise os salários dos trabalhadores só parcialmente eram pagos e inclusive o dos sócios gerentes, que ainda mantém créditos para com a sociedade arguida nessa parte;
31. A sociedade arguida, através do arguido CC entregava nos Serviços da Administração Fiscal, devidamente preenchidas, as declarações referentes às contribuições ora em falta.
32. No referido processo de recuperação, foi aprovada a medida de reestruturação financeira, com o voto favorável do próprio Estado, conseguindo a arguida pagar as prestações a que estava obrigada por força do mesmo processo.

Mais se provou que:
- O arguido BB aufere mensalmente como mecânico a quantia de 630,00 Euros;
- Vive com a esposa e dois filhos e, tem como habilitações literárias a 4ª classe;
- O arguido CC continua a exercer a gerência da “AA”, auferindo mensalmente a quantia de 1.000,00 Euros.
- Vive em casa dos pais, paga mensalmente de pensão de alimentos aos filhos a quantia de 300,00 Euros, e tem como habilitações o curso superior de engenharia electrotécnica.
- O arguido DD exerce a actividade de vendedor auferindo mensalmente a quantia de 750,00 Euros.
- Os arguidos estão inseridos na sociedade onde vivem, são pessoas respeitadas e consideradas entre vizinhos e amigos.
- São pessoas honestas e trabalhadoras com bom nome comercial, desenvolvendo as suas actividades há largos anos.
- Nenhum dos arguidos fez fortuna à custa do não pagamento das contribuições e impostos em causa.
- Por sentença proferida nos autos nº 278/00.0TAPVZ, do 3º juízo do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim os arguidos BB, DD e CC foram condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo art. 105.º, n.º 1 e 5 da Lei n.º 15/2001, e 30.º do Código Penal na pena de 14 (catorze) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 5 anos, sob a condição de pagamento ao Estado, no prazo de 5 anos da quantia de imposto em dívida e legais acréscimos;
- No mesmo processo a sociedade arguida foi condenada nos termos do art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 15/1001, pelo crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105.º, n.º 5 da mesma Lei, na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa à taxa diária de 10 (dez) euros, no total de 641.542$00.
- A sociedade arguida sempre tentou cumprir as suas obrigações fiscais e perante a segurança social.

Apreciando.

Questão I - Descriminalização

Nesta abordagem há que analisar separadamente a questão em relação a cada um dos crimes, pois que tal como se configura a questão no caso concreto, só se poderá avançar para a discussão da descriminalização relativamente ao segundo crime, se for de entender que é de descriminalizar o primeiro.
Esta prévia análise impõe-se, porque há que ver se o crime de abuso de confiança fiscal com os contornos do caso concreto de crime único é ou não de descriminalizar, pois como se viu, a resposta da Relação foi negativa.

ABUSO de CONFIANÇA FISCAL

O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 15/2001 (a referência constante do dispositivo ao artigo 107.º, n.º 1, deverá ser entendido como mero lapso de escrita).
Em causa, como emerge da facticidade dada por assente, está um valor total de 1.176.350$00 ou € 5.867,61, correspondente a cinco verbas de descontos de IRS, que deveriam ser entregues até o dia 20 de cada um dos meses de Maio, Junho, Outubro, Novembro e Dezembro de 2000 (factos provados sob os n.ºs 10, 11 e 13) e o montante global de € 129.052,43, respeitante a IVA dos meses de Janeiro a Abril, Junho, Julho, Agosto e Outubro de 2000; Fevereiro, Março, Abril e Agosto de 2001, Agosto e Dezembro de 2002, Junho, Julho, Agosto, Outubro e Novembro de 2003 (factos provados sob os n.ºs 12 e 14).
O recorrente fora acusado no processo n.º 106/01.9IDPRT da prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelo artigo 24.º, n.º s 1, 2, 5 e 6 do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01, com a redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24-11 e, face à lei posterior, pelo artigo 105.º, n.º s 1, 4 e 5 da Lei n.º 15/2001 (RGIT).

O quadro normativo sucessivo e em confronto ao tempo da decisão era, pois, o seguinte:
Artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01 (RJIFNA), na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24-11, que estabelecia:
1 - Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
5 - Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$00, o crime será punido com prisão de um até cinco anos.

Artigo 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho (RGIT), na versão originária, até então inalterada, estabelecendo que:
1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
7 – Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Com a Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2009 – Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (alterada pela Lei n.º 10/2009, de 10 de Março e pela Lei n.º 118/2009, de 30-12), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2009, conforme artigo 174.º - foi dada pelo artigo 113.º nova redacção ao artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, que passa a dispor:
«Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».
O artigo 115.º da Lei n.º 64-A/2008 revogou o n.º 6 do mesmo artigo 105.º.

Ao introduzir a locução “de valor superior a (euro) 7500” o legislador criou um novo elemento objectivo do tipo, com o que eliminou do número das infracções criminais de abusos de confiança fiscal as condutas omissivas traduzidas na não entrega de prestações tributárias deduzidas desde que o respectivo montante seja igual ou inferior àquele valor, passando a configurar o crime em questão apenas as condutas “desviantes” de prestações de valor superior àquele quantitativo.
O limite mínimo constitutivo de crime passou assim a ser substanciado por “descaminho” de prestação tributária de valor superior a € 7 500.

Coloca-se assim a questão de saber se as condutas integradoras do crime de abuso de confiança fiscal se encontram descriminalizadas e se a descriminalização, a vingar, será total ou parcial.
Estabelece o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal que “O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais”.
Como se pode ler no acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 61/07, de 30-01-2007 “A descriminalização é a forma mais radical de extinção do procedimento criminal, por essa via se significando que, da parte do Estado, perdeu o facto a carga de associalidade, da necessidade de intervenção, ainda que subsidiária, do direito penal, e opera tanto por via de determinação expressa ou inferência tácita da lei ou por manipulação dos elementos da factualidade típica”.
Colocada em primeira mão ao Tribunal da Relação, a nova questão foi assim abordada e decidida, a fls. 1663 verso, do acórdão recorrido:

«K - Requerimento de fls. 1626-1628

55. O recorrente invoca a alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Outubro, segundo a qual apenas é criminalizada a não entrega, à administração tributária, de prestações [deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar] de valor superior a € 7.500. Pois bem: no caso concreto temos como assente que o recorrente assumiu uma só resolução criminosa com execução faseada ao longo do tempo, pelo comete apenas um crime [de Abuso de confiança e um crime de Abuso de confiança contra a segurança social]. E os valores totalizados são francamente superiores a tal montante, pelo que não há razões para julgar extinto o procedimento criminal».

Como decorre claramente do texto, a pretensão do recorrente em ver descriminalizadas as suas condutas foi afastada pela Relação, por se ter considerado que o mesmo havia sido condenado por um crime de abuso de confiança fiscal (e um outro crime de abuso de confiança contra a segurança social), por ter assumido uma só resolução criminosa com execução faseada ao longo do tempo e por se ter em conta o somatório de todas as parcelas.

Uma tal interpretação faz tábua rasa das considerações da 1.ª instância, que com base no disposto no n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, desqualificou os crimes agravados imputados ao arguido, ora recorrente.

A seguir-se a lógica do acórdão recorrido e a ter-se em consideração os “valores totalizados”, o arguido deveria ter sido condenado, em ambos os casos, por crimes qualificados, nos termos do n.º 5, quer do artigo 24.º do RJIFNA, quer do artigo 105.º do RGIT.

Ora, não foi esse o entendimento do Colectivo de Póvoa de Varzim no que respeita à qualificação jurídica, sendo de anotar que a Relação não deixou de confirmar o tratamento subsuntivo da 1.ª instância.
O Colectivo de Póvoa de Varzim no cotejo entre os sucessivos regimes penais em presença – o resultante do RJIFNA e o emergente do RGIT - optou pela aplicação da lei posterior, por a considerar mais favorável ao arguido, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal.
Mas não só.
Sem o dizer de forma expressa, e sem nada constar da acta de audiência, ou mesmo apenas da de leitura (sendo certo que é defensável a tese de que é dispensável a comunicação no caso de a nova qualificação conduzir a um minus), o Colectivo procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos nas acusações, nos termos do artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Procedeu à convolação dos crimes agravados constantes das acusações (em ambos os casos a imputação fazia-se pelo n.º 5 do artigo 24.º, aplicável directamente ao abuso de confiança fiscal, e ao abuso de confiança contra a segurança social, por remissão do artigo 27.º B do RJIFNA, ou do artigo 107.º do RGIT), concluindo pela integração de crimes simples, com referência ao n.º 1 do artigo 105.º, para tanto, pese embora a unificação de condutas (de forma dupla, no primeiro crime, já que a unificação operou não só em função de todo o período temporal, mas também englobando num único crime condutas relativas a imposto directo - IRS - e indirecto - IVA), argumentando com o estatuído no n.º 7 do artigo 105.º do RGIT.
O Colectivo abordou a questão da qualificação jurídica em sede algo deslocada, já que o fez ao tratar a medida da pena.
Fê-lo nos termos constantes de fls. 1363 a 1365 do 11.º volume, que se transcrevem:
«B) Da medida concreta da pena
Decorre do supra exposto que o arguido CC cometeu um crime de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a segurança social, já que ao longo de toda a realização persistiu o dolo ou a resolução inicial.
O crime de abuso de confiança fiscal (e contra a Segurança Social), previsto e punido nos artigos 27º B, do DL nº 140/95, de 14/06 conjugado com o art. 24º, nº 1, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras é punível com pena de prisão até 3 anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta, nem superior ao dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido (360 dias x 100.000$00 para as pessoas singulares e 1000 dias x 500.000$00 para as pessoas colectivas) no art.º 11º, nº 2 e 3, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, na redacção introduzida pelo nº 394/93, de 24 de Novembro, regime em vigor à data da prática de alguns dos factos.
O nº 5 do referido art. 24º dispõe que quando “a entrega não efectuada for superior a 5.000.000$00, o crime será punido com prisão de um a cinco anos”.
Nos termos do art. 105, nº 1 do RGIT o crime de abuso de confiança fiscal (e abuso de confiança contra a Segurança Social) é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
O nº 5 do mesmo artigo refere que “Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a Euros 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e multa de 240 a 1.200 dias para as pessoas colectivas”.
Continua o nº 7 “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, mos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.(sic)
Ou seja, resulta do referido nº 7 do artigo 105º do RGIT que a qualificação dos referidos crime de abuso de confiança só ocorre quando de alguma declaração a apresentar à administração tributária/segurança social dever constar um valor superior a Euros 50.000. Sob pena de violação do princípio da legalidade, não se pode considerar que o n° 7 do art. 105º do RGIT só tem aplicação quando se verifique a prática de vários crimes ou de um crime na forma continuada.
A questão da unidade ou pluralidade de infracções é resolvida pela teoria geral das formas do crime (cfr. art. 30º do Código Penal), enquanto a determinação do crime concreto cometido é do campo da tipicidade.
As normas acima transcritas do art. 105º do RGTT apenas delimitam os tipos do crime do abuso de confiança fiscal, sendo que o texto do n° 7 não permite qualquer excepção ou ressalva quando for caso de aplicação da norma do n° 5.
Ou, por outras palavras, no RGIT o valor global não entregue à administração fiscal, resultante da soma dos valores das diversas declarações, nunca pode ser tomado em consideração para o efeito da qualificação do crime de abuso de confiança fiscal, embora não seja irrelevante, nomeadamente para a aferição da ilicitude do comportamento.
Não decorrendo dos factos provados que alguma declaração a apresentar ou alguma das prestações individualmente consideradas, é de valor superior a Euros 50.000, ou o equivalente em escudos, à luz do RGIT, cometeu o arguido CC o crime de abuso de confiança fiscal e o crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social «simples» previsto e punido pelo seu art. 105 n° 1 e 107º.
Era diferente o caso do RJIFNA, cujo art. 24 nº 5 apenas dispunha que quando “a entrega não efectuada for superior a 5.000.000$00, o crime será punido com prisão de um a cinco anos”. Nos casos em que a mesma resolução criminosa abrangia mais do que uma entrega, não havia razão para não considerar o valor global em falta para o efeito de se determinar se tinha sido cometido o crime qualificado.
É, pois, mais favorável ao arguido o regime que resulta da lei mais recente, pelo que deverá ser este o aplicado – art. 2 n° 4 do Código Penal». (Sublinhámos).

A solução a dar à questão terá de passar por saber se deve atender-se aos valores parcelares de cada uma das declarações, ou antes, como fez a Relação, ter em conta o somatório global de todas as parcelas não entregues.
Se se tivesse por boa a solução da Relação arredado ficaria desde logo qualquer tipo de cogitação sobre a possibilidade de ser considerada a descriminalização, atento o limite de valor até onde pode ir a desconsideração da conduta como crime, pois o valor global das prestações do abuso de confiança fiscal ultrapassam claramente e esmagadoramente tal limite.
Só fará sentido considerar a descriminalização, desde que se acolha a tese da relevância, nesta sede, dos valores individualizados de cada prestação, que é o critério legal.
Estabelece o n.º 7 do artigo 105.º: “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.
Trata-se de norma absolutamente idêntica ao n.º 3 do artigo 103.º, respeitante ao crime de fraude fiscal, sendo uma sua reprodução integral, ipsis verbis.

Susana Aires de Sousa, in Os Crimes fiscais, pág. 143/4, a propósito do n.º 5 do artigo 105.º, refere que podendo o valor das prestações não entregues à administração tributária funcionar como uma circunstância modificativa agravante do crime de abuso de confiança fiscal, a punição deste crime na forma continuada deve atender não ao valor total de todas as prestações que integram a continuação criminosa, mas ao valor de cada uma daquelas prestações.
Tem sido entendido que a consideração de crime continuado ou de um único crime não afasta o dispositivo do n.º 7, como de resto fez o Colectivo para afastar o crime qualificado.
A regra da relevância do valor de cada declaração consta de forma directa nos artigos 103.º, n.º 3 e 105.º, n.º 7, este reproduzindo aquele ipsis verbis, e por remissão o n.º 7 do artigo 105.º é aplicável aos crimes de fraude e abuso de confiança contra a segurança social - artigos 106.º, n.º 2 e 107.º, n.º 2.
Significa isto que prevalecerá a norma do n.º 7 do artigo 105.º e sendo assim ter-se-ão em conta os valores individuais de cada declaração.

Quanto ao abuso de confiança fiscal haverá assim que indagar quantas declarações com verbas não entregues contêm valores superiores a 7.500,00 euros.

De acordo com o facto provado n.º 10 as omissões de pagamento de IRS ocorreram no dia 20 de cada um dos meses de:
- Maio, Junho, Outubro, Novembro e Dezembro de 2000

E como resulta do facto provado n.º 12 as omissões de pagamentos de IVA verificaram-se nos meses de:
- Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Junho, Julho, Agosto e Outubro de 2000;
- Fevereiro, Março, Abril e Agosto de 2001;
- Agosto e Dezembro de 2002;
- Junho, Julho, Agosto, Outubro e Novembro de 2003.

No que respeita a IRS, como se alcança do ponto de facto provado n.º 10, nenhuma das declarações ultrapassa tal valor, sendo a mais elevada no montante de 273.710$00, que deveria ser entregue até 20-11-2000, mas mesmo considerando o somatório das prestações em falta, o montante global é de 1.176.350$00, o equivalente a € 5.867,61, valor inferior ao dito limite.

No que tange ao IVA, conforme ponto de facto provado n.º 12, o montante global de não entregas ascende a € 129.052,43.
Mas analisados os quadros que se seguem em tal local, verificamos que a ultrapassar tal valor limite temos apenas as sete declarações seguintes:
1 – Agosto de 2000 – 2.258.381$00 (11.264,76 €)
2 – Agosto de 2001 – 16.145,96 €
3 – Agosto de 2002 – 14.491,95 €
4 – Dezembro de 2002 – 9.486,78 €
5 – Junho de 2003 – 8.168,39 €
6 – Julho de 2003 – 8.816,35 €
7 – Agosto de 2003 – 13.613,03 €

Daqui decorre que com excepção destas sete faltas de entregas, qualquer delas a exceder o limite mínimo constitutivo de crime de € 7500, todas as restantes integram condutas que actualmente não são criminalizadas, extinguindo-se a responsabilidade criminal nessa parte.
No que toca às sete referidas declarações com valores superiores a tal limite subsiste o crime de abuso de confiança fiscal.
No recurso, o recorrente refere que seriam quatro as declarações nestas condições, não as tendo, porém, sequer, individualizado.

Face a uma conduta repetida no tempo, a uma pluralidade de crimes que se protrai ao longo de um determinado período, poderemos estar face a um concurso de crimes, ou a alguma forma de unificação dessas condutas, como um crime continuado, ou um único crime, ou crime sucessivo ou de trato sucessivo, ou perante infracções contínuas sucessivas.
A solução encontrada pela 1.ª instância e confirmada pela Relação foi a de considerar as várias condutas, num e noutro sector, como unidade de resolução criminosa.

O arguido renovou ao longo do tempo a resolução criminosa, sendo de atender que a prática das condutas agora consideradas se situa a partir de Janeiro de 2000, correspondendo a uma sucessão do que ocorreu justamente com as faltas de entregas destes impostos de 1995 até 1999, e que foram julgadas no processo 278/00.0TAPVZ referido nos factos provados, sendo o arguido então condenado por crime continuado.
Todavia, há que ter uma perspectiva global das condutas do recorrente, sendo que a análise da conduta do arguido não pode ser compartimentada sem atender ao que se passou com as faltas de pagamentos que se verificaram também no plano das contribuições para a segurança social, tendo em vista a consideração da actividade global do arguido e a situação de dificuldades da empresa, que não pode ser dissociada nesta análise ao longo de todo o período.
No presente processo as faltas por contribuições à segurança social verificam-se desde 1998, como se retira do ponto de facto provado n.º 16 do processo n.º 410/03.1TAPVZ, o que significa que houve uma zona de confluência desde 1998 a 2003, em que houve faltas de pagamentos de prestações e de contribuições.
Nesta visão, não só não será despiciendo verificar o que se passou também ao nível das falhas com as contribuições para a segurança social, como com esta perspectiva se ganhará maior amplitude de análise e compreensão.
Com efeito, após um primeiro período continuado de 28 meses, em que se sucederam as omissões de entregas, sem qualquer interrupção - de Janeiro de 1998 a Abril de 2000 – tendo sido entregues as contribuições devidas nos meses de Maio e Junho, volta a verificar-se omissão de entrega devida em Julho de 2000, e após novo interregno de dois meses, com pagamentos efectuados em Agosto e Setembro, voltam as omissões de pagamentos por quatro meses - de Outubro de 2000 a Janeiro de 2001 – e depois, passando incólumes à infracção os meses de Fevereiro, Março e Abril de 2001, nova omissão de entregas se verifica por três meses – Maio, Junho e Julho de 2001 – e, posteriormente, novas falhas se verificam apenas nos meses de Novembro de 2002 e Janeiro de 2003.

Flui do exposto que estamos face a uma reiteração de condutas, perante situações que se foram repetindo, com carácter de homogeneidade, violando o arguido o mesmo tipo de ilícito criminal, ao longo de um período temporal apreciável, se bem que com periódicas manifestações de fidelização ao direito, com intermitências de cumprimento, seguidas de novas sucumbências.

Não sendo, como consabido, a qualificação jurídica definitiva, face aos poderes cognitivos oficiosos do Supremo Tribunal, no caso não há razões para alterá-la, estando em causa apenas a averiguação de descriminalização, que se verifica parcialmente, não devendo a questão ser analisada à luz do novo “alinhamento” temporal dos factos subsistentes, a conferir maiores traços de descontinuidade na sucessão, que sempre daria uma imagem distorcida do panorama envolvente geral em que se inseriram os factos a ter em consideração, em toda a sua extensão, conexão e interligação, sendo que, tratando-se de recurso apenas por arguido interposto, há que ter em atenção a regra da proibição da reformatio in pejus.

Medida da pena

Subsistindo responsabilidade criminal em função das citadas sete declarações, há que aplicar a pena correspondente ao crime de abuso de confiança fiscal com esta nova configuração.
Na conclusão XII o recorrente defende dever ser aplicada pena de multa.
A penalidade cabível ao crime em equação é pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, conforme o artigo 105.º, n.º 1, do RGIT.
Sobre a matéria discreteou o acórdão recorrido:

«1.Ao recuperarmos o essencial dos factos provados, confrontamo-nos com uma conduta criminosa reiterada, perseguida ao longo de mais de cinco anos [entre Janeiro de 1998 e Junho de 2003], durante os quais o recorrente não entregou à administração fiscal prestações de IRS e de IVA no valor total de € 107.137,88 e € 129.052,43, respectivamente [“Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime” – artigo 13.º do RGIT].

2.Acresce que o recorrente tinha já sido condenado por idêntico crime – em pena de prisão substituída por pena de suspensão de execução da prisão condicionada ao pagamento ao Estado da quantia de imposto em dívida –, sendo certo que manteve a actividade mesmo depois de proferida essa condenação em 1ª instância [ocorrida em 06-12-2001].

3.Por outro lado, as exigências de prevenção geral neste domínio são prementes, face à reconhecida incidência da evasão fiscal no panorama nacional e às graves dificuldades que cria ao Estado no pleno cumprimento do objectivo social do sistema fiscal, ao mesmo tempo que cria desigualdades sociais gritantes entre os sujeitos e as empresas que cumprem e aqueles e aquelas que se furtam ao dever. Daí que, como se tem afirmado, nos crimes fiscais justificando-se muitas vezes que se prefira a pena de prisão à multa [acórdão desta Relação de 06-06-2007, (Desembargador Luís Gominho), processo 0647081 e Figueiredo Dias, “Breves Considerações Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico”, in Direito Penal Económico, CEJ (1985), p. 38 e ss.], até como forma de evitar que se crie a ideia de que este “crime compensa” se as consequências económicas que dele advierem, designadamente a aplicação de uma multa e as custas judiciais decorrentes de um processo, forem inferiores aos proveitos retirados.

4.Justifica-se, pois, em absoluto, a opção feita pela decisão recorrida de aplicar ao recorrente pena de prisão. Como se justifica a concreta pena fixada [12 meses de prisão por cada crime e, em cúmulo, 18 meses de prisão], atendendo aos restantes elementos disponíveis dos quais se salienta o destino dado às importâncias não entregues [pagamento de salários e aquisição de matérias-primas para assegurar a prossecução da laboração da sociedade no quadro de grandes dificuldades financeiras vividas por esta – itens 21. a 25. da matéria de facto provada do processo n.º 106/01 e nos itens 27. a 30. da matéria de facto provada do processo n.º 410/03] e respectiva condição pessoal e situação económica- supra pág. 19.

5.Além do mais, a intervenção correctiva do tribunal superior decorrente do controlo por via de recurso do processo de determinação da pena só deve ocorrer se se mostrarem violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada – o que, como acabámos de verificar, não é o caso».

Neste momento há que ter em conta que as considerações tecidas supra tiveram lugar num contexto diverso, sendo agora menor a carga de ilicitude, estando-se face a um crime com expressão factual reduzida, pelo que há que adaptar o discurso ao caso, o que não significa que o exposto, no essencial, não tenha relevância aqui e agora.

Efectivamente, há a reter que no processo n.º 278/00.0TAPVZ, por factos semelhantes, o arguido foi condenado em pena de 14 meses de prisão, suspensa por 5 anos, sob condição de pagamento ao Estado do imposto e acréscimos.
Como se sabe, e acontece muitas vezes, na vida empresarial e não só, a ausência de uma atempada intervenção dos serviços competentes, e no caso específico, a não intervenção de uma fiscalização tributária, pode ser criadora de um clima favorecente de repetição, sem consequências, funcionando como contramotivação ética, gerando algum sentimento de impunidade.
Ora se assim é, e como tal é perspectivada muitas vezes a repetição de condutas em ordem a integrá-la em continuação criminosa, acontece que no caso em apreciação, já tivera lugar uma anterior acção inspectiva, que conduziu àquele processo de 2000.
O recorrente manteve exactamente a mesma conduta, não só após a primeira inspecção, como já depois da condenação naquele processo, a qual teve lugar em 6-12-2001, donde se segue que apenas as faltas de entregas de Agosto de 2000 e Agosto de 2001 foram cometidas sem que o arguido soubesse do resultado do julgamento, o que significa que nas restantes, que tiveram lugar em 2002 e 2003, o arguido era já conhecedor do desfecho da acção, o que não o impediu de continuar na mesma senda de sucessão.
A realização da anterior inspecção e a posterior condenação deveriam ter sido sentidas pelo arguido, como tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta omissiva, e levando-o a agir de molde a que a sociedade arguida passasse a cumprir as suas obrigações fiscais. Em vez disso, o arguido continuou, revelando indiferença, ciente da antijuridicidade, projectando o desvalor da acção para patamar elevado.
No que respeita a opção pela espécie de pena e sua medida em concreto, remete-se para o que consta da decisão de primeira instância e da Relação, que abordaram os elementos e critérios a ter em conta, optando por solução que não demandaria qualquer intervenção correctiva, e que aqui e agora terá lugar, apenas em função da menor densidade de ilícito, atenta a compressão da infracção criminal por mais reduzida substanciação factual.
De acordo com o artigo 13.º do RGIT, na determinação da pena atende-se sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime, sendo que no caso presente o valor a ter em consideração, atenta a restrição resultante da descriminalização, refere-se apenas a sete declarações, cujo somatório atinge o montante global de 81 987,22 €.
Atendendo a todos os elementos já sopesados, sem esquecer o grau de culpa do arguido, agindo num quadro de substituição tributária (de acordo com o artigo 20.º, n.º 1, da LGT, a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte), o montante global alcançado de € 81 987,22, atendendo a que cinco das declarações apresentadas são-no já após o arguido ter recebido uma solene advertência com a condenação que lhe foi imposta no citado processo, actuando em sucessão, impondo-se a necessidade de consciencialização dos seus deveres cívicos, de forma a prevenir a reincidência, e as fortes necessidades de prevenção geral, considera-se como adequada a pena de nove meses de prisão.
No que respeita a consideração de medida de substituição, não há da mesma forma razão para decidir de modo diverso das instâncias e assim suspender-se-á a execução da pena.
Estabelece o artigo 14.º do RGIT que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
O Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por no regime reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos, neste sentido podendo ver-se os acórdãos n.º 256/03, de 21-05-2003, processo n.º 647/02, in DR, II Série, de 02-07-2003; n.º 335/03, de 07-07-2003, processo n.º 282/03; n.º 54/04, de 20-01-2004, processo n.º 640/03-2ª; n.º 500/05-3ª, de 04-10-2005; n.º 29/07, de 17-01-2007, processo n.º 677/05-2ª, com um voto de vencido, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 67.º, págs. 147 a 168; n.º 61/07, de 30-01-2007, processo n.º 642/06-3ª; DR, II Série, de 20-03-2007 e Acórdãos, volume 67.º, págs. 273 a 302.
Entende-se que nestes casos não é fazer corresponder o período de suspensão ao da medida da pena substituída, como o impõe o actual artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, por se estar face a um caso especial, em que a condição é imposta, quando nos termos gerais se trata de uma faculdade, sendo que a aplicação do novo regime, no concreto, redundaria em agravamento da situação do arguido – neste sentido, os acórdãos deste Supremo de 09-01-2008, processo n.º 4632/07-3ª (com a manutenção da pena de prisão de 18 meses, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, sob condição de, no prazo de 5 anos, comprovar nos autos o pagamento do devido e acréscimos legais); de 10-07-2008, processo n.º 103/06-5ª, em que se considera que o tempo de duração da medida não pode deixar de ter em consideração o valor das importâncias a pagar ao Estado. Mais se pondera em tal acórdão: “Tendo o legislador português, ao criminalizar as infracções fiscais, optado por uma concepção de carácter patrimonialista do bem jurídico tutelado, centrada na obtenção das receitas tributárias, procurando a administração fiscal a outrance obter o pagamento dos impostos em dívida, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena por infracções fiscais se afaste, neste ponto, do novo regime geral do Código Penal, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que, na realidade, permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta, existindo, nesta matéria, uma nova especialidade no RGIT”.
E no mesmo sentido, do mesmo relator, o acórdão de 18-12-2008, processo n.º 20/07 - 5ª .
No caso presente, em obediência a um critério de razoabilidade por que tem de pautar-se esta forma de reparação penal forçada, optar-se-á pela solução de não correspondência de prazos.
Conforme o n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, os deveres impostos na suspensão não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
Este n.º 2 corresponde a uma inovação, que foi introduzida pela reforma de 1995 - cfr. artigo 3.º, 15), alínea e), da Lei de autorização legislativa n.º 35/94, de 15-09, ao abrigo da qual surgiu o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03 (3.ª alteração ao Código Penal).
Consagra-se no n.º 2 o princípio da razoabilidade, a que tem de obedecer a imposição dos deveres.
Comentando-o, diz Maia Gonçalves “O texto tem um conteúdo algo vago, e nem poderia ser de outro modo, dada a amplitude dos deveres que podem ser impostos. Trata-se de exprimir um princípio de orientação para o tribunal, de modo a habilitá-lo a delimitar o domínio em que há-de mover-se na sua faculdade de determinação dos deveres a cumprir pelo condenado em vista da reparação do mal causado pelo crime”.
Ao impor a condição de pagamento ou outra, o juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão.
Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres.
Como pondera Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III volume, pág. 208, prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão.
Por estas razões, suspender-se-á a execução da pena de prisão imposta pelo período de três anos, sob condição de o arguido recorrente pagar o imposto em falta no referido montante de 81 987,22 € e acréscimos legais.

ABUSO de CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL


A nova redacção do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT dada pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, estabelecendo o valor superior a € 7 500 como limite mínimo constitutivo de crime de abuso de confiança fiscal é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, ou tal alteração não se aplica a este crime, não tendo aplicação tal limite?
A questão tem suscitado controvérsia e provocado a tomada de soluções divergentes nos Tribunais das Relações.

No sentido negativo, de que a nova redacção do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, não tem aplicação no domínio do crime de abuso de confiança contra a segurança social, sustentando a tese da manutenção da criminalização das condutas, mesmo que a contribuição retida seja de valor igual ou inferior a € 7500, podem ver-se, de entre outros, os seguintes acórdãos:

Tribunal da Relação de Lisboa
Acórdão de 20 de Julho de 2009, processo n.º 7867/08.

Tribunal da Relação de Coimbra
Acórdãos de 4 de Março de 2009, processo n.º 257/03.5TAVIS.C1; de 22 de Abril de 2009, processo n.º 33/06, in Colectânea de Jurisprudência 2009, tomo 2, pág. 48; de 17 de Junho de 2009, processo n.º 37/05.3TASEI.C1; de 8 de Julho de 2009, processo n.º 148/98.0IDCBR.C2 - 4ª, processo n.º 33/03.5TAFAG-B.C1 e processo n.º 386/07.6TAMGL.C1, este publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano 2009, tomo 3, pág. 49.

Tribunal da Relação do Porto
Acórdãos de 25 de Março de 2009, processo n.º 1131/01.5TASTS-1ª; de 20 de Abril de 2009, processo n.º 8419/02.6TDPRT; de 27 de Maio de 2009, processos n.º 1760/06.0TDPRT e 946/07.5TABGC.P1; de 03 de Junho de 2009, processo n.º 07/5084-1ª; de 08 de Julho de 2009, processo n.º 1123/05.5TAMTS.P1-4.ª e de 15 de Julho de 2009, processo n.º 0846834.

Tribunal da Relação de Guimarães
Acórdão de 27 de Abril de 2009, processo n.º 1304/00.8TABRG.G1-2ª; decisão sumária no processo n.º 47/04.8TAPTB.G1; acórdãos de 09-07-2009, processo n.º 2438/07.3TAGMR.G1 e n.º 187/08.4TABRG.G1; acórdão de 12-10-2009, processo n.º 8991/06.1TDLSB.

Supremo Tribunal de Justiça
Acórdão de 17-12-2009, processo n.º 331/01.2TAVCD.S1, da 3.ª Secção, com um voto de vencido, confirmando o supra citado acórdão da Relação do Porto, de 03 de Junho de 2009, processo n.º 5084/07-1ª.


No sentido de que a nova redacção dada ao artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, que estabeleceu o limite de € 7 500 para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, por força dos n.º s 1 e 2 do artigo 107.º do mesmo RGIT, defendendo a descriminalização deste, podem ver-se os seguintes acórdãos:

Tribunal da Relação de Lisboa

Acórdãos de 25 de Fevereiro de 2009, processo n.º 102/04TACLD.L1 – 3.ª; de 15 de Julho de 2009, processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1- 3.ª ; de 6 de Outubro de 2009, processo n.º 2109/00.1TDLSB.L1-5.ª; de 13 de Outubro de 2009, processo n.º 12323/03.2TDLSB-5.ª, de 28-10-2009, processo n.º 77/08.0TDLSB.L1-3.ª e de 17 de Novembro de 2009, processo n.º 583/02.0TALRS-C.L1.

Tribunal da Relação de Guimarães

Acórdão de 23 de Março de 2009, processo n.º 2378/08 - 2ª, in Colectânea de Jurisprudência 2009, tomo 3, pág. 316; acórdão de 21 de Setembro de 2009, processo n.º 269/04.1TAVLN.G1.

Tribunal da Relação do Porto

Acórdão de 27 de Maio de 2009, processo n.º 343/05.7TAVNF.P1.

E o estudo publicado no Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, VI Série, n.º 1, Junho 2009, págs. 147 a 162, elaborado pelos Juízes Frederico Soares Vieira e Tiago Caiado Milheiro, que teve o mérito de desbravar caminhos quando ainda não era conhecida jurisprudência dos Tribunais da Relação – cfr. nota 9, a págs. 155.

Colocando-se uma nova vexata quaestio, e face às divergências expressas em vários acórdãos das Relações, foram já distribuídos neste Supremo Tribunal nove processos para uniformização de jurisprudência, a saber:
1. 47/04.8TAPTB.G1-A.S1 – 5.ª Secção
2. 2438/07.3TAGMR.G1-A.S1-5.ª Secção - (Acórdão fundamento: acórdão da Relação de Guimarães, de 23 de Março de 2009, processo n.º 2378/08 - 2ª)
3. 148/98.0IDCBR-A.S1-5.ª Secção
4. 33/03.5TAFAG-B.C1-A.S1-5.ª Secção
5. 6463/07.6TDLSB.L1-A.S1-3.ª Secção (Acórdão fundamento: acórdão da Relação de Coimbra de 4 de Março de 2009, processo n.º 257/03.5TAVIS.C1).
6. 343/05.7TAVNF.P1-A.S1-3.ª Secção - (Acórdão fundamento: acórdão da Relação de Guimarães, de 27 de Abril de 2009, processo n.º 1304/00.8TABRG.G1-2ª)
7. 1123/05.5TAMTS.P1-A.S1-5.ª Secção (Acórdão fundamento: acórdão da Relação do Porto, de 27 de Maio de 2009, processo n.º 343/05.7TAVNF.P1).
8. 2109/00.1TDLSB.L1-A.S1-3.ª Secção
9. 583/02.0TARLS-C.L1.S1-3.ª Secção
10. 269/04.1TAVLN.G1-A.S1-5.ª Secção (Acórdão fundamento: acórdão da Relação de Guimarães, de 9 de Julho de 2009, processo n.º 187/08.4TABRG.G1).
11. 8991/06.1TDLSB.G1-A.S1-5.ª Secção (Acórdão fundamento: acórdão da Relação de Lisboa, de 25 de Fevereiro de 2009, processo n.º 102/04TACLD.L1 - 3ª).
12. 77/08.0TDLSB.L1-A.S1-3.ª Secção
13. 4141/05.0TDLSB.G1-A.S1- 3.ª Secção
14. 6965/07.4TDLSB.L1-A.S1- 3.ª Secção

O primeiro dos recursos referidos, processo n.º 47/04.8TAPTB.G1-A.S1 - 5ª, por acórdão de 18-11-2009, foi rejeitado por inadmissibilidade, por a decisão recorrida não ser um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, mas uma decisão sumária.
No processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1-A.S1-3.ª Secção, por acórdão de 27-01-2009, foi julgada verificada oposição de julgados quanto aos acórdãos proferidos no âmbito dos recursos em causa, ordenando-se o prosseguimento para fixação de jurisprudência.


A Lei n.º 64-A/2008 - Lei do Orçamento do Estado para 2009 - publicada no Diário da República, I Série, Suplemento, de 31-12-2008 (entretanto alterada pela Lei n.º 10/2009, de 10-03, in DR - I Série, n.º 48, de 10-03-2009, e pela Lei n.º 118/2009, de 30-12, in DR - I Série, n.º 251, de 30-12-2009, mas em qualquer dos casos, sem qualquer interferência na matéria em causa), no Capítulo XI, introduziu novas alterações ao RGIT.
Pelo artigo 113.º foi dada nova redacção aos artigos 18.º, 25.º, 98.º, 105.º, 109.º e 114.º do RGIT, e no que respeita especificamente ao artigo 105.º, foi alterado o n.º 1, que passou a dispor:
1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7 500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Na anterior redacção dizia o preceito: Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
A inovação consistiu na introdução das palavras «de valor superior a € 7 500».
O artigo 114.º aditou o artigo 97.º-A (contrabando de mercadorias susceptíveis de infligir a pena de morte ou tortura) e o artigo 115.º revogou o n.º 6 do artigo 105.º do RGIT.

Com esta alteração o artigo 107.º ficou intocado, e se é verdade que o legislador não inscreveu o elemento valor no n.º 1, verdade é também que no n.º 2 manteve a remissão para n.º 6, que foi revogado.

Estabelece o artigo 107º, sob a epígrafe «Abuso de confiança contra a segurança social»:
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º s 1 e 5 do artigo 105º.
2 – É aplicável o disposto nos n.º s 4, 6 e 7 do artigo 105º.
A partir da alteração de 2008, no crime de abuso de confiança fiscal, por força do limite de valor agora inserto no n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, deixaram de ser punidas as condutas omissivas em que o valor da prestação tributária – o de cada declaração – a apresentar à administração tributária não exceda os 7 500 euros.
Poderá defender-se que o legislador minus dixit quam voluit, interpretando-se extensivamente a remissão da parte final do n.º 1 do artigo 107.º para todo o n.º 1 do artigo 105.º, operando uma remissão global e não apenas circunscrita à pena, conduzindo à descriminalização do abuso de confiança também na área da segurança social?
Vejamos os argumentos aduzidos pela jurisprudência que defende a não descriminalização do crime em causa, que muito sinteticamente, se podem reconduzir às seguintes linhas:
1 - A remissão do n.º 1 do artigo 107.º para o artigo 105.º é feita unicamente para as penas.
2 - A autonomia dos tipos legais e da respectiva sistematização.
3 - Consideração da precariedade do sistema de segurança social como impedimento - absoluto - a qualquer ideia de descriminalização.
4 - O vazio de impunidade a que conduziria a solução oposta.
Concretizando um pouco mais.
1 - No artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, foi introduzido um novo elemento objectivo do tipo do crime de abuso de confiança fiscal, ao estabelecer um limite mínimo típico para o valor da prestação deduzida e não entregue.
A remissão do n.º 1 do artigo 107.º para os n.º s 1 e 5 do artigo 105.º circunscreve-se às penas e não também relativamente à conduta, já que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constam integralmente do n.º 1 daquele artigo 107.º, o qual contém a definição completa da estrutura normativa do tipo, e que assim mantém a sua tipificação autónoma e integral - o n.º 1 remete apenas para as penas previstas nos n.º 1 e n.º 5 do artigo 105.º e não para o valor agora mencionado no preceito – a remissão é apenas parcial, feita exclusivamente para as penas, não se tratando de uma remissão em bloco.
O que o artigo 107.º recebe do artigo 105.º é apenas a moldura penal abstracta neste prevista, e não também, qualquer elemento constitutivo do tipo do crime de abuso de confiança fiscal.
2 - A autonomia dos tipos, por serem distintos os bens jurídicos tutelados por cada uma das incriminações; os valores tutelados, embora próximos, não se confundem.
A autonomia também se reflecte ao nível da sistematização, por os dois crimes encontrarem previsão em diferentes capítulos do RGIT, que lhes atribui um tratamento diferente, tendo em conta a diferente natureza das prestações.
Como exemplo de autonomia, é indicado o facto de o limite mínimo a partir do qual a conduta é punível no crime de fraude fiscal e no crime de fraude contra a segurança social não coincidirem, sendo no primeiro caso de € 15 000 - artigo 103.º, n.º 2 - e de € 7 500 para o segundo - artigo 106º, n.º 1.
Bem como a previsão dum regime sancionatório especial quanto aos ilícitos contra - ordenacionais no plano fiscal apenas, pois configuram-se como contra-ordenações fiscais os casos em que a prestação tem valor igual ou inferior a € 7 500, não existindo regime sancionatório equivalente no âmbito das infracções contra a segurança social.
3 – Ponderação da actualidade e premência dos problemas de sustentabilidade da segurança social portuguesa, as crescentes dificuldades de equilíbrio, o estado de pré -falência do sistema, como factor de afastamento do espírito do legislador em pretender proceder a qualquer alteração do artigo 107.º, n.º 1 e do tipo nele previsto, em assumir uma restrição de punibilidade também nesta área, com o que daria um sinal de sentido negativo à sociedade, que redundaria num agravamento daqueles problemas.
4 – Um quarto argumento que tende a contrariar a descriminalização aponta no sentido de que tal entendimento conduziria a uma ausência de qualquer punição legal, pois se a conduta deixasse de ser crime, não podendo ser catalogada como contra-ordenação, estava criado um espaço de absoluta impunidade.

Na apreciação da questão haverá que ter presentes dois princípios plasmados na Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12 e republicado em anexo à Lei n.º 15/2001, a saber:
Artigo 5.º, n.º 2 – A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material.
Artigo 11.º, n.º 1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
De acordo com o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação da lei não se deve cingir à sua letra mas reconstituir-se a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Como nota saliente há que destacar o acentuado paralelismo existente entre as infracções fiscais e contra a segurança social, facilmente diagnosticável no quadro de uma genética proximidade normativa, que sempre se verificou, não sendo despiciendo na análise a efectuar ter em conta a perspectiva do elemento histórico.

Vejamos a evolução legislativa no que concerne à consagração e autonomização dos crimes fiscais e contra a segurança social, no plano do chamado direito penal secundário, por contraposição ou à margem do direito penal clássico, procurando corresponder a solicitações de neocriminalização já antes presentes, mas exponenciadas com a inserção do País no novo mundo económico europeu, cujas portas 1986 abriu.

A Lei de autorização n.º 89/89, de 11 de Setembro, que veio a dar origem ao Decreto-Lei n.º 20-A/90, permitiu ao Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o Código Penal, podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria.

Com a publicação do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, foi sistematizada num só diploma a legislação relativa aos crimes e contra-ordenações fiscais, como corolário da profunda reforma do sistema jurídico - tributário português, com a entrada em vigor dos novos regimes jurídicos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), da Contribuição Autárquica (CA) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais, constantes dos Decretos - Leis n.º s 442-A/88, 442-B/88 e 442-C/88, todos de 30-11 e n.º 215/89, de 01-07, num quadro emergente da então recente entrada do País na Comunidade Económica Europeia em 1986, sendo por isso um diploma datado.
Trata-se de um “código tributário”, “específico”, contendo um direito penal especial, distanciando-se do direito penal comum ou “clássico”, criando - na senda da segmentação e da especialização que actualmente se impõem, dos novos direitos penais emergentes, a par do chamado direito penal económico (a partir do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, no preâmbulo auto denominada “legislação penal secundária”, muito embora aqui com o relevante contributo do antecedente Decreto-Lei n.º 41 204, de 24-07-1957, mas com a novidade, fazendo eco de recomendações do Conselho da Europa, da consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas colectivas e sociedades), ou direito penal informático, ou do ambiente, ou do consumo -, uma “região normativa especial”, situando-se na esteira de um movimento de neocriminalização do chamado direito penal tributário iniciado com o Decreto-Lei n.º 619/76, de 27 de Julho (diploma que visou combater os fenómenos da evasão e da fraude fiscal com a introdução de pena de prisão e afastamento da suspensão da execução da pena, prevendo como crime no artigo 1.º, n.º 1, alínea f), a não entrega total ou parcial nos cofres do estado do imposto descontado ou recebido nos casos de autoliquidação ou retenção na fonte; tal diploma veio a ser revogado pelo artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 20-A/90).

A Parte II do RJIFNA, sob a epígrafe - Das Infracções fiscais em especial – continha um Capítulo I – Dos crimes fiscais – abrangendo os ilícitos criminais de:
Artigo 23.º - Fraude fiscal
Artigo 24.º - Abuso de confiança fiscal
Artigo 25.º - Frustração de créditos fiscais
E o Capítulo II dedicado às contra - ordenações fiscais.

O Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na sequência da lei n.º 61/93, de 20-08, alterou a redacção de vários preceitos do RJIFNA, i. a., dos citados artigos 23.º, 24.º (aqui introduzindo a exigência de apropriação na factualidade típica da incriminação, aproximando-se do correspondente crime de abuso de confiança comum) e 25.º, e introduzindo a previsão de pena de prisão a título principal até 5 anos.

O Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho, iniciou a confluência dos crimes contra a segurança social com os crimes fiscais e integrou uns e outros num único diploma.
De acordo com o artigo 1.º do diploma, a Parte II do RJIFNA passou a ter a epígrafe “Das infracções fiscais em especial e das infracções contra a segurança social”.
O artigo 2.º aditou na Parte II, a par do pré - existente Capítulo I, dedicado aos “Crimes fiscais”, um Capítulo II, com a epígrafe “Dos crimes contra a segurança social”, integrado por quatro novos tipos de ilícitos criminais, a saber:
- Fraude à segurança social - artigo 27.º - A;
- Abuso de confiança em relação à segurança social – artigo 27.º - B;
- Frustração de créditos da segurança social - artigo 27.º - C;
- Violação de sigilo sobre a situação contributiva - artigo 27.º - D.

O diploma de 1995 alargou o campo de aplicação do RGIFNA às infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes, definindo e penalizando os crimes contra a segurança social e, no que ora importa, desenhando uma figura autónoma de abuso de confiança em relação à segurança social.
Estabelecia então o artigo 27.º - B: As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24.º.
(Na redacção do artigo 24.º introduzida pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24-11, as penas previstas eram as seguintes: no n.º 1- «prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido»; no n.º 4 «Se no caso previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250000$00, o agente será punido com multa até 120 dias»; e no n.º 5 «Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$00, o crime será punido com prisão de um até cinco anos»).

Até à recente criminalização dos comportamentos relativos (contra) à segurança social, com a actual configuração, um longo caminho foi percorrido.

Nos idos de 1962, a Lei n.º 2115, de 18 de Junho (que viria a ser revogada pela Lei n.º 28/84, de 14-08), na Base XX, previa constituir “a falta de cumprimento das obrigações impostas pelos estatutos das caixas sindicais de previdência às entidades patronais”, uma transgressão punível com multa de 100$ a 3.000$, ressalvado o caso de previsão de sanção mais grave.
Tal Lei foi regulamentada pelo Decreto n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, que no seu artigo 169.º estabelecia: “A falta de cumprimento das obrigações impostas às entidades patronais contribuintes por este regulamento e pelos estatutos das caixas sindicais de previdência, no relativo à entrega de folhas de ordenados ou salários e dos boletins de identificação dos beneficiários, bem como no pagamento de contribuições, constitui transgressão punível com multa de 100$00 a 3.000$00”.
Posteriormente, a previsão da conduta do não pagamento pelas entidades patronais da parte da contribuição que incidia sobre o trabalhador, passou a fazer-se de forma expressa, em sede criminal, por reporte ao crime comum de abuso de confiança, então previsto e punido pelo artigo 453.º do Código Penal de 1852/86 e posteriormente pelo artigo 300.º do Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23-09 (o artigo 205.º introduzido com a 3.ª alteração operada pelo Decreto - Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 01-10-1995, não teve campo de aplicação, pois o referido Decreto-Lei n.º 140/95 entrou em vigor em 19 de Junho de 1995).
Essa criminalização surge com o Decreto-Lei n.º 511/76, de 3 de Julho, que no seu artigo 5.º estabelecia que «As entidades patronais que não efectuem o pagamento das contribuições dos beneficiários do regime geral de previdência descontadas nos respectivos salários estarão sujeitas às sanções previstas no artigo 453.º do Código Penal, se houver abuso de confiança».
E posteriormente, o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 09 de Maio, que aprovou o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência, sob a epígrafe “Responsabilidade das entidades patronais” passou a estatuir que «As entidades patronais são responsáveis perante as caixas de previdência pelas contribuições devidas pelos trabalhadores em relação ao tempo em que estiverem ao serviço, para além da responsabilidade criminal em que incorram quando, por falta de pagamento de contribuições descontadas nos salários, cometam o crime previsto e punido no artigo 453.º do Código Penal».
Por seu turno, a Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), então em vigor - Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto - no artigo 46º, sob a epígrafe “Garantia do pagamento das contribuições” estabelecia no n.º 3: «O desvio pelas entidades empregadoras das importâncias deduzidas nas retribuições a título de contribuições para o regime geral é punido nos termos da legislação geral, como abuso de confiança».
Não obstante esta norma, havia quem defendesse que a criminalização do abuso de confiança contra a segurança social estava já prevista no RJIFNA originário, estando abrangida pelo n.º 3 do artigo 24.º, abrangendo a prestação deduzida com natureza parafiscal, que pudesse ser entregue autonomamente.
Assim, Susana Aires de Sousa, in Os crimes fiscais, págs. 124/5, quando refere “No âmbito do RJIFNA, este tipo de prestações, previsto no n.º 3 do artigo 24.º, incluía as prestações devidas à Segurança Social. Foi assim até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 394/93 que introduziu o artigo 27º B destinado a tutelar as situações em que a prestação não entregue fosse devida à Segurança Social”. (A referência ao Decreto-Lei n.º 394/93 deve-se certamente a lapso, uma vez tal diploma deixou intocado o n.º 3 citado, sendo o artigo 27.º-B introduzido apenas em 1995).
Para Carlos Rodrigues de Almeida, in Os crimes contra a Segurança Social previstos no Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, Revista do Ministério Público, ano 18.º, Out./Dez. 1997, n.º 72, pág. 96, o RJIFNA, na sua redacção originária, veio incluir no abuso de confiança fiscal a não entrega de prestações de natureza parafiscal deduzidas nos termos da lei, considerando-as, para este efeito, como prestações tributárias, exigindo que tais prestações pudessem ser entregues autonomamente, situação que se manteve até 1995.
Assinala-se ainda no mesmo trabalho, a págs. 98, que o Decreto-Lei de 1995 utilizou como modelo a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24-11, aos artigos 23.º a 27.º do RJIFNA, referentes aos crimes fiscais.
E a págs. 113, em síntese, defendia a desnecessidade da incriminação do abuso de confiança em relação à segurança social, por ser suficiente e, quiçá, até mais eficaz, a utilização conjunta dos meios executivos de natureza cível e do direito de mera ordenação social.
Augusto Silva Dias, em trabalho apresentado em Março de 1997, “Crimes e Contra-ordenações Fiscais”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Volume II, Problemas Especiais, Coimbra Editora, 1999, pág. 468, criticando a técnica legislativa de 1995, dizia que “Dado que se trata de uma extensão dos crimes fiscais a um domínio parafiscal, bastava criar um número em cada um dos preceitos analisados adaptando à protecção do património da Segurança Social o regime punitivo definido para a protecção do património fiscal”.

A razão de ser da inovação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 140/95 colhe-se do diploma de autorização respectivo, a Lei de autorização legislativa n.º 39-B/94, in Diário da República, Série I-A, 2.º Suplemento, n.º 28, de 27-12-1994 (Orçamento do Estado para 1995).
Estabelecia o artigo 58.º com a epígrafe «Infracção às normas reguladoras do sistema de segurança social»:
1 – Fica o Governo autorizado a rever o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, de forma a nele incluir novos tipos de ilícitos penais relativos às infracções às normas reguladoras dos regimes de segurança social.
2 – Pela autorização legislativa referida no número anterior pode o Governo alargar a tipificação dos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal, frustração de créditos fiscais e de violação de segredo fiscal, previstos nos artigos 23º, 24º 25º e 27º do RJIFNA, com o sentido e extensão a incluir nas condutas ilegítimas neles tipificadas as que visem:
a) A não liquidação, entrega ou pagamento das contribuições à segurança social;
b) A apropriação, total ou parcial, das contribuições à segurança social por quem estava legalmente obrigado a proceder à sua dedução e entrega à segurança social;
c) Frustrar, total ou parcialmente, os créditos á segurança social;
d)…………………………………………………………………………………………..
3 – Nos termos da presente autorização legislativa fica o governo autorizado a definir para os crimes tipificados no número anterior as penas vigentes para os correspondentes crimes fiscais.
4 - …………………………………………………………………………………………
5 - …………………………………………………………………………………………
(realces nossos).

Com o alargamento da tipificação a fazer-se mediante a inclusão nas condutas ilegítimas já tipificadas de outras condutas a criminalizar, ficou desde logo claro que os novos tipos legais assentavam a sua estrutura típica e o regime de punição nos antigos correspondentes crimes fiscais, correspondendo a um decalque daqueles, assumindo um carácter algo mimético.
O que não se ficava por referência apenas para as penas cominadas.

A ratio legis da inovação, segundo o exórdio do Decreto-Lei n.º 140/95, foi apresentada nestes termos:
«O quadro sancionatório dos regimes de segurança social tem-se mostrado incapaz de prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante o sistema de segurança social.
São sobretudo gravosas as condutas ilícitas que não proporcionam ao sistema o conhecimento de situações determinantes das respectivas contribuições e, muito especialmente, aquelas em que a entidade empregadora se apropria dos valores deduzidos das remunerações dos trabalhadores para efeitos da respectiva protecção.
Dada a natureza dos interesses humanos e sociais que estão em causa, considera-se indispensável a tomada de medidas que combatam eficazmente tal situação e conduzam à consciencialização dos cidadãos quanto a tais valores sociais, bem como ao afastamento da convicção de uma certa impunidade pelas infracções no âmbito dos regimes de segurança social».

As posteriores Leis de Bases de Segurança Social (LBSS) sempre distinguiram entre os ilícitos criminais e as contra-ordenações, como se vê do artigo 76.º da Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto, que dispunha:
«A falta de cumprimento das obrigações legais relativas, designadamente, à inscrição no sistema, ao enquadramento nos regimes e ao cumprimento das obrigações contributivas, bem como a adopção de procedimentos, por acção ou omissão, tendentes à obtenção indevida de prestações, consubstanciam contra-ordenações ou ilícitos criminais, nos termos definidos por lei».
Idêntica formulação foi mantida nas subsequentes LBSS, que revogaram as anteriores: assim com o artigo 81.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro, e artigo 80.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro.

A Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 15/2001, in DR - I Série - A, n.º 180, de 04-08-2001) instituiu um novo regime - Regime Geral das infracções Tributárias (RGIT) - unificando todas as infracções tributárias, incluindo as fiscais aduaneiras.

Tal Lei revogou - artigo 2.º, alíneas a) e b) - com excepção do artigo 58º, o anterior Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01, alterado pelo Decreto - Lei n.º 394/93, de 24-11 e Decreto-Lei n.º 140/95, de 14-06, bem como o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (RJIFA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25-10.


Como vimos, o RJIFNA, em 1990, unificou os crimes fiscais, em 1995 enxertou os crimes contra a segurança social e agora o RGIT integrou os crimes aduaneiros que se continham no regime especial avulso do Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25-10, que substituíra o Decreto-Lei n.º 424/86, de 27-12, o qual sucedera ao Decreto-Lei n.º 187/83, de 13-05 e ao vetusto Contencioso Aduaneiro, constante do Decreto-Lei n.º 31664, de 22-11-1941.
Tal diploma sofreu várias alterações ao longo dos anos, com a redacção sucessivamente revista pela Lei n.º 109-B/2001, de 27-12-2001 (artigo 51.º), Decreto-Lei n.º 229/2002, de 31-10 (artigo 3.º), Lei n.º 107-B/2003, de 31-12 (artigo 45.º), Lei n.º 55-B/2004, de 30-12 (artigo 42.º), Lei n.º 39-A/2005, de 29-07 (artigo 19.º), Lei n.º 60-A/2005, de 30-12 (artigo 60.º), Lei n.º 53-A/2006, de 29-12 (artigos 95.º e 96.º), Lei n.º 22-A/2007, de 29-06 (artigos 8.º e 9.º), Decreto-lei n.º 307-A/2007, de 31-08 (artigo 3.º), Lei n.º 67-A/2007, DR I-A, Suplemento, de 31-12-2007 (artigos 86.º, 87.º e 88.º) e Lei n.º 64-A/2008, in DR I-A, Suplemento, de 31-12-2008 (artigos 113.º, 114.º e 115.º).

A Lei n.º 15/2001 aprovou:

- o Regime Geral das Infracções Tributárias, constante de Anexo ao diploma (Capítulo I);

- a reformulação da organização judiciária tributária, com alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e da Lei das Finanças Locais (Capítulo II); e,

- o reforço das garantias do contribuinte e a simplificação processual, com alterações ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, à Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12 e Código do IRC (Capítulo III).

Estabelece o artigo 1.º da Lei n.º 15/2001:
1 – É aprovado o Regime Geral das Infracções Tributárias anexo à presente lei e que dela faz parte integrante.
2 – O regime das contra – ordenações contra a segurança social consta de legislação especial.
Estabelece por seu turno o artigo 1.º do Regime Geral publicado em anexo com a epígrafe «Âmbito de aplicação»
1 – O Regime Geral das Infracções Tributárias aplica-se às infracções das normas reguladoras:
a) Das prestações tributárias;
b) Dos regimes tributários, aduaneiros e fiscais, independentemente de regulamentarem ou não prestações tributárias;
c) Dos benefícios fiscais e franquias aduaneiras;
d) Das contribuições e prestações relativas ao sistema de solidariedade e segurança social, sem prejuízo do regime das contra-ordenações que consta de legislação especial.
2 -

Segundo a sistemática do Regime Geral, na parte que ora nos interessa, há que atender à Parte III, com a epígrafe - Das infracções tributárias em especial.
Aí incluem-se no Título I - Crimes tributários - as seguintes categorias:
Capítulo I - Crimes tributários comuns (artigos 87º a 91º)
Capítulo II - Crimes aduaneiros (artigos 92º a 102º)
Capítulo III - Crimes fiscais (artigos 103.º a 105.º)
Capítulo IV – Crimes contra a segurança social (artigos 106.º e 107.º).

No Título II dedicado às “Contra-ordenações tributárias”, incluem-se o Capítulo I - Contra-ordenações aduaneiras (artigos 108.º a 112.º) – e Capítulo II - Contra-ordenações fiscais (artigos 113.º a 127.º).

Com interesse para a questão que nos ocupa, passa a transcrever-se parte do artigo 11.º, que estabelece:
Para efeitos do disposto na lei consideram-se:
a) Prestação tributária: os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social
b) Serviço tributário: serviço da administração tributária ou da administração da segurança social com competência territorial para proceder à instauração dos processos tributários;
c) Órgãos da administração tributária: todas as entidades e agentes da administração a quem caiba levar a cabo quaisquer actos relativos à prestação tributária, tal como definida na alínea a);
d) Valor elevado e valor consideravelmente elevado: os definidos nas alíneas a) e b) do artigo 202.º do Código Penal

As alterações mais significativas no que tange aos preceitos ora em causa são as decorrentes de:
Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, que alterou valores: do n.º 2 do artigo 103.º (de 7 500 para 15 000 euros) e do n.º 6 do artigo 105.º (de € 1 000 para 2 000);
Lei 53-A/2006, de 29-12, que alterou o n.º 4 do artigo 105.º, criando uma nova condição de punibilidade;
Lei n.º 64-A/2008, de 30-12, que introduziu no n.º 1 do artigo 105.º o elemento valor.

Vejamos o que diferencia os dois crimes de abuso de confiança previstos no RGIT – artigos 105.º e 107.º.

No crime de abuso de confiança fiscal, objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é a prestação tributária, conceito referido no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) e definido no artigo 11.º, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (Anexo), englobando os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária, abrangendo o artigo 105.º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime – para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei, prevista no n.º 1, o objecto é “alargado” pela definição extensiva do n.º 2 e do n.º 3 (aqui abrangendo prestações com natureza parafiscal) do citado preceito legal.
No crime de abuso de confiança contra a segurança social objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é o montante das contribuições devidas ao sistema de solidariedade e segurança social - artigo 1.º, n.º 1, alínea d) e definidas no artigo 11º, n.º 1, alínea a) in fine, do mesmo RGIT, como tributos parafiscais cuja cobrança caiba à administração da segurança social, abrangendo, nos termos do n.º 1 do artigo 107.º, o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros de órgãos sociais, deduzido pela entidade empregadora, do valor das remunerações devidas a uns e outros.

Em ambas as infracções estão em causa créditos de impostos ou de tributos fiscais ou parafiscais devidos ao Estado, estabelecendo-se uma relação entre o Estado -Administração Fiscal ou Estado - Administração da Segurança Social, enquanto sujeito activo da relação jurídica tributária, titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, titular do crédito do imposto ou do direito de crédito de quotizações/contribuições; por outro lado, o sujeito passivo que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável – cfr. artigos 18.º (sujeitos da relação jurídica tributária ), 20.º (substituição tributária), 28.º (responsabilidade em caso de substituição tributária) e 34.º (retenção na fonte) da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001.

Pressupõem ambos os crimes uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado - Administração Fiscal, titular do crédito do imposto e o Estado - Administração da Segurança Social, titular do direito de crédito de quotizações; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.

Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Almedina, 2007, pág. 187, salienta que as especificidades que caracterizam o crime de abuso de confiança contra a segurança social em relação ao crime de abuso de confiança fiscal prendem-se, por um lado, com a sua natureza, pois trata-se de “crime próprio ou específico de entidades empregadoras”, e por outro lado, com o facto de ter por “objecto necessário as contribuições à segurança social deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores ou dos membros dos órgãos sociais, excluindo todas as demais (designadamente as da responsabilidade da própria entidade empregadora)”.
Quer o artigo 105.º, quer o 107.º, têm em vista situações de substituição tributária, mas no primeiro caso, como assinala Susana Aires de Sousa, in Os Crimes Fiscais, págs. 125/7, seja a substituição própria ou imprópria, não se reconduzindo aos casos em que é usada a técnica de retenção na fonte do imposto devido.
Segundo Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, pág. 228, “A substituição fiscal, que corresponde geralmente à adopção do processo financeiro designado por retenção na fonte, verifica-se sempre que a lei impõe o dever de imposto, não à pessoa em relação à qual se verificam os pressupostos de facto da tributação, mas a um terceiro que vem, assim, a ocupar na relação, desde o início até à sua extinção, o lugar de sujeito passivo”.
E segundo Helder Leitão, Código de Processo Tributário Anotado, Elcla, 1999, pág. 489, quanto à razão de ser da figura diz que é por facilidade na cobrança e pela criação de um mais constante afluxo à tesouraria pública, que surgiu a liquidação por intermédio da retenção na fonte.
Em ambos os casos estamos perante crimes omissivos, crimes de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), no caso da segurança social, do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais, que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária ou às instituições de segurança social.

Assentam ambos os crimes numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão.

Objecto de previsão específica do abuso de confiança fiscal é no artigo 105.º o que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as “extensões” do conceito de prestação tributária constantes dos n.º s 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.º s 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA originário e tratando-se de deduções não são extensíveis ao crime homónimo da segurança social em que a prestação tem sempre a mesma natureza).

E no crime de abuso de confiança contra a segurança social é o que consta apenas da primeira parte do n.º 1 do artigo 107.º, descrevendo-se as condutas passíveis de integrar crime, isto é, a acção típica, e a qualidade do agente.

O artigo 105.º, na abrangência do que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, aplica-se a todos os tributos e impostos, com excepção das contribuições devidas à segurança social, aplicando-se a estas o artigo 107º.

Retirando o que é próprio, específico e exclusivo do crime do artigo 105.º, tudo o mais integra o crime do artigo 107.º, e assim é, por força da remissão do n.º 1, in fine, e do n.º 2, ou seja, a norma do artigo 107.º é complementada com os n.º s 4, 5, 6 (até 31-12-2008) e 7 do artigo 105.º.

Da aplicação simultânea dos n.ºs 4 e 6 a ambos os ilícitos criminais, resulta a relevância jurídica da regularização tributária, que um e outro assumem no reconhecimento da importância da reposição da verdade fiscal.

Face à incompletude da norma do artigo 107.º, que se caracteriza por criar um tipo dependente, e em função da complementaridade assumida pelo artigo 105.º, entre os abusos de confiança em causa, como manifestação da sua grande similitude e estreita interconexão, coexistem aspectos normativos absolutamente idênticos, fornecidos pelo artigo 105.º, não só na configuração do tipo simples ou qualificado, e no grau de censura, na medida da punição (n.º s 1 e 5), opção pelo critério da declaração individualizada (n.º 7) e anteriormente à última alteração com a revogação do n.º 6, quanto a causa de extinção da responsabilidade criminal.

Igualmente no que se reporta a condições de punibilidade - n.º 4 do artigo 105.º, aplicável igualmente por força do n.º 2 do artigo 107.º -, como definido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2008, de 09-04-2008, publicado no Diário da República, n.º 94, Série I, de 15-05-2008, em que se fixou o entendimento de que «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade…».
Neste sentido, o artigo 107.º contém uma norma em branco, sendo preenchido em aspectos normativos em função da remissão para o artigo 105.º, que tipifica o crime congénere, com a mesma matriz, de abuso de confiança fiscal.

Segundo Teresa Beleza e Carlos Lacerda da Costa Pinto, in O regime legal do erro e as normas penais em branco, Almedina, 2001, págs. 31 e ss., a norma penal em branco tem a particularidade de descrever de forma incompleta os pressupostos de punição de um crime (norma sancionadora), remetendo parte da sua concretização para outras fontes normativas (norma complementar ou integradora); no caso, a norma de comportamento é a do artigo 107.º, constando a ameaça penal, e não só, de outro normativo, o do artigo 105.º.

Essa dependência do tipo do artigo 107.º só pode significar que a sua completude apenas será atingida se reportada a todos os elementos normativos do “tipo integrador”, incluindo os valores mínimos determinativos da qualificação – o que já era - e agora da própria incriminação.

A remissão não se cinge, pois, às penas.

Como referia o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/00, in DR, II Série, de 17-10-2000, as considerações feitas a propósito da tipificação do crime de abuso de confiança fiscal valem igualmente para o crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
Como foi referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 10-01-2007, processo n.º 4099/06-3ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 157, a redacção do artigo 107.º-1, do RGIT encontra-se numa situação de absoluta convergência com os elementos do tipo do artigo 105.º do mesmo diploma, sendo válidas para ambos os tipos legais as considerações que se teçam sobre cada um.

Vejamos agora os argumentos adiantados pela jurisprudência que nega a possibilidade de descriminalização.

Argumento 1

A remissão constante do n.º 1 do artigo 107.º circunscreve-se às penas cominadas nos n.º s 1 e 5 do artigo 105.º, como aquele do RGIT?
Remeterá o artigo 107.º exclusivamente para as molduras penais?

Ou deverá a remissão ser entendida como abrangendo igualmente o valor agora inscrito no n.º 1 do artigo 105.º?

Parece-nos óbvio que a remissão para o n.º 5 não é apenas para a pena; é que aquela pena mais agravada só faz sentido, só se justifica, só se equacionará a sua aplicação, se o valor da não entrega de uma determinada declaração (de cada declaração nos termos do n.º 7) for superior a € 50 000, correspondente a cerca de dez mil contos ao tempo da publicação da lei.

Como refere Susana Aires de Sousa, in Crimes Fiscais, pág. 145, o valor não entregue, quando superior a € 50 000, funciona como circunstância agravante do tipo fundamental.

É de concluir que a remissão que a parte final do n.º 1 do artigo 107.º do RGIT faz para as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, abrange os diferentes valores que justificam o diverso sancionamento da infracção criminal, mais abarcando após a alteração de 2009, a referência ao valor a partir do qual passa a conduta a ser incriminada.

No crime de abuso de confiança contra a segurança social, a acção positiva pressuposto da subsequente conduta típica omissiva, consubstanciada no desconto, na retenção na fonte, das contribuições deduzidas no valor das remunerações pagas aos trabalhadores, incide sobre um valor, consistindo a subsequente omissão, estruturante do crime, na não entrega, no desvio, no descaminho de uma quantia pecuniária, que por via dessa omissão deixa de integrar, como direito de crédito, a esfera jurídica patrimonial da administração da segurança social.

Sobre um valor com concreta expressão pecuniária incide primeiro uma acção e depois uma omissão.

Daqui se intui a relevância do elemento valor da prestação que se expressa em quantia certa em dinheiro.

Consoante a expressão pecuniária do valor declarado ainda não entregue ou ocultado, a pena variará, de modo que a norma ao remeter para a pena remete também para o valor que lhe é subjacente, pois o valor da prestação ou contribuição é factor de determinação da moldura aplicável.
Sendo a remissão para o n.º 5, inquestionavelmente, uma remissão igualmente para o valor expresso na norma, porque não entender também assim a remissão para o n.º 1?
Não há razão para uma remissão conter referência ao valor e outra não, sendo de concluir que o artigo 107.º, n.º 1, não remete apenas para as penas previstas no artigo 105.º.

No n.º 1 do artigo 107.º há efectivamente uma remissão para o n.º 1 e n.º 5 do artigo 105.º, tratando-se de uma remissão feita para o regime de punição, para as molduras penais abstractas, as penalidades cabíveis ao crime simples ou qualificado, mas que não se cinge apenas a molduras penais aplicáveis, até porque no mínimo a qualificação traz ínsita a consideração da presença de um determinado valor das prestações (de cada prestação), o que significa que em última análise o valor dirá se o crime é simples ou qualificado.
A remissão para o n.º 5, que estabelece «Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas», abrange também os valores que qualificam o crime, sendo o valor citado a expressão pecuniária da agravação, no dizer do acórdão de 09-01-2008, processo n.º 4632/07-3ª.
Aqui a pena agrava-se em função do tipo qualificado e este em função de um valor mais elevado, concretamente determinado (não se socorrendo aqui o legislador dos padrões de valor elevado e consideravelmente elevado definidos no artigo 202.º do Código Penal, que foram incorporados no RGIT pela alínea d) do artigo 11.º), estando-se perante uma circunstância modificativa agravante; a penalidade agravada supõe a ultrapassagem de um determinado escalão pecuniário.
Em causa está a cobrança de receitas, de créditos, que se destinam a preencher o património do Estado, créditos expressos em quantias monetárias, cujo não percebimento conduz a diminuição de receitas e os diversos valores desses créditos justificam diferentes sanções.
Diversamente do que ocorre neste ponto no crime de fraude fiscal, em que a qualificação não resulta do elemento valor, mas das circunstâncias constantes do n.º 1 do artigo 104.º.

Os valores das prestações/contribuições assumem papel relevante nestes tipos de crimes.
Susana Aires de Sousa, obra citada, págs. 265, 303 e 304, refere a presença de um critério adicional de “quantidade”, quando esta como que se converte em qualidade, isto é, quando seja condição de relevância axiológica-social de uma conduta o facto de que ela assuma um certo limiar de gravidade objectiva. Aponta como exemplo o usado na fraude fiscal, em que o elemento adicional de quantidade se converte em condição de relevância penal da conduta ao estabelecer um limiar mínimo de ofensividade para o bem jurídico, só sendo punidos criminalmente os factos previstos se a vantagem patrimonial ilegítima fosse igual ou superior a € 7500 (a Autora reporta-se a redacção anterior a 2006).
Dir-se-á que esse critério também ao tempo estava presente na fraude contra a segurança social (a única diferença então é que na fraude fiscal, havia crime caso a vantagem patrimonial ilegítima fosse igual ou superior (não inferior) aquele limite e na fraude contra a segurança social a vantagem tem de ser superior a esse valor).
E que igualmente é de aplicar à nova redacção do n.º 1 do artigo 105.º.
A fls. 304 refere que, em crimes de natureza vincadamente patrimonial, como os fiscais, o valor patrimonial está, por via do bem jurídico, intimamente relacionado com o tipo de ilícito penal, considerando aquele valor de 7 500 euros como um elemento constitutivo do ilícito penal previsto no artigo 103.º, tratando-se de um limite negativo da incriminação essencial para delimitar os contornos fronteiriços entre aquele crime e as contra-ordenações previstas nos artigos 118.º e 119.º

Os valores das prestações ou contribuições retidas e a entregar são referências nos tipos de abuso de confiança (como de resto assumem os valores no tipo comum do crime patrimonial de abuso de confiança, p. p. no artigo 205.º do Código Penal), mas aqui assumindo um papel fulcral, não só para estes efeitos de agravação, como noutros aspectos, com realce para o n.º 6 do artigo 105.º, bem como no n.º 7, para que remete aliás o n.º 2!
Conclui-se que na interpretação do artigo 107.º, mesmo antes de 2009, estava sempre presente na determinação da penalidade aplicável a necessidade de chamada à colação do critério do valor, o que se impõe, pois as contribuições deduzidas têm uma dimensão económica, traduzida em valor pecuniário, o qual se reflecte na qualificação do crime em termos de maior ou menor gravidade e demais aspectos, o que se reconduz a patrimonialidade.
Independentemente da catalogação e definição do bem jurídico tutelado, o que está em causa em ambos os casos é a arrecadação de receitas, o património tributário.
Já em 1973, em estudo apresentado no Centro de Estudos Fiscais, Eliana Gersão, Revisão do sistema jurídico relativo à infracção fiscal, in Direito Penal Económico e Europeu, Textos doutrinários, II volume, págs. 89 e 93, referia-se à justificação e conveniência da criação de tipo legal de crime, com o objectivo específico de proteger os direitos do credor da relação jurídica tributária.
Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-12-2008, processo n.º 4079/06-3ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 236, os crimes fiscais, especialmente os crimes especiais de “abuso de confiança” (especiais por referência ao nomem homónimo do código penal), embora não constituam, na essência crimes contra a património, especialmente na mais recente descrição típica, mas contra os interesses fiscais ou par fiscais do Estado, participam, em muito, na construção típica e na dogmática, da natureza dos crimes contra o património - aqui no sentido de património público constituído pelo valor e utilidade pública fundamental da integridade das receitas fiscais.
E acrescenta: “A especificidade da construção típica dos crimes patrimoniais homónimos não pode, por isso, deixar de estar presente na análise que seja necessário empreender para situar a infracção no quadro de análise dogmaticamente adequado à compreensão dos problemas que suscite na teoria geral da infracção. Desde logo, na construção típica – do crime de abuso de confiança fiscal, quer fiscal sensu stricto – artigo 105.º do RGIT, quer contra a segurança social – artigo 107.º”.
Como bem se evidencia no citado acórdão da Relação do Porto, de 27-05-2009, no processo n.º 343/05.7TAVNF.P1-1ª, os crimes tributários foram construídos pelo legislador para defesa do bem jurídico comum a todos eles, a saber: os interesses tributários do Estado. Tais interesses englobam de forma primacial a protecção do “património público tributário” (…); em ambos os tipos legais está em causa o “erário público”, ao qual está associado, por regra, o dever do contribuinte de regularizar a sua situação tributária, entregando a prestação tributária ao credor “Estado Fiscal Social”, assuma este a veste de administração tributária ou de administração da segurança social.
É o bem jurídico comum, com a sua natureza pluridimensional, que subordina a tutela típica global subjacente aos “crimes tributários”, apesar das particularidades que caracterizam cada espécie de crimes previstos nos diferentes capítulos do Título I da parte III do RGIT.
Essa técnica ou forma de intervenção do legislador (quando englobou na categoria geral dos “crimes tributários” diferentes espécies de crimes) visou, por certo, melhor garantir, na descrição de cada tipo legal, a protecção do bem digno da tutela penal, com as suas especificidades próprias.
Foram razões de técnica de tutela que levaram o legislador a não só autonomizar (distinguindo-o do direito penal comum), em legislação especial (estabelecendo “sanções especiais” em relação às “sanções comuns”), os crimes tributários, como simultaneamente a fazer aquela subdivisão, onde as diferentes espécies de crimes acabam por ter como nota comum “a tutela dos interesses tributários do Estado”.
O que vem ao encontro do tratamento comum que o legislador quis dar ao regime geral das infracções tributárias, quando passou a incluir num único diploma legal quer as infracções aduaneiras, quer as não aduaneiras”.

No tipo legal de referência no direito penal clássico – o crime de abuso de confiança, p. p. pelo artigo 205.º do Código Penal - o bem jurídico tutelado é a propriedade.
Assumindo o crime em equação uma estrutura omissiva, consistindo o comportamento típico na não entrega dolosa, após decurso do prazo de 90 dias, das contribuições deduzidas no valor das remunerações pagas aos trabalhadores, a antecedê-lo, como pressuposto necessário da conduta típica, temos uma conduta positiva, traduzida no desconto das contribuições (a retenção na fonte), isto é, uma acção que incide sobre uma remuneração, uma coisa fungível (artigo 207.º do Código Civil), sobre um valor, emergente de uma relação jurídica de trabalho, de natureza privada, sobre que incide a tributação, do que resulta um crédito contributivo, já na perspectiva da relação jurídica tributária.
O não cumprimento da obrigação legal de entrega do valor descontado por parte do substituto/depositário, conduzindo à não satisfação do crédito contributivo, afecta interesse de matriz patrimonial – o erário de que é titular a segurança social.

Anteriormente, e até 31-12-2008, como decorria do n.º 6 do artigo 105.º do RGIT, o valor da prestação (constante de cada declaração, por força do n.º 7 do mesmo artigo 105.º) com determinada - relativamente baixa ou reduzida – dimensão/expressão pecuniária (inicialmente quantificada em € 1000 e, cinco anos decorridos, após 1 de Janeiro de 2006, elevada para € 2000) conferia a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal, através do pagamento da prestação, juros e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal.
Os valores de cada declaração são também elemento a ter em consideração (como vimos, dantes para efeitos de extinção da responsabilidade) e ainda actualmente para integrar crime simples ou qualificado, como decorre do n.º 7 do artigo 105.º (“Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”), aplicável por remissão do n.º 2 do artigo 107.º.

De resto algo de similar ocorre com o outro crime contra a segurança social, a fraude contra a segurança social, previsto no artigo 106.º, em que há igualmente remissão para as penas do crime de fraude fiscal, simples e qualificado (n.ºs 2 e 3 do artigo 106.º), em que é limite mínimo constitutivo de crime o valor da vantagem patrimonial ilegítima, devendo ser de valor superior a € 7 500 (tal como na versão originária constava do n.º 2 do artigo 103.º, para o crime de fraude fiscal, depois alterado para € 15 000), sendo ainda aplicáveis as alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 103.º - descrição dos comportamentos típicos integradores da fraude fiscal -, devendo da mesma forma ter-se em conta os valores que devam constar de cada declaração, como o impõe o n.º 3 do artigo 103.º, de que o n.º 7 do artigo 105.º é mera transcrição integral.
Da mesma forma, aqui, a remissão não é feita exclusivamente para as penas, sendo este tipo de fraude igualmente um tipo dependente, a necessitar de complementação pelo homónimo fiscal, o que assinala a incompletude e a dependência do tipo fiscal, o que só se pode justificar por razões de similitude e proximidade, decorrentes da mesma integração categorial.
Sempre, desde 1995, se pretendeu que o regime de punição fosse idêntico em ambos os crimes.

Na estrutura objectiva de alguns crimes tributários, como a burla, o contrabando, a fraude e agora de forma expressa o abuso de confiança fiscal, está presente a exigência de que se preencha o elemento valor.
Com excepção da burla tributária, em todos esses crimes o valor tem concreta dimensão, sendo expresso por quantias certas, exactas, introduzindo-se um elemento de certeza na determinação do elemento valor para tais crimes, o que de resto também ocorre com a qualificativa presente no artigo 97.º, alínea b) e no n.º 5 do artigo 105.º, com a cifra de € 50 000 (valor aplicável ao abuso de confiança contra a segurança social por força do n.º 1 do artigo 107.º).
O RGIT não se socorre - com excepção do crime de burla tributária, nos n.º s 2 e 3 do artigo 87.º, dos conceitos de valor elevado e consideravelmente elevado do artigo 202.º do Código Penal, aqui introduzidos ex vi do artigo 11.º, alínea d) -, da técnica a que José Faria Costa, Direito Penal Económico, Quarteto, 2003, págs. 117/8, apelida de modelo de indexação, que está presente nos crimes contra o património no Código Penal e que em sua opinião vale exclusivamente para tais crimes.
A fixação do valor da “prestação tributária” em montante superior a € 7 500, como limite constitutivo de crime, independentemente de se tratar de crime aduaneiro, fiscal ou contra a segurança social, está presente em várias incriminações do RGIT (o valor foi então fixado em euros, antecipando-se e evitando a necessidade posterior de proceder às conversões de escudos para euros operadas através do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, muito embora as prestações tributárias relativas aos crimes cometidos na vigência do diploma - de 5 de Julho a 31 de Dezembro de 2001, pois o diploma entrou em vigor em 05-07-2001 e a moeda única em 01-01-2002 - tivessem necessariamente expressão económica na moeda então com curso legal no País, o escudo).
Estão nessas condições os seguintes crimes tributários:
Crime de contrabando - artigo 92.º, n.º 1;
Crime de contrabando de circulação - artigo 93.º, n.º 1;
Crime de fraude no transporte de mercadorias em regime suspensivo - artigo 95.º, n.º 1;
Crime de introdução fraudulenta no consumo - artigo 96.º , n.º 1;
Crime de fraude fiscal - artigo 103.º (aqui com a especificidade de o valor ser inferior a € 7 500, constituindo crime já a partir de € 7 500, inclusive, manifestando quebra de coerência interna);
Crime de fraude contra a segurança social - artigo 106.º

Em todos estes casos a punição como crime depende do valor mínimo indicado (v. g., na fraude, desde que a vantagem obtida ou susceptível de ser obtida alcance tal mínimo).
A tipificação como crime depende da verificação deste elemento objectivo, passando a depender nos crimes fiscais do montante da prestação tributária; a conduta passou a ser punível a partir de determinado grau de lesividade densificado em determinado montante.
O critério do valor está presente igualmente na qualificação.
Assim, para os crimes aduaneiros, se a mercadoria objecto da infracção tiver valor superior a € 50 000 - artigo 97.º, alínea b).
E para os crimes de abuso de confiança - fiscal e contra a segurança social - se a entrega não efectuada for superior a € 50 000- artigos 105.º , n.º 5 e 107º, n.º 1.
O elemento valor é ainda o separador entre o ilícito criminal e o contra-ordenacional no plano fiscal e aduaneiro.
A não criminalização operada pela Lei de 2008 tem um significado e alcance económico inferior aos valores - idênticos - fixados em 2001, há mais de oito anos, face à erosão do valor da moeda.
O conceito de valor, omnipresente, tem de ser considerado na interpretação a efectuar.
Relembre-se que a indicação das molduras das penas de prisão previstas no Decreto-Lei n.º 619/76, de 27-07, era feita com referência ao valor do imposto sonegado, por escalões – artigo 2.º.
O Decreto-Lei n.º 93/2003, de 30-04, que regula a investigação dos crimes tributários e cooperação entre a Polícia Judiciária e os órgãos da administração tributária, não prescinde de definir o que considera como «valor do crime tributário».
Conclui-se assim, que o critério de quantidade, o valor de referência, é algo que está sempre presente nestas incriminações, como não podia deixar de ser atenta a patrimonialidade subjacente; “dependendo” a pena do valor da prestação, a remissão do n.º 1 do artigo 107.º não é apenas para o n.º 5, mas igualmente para o n.º 1 do artigo 105.º.

Argumento 2

Relativamente à autonomia revelada pela sistematização, dir-se-á que, sendo certo que os crimes contra a segurança social estão arrumados em capítulo próprio, autónomo e distinto dos restantes, também certo é que constituem uma das quatro espécies, que se incluem numa mesma categoria geral de “crimes tributários”, cujo denominador comum a todos são no fundo os interesses tributários do Estado.
Os crimes contra a segurança social são apenas dois: a fraude e o abuso de confiança, sendo que nos fiscais há apenas dois homónimos: a fraude (simples e com a autonomização da fraude qualificada no artigo 104.º, diversamente do que ocorre com o abuso de confiança, em que o qualificado consta do n.º 5 do artigo 105º) e o abuso de confiança fiscais.
A simples arrumação em capítulos diferentes não significa que uns e outros tutelem bens jurídicos absolutamente diferentes na sua natureza, pois em ambos os casos no fundo estão em causa interesses patrimoniais da administração, reconduzindo-se por formas diversas embora à tutela do erário público, e em ambos os casos está presente a violação de um dever de colaboração e a feridência de uma relação de confiança sobre a qual se estabeleceu o dever do substituto e depositário de, numa primeira fase arrecadar a receita, operando o desconto e a retenção na fonte, e depois entregá-la ao credor tributário.
Nestes casos o critério do bem jurídico tutelado não será determinante, pois estamos face a crimes de natureza artificial.
Augusto Silva Dias, em O novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro (Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro), in Fisco, n.º 22, Julho de 1990 e Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, volume II, pág. 263, em trecho citado e transcrito por Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português, no mesmo volume, a págs. 418, refere, reportando-se aos crimes fiscais, mas sendo aplicável aos crimes contra segurança social:
“A respeito do fundamento concreto da intervenção penal no âmbito do ilícito fiscal e diferentemente do que sucede nos chamados «crimes clássicos», não se apresenta à partida um (ou vários) bem jurídico de contornos definidos, concretamente apreensível, que funcione como constituens da estrutura do ilícito e vincule a uma certa direcção de tutela. Ao invés, o objecto da protecção penal é um «constituto», uma resultante de objectivos e estratégias de política criminal previamente traçados. O legislador não parte aqui das representações de valor pré-existentes na consciência jurídica da comunidade, mas intervém modeladoramente no sentido de uma ordenação da convivência. Por outras palavras, o interesse protegido pelas normas penais fiscais não é um prius, que sirva ao legislador de instrumento crítico da matéria a regular e do modo de regulação, mas um posterius, com uma função meramente interpretativa e classificatória dos tipos, construído a partir da opção por um dos vários figurinos dogmáticos e político-criminais que o legislador tem à sua disposição. Com este sentido pode dizer-se que os crimes tributários têm natureza «artificial»”.
No fundo o que estes crimes visam é a optimização de arrecadação de receitas, visando impedir, obstar a evasão fiscal e a fraude, pois a pretensão primeira é a recepção completa e oportuna de impostos e contribuições, traduzindo-se a não arrecadação de receitas por falta de entrega num efectivo dano patrimonial e punindo-se a forfait a entrega em mora [artigo 105.º n.º 4, alínea b)]; o crime surge a partir do momento em que falha o estímulo e o convite ao contribuinte para que regularize a sua situação fiscal. Tenha-se em vista que numa primeira fase, no plano fiscal, há que aguardar pelo pagamento dentro de 90 dias e só depois é que surge o crime; após notificação, aguarda-se por 30 dias; se o faltoso pagar, incorre em contra-ordenação, mas se o não fizer, a situação que configuraria uma simples contra-ordenação converte-se, pelo não acatamento do convite, em figura criminal.
No fundo estão em causa interesses patrimoniais da segurança social, para cuja defesa foi reconhecida, na falta de norma equivalente à do artigo 46.º do RJIFNA, a legitimidade do IGFSS para se constituir assistente em processo por crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. p. pelo artigo 107.º do RGIT (Acórdão nº 2/2005, de 16 de Fevereiro, proferido no processo nº 1579/04-3ª, in DR, I Série - A, nº 63, de 31-03-2005), intervindo no processo crime e deduzindo acção cível conjunta como acontece no caso presente, pedindo a condenação em indemnização por danos, para além de, tal como acontece com os crimes fiscais, se impor o pagamento das contribuições em dívida e legais acréscimos como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada a tais crimes - artigo 14.º do RGIT.
A finalidade de obtenção de receitas está presente em vários outros institutos, através dos quais é tentada a regularização tributária pós – delitiva; para além da causa de extinção do antigo n.º 6 do artigo 105.º, a possibilidade prevista no artigo 22.º, de dispensa ou atenuação especial da pena, se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária, a possibilidade de outras soluções que passam pela reparação, como o artigo 43.º, com a remissão que faz para os artigos 277.º a 283.º do Código de Processo Penal, com a possibilidade de suspensão provisória do processo e de arquivamento em caso de dispensa de pena prevista no artigo 44.º.
A propósito da relevância jurídico penal da reparação no RGIT, apontado como paradigmático neste aspecto, veja-se Mário Ferreira Monte, Da reparação penal como consequência jurídica autónoma do crime, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 129 a 155, maxime, no que aqui importa, 134/5, 145 e 153/5, anotando a concepção do bem jurídico como um posterius relativamente ao tipo e a artificialidade dos bens jurídicos em presença, por um lado, e a função simbólica das normas, por outro, referindo as disposições do diploma legal que conferem à reparação um papel de relevo.
Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, no citado O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português, a págs. 436, referem que o abuso de confiança fiscal integra, entre os pressupostos da factualidade típica, a efectiva produção de um dano patrimonial. Em termos rigorosamente idênticos ao que sucede com o abuso de confiança do artigo 205.º do Código Penal.

Os crimes de abuso de confiança, quer fiscal, quer contra a segurança social, pressupõem na verdade a efectivação de um dano/enriquecimento sob a forma de descaminho de prestações correspondentes a créditos tributários (diversamente da fraude que corresponde a um crime de resultado cortado).
Com a punição da persistente omissão de acção de entrega, da falta de entrega da prestação/contribuição e da violação do dever de colaboração e lealdade, do incumprimento da obrigação de entrega, procura evitar-se a produção do dano, a não obtenção integral das receitas, a evasão ou redução fiscal.

Argumento 3

Vejamos agora o argumento da necessidade de um reforço punitivo do abuso de confiança contra a segurança social, atendendo às grandes dificuldades e estado de pré- falência do sistema de segurança social, da necessidade de defesa da sustentabilidade da segurança social.
A Segurança Social, de acordo com a sua autonomia institucional, tem um orçamento próprio, apresentado pelo Governo e votado autonomamente pela Assembleia da República, embora formalmente integrado no Orçamento do Estado - artigo 105.º, n.º 1, alínea b), da CRP - cfr. artigo 49.º, n.º 1, da Lei n.º 28/84, de 14-08; artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2000, de 08-08; artigo 114.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2002, de 20-12 e artigo 93.º, n.º 1, da Lei n.º 4/2007, de 16-01.
Na lógica argumentativa subjacente a esta posição o legislador não terá querido descriminalizar as condutas em questão, subtraindo à incriminação as prestações de valor igual ou inferior a 7500 euros, pois não arrecadando tais receitas, prescindindo da sua obtenção, estaria a comprometer ainda mais o débil sistema, dando um sinal de sentido negativo à sociedade.
Este argumento arranca de um pressuposto de financiamento exclusivo da segurança social, quando de facto não é assim.
Desde logo, o sistema de segurança social não poderia sobreviver à custa apenas do financiamento proveniente das contribuições, sendo uma constante a intervenção subsidiária do Estado.
As deficiências de financiamento do sistema estão patentes no artigo 57.º do capítulo V da Lei n.º 64-A/2008, através do qual foi concedida autorização ao Governo, através do ministro responsável pelas áreas do trabalho e da solidariedade social, para proceder à anulação de créditos detidos pelo Instituto da Segurança Social, I.P. (ISS, I.P.), quando se verifique carecerem os mesmos de justificação ou estarem insuficientemente documentados ou quando a sua irrecuperabilidade decorra da inexistência de bens penhoráveis do devedor.
Na insuficiência de receitas próprias terá de ser o Estado Fiscal a subsidiar e financiar o Estado Social.
Se é verdade que há que prover ao abastecimento dos cofres do Estado, não é menos verdade que o aumento de dificuldades do tecido empresarial pode levar à diminuição de laboração ou ao encerramento de empresas, com a consequente redução ou extinção de postos de trabalho, e deixando estes de existir, deixando de haver trabalhadores empregados que contribuam com as respectivas quotizações, estará o credor a distanciar-se de uma política activa de emprego e a contribuir-se para uma maior míngua de receitas, o que se traduz num outro modo de hipotecar o futuro da segurança social e não só, pois daí advirá diminuição de cobrança de receitas fiscais, entrando-se num círculo vicioso.
Há que contrabalançar esta onda descendente intervindo o Estado ex suplendis, com o reforço do orçamento próprio do sistema de segurança social através das transferências, o que tem sido uma constante ao longo destes anos e resulta desde logo da diversificação das fontes de financiamento da segurança social, como resulta das últimas quatro Leis de Bases da Segurança Social (LBSS).
Relativamente a fontes de financiamento, dispunha o artigo 50.º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, constituírem receitas do sistema de segurança social:
a) as contribuições dos trabalhadores;
b) as contribuições das entidades empregadoras;
c) as transferências do Estado e de outras entidades públicas;
d) os rendimentos do património próprio;
e) o produto de comparticipações previstas na lei ou em regulamento;
f) o produto de sanções pecuniárias;
g) as transferências de organismos estrangeiros;
h) outras receitas legalmente previstas ou permitidas.
Na Lei n.º 17/2000 mantém-se o mesmo grupo de receitas, incluindo-se na alínea c) do artigo 84.º “as transferências do Estado e de outras entidades públicas”, e ainda, aqui inovando – alínea i) - o produto de eventuais excedentes da execução do Orçamento do Estado de cada ano, tendo em vista a correcção do subfinanciamento por incumprimento da Lei n.º 28/84.
Este procedimento tem-se mantido ao longo dos anos, de modo que as transferências do Orçamento do Estado para o sistema de segurança social continuam presentes nas LBSS n.º 32/2002, de 20 de Dezembro e n.º 4/2007, de 16 de Janeiro.
Na primeira, no artigo 112.º, alíneas c), d), e) e i), incluindo as transferências do Estado e de outras entidades públicas; as receitas fiscais legalmente previstas; os rendimentos de património do Estado consignados ao reforço do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social; e o produto de eventuais excedentes da execução do Orçamento do Estado de cada ano.
Na segunda, como estabelece o artigo 87.º, o financiamento do sistema obedece aos princípios da diversificação das fontes de financiamento e da adequação selectiva.
Relativamente a formas de financiamento, prescreve o n.º 1 do artigo 90.º, que “A protecção garantida no âmbito do sistema de protecção social de cidadania é financiada por transferências do Orçamento do Estado e por consignação de receitas fiscais”.
E no que toca a fontes de financiamento, as alíneas c), d), e) e i) do artigo 92.º reproduzem na íntegra o texto das mesmas alíneas no citado artigo 112.º da revogada Lei n.º 32/2002.
Ainda a este propósito, e como exemplo mais actualizado, que importará reter por se inserir na mesma lógica procedimental, é de ter em consideração o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 69-A/2009, de 24 de Março, estabelecendo as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para 2009, que prevê transferência da receita do adicional ao IVA para a CGA, I. P. e para a segurança social.
[A consignação à segurança social de receita do IVA era já prevista no artigo 29.º da Lei n.º 3-B/2000, DR, I-A, 2.º Suplemento de 04-04-2000 (Orçamento do Estado para 2000) e no artigo 21.º da Lei n.º 30-C/2000, DR, I-A, 2.º Suplemento de 29-12 -2000 (Orçamento do Estado para 2001)].
E nas Grandes Opções do Plano para 2001 (Lei n.º 30-B-/2000, DR, I-A, Suplemento, de 29-12-2000), entre os objectivos a levar a cabo em 2001, na área da Segurança Social, figurava a reformulação da lógica global de financiamento da segurança social, o qual seria realizado de acordo com os princípios da diversificação das fontes de financiamento e da sua adequação selectiva.

Glória Teixeira e João Félix Nogueira, in Segurança Social, uma perspectiva fiscal, na obra Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Volume II, Vária, Coimbra Editora, 2007, págs. 741 e ss. e 772, referem que a existência de um orçamento autónomo, que se autofinancia, deixou de ser uma realidade, as receitas provenientes das contribuições obrigatórias não são suficientes para o pagamento de todas as prestações aos beneficiários, sendo o resultado de um output geral, sendo que uma parte cada vez maior destas prestações são asseguradas por transferências de outras rubricas orçamentais; tendo em conta a evolução da situação demográfica do país, o sistema será cada vez mais financiado pelas receitas fiscais e a fls. 775 adiantam que é também facto indiscutível que as receitas fiscais na União Europeia têm vindo a aumentar, sendo uma grande parte das receitas arrecadadas afectas ao financiamento de despesas sociais. (realces obviamente nossos).
Por outro lado, se atentarmos ao plano fiscal, concluir-se-á que a debilidade não está presente apenas na segurança social, longe disso, mas manifesta-se, entre outras medidas, igualmente nos cortes ao nível do investimento público e no recente anúncio do congelamento dos vencimentos do funcionalismo público.
Tudo isto se harmoniza com a leitura do texto constitucional.
A abrir o capítulo dos «direitos sociais» a Constituição inscreveu no artigo 63.º, n.º 1, o direito à segurança social, estabelecendo o n.º 2 que “Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado…”.
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág. 817, referem “A Constituição é omissa sobre o financiamento do sistema de segurança social, limitando-se a dizer que ele deve ser subsidiado pelo Estado (nº 2, 1ª parte). Isto quer dizer, por um lado, que a segurança social é, em parte, um encargo do Estado, a ser suportado pelo respectivo orçamento; por outro lado, porém, a segurança social não depende apenas do financiamento público directo, mas sim, também (ou sobretudo), das contribuições dos respectivos beneficiários (princípio da contributividade) estando aqui implícito um dever de contribuição para a segurança social. A proporção em que o financiamento da segurança social depende de uma e outra das duas fontes é matéria que está em grande medida à disposição do Estado no âmbito da sua liberdade de conformação política e legislativa”.
Ora, se o Estado pode definir as proporções de financiamento da segurança social, porque não entender que nas margens da liberdade de conformação política e legislativa, certamente amplas, não caberá a de ter querido, sem contudo o expressar directamente, a descriminalização das omissões de entrega de contribuições com a mesma medida pecuniária da benesse concedida aos prevaricadores no âmbito fiscal?
Daqui resulta não ser decisivo o argumento de que a não obtenção de montantes de “receitas” até € 7 500 contribua para a penúria do sistema, impedindo a extensão da norma do artigo 105.º, sendo o argumento inclusive de utilizar exactamente para ancorar a posição contrária, pois cabendo o papel financiador da segurança social, para além de todos os outros, também à vertente fiscal, deveria ser igualmente protegido o Estado Fiscal, na sua qualidade de fonte subsidiadora, de “último garante”, ou se se preferir, de “pronto socorro”, a intervir em via supletiva às permanentes, continuadas, sucessivas e persistentes dificuldades do sistema.

Por outro lado, não se pode argumentar como se estivéssemos perante um quadro absolutamente dicotómico em que, ou há crime e o crédito será satisfeito, minimizando os problemas de sustentabilidade, o que de todo não é o papel do direito penal, ou não há crime e não se opera o percebimento das contribuições necessário para o equilíbrio das contas, o que redundará na atribuição ao direito penal de um papel de persuasão ao pagamento, o que manifestamente não pode ser, para além de que a solução de não criminalização não significa nem conduz a insusceptibilidade de cobrança da dívida.
É que, nem sequer há uma relação directa entre uma coisa e outra.
A circunstância de a conduta omissiva em causa não constituir crime não significa que se esteja perante um crédito proscrito, inexistente, inviável, incobrável.
Essa ausência não conduz a uma perda irremediável.
O débito do contribuinte, na ausência de crime, continua débito; não há uma dispensa de cobrança; a descriminalização não diminui a eficácia do título executivo, que subsistirá, e com ele a possibilidade de cobrança coerciva, através do processo de execução fiscal – dantes artigos 46.º, n.º 2, da Lei n.º 28/84, 63.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2000, 48.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2002, e actualmente, artigo 60.º, n.º 1, da Lei n.º 4/2007, e artigos 78.º, alínea b) e 148.º a 263.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001, permanecendo as garantias dos créditos da segurança social – os privilégios creditórios, a constituição de penhor e de hipoteca legal - artigo 50.º da LGT.
Para além da cobrança coerciva, como resultava do artigo 31.º do CPT (Código de Processo Tributário, aprovado pelo DL n.º 154/91, de 23-04) e resulta do actual artigo 80.º, n.º 1, do CPPT, há ainda a “garantia de cobrança” de reclamar os créditos tributários em processo de execução que não tenha natureza tributária, com a citação obrigatória dos chefes dos serviços periféricos locais da área do domicílio fiscal ou da sede do executado.
Significa isto que o credor tributário é chamado a intervir em sede de processo de execução a correr nos tribunais comuns, aquando da abertura do concurso de credores, nos termos do artigo 864.º do Código de Processo Civil, sendo actualmente citado o Instituto da Segurança Social, I. P., nos termos do n.º 3, alínea d), com vista à defesa dos interesses da segurança social, sendo que prevê o actual n.º 4, para os processos iniciados após 21-11-2008, a citação daquele I. S. S., I. P. e ainda do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. (redacção do artigo 864.º dada pelo Decreto-Lei n.º 226/08, de 20-11).
Aliás, como consabido, os créditos da segurança social e respectivos juros de mora sempre foram providos de garantia real, graduados preferencialmente, com prioridade nos pagamentos, gozando de privilégios creditórios os créditos das então Caixas de Previdência e Abono de Família, nos termos do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 38538, de 24-11-1951, posteriormente do artigo 167.º do Decreto-Lei n.º 45266, de 23-09-1963, que vieram a ser definidos pela jurisprudência como algo fora da figura dos “débitos fiscais” para os afastar da exclusão do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25-11-1966, Decreto Preambular que aprovou o Código Civil de 1966 e como tal subsistentes após a entrada em vigor deste Código em 1967, e mais tarde do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 511/76, de 03-07 (então com a criação do privilégio imobiliário geral), e dos artigos 10.º e 11.º e 12º (aqui garantidos por hipoteca legal) do Decreto-Lei n.º 103/80, de 09-05 (este diploma estará em vigor até 31-12-2010, pois será revogado a partir de 01-01-2011, tendo a revogação sido operada pela Lei n.º 110/2009, de 16-09, com alteração da data de entrada em vigor efectuada pela Lei n.º 119/2009, de 30-12), e apenas com a limitação da declaração de falência como causa extintiva dos privilégios e hipotecas legais, passando a ser exigíveis apenas como créditos comuns (artigo 152.º do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o (CPEREF) Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência) e mais tarde nos processos de insolvência (artigo 97.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), da Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e de um regime especial de juros de mora, com taxa superior aos legais, mais concretamente, “a definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas”, como refere o artigo 44.º, n.º 3, da LGT, e que é a constante do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março.

Por último, atente-se que o legislador de 2001, quanto à fraude prevista no artigo 106.º, constituindo crime contra a segurança social, não deixou também quanto a esta infracção, de optar pela solução de não criminalização até determinado limite, concretamente desde que a vantagem patrimonial não atingisse certo patamar pecuniário, exactamente, 7 500 euros.
A fraude na segurança social “seguiu” a congénere fraude fiscal na sua conformação inicial em que a relevância típica da ocultação de prestações tributárias está sujeita a limites mínimos de ofensividade, só constituindo crime se a vantagem patrimonial ilegítima for superior a certa quantia, só havendo crime a partir de € 7.500 (até 31-12-2005) e nem por isso se colocaram ou colocam problemas relacionados com as debilidades da segurança social.
Ou seja, o facto de ser uma infracção contra a segurança social não constituiu impedimento aos olhos do legislador a, em 2001, acompanhar o “ritmo” da não criminalização estabelecida para a congénere fraude fiscal, situando-se a relevância criminal num e noutro caso, exactamente ao mesmo nível, com idêntica expressão quantitativa, o que faz soçobrar os argumentos no sentido de que há que salvaguardar a posição da debilitada Segurança Social.

Outro argumento para afastar a possibilidade de extensão do valor de € 7 500 tem a ver com o pretenso regime de maior rigor na punição dos delitos contra a segurança social.
Um dos aspectos focados neste argumento parte do facto de em 30-12-2005 ter sido elevado para o dobro o valor limite mínimo constitutivo do crime de fraude fiscal, diversamente do que então ocorreu com o homónimo contra a segurança social, que manteve o valor referencial originário. (O artigo 103.º, n.º 2, foi alterado pela Lei n.º 60-A/2005, Suplemento, de 30-12-2005, Orçamento do Estado para 2006, passando a dispor: «Os factos previstos nos (sic) números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15 000».
Esta circunstância é apontada pela posição que nega a descriminalização como prova da autonomia do crime do artigo 107.º em relação ao do artigo 105.º
É um facto que em 2005, no plano do crime de fraude, se estabeleceu uma diferença no estabelecimento do patamar mínimo de punição do crime entre os congéneres fiscal e contra a segurança social, tendo o valor constante do n.º 2 do artigo 103.º passado para o dobro (€ 15 000), mantendo-se os 7 500 euros no crime homónimo contra a segurança social (artigo 106.º)
Trata-se de uma opção não explicada pelo legislador, sendo certo que, dobrando no crime fiscal o limite mínimo para efeitos de relevância criminal, o Estado Fiscal abdicou de “receitas”, com as quais contribui para o debilitado sistema de segurança social, face ao seu desempenho supletivo no financiamento.
Por outro lado, será caso para dizer que se trata de uma autonomia tardia – haverá que reconhecê-lo - , pois que só surgiu com a Lei n.º 60-A/05, e ainda para se questionar por onde andava a ora propalada autonomia quando o limite era idêntico num e noutro crime, e foi-o entre Junho de 2001 e 31-12-2005.
Mas convirá ter presente que essa alteração/elevação na fraude fiscal por si não faz desaparecer o limite mínimo na fraude contra a segurança social, que subsiste, pelo que sempre restaria explicar a diferença de tratamento entre os dois contíguos crimes no âmbito da segurança social...
É que a inovação de 2008, a considerar-se a inaplicabilidade do valor do artigo 105.º, n.º 1 ao artigo 107.º consistiria em, pela primeira vez, se estabelecer uma diferenciação no campo da punição entre um e outro crime, rompendo com a tradicional identidade dos regimes punitivos.
Contrariando a ideia de maior rigor na punição dos delitos contra a segurança social, temos que no crime de burla tributária (artigo 87.º RGIT) os valores das atribuições patrimoniais são os mesmos e idênticas as penas, independentemente da entidade visada ser a administração tributária ou a administração da segurança social.

Argumento 4

Outro argumento para afastar a extensão da nova norma do n.º 1 do artigo 105.º ao crime do artigo 107.º tem a ver com a criação de um vazio de impunidade, que sobreviria no caso de descriminalização, pois que deixando a conduta de ser crime, não está prevista como contra-ordenação. Por outras palavras, corresponderia a total despenalização por não haver previsão contra-ordenacional semelhante à do artigo 114.º do RGIT.
Analisado o problema a conclusão é a de que há um vazio, mas de regulamentação.
Em sede de sancionamento administrativo o diploma de 2001 não trouxe nada de novo no que respeita às matérias da segurança social, ao invés do que aconteceu com as aduaneiras e fiscais, prevendo no Título II da Parte III (Das infracções tributárias em especial) as Contra-ordenações tributárias, sendo no Capítulo I as “Contra-ordenações aduaneiras” (artigos 108.º a 112.º) e no Capítulo II as “Contra-ordenações fiscais” (artigos 113.º a 127.º).
Como expressamente decorre dos artigos 1.º, n.º 2, da Lei n.º 15/2001 e 1.º, n.º 1, alínea d), in fine, do Regime Anexo, o RGIT não se aplica às contra-ordenações contra a segurança social por o seu regime constar de legislação especial.
Decorridos mais de oito anos e meio sobre o início de vigência do RGIT não foi elaborada qualquer legislação especial, nem se procedeu a qualquer adaptação decorrente das inovações entretanto surgidas, mantendo-se em vigor o Decreto-Lei n.º 64/89, de 25-02, o qual na sequência da Lei n.º 28/84, de 14-08, no essencial visou adaptar o seu regime punitivo próprio da Segurança Social, alterado por força do disposto naquela Lei, que consagrara o ilícito de contra-ordenação.
No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido por aquela Lei, o diploma estabeleceu o regime das contra-ordenações no âmbito dos regimes de segurança social prevendo contra-ordenações relativas à vinculação ao sistema, à relação jurídica contributiva, à concessão das prestações em geral, cumulação de subsídios, entre outras, previstas nos artigos 6.º a 13.º.
A esse tempo, em Fevereiro de 1989, a não entrega de contribuições, face ao que dispunha o artigo 46.º, n.º 3, da Lei n.º 28/84, era qualificada como crime de abuso de confiança comum, remetendo-se para o então vigente artigo 300.º do Código Penal1982.
Antes, pois, do RJIJNA, e do posterior enxerto dos crimes contra a segurança social, verificado em 1995.
O artigo 114.º não é de aplicar no campo da segurança social, pois também aqui, na definição do tipo, rege o princípio da legalidade (artigo 2.º do RGCO); por outro lado, o n.º 3 do preceito reproduz praticamente de modo integral o n.º 2 do artigo 105.º, mas já não o n.º 3 deste preceito, que referia precisamente as prestações com natureza parafiscal (como se viu, os n.º s 2 e 3 do artigo 105.º são, por seu turno, a reprodução ipsis verbis dos n.º 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA, na versão originária).

Costa Andrade, in O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza (de um acórdão) do Tribunal Constitucional, publicado na RLJ ano 134.º (2005), págs. 307 a 325 e em Direito Penal Económico e Europeu, Textos doutrinários, Volume III, págs. 229 a 253, ao afirmar que o crime do artigo 107.º do RGIT do ponto de vista material e teleológico era um ilícito idêntico ao que é punido como contra – ordenação, defendia na nota 14, a págs. 238 - reconhecendo não conter o Decreto-Lei n.º 64/89 a previsão do sancionamento do facto e não obstante o artigo 1.º, n.º 2, da Lei 15/2001 dispor que o regime das contra-ordenações contra a segurança social consta de legislação especial - que o artigo 114.º do RGIT valeria também no contexto da segurança social.
Posteriormente, o mesmo Autor em parceria com Susana Aires de Sousa em As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto, publicado na RPCC, ano 17, n.º 1, 2007, págs. 53-72 e no citado Direito Penal Económico e Europeu, Textos doutrinários, Volume III, págs. 321 a 335, reconhece que as contra-ordenações pertinentes à segurança social continuam a constar do Decreto-Lei n.º 64/89. Não se tendo procedido à adaptação que a entrada em vigor do novo regime das infracções tributárias impunha, depara-se uma desconformidade entre o regime das contra-ordenações fiscais e o regime das contra-ordenações contra a segurança social.
Citam Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Almedina, 2007, pág. 189, no segmento “não se tendo procedido à adaptação que se impunha, a consequência é a de que não são puníveis como contra-ordenações da segurança social comportamentos como tais tipificados quando cometidos em matéria fiscal, tais como a falta de entrega das contribuições para a segurança social deduzidas do vencimento dos trabalhadores ou membros dos órgãos sociais até 90 dias, e a sua falta de retenção ou a sua não entrega por negligência”.
E concluem, a págs. 335, que o Decreto-Lei n.º 64/89 não tipifica como contra-ordenação contra a Segurança Social a falta de entrega das contribuições deduzidas e detidas.

É de ter por certo que a falta de entrega à Segurança Social de contribuições deduzidas não é sancionada administrativamente.
Tal lacuna de resto, já na sequência da Lei n.º 53-A/2006, que alterou o n.º 4 do artigo 105.º, suscitou dificuldades, colocando-se a questão de saber qual seria a «coima aplicável» a que se referia a alínea b) daquele n.º 4, se não existia qualquer coima prevista no âmbito das infracções contra a segurança social.
Não se vê como definitivo o argumento de que à não criminalização da conduta em causa sobreviria a impunidade total, por não previsão de sanção administrativa, o que constituiria impedimento inultrapassável para qualquer consideração de descriminalização.
Bastará olhar ao que se passa com o outro crime pelo qual são tutelados igualmente interesses da segurança social - o crime de fraude contra a segurança social, previsto no artigo 106.º - para se afastar tal argumento.
As condutas através das quais sejam conseguidas vantagens patrimoniais ilegítimas de valor igual ou inferior a € 7 500, não constituindo crime de fraude contra a segurança social, não integram certamente qualquer contra-ordenação, e essa não consideração de sancionamento administrativo não impediu o legislador, logo em 2001, de inscrever aquele valor mínimo na tipologia do crime.
O que significa que a uma ausência de crime não tem de corresponder uma necessária inserção da conduta no universo contra - ordenacional.
Dito de outra forma: não é por a conduta não poder integrar contra-ordenação que não poderá deixar de constituir crime.
Até porque há outros meios de alcançar o objectivo de fazer cumprir a obrigação - a execução, como mais desenvolvidamente se explana noutro local, a propósito da debilidade do sistema da segurança social.
Por outro lado, sempre se colocará a questão de saber porque razão as condutas dos contribuintes tendo por objecto valores até 7 500 euros terão um tratamento diverso face a um ou a outro dos crimes contra a segurança social; o que os separa, de forma certamente tão profunda, não obstante pertencerem à mesma família categorial, de modo a que na fraude, a conduta, tendo por objecto vantagem patrimonial até aquele limite não tenha dignidade penal, não se coloque a questão de carência de tutela penal ou de necessidade de pena e já o tenha perante o abuso de confiança, assumindo então relevância criminal neste contexto comportamental?
A entender-se que a remissão do artigo 107.º, n.º 1 para o n.º 1 do artigo 105.º também opera para o valor agora neste inscrito, ficam parificados a este nível os dois crimes contra a segurança social, o que fará todo o sentido, ganhando-se em coesão interna e harmonia do sistema.

Por outro lado, há que ter em atenção que, quer a situação de falta de entrega das contribuições até 90 dias, ou nos 30 dias subsequente à notificação, no caso da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º, quer a prática do abuso de confiança contra a segurança social do artigo 107.º, tratando-se neste caso de falta de retenção ou não entrega por negligência, também não constituem contra-ordenação, estando-se perante situações lacunosas anteriores, que já vêm desde 2001 (no que tange ao crime negligente e à do n.º 4) e desde 1 de Janeiro de 2007 (a que se reporta à alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º), que derivam apenas de falta de atempada regulamentação quanto ao procedimento contra-ordenacional nesta sede, e que as dificuldades de obtenção de receitas do sistema não conseguiram agilizar...

O legislador de 2008 no artigo 107.º, n.º 2, manteve a referência ao n.º 6 do artigo 105.º do RGIT, olvidando que no mesmo diploma revogara esta norma, não fazendo sentido a sobrevivência.
Tendo sido revogado o citado n.º 6, haverá que extrair as devidas consequências.
Um outro argumento no sentido de entender a descriminalização como abrangendo o abuso de confiança contra a segurança social poderá retirar-se da conjugação do n.º 4 do artigo 105.º com a revogação do n.º 6 do mesmo artigo, ambos aplicáveis àquele crime por remissão do n.º 2 do artigo 107.º.
É que, a entender-se a inaplicabilidade da descriminalização, a nova lei eliminou para os crimes de abuso de confiança contra a segurança social a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento, quando o valor da prestação não excedesse € 2000.
Na redacção originária estabelecia o n.º 4 do artigo 105.º:
4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
(A não entrega por período até 90 dias, ou por período superior, constituía contra-ordenação, nos termos do artigo 114.º, n.º 1)
Pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29-12 (Lei do Orçamento do Estado para 2007), o n.º 4 do artigo 105.º foi alterado, passando a estabelecer:
4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
No n.º 4 compreende-se na alínea a) o anterior texto do corpo do mesmo n.º 4, correspondendo a alínea b) a inovação.
Como explicitou o Relatório do Orçamento Geral do Estado para 2007, estabeleceu-se uma distinção entre, por um lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou pagamento do imposto, e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente declarado.
A alínea a) abrange os casos em que há uma intenção de ocultação dos factos tributários à administração fiscal.
A alínea b) abrange os casos de mora na entrega do valor declarado, em que foi cumprida a obrigação declarativa, servindo apenas para os casos em que houve prévia declaração da existência da dívida, com a participação da mesma à administração fiscal, com o concomitante reconhecimento da dívida tributária, mas não acompanhado do respectivo pagamento.
Justificou-se então a inovação, dizendo-se no citado Relatório que “não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se a “proliferação” de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto”.

O n.º 6 do artigo 105.º, a partir da redacção dada pelo artigo 60.º, n.º 1, da Lei n.º 60-A/2005, Suplemento, de 30-12-2005, entrada em vigor em 01-01-2006, que apenas alterou o valor de “€ 1000” para “€ 2000”, estabelece:
6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2 000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

Face à alteração do n.º 4 do artigo 105.º, a partir de 01-01-2007, e por força da alínea b), para os casos de as declarações terem sido comunicadas, o n.º 6 deixou de fazer sentido e revestir qualquer utilidade, pois o pagamento da prestação em dívida, juros e mínimo da coima passaram a afastar a punição, não só para declarações com valor até € 2 000, mas para todas, sem qualquer limite quantitativo (ou seja, em vez de uma extinção da responsabilidade criminal por pagamento em obediência a notificação para casos em que o valor não excedesse os 2 000 euros, passou a haver a possibilidade de afastamento de punição, desde que cumpridos aqueles requisitos, independentemente do valor das declarações, ampliando-se assim os casos de não instauração de inquéritos).
Se o n.º 6 se reportasse apenas aos casos de declaração comunicada, face ao efeito amplificador da inovação da alínea b) do n.º 4, a conferir possibilidades de regularização da dívida em termos muito mais amplos, sem restrição a qualquer valor, deixaria aquele dispositivo de ter qualquer campo de aplicação.
Se assim fosse, o legislador de 2006 teria logo declarado a revogação do n.º 6 do artigo 105.º, face à sua completa inutilidade.
A subsistência do n.º 6 ao longo de dois anos, desde a alteração do n.º 4 do artigo 105.º em 2006 (vigorando de 1-1-2007 a 31-12-2008), só fazia sentido para os casos de ocultação.
Mas tendo sido agora revogado o n.º 6, desapareceu por completo a possibilidade de regularização de dívidas até 2000 euros.
Com a revogação do n.º 6, quando antes existia uma possibilidade de extinção da responsabilidade criminal, condicionada ao pagamento, passou agora a existir uma não criminalização, desde que o montante em dívida não seja superior a € 7500.
O desaparecimento do n.º 6 compreende-se, pois já não há que regularizar dívidas até 2000 euros sob pena de responsabilidade criminal.
Então nestes casos, a não entender-se a descriminalização para o abuso de confiança contra a segurança social, seria o contribuinte substituto confrontado com uma situação mais gravosa, pois enquanto dantes, por recurso ao mecanismo do n.º 6, poderia, no caso de a prestação não exceder os € 2 000, fazer extinguir a responsabilidade criminal, agora, por virtude daquela revogação, desapareceria a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal, vendo assim a sua situação agravada, o que certamente não terá querido o legislador.
Continuando a constituir crime a conduta faltosa que tivesse por objecto declaração até € 7 500, desapareceria, entretanto, a possibilidade de regularização das dívidas até € 2 000, que dantes era reconhecida e concedida!
E assim teríamos que, enquanto no plano fiscal as faltas de entregas até 7 500 euros não constituíam crime de abuso de confiança, no plano da segurança social, uma dívida de 2 000 euros deixava de poder ser regularizada, incorrendo o substituto na prática de crime, mesmo que o valor fosse de 100 euros.

Dantes, desde que estivesse em causa uma dívida de montante até 2.000 euros, o devedor poderia fazer extinguir a responsabilidade mediante pagamento.
Com a revogação do n.º 6 acabou esta possibilidade.
Posto isto, fará algum sentido que no domínio dos crimes contra a segurança social se tenha retirado esta faculdade ao contribuinte, impedindo o pagamento voluntário, mesmo que a convite e tardio, mas sempre meio de alcançar receitas arredias, com os incontornáveis e sempre presentes acréscimos, sem necessidade de recurso à máquina da cobrança coerciva, quando no plano do abuso de confiança fiscal esta possibilidade desaparecera, justamente porque já não havia responsabilidade criminal a extinguir, pela simples razão do seu desaparecimento?
É que assim, num caso descriminaliza-se; no outro, mantendo-se a criminalização, já não há lugar a notificação para regularização.
Para uns, a ausência de punição; para outros, com dívidas de baixo relevo, no tempo da afirmação do simplex, a complicação, a oneração, a tolerância zero, o agravamento da situação do inadimplente!
E o que é mais, abdicando o credor de uma boa forma de arrecadar receitas, ainda sem recorrer à via executiva.

Por outro lado, como se referiu, a razão de ser da revogação do n.º 6 é simples, pois se anteriormente era possível ao substituto fazer extinguir a responsabilidade criminal pelo pagamento na sequência de notificação para o efeito, estando em causa declarações de valor até € 2000, se o crime passa a ser possível apenas a partir de valor superior a € 7500, falece o campo de aplicação da norma.
Uma tal norma deixou de fazer sentido, porque em vez de o devedor ter de pagar, pura e simplesmente, deixou de haver crime!
A notificação/convite ao pagamento por parte da Administração deixou de fazer sentido.
Mais do que a concessão de uma benesse, de uma nova oportunidade de regularização em relação a dívidas de baixo valor, o que projectou o legislador de 2008 no abuso de confiança fiscal foi fazer implodir o tipo relativamente a dívidas cujo valor máximo (€ 7 500) quase quadruplica o limite máximo anterior (€ 2 000) em que existia o convite a essa regularização, ao pagamento, abdicando da criminalização das condutas faltosas que tivessem por objecto prestações até àquele valor.
Mal seria que, neste contexto, no domínio da segurança social, o substituto deixasse de poder regularizar a situação, incorrendo, forçadamente, num novo (com a falta de entrega das contribuições até € 2 000) e inevitável (porque impedido de regularizar a situação) crime, e paralelamente, no plano fiscal, com esses valores e mais elevados, nem crime constituíssem!
Em suma, teríamos a solução algo bizarra de a uma descriminalização no plano do abuso de confiança fiscal corresponder uma sobrecarga de criminalização no plano do abuso congénere da segurança social, subtraindo-se possibilidade de extinção da responsabilidade criminal.
Uma tal solução de sobrecarga das entidades patronais não deixaria de ser considerada como excesso de punição, violação do princípio da proporcionalidade das penas e do princípio da igualdade, com violação dos artigos 13.º e 18º, n.º s 2 e 3, da CRP.

Na verdade, que específicas razões se invocarão para que numa situação em que o substituto retenha € 100 dos salários dos seus trabalhadores e não os entregue à Segurança Social incorra na prática de um crime e, quando não entrega à Administração Tributária a mesma quantia, ou mesmo 7 500 euros, retidos a título de IRS também dos seus trabalhadores, já não cometa crime?
E como entender-se nessa situação a divergência de tratamento quando o sujeito cumular uma e outra atitude, quando o arguido é o mesmo, acumulando a infracção no plano fiscal a outra da segurança social, face a prestações do mesmo montante, e no plano fiscal a omissão constituir mera contra -ordenação e no domínio da segurança social já constituir crime?

Como se refere no citado acórdão da Relação de Guimarães, de 23-03-2009, in CJ 2009, tomo 2, pág. 316, sendo os valores das prestações para a segurança social em regra inferiores aos dos outros impostos, uma distinção de criminalização poderia servir de estímulo a certos contribuintes para, por mera conveniência, privilegiarem o pagamento dos tributos à segurança social, em detrimento de outros até 7500 euros, pois por esses outros impostos não seriam sujeitos a responsabilidade criminal mas contra - ordenacional.
Numa outra leitura, mas com o mesmo fundamento, pronunciou-se o citado acórdão da Relação do Porto, de 27-05-2009, processo n.º 343/05.7TAVNF.P1-1ª, quando refere: Seria até ilógico e incoerente que, no caso se estar em causa a não entrega de contribuições sociais não superiores a € 7.500, o agente tivesse que “pensar” em cometer antes o crime de fraude contra a segurança social (em vez do crime de abuso de confiança contra a segurança social) para a sua conduta não ser censurada penalmente (e quando muito sujeitar-se a uma coima irrisória).
E ainda noutra visão, a resposta negativa dada pelo acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2009, no processo n.º 12323/03.2TDLSB-5ª secção, às questões que suscita nestes termos: “Terá então um efeito aglutinador da unidade sistémica e de sentido e será potenciador da certeza e segurança jurídicas e, sobretudo, da equidade que em relação a situações de facto tão próximas, tão interpenetradas na realidade do quotidiano das empresas (principalmente aí, como é natural) se estabeleça uma diferença tão marcada ao nível da sua punição como a que a jurisprudência que parece dominante nesta matéria propõe?
Entre a não entrega do IVA até ao montante de 7.500 €, por exemplo, e a não entrega das prestações deduzidas ao trabalhador de semelhante valor terá realmente o legislador querido desvalorizar a gravidade daquela, e, em contraponto, acentuar a gravidade desta?
Estarão, por via dessa interpretação, assegurados aqueles valores tios como essenciais para a interpretação das normas penais em causa?”.

Concluindo.

Numa outra perspectiva, tendo em conta uma visão sistemática, integrada e de coerência interna, no domínio específico da categoria dos crimes tributários e da espécie crimes contra a segurança social, poderemos dizer que o legislador terá querido equiparar o regime de incriminação do crime de abuso de confiança contra a segurança social ao crime de fraude contra a segurança social, parificando os patamares iniciais de criminalização, estabelecendo o limite mínimo constitutivo nos dois crimes contra a segurança social, exactamente no mesmo valor de referência, com idêntica expressão pecuniária, estabelecendo que apenas haveria infracção criminal contra a segurança social (em qualquer das sub - espécies) desde que ultrapassado (na vantagem patrimonial ilegítima ou no montante deduzido não entregue) o limite de € 7 500.
Já no domínio da espécie das infracções fiscais o legislador entendeu não efectuar essa parificação, pois estando previsto o valor limite de € 15 000 para a fraude (artigo 103.º, n.º 2), existente desde 01-01-2006, e então sendo elevado para o dobro o anterior, agora em 2008, na descriminalização do crime de abuso de confiança fiscal, quedou-se pelo valor de € 7 500, ou seja, entre os dois valores pecuniários pré - existentes, correspondentes aos “delitos fiscais”, elegeu para a não criminalização do abuso de confiança precisamente o valor presente … no crime de fraude contra a segurança social…

Revertendo ao caso dos autos.

Como resulta dos factos provados (ponto de facto n.º 16) as quantias devidas a título de contribuições, declaradas mensalmente em todos e cada um dos períodos assinalados são de valor não superior a € 7 500, sendo o mais elevado no montante de € 4.115,09, correspondente a Novembro de 1998, mostrando-se, pois, descriminalizada esta conduta pela qual o recorrente foi também condenado, impondo-se declarar extinta a responsabilidade criminal, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal.
Procede assim o recurso nesta parte.

III QUESTÃO – PEDIDO CÍVEL

O pedido cível a apreciar foi deduzido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, tendo por base as condutas que integravam o crime de abuso de confiança contra a segurança social imputado aos arguidos, assentando na responsabilidade criminal emergente do incumprimento desta específica obrigação legal tributária, que recaía sobre a sociedade AA e seus gerentes, co-arguidos, entre os quais o recorrente - artigos 6.º e 7.º do RGIT.

Relembremos a posição do recorrente relativamente a este aspecto particular, colocando as questões sintetizadas nas conclusões VII a XI.

A questão da competência material e da reversão

Defende o recorrente nas conclusões VII e VIII que deve ser absolvido do pedido de indemnização cível, por não existir qualquer acto de reversão contra si respeitante à dívida da AA e que a sua condenação no pagamento de uma indemnização viola o disposto no artigo 212°, nº 3 da Constituição e artigo l.º, n.º 1 do ETAF.
A questão da extinção da acção cível
Suscita o recorrente a questão de saber se a extinção da responsabilidade criminal acarreta ou não a extinção da responsabilidade civil, sendo a sua posição expressa nas conclusões:
IX. De todo o modo, encontrando-se descriminalizada toda a matéria constante do pedido de indemnização cível, deve o mesmo ser considerado improcedente.
X. Porquanto apenas a prática de um facto típico qualificado como crime poderá determinar a responsabilização do arguido, como resulta da conjugação dos artigos 129.º do Código Penal e 71. ° do Código de Processo Penal
XI. Qualquer responsabilidade civil do arguido apenas seria apreciada nestes autos se se verificasse o ilícito criminal; ora, estando os factos em apreço descriminalizados, deve sem dúvida o pedido de indemnização cível ser julgado improcedente.

Apreciando.

Assente que a conduta criminal, respeitante ao abuso de confiança contra a segurança social, fundamento do pedido cível deduzido pelo IGFSS foi totalmente descriminalizada, a abordagem à questão cível só faz sentido pela ordem inversa à apresentada pelo recorrente, pois só se justifica abordar a questão da incompetência material e da reversão se se concluir pelo prosseguimento da acção conexa, o que no caso significa e se reconduz apenas ao conhecimento do recurso, em ordem a indagar se se mantém ou não e, só depois, assente essa subsistência da acção cível, fará sentido discutir as questões relacionadas com a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns e a reversão.

1.ª Sub-Questão
A extinção da responsabilidade criminal determina (inexoravelmente) a extinção da acção cível conjunta?

A condenação em indemnização civil, no caso de absolvição quanto à matéria penal, só pode ter lugar no caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, quando - ainda que haja sentença absolutória na parte criminal – o pedido de indemnização civil se venha a revelar fundado.
Como consabido, o pedido de indemnização civil deduzido em processo criminal terá sempre de ser fundado na prática de um crime (artigo 71.º do C. P. Penal).
Absolvido o arguido do crime, restará sempre a possibilidade de ter existido, residualmente, ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco, para usar a expressão do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 03-11.
Não bastará que se provem factos que consubstanciem uma obrigação de natureza civil: é necessário que se esteja perante um ilícito civil, que produza o dever de indemnizar, nos termos do artigo 483.º do Código Civil.
A questão será a de saber se estamos perante um ilícito civil de natureza delitual.

Estabelece o artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º”.
Na actual fase processual a ressalva final não se coloca, pois já houve decisão na 1ª instância, confirmada pela Relação.

Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, in Código de Processo Penal Anotado, 1996, 1.º volume, págs. 340/1, entendem que nos casos de extinção do procedimento criminal (que pode ocorrer por prescrição, falecimento do arguido, por amnistia, por renúncia e por desistência da queixa ou da acusação particular ou em caso de revogação da lei que prevê e pune a infracção), “se já houver pedido de indemnização cível formulado, o processo penal continua para conhecimento desse pedido, salvo se os lesados preferirem, entretanto, a via cível autónoma”.

Vejamos então o que ocorre com outros casos de extinção da responsabilidade criminal, decorrentes de descriminalização, de prescrição e de amnistia (artigos 2.º, n.º 2, 117.º a 120.º e 126.º do Código Penal).

Na sequência da descriminalização da emissão de cheque sem provisão, em 1997, com a exclusão da tutela penal dos cheques de garantia e pós-datados, e em 2005, com a emissão de cheques de montante igual ou inferior a 150 euros, foi conferida a possibilidade de, no processo que se encontrasse em fase de julgamento, o lesado poder requerer a prossecução apenas para efeito de julgamento do pedido civil - artigo 3.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19-11 (1.ª alteração ao regime jurídico do cheque sem provisão aprovado, pelo Decreto-Lei n.º 454/91, de 28-12) e repetida ipsis verbis no artigo 2.º, n.º 4, da Lei n.º 48/2005, de 29-08 (4.ª alteração ao mesmo regime jurídico do cheque sem provisão).

Por seu turno, as sucessivas leis de amnistia, face à extinção do procedimento e da responsabilidade, prevêem expressamente a possibilidade, não só de prosseguimento da acção cível já interposta, mas inclusive de dedução do pedido, como se vê das quatro últimas leis de clemência, cingindo-nos a estas apenas por economia de exposição.
Assim, no artigo 12.º da Lei n.º 16/86, de 11-06, depois de afirmar no n.º 1 que a amnistia decretada no artigo 1.º não prejudica a responsabilidade civil emergente dos factos que sejam objecto daquela, confere aos ofendidos a faculdade de ainda deduzirem o pedido de indemnização cível – 1.ª parte do n.º 2 – e caso já haja sido deduzido para requerer o prosseguimento - 2ª parte do n.º 2 e n.º 3.
A Lei n.º 23/91, de 04-07, no artigo 12.º, n.º 1, depois de afirmar no n.º 1 que a amnistia decretada no artigo 1.º não prejudica a responsabilidade civil emergente dos factos que sejam objecto daquela, quanto a possibilidade de prosseguimento do processo, nos n.ºs 2 e 3, pronuncia-se exactamente nos mesmos termos da lei anterior.
O artigo 7.º da Lei n.º 15/94, de 11-05, depois de no n.º 1 proclamar que a amnistia prevista no artigo 1.º não extingue a responsabilidade civil emergente de factos amnistiados, confere a faculdade ao lesado, quer para deduzir no processo o pedido cível – n.º s 2 e 3 –, quer para requerer o prosseguimento do processo apenas para apreciação e fixação da indemnização cível – n.º s 4 e 5.
O artigo 11.º da Lei n.º 29/99, de 12-05, depois de no n.º 1 proclamar que a amnistia prevista no artigo 7.º não extingue a responsabilidade civil emergente de factos amnistiados, confere a faculdade ao lesado quer para deduzir no processo o pedido cível – n.º s 2 e 3 – quer para requerer o prosseguimento do processo apenas para apreciação e fixação da indemnização cível – n.º s 4 e 5.

No domínio da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, pelo Acórdão n.º 1/98, de 16-10-1997, no processo n.º 1134/96, publicado no DR - I Série - A, n.º 2, de 03-01-1998, foi fixada por este Supremo Tribunal, como jurisprudência, então obrigatória, a seguinte: “Quando, por aplicação da amnistia, se extingue a acção penal, e apesar de ainda não ter sido deduzida acusação, poderá o ofendido requerer o prosseguimento da acção penal para apreciação do pedido cível, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho”.
Na fundamentação do acórdão uniformizador pode ler-se: “Na verdade, se até ao Decreto-Lei n.º 259/74 era afirmado que a amnistia não prejudicava a possibilidade de os interessados poderem exigir a responsabilidade civil, a partir daí inicia-se a possibilidade do prosseguimento dos processos em que já fora formulado o pedido de indemnização civil. Nas leis de amnistia dos anos de 1986 e 1991 ainda se avançou mais na defesa dos direitos dos ofendidos e no aspecto concernente com a possibilidade de se obter a indemnização civil”.
Igualmente, nos casos em que é declarada a prescrição, como se vê do Acórdão n.º 3/2002, de 17-01-2002, publicado no DR, I Série - A, de 05-03-2002, que fixou a seguinte jurisprudência:
“Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal, mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste”.

No estudo publicado no Boletim da Associação Sindical defendeu-se que caso deixe de existir ilícito criminal já não se poderá apreciar o pedido cível, excepto se o legislador expressamente o impusesse, como fez na lei do cheque de 2005.
De entre os acórdãos que optaram no sentido da descriminalização e que se pronunciaram sobre esta questão e no sentido de poder prosseguir a acção cível, temos o acórdão da Relação do Porto, de 27-05-2009, processo n.º 343/05.7TAVNF.P1-1ª, em que se pondera que se nos termos do artigo 2.º, n.º 2 do Código Penal, a lei penal opera retroactivamente, já em matéria cível, visto o disposto no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil, aplica-se a lei civil vigente à data dos factos, o que significa que, não obstante a descriminalização no que respeita ao pedido cível aplica-se, a nível substantivo, a lei vigente à data da prática dos factos e o acórdão da Relação de Lisboa de 15-07-2009, processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1-3ª (em matéria cível por força do artigo 12.º n.º 1, do Código Civil aplica-se a lei civil vigente à data dos factos).

No caso presente apenas se coloca a questão da possibilidade de cognição do recurso nesta sede.

Passamos a transcrever o que escrevemos no acórdão de 28-05-2008, no processo n.º 131/08, em que se colocava a questão de saber o que acontece na sequência da absolvição da prática do crime, em recurso circunscrito à parte criminal: se a absolvição na parte criminal arrasta necessariamente a absolvição da parte civil, ou se, não obstante aquela absolvição do ilícito criminal, subsistirá a condenação no pedido cível e em que termos. (No caso verificava-se omissão de pronúncia sobre “a sorte” da acção cível, na sequência da absolvição crime).
«O artigo 129º do Código Penal, na versão do Decreto-Lei nº 48/95, de 15/3, intocado nas versões das Leis nº 59/98, de 25-08 e nº 59/07, de 04-09, prescreve que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, entendendo a jurisprudência que tal preceito (como de resto o anterior artigo 128º na versão de Código Penal de 1982) tem em vista determinar que a indemnização seja regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil.
Já no que respeita ao campo de aplicação do preceituado no artigo 377º, nº 1, do C.P.P., houve divergências na jurisprudência, havendo quem defendesse que haveria que considerar o pedido cível formulado apenas nos casos em que existisse responsabilidade civil extracontratual ou responsabilidade fundada no risco, não sendo de condenar nos casos de mera responsabilidade contratual, defendendo outros que a condenação deveria ser proferida, quer a obrigação derivasse de facto ilícito extracontratual, quer se fundasse no risco, quer tivesse por fonte violação de qualquer direito subjectivo, incluindo direitos de crédito.
No 1º caso, que representava então a jurisprudência dominante do S.T.J., podiam ver-se os acórdãos do mesmo Tribunal, de 25-01-96, in CJSTJ 1996, tomo 1, pág. 189; de 10-02-96, in CJSTJ 1996, tomo 3, 202 e BMJ 462, 294; de 09-07-97; in CJSTJ 1997, tomo2, 262; de 02-04-98, in CJSTJ 1998, tomo 2, 179 e de 24-02-99, in CJSTJ 1999, tomo1, 224, e no segundo os acórdãos das Relações do Porto, de 19-11-97, in C.J. 1997, tomo 5, 227 e de Coimbra, de 17-06-98, in C.J. 1998, tomo 3, 56.
O STJ foi chamado a resolver o conflito suscitado por dois acórdãos da Relação de Coimbra, que preconizavam soluções opostas para a questão, proferindo acórdão uniformizador de jurisprudência em 17-06-1999.
Aí fixou a seguinte jurisprudência: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”.
Tal acórdão foi publicado no D.R., I-A, n.º 179, de 03-08-99, sob a designação de “Assento n.º 7/99” e no BMJ 488, 49.
A fórmula constante do artigo 377º, n.º 1, do C.P.P. – pedido cível “fundado” – é algo diversa da que figurava no texto do artigo 12º do Dec-Lei nº 605/75, de 03-11, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei nº 377/77, de 06-09 e que é a fonte próxima daquele artigo 377º.
Dispunha o artigo 12º do Dec.-Lei 605/75: “Nos casos de absolvição da acusação-crime, o juiz condenará o réu em indemnização civil, desde que fique provado o ilícito desta natureza ou a responsabilidade fundada no risco. Nestes casos, aplicar-se-á o disposto no artigo 34º e seus parágrafos do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações”.
A razão de tal inovação era explicada à época nos termos constantes do n.º 5 do preâmbulo do Dec-Lei 605/75: “Quando o juiz absolve da acusação crime, mas fique provado o ilícito, ou nos casos de mera responsabilidade civil objectiva, não se vê razão para a inutilização de toda a actividade processual desenvolvida, obrigando as partes a um ulterior recurso ao juízo cível com as consequentes e inevitáveis demoras e prejuízos materiais. Concede-se, assim, ao juiz a faculdade de condenar o réu em indemnização cível, mesmo que o absolva da acusação crime”.
A norma em referência inseria-se num quadro legal, em que se destacavam as seguintes normas:
Artigo 75º, n.º 3, do Código Penal de 1886, o qual estabelecia: O réu definitivamente condenado, qualquer que seja a pena, incorre: na obrigação de indemnizar o ofendido do dano causado, e o ofendido ou os seus herdeiros requeiram a indemnização.
Artigo 34º do Código de Processo Penal de 1929: O juiz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida.
Artigo 450º do C. P. Penal de 1929: A sentença condenatória deverá conter: 5º - A condenação na pena aplicada, indemnização por perdas e danos e impostos de justiça.
Neste quadro, a atribuição de indemnização em caso de condenação pelo crime era oficiosa, como decorria do artigo 34º do C.P.P.
E no caso de condenação em indemnização ao abrigo do artigo 12º do Dec-Lei 605/75, sempre que o titular do direito à indemnização não tivesse constituído advogado, cumpria ao M.º P.º exercer o controle sobre o efectivo pagamento daquela, diligenciar pelo seu cumprimento voluntário ou coercivo, como decorria do artigo 13º do Dec-Lei 605/75.
Com o advento do Código de Processo Penal de 1987 deixa de haver indemnizações atribuídas oficiosamente, como desde logo constava do ponto 15 do n.º 2 do artigo 2º da Lei 43/86, de 26-09 (Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal): “consagração da necessidade de pedido civil para que o juiz penal possa arbitrar uma indemnização, restringindo-se o patrocínio oficioso do Ministério Público aos carecidos de meios económicos”.
Na revisão operada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, mantém-se o respeito pelo princípio do pedido, embora com a novidade que constitui a possibilidade de o tribunal oficiosamente poder arbitrar, como efeito penal da condenação, uma reparação pelos prejuízos sofridos quando o imponham particulares exigências de protecção da vítima, o que veio a ser concretizado com o artigo 82º - A, do C.P.P. – cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei N.º 157/VII – ponto 12 – retomando-se, assim, de certo modo, o regime constante do artigo 34º de C.P.P. de 1929.
O artigo 377º, nº 1, do C.P.P. de1987 “sucede” ao artigo 12º do Dec-Lei 605/75, que lhe serviu de fonte próxima, abandonando, porém, a antiga referência expressa a “ilícito desta natureza (civil) ou a responsabilidade fundada no risco” para passar a referir-se a situações em que o pedido de indemnização civil se venha a revelar “fundado”.
Resulta dos artigos 84º e 377º do CPP a admissibilidade de condenação em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, ainda que a sentença seja absolutória quanto à responsabilidade criminal.
Com a introdução desta nova fórmula a questão é saber em que consiste um pedido “fundado”, o que deve entender-se por pedido cível fundado.
O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal é o fundado na prática de um crime, como o impõe o artigo 71º do CPP que estabelece: «O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei».
Este conceito de fundado, no sentido de emergente de um crime, não se confunde com o conceito de “fundado” do artigo 377º, nº 1, do C.P.P.
No âmbito do artigo 71º do CPP, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime, tem de ter na sua base uma conduta criminosa, que determina o funcionamento do princípio da adesão.
No plano do artigo 377º, nº 1, do CPP, pedido fundado significará pedido que tem a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que constituem também pressuposto da responsabilidade criminal.
Como sustenta Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1996, volume I, p.111, «Sucede é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo».
A questão fundamental será a de saber se deveremos olhar apenas ao bem fundado (ou não) do pedido cível, independentemente da natureza da responsabilidade que lhe subjaz, abarcando não apenas os casos de responsabilidade aquiliana e de responsabilidade objectiva, mas também outros casos, como o da responsabilidade contratual, em que o pedido cível se pode basear na violação de uma relação creditícia, ou se pelo contrário, o bem fundado do pedido cível se deve confinar, restringir à responsabilidade extracontratual ou aquiliana, ou ainda responsabilidade objectiva, com exclusão da responsabilidade contratual.
A solução do acórdão de uniformização de jurisprudência assentou na dicotomia responsabilidade extracontratual e contratual, por estar em equação no caso concreto crime de emissão de cheque sem provisão, em que ocorrendo absolvição pelo crime, subsiste a relação causal, pois na génese de um título de crédito está sempre um negócio subjacente, causal, a relação jurídica fundamental, que determina a emissão do cheque, seja compra e venda, mútuo, arrendamento, transporte, etc., tendo na sua base uma relação contratual. Apenas estas hipóteses ficaram arredadas e não também os casos de responsabilidade objectiva».

O exposto tem inteiro cabimento no caso concreto, sendo o pedido cível formulado nos autos em obediência ao princípio da adesão, fundamentado na responsabilidade criminal do arguido.
No sentido de que a circunstância da absolvição criminal não determina a preclusão da apreciação cível, não impedindo a condenação em indemnização civil, pronunciou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-04-2002, processo n.º 2259/01-3ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 171.

Nestes termos, entendendo-se que a ora decretada extinção da responsabilidade criminal não obsta à subsistência da condenação cível, conhecer-se-á do recurso, improcedendo as conclusões IX, X e XI.

II.ª Sub – Questão
Incompetência material do tribunal criminal para conhecer do pedido de indemnização - Reversão

Sobre o pedido cível, assim discreteou o Colectivo de Póvoa de Varzim:
«De acordo com o disposto no artigo 129º do Código Penal: “A indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil”.
Assim sendo, emerge deste normativo jurídico-penal que a obrigação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual é causa de pedir admissível em acção de indemnização enxertada em processo crime.
O pedido de indemnização baseia-se na responsabilidade civil emergente da prática de facto ilícito, fundada na responsabilidade subjectiva dos demandados.
Assim, e considerando ainda o disposto nos arts. 211º da Constituição da República Portuguesa e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, tem de considerar-se este o tribunal competente para decidir o presente pedido cível, ao contrário do defendido pelos arguidos.
Sobre a responsabilidade subjectiva, afirma-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 17/01/1991 (in, CJ, ano XVI, tomo 1º, p. 132) que estamos perante uma questão de responsabilidade civil extracontratual, pelo que a obrigação de indemnizar se verifica desde que estejam preenchidos os necessários pressupostos para o efeito. Vale aqui o princípio consignado no art. 483º do Código Civil, segundo o qual a obrigação de indemnizar pelos prejuízos causados impende sobre todo aquele que "com dolo ou mera culpa" violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
De acordo com este preceito, podemos isolar como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva extracontratual ou aquiliana:
- Facto voluntário do agente - Facto ilícito do agente; - Nexo de imputação subjectivo do facto ao lesante; - Dano resultante da violação do direito ou da lei; - Nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano sofrido pela vítima.

Face à materialidade fáctica apurada, dúvidas não subsistem sobre o preenchimento dos primeiros três pressupostos.
Com efeito, encontra-se provado que os demandados “AA” e CC, este actuando em nome e em proveito da sociedade arguida, procederam ao desconto de contribuições nos salários pagos aos trabalhadores, apropriando-se das mesmas em benefício da sociedade arguida.
Este comportamento consubstancia o facto voluntário e ilícito dos demandados com interesse para integrar o pressuposto legal.
Daí advém a legitimidade do arguido CC para ser demandado pela Segurança Social para proceder ao pagamento das quantias em dívida, ao contrário do defendido pelo mesmo.
Por outro lado, perante, os factos provados, é de concluir que ao comportamento dos demandados é susceptível de lhe ser imputado um juízo de censura a título dolo.
Sendo assim, tem o demandante civil o direito a haver dos arguidos “AA” e CC, não só as contribuições devidas à segurança social, no montante total de 85.262,46 Euros, correspondentes ao meses de Janeiro de 1998 a Dezembro de 1998, Janeiro de 1999 a Dezembro de 1999, Janeiro de 2000 a Abril de 2000 e Julho de 2000, como também os juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, calculados nos termos do art. 16º do Dec-Lei nº 411/91, de 17/10 e art. 3º do Dec. Lei nº 73/99, de 16.03».

Por seu turno, disse a Relação do Porto:

«J - Pedido de indemnização civil

1. Por último, o recorrente suscita a incompetência do tribunal recorrido para apreciar o pedido de indemnização civil, alegando que a sua responsabilização está dependente de um acto administrativo de reversão, até ao momento inexistente e cuja apreciação seria da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais – violando, assim e além do mais, o disposto no artigo 212.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2. Volta a não ter razão: como bem esclarece o acórdão recorrido [uma vez que o tema havia sido já lançado na contestação], a responsabilidade que aqui se apura é a decorrente de factos ilícitos [artigo 483.º, do Código Civil] e, nessa medida, impende sobre os agentes concretos que, com dolo ou mera culpa, violarem ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios ficando estes obrigados a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Assim, e nos termos da legislação aplicável, compete aos tribunais da jurisdição comum, e em concreto ao tribunal colectivo que julga o processo respeitante a crimes de Abuso de confiança contra a segurança social e de Abuso de confiança [fiscal], conhecer e julgar o pedido de indemnização civil proposto pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Com o que improcede mais este fundamento e com ele todo o recurso».
De acordo com o artigo 129.º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Desde cedo a jurisprudência entendeu que tal norma só determina que a indemnização seja regulada “quantitativamente e nos seus pressupostos” pela lei civil, remetendo para os critérios da lei civil relativos à determinação concreta da indemnização, não tratando de questões processuais, que são reguladas pela lei adjectiva penal, nomeadamente nos seus artigos 71.º a 84.º - acórdãos do STJ, de 12-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 227; de 06-03-1985, BMJ n.º 345, pág. 213; de 13-02-1986, processo nº 38028; de 06-01-1988, BMJ n.º 373, pág. 264; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 09-06-1996, processo nº 6/95; de 10-12-1996, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 202 e BMJ, n.º 462, pág. 294; de 09-07-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 260; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5ª; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-03-2007, processo n.º 4596/06-3ª; de 25-06-2008, processo n.º 449/08-3ª; de 03-09-2008, processo n.º 3982/07-3ª; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3373/08-3ª; de 05-11-2008, processo n.º 3266/08 - 3ª; de 10-12-2008, processo n.º 3638/08 - 3ª [a interdependência das acções significa independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível relativamente ao processo penal]; de 18-02-2009, processo n.º 2505/08 - 3ª; de 25-02-2009, processo n.º 3459/08 - 3ª; de 15-04-2009, processo n.º 3704/08 - 3ª; de 18-06-2009, processo n.º 81/04.8PBBGC.S1-3ª.

Como resulta do artigo 3.º, alínea c), do RGIT, quanto à responsabilidade civil, são aplicáveis subsidiariamente, as disposições do Código Civil e legislação complementar.

De acordo com o princípio geral plasmado no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Nestes casos de responsabilidade civil conexa com a criminal, a mesma tem a sua génese no crime, sendo um crime o seu facto constitutivo, a causa de pedir da pretensão ressarcitória.

Conforme dispõe o artigo 71.º do Código de Processo Penal o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
A dedução em separado, perante o tribunal civil, é possível nos casos previstos no artigo 72.º, não se integrando o pedido em nenhum deles.

A competência do tribunal criminal para conhecer do pedido cível conexo com a acção penal decorre da responsabilidade civil extracontratual do agente que cometa o facto ilícito e culposo.
Neste quadro legal, que é o aplicável, não há lugar a qualquer reversão.

Para melhor percepção do âmbito da responsabilidade subsidiária e do instituto da reversão, vejamos as disposições atinentes constantes da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001 (sendo o artigo 24.º, n.º 1, alínea a), na redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29-12).
Artigo 18.º - Sujeitos
3 – O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.
Artigo 20.º - Substituição tributária
1 – A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte.
2 - A substituição tributária é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido.
Artigo 22.º - Responsabilidade tributária
2 – Para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas.
3 – A responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária.
Artigo 23.º - Responsabilidade tributária subsidiária
1 - A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal.
2 – A reversão contra o responsável subsidiário depende da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão.
4 – A reversão, mesmo nos casos de presunção legal de culpa, é precedida de audição do responsável subsidiário nos termos da presente lei e da declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão, a incluir na citação.
Artigo 24.º - Responsabilidade dos membros dos corpos sociais e responsáveis técnicos
1 – Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício de seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.
2. …………………………………………………………………………………
3. ………………………………………………………………………………….

A natureza judicial do processo de execução fiscal é afirmada pelo artigo 103.º, n.º 1, da LGT.
Sobre a extensão da legitimidade passiva na execução fiscal, mais concretamente sobre o chamamento à execução dos responsáveis subsidiários, rege o n.º 2 do artigo 153.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 15/2001.
Tal chamamento depende da verificação de qualquer das seguintes circunstâncias: inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores, ou fundada insuficiência, de acordo com os elementos constantes do auto de penhora e outros de que o órgão da execução fiscal disponha, do património do devedor para a satisfação da dívida exequenda e acrescido.
E de acordo com o artigo 159.º do mesmo CPPT, reproduzindo textualmente o que constava do artigo 245.º do anterior CPT, no caso de substituição tributária e na falta ou insuficiência de bens do devedor, a execução reverterá contra os responsáveis subsidiários.
Com a reversão o que ocorre é uma modificação subjectiva da instância, uma ampliação do âmbito subjectivo da instância executiva, através da intervenção de um terceiro (à luz do título executivo extrajudicial donde promana a execução fiscal – certidão extraída do título de cobrança – artigo 162.º, alínea a), do CPPT), mas que também é sujeito passivo da relação tributária, como “responsável” (artigo 18.º, n.º 3, in fine, da LGT), vinculado ao cumprimento da prestação tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º da LGT e artigo 153.º, n.º 2, do CPPT, ou seja, no caso de não haver bens penhoráveis do devedor e seus sucessores ou insuficiência de bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários.
A execução reverte assim contra pessoa distinta da que figura no título executivo como devedor, ocorrendo quanto a ela, não os pressupostos do facto tributário, mas da responsabilidade, operando-se a extensão da obrigação de cumprimento da prestação tributária a pessoa diversa do contribuinte directo
O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 160/07 (Plenário), de 6 de Março de 2007, no processo n.º 390/06, não considerou inconstitucional o conjunto normativo que considere que por despacho do Chefe do Serviço de Finanças se efective a reversão no processo de execução fiscal contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, entendendo-se não constituir a reversão um acto com natureza jurisdicional, consentida pelo artigo 103.º, n.º 1, da LGT.

Ao tempo da instauração do processo n.º 401/03.1TAPVZ estava em vigor o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27-04 (complementado pelo Decreto-Lei n.º 374/84, de 29-11), dispondo no artigo 1.º que “A jurisdição administrativa e fiscal é exercida por tribunais administrativos e fiscais, órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo”, e estabelecendo o artigo 3.º que “Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
E o artigo 4.º, n.º 1, alínea d), exclui da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto actos relativos ao inquérito e instrução criminais e ao exercício da acção penal.
Este diploma veio a ser revogado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, republicada em anexo à Lei n.º 107-D/2003, de 31-12 e que entrou em vigor em 01-01-2004, cujo artigo 1.º, n.º 1, dispõe que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Segundo o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, introduzido pela revisão de 1989, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
E segundo o artigo 211.º, n.º 1, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

No caso em apreciação não tem lugar a figura de reversão, própria do processo executivo e que tem por objectivo chamar à acção executiva quem à luz do título executivo não é parte (cfr. artigos 55.º, n.º 1, do CPC e 153.º, n.º s 1 e 2 do CPPT), situação completamente diversa da presente em que o recorrente é demandado ab initio, numa acção com estrutura declarativa, sendo contra si invocada uma concreta causa de pedir e formulado um pedido concreto, que pode impugnar nos termos gerais consentidos em processo penal.
Na execução fiscal o devedor substituto não figura no título de cobrança do tributo.
Ao optar pelo exercício da acção conjunta o demandante pretende obter decisão condenatória que, transitada em julgado, assume o papel de título executivo, com a configuração própria do artigo 467.º do Código de Processo Penal.
Aqui o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual - artigo 6.º do RGIT- sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo - artigo 483.º do Código Civil.
Mais do que uma presunção legal de culpa (artigo 23.º, n.º 4, da LGT), invocável em sede de responsabilidade tributária, aqui o pedido de indemnização baseou-se na prática de um facto que à data constituía crime doloso, pois o crime em questão é apenas previsto na forma dolosa (não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores de crime só podem ser punidos se praticados com dolo - artigo 13.º do Código Penal), sendo o pedido substanciado numa causa de pedir de matriz diversa – não em responsabilidade tributária, mas responsabilidade criminal e responsabilidade civil decorrente da prática de um crime, uma responsabilidade extra-contratual, delitual ou aquiliana.
Sendo certo que o IGFSS podia interpor execução contra a sociedade arguida, possuindo quanto a ela título executivo, podendo ainda nessa sede requerer a reversão contra os respectivos representantes legais, reunidos que fossem os necessários requisitos, nada impede que faça uso da faculdade conferida em processo penal do princípio da adesão.
Os crimes tributários, e é disso que se trata, são julgados nos tribunais criminais, e não nos tribunais administrativos e fiscais.
Sendo diversos os sujeitos numa e noutra demanda – pelo menos, os originários – e a causa de pedir (a pretensão deduzida nas execuções fiscais e a pretensão formulada no presente processo não procedem do mesmo facto jurídico – cfr. artigo 498.º, n.º 4, do CPC), bem como o pedido, pois a indemnização aqui impetrada não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, nem se poderia colocar a questão de configuração da excepção dilatória da litispendência.
E mesmo que o demandante use dessa opção, não haverá lugar a condenação em custas, nos termos do artigo 449.º, n.º 2, alínea c), do CPC, pois que o título de cobrança não tem manifesta força executiva contra o responsável subsidiário, de tal modo que há que fazê-lo intervir no processo, e por outro lado, a acção enxertada tem uma configuração e alcance muito mais amplo do que a exercitada no executivo, pois não está em causa uma presunção legal de culpa, mas uma imputada, em sede criminal, intenção criminosa.
A competência do tribunal criminal para conhecer da acção penal e da conexa acção cível enxertada não se confunde com a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal em processo de execução.
Nestes casos não está em causa apurar da responsabilidade do recorrente perante os credores sociais, quando pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção desses credores, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos - n.º 1 do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais -, mas de apurar a sua responsabilidade civil pela prática de ilícito de natureza criminal que não foi objecto de condenação, que não exige o preenchimento dos pressupostos referidos.
Para obter título executivo também contra os sócios gerentes da sociedade devedora fiscal, arguida nos autos, o demandante tem necessariamente de demandar todos em acção de condenação, tendo interesse em agir na demanda contra os mesmos, não relevando o facto de o IGFSS ter outros meios para obter o pagamento das quantias em dívida, designadamente, a execução fiscal - neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 06-01-2005, processo n.º 4450/04-5ª; de 26-01-2006, processo n.º 231/05-5ª e de 11-12-2008, processo n.º 3850/08- 5ª.

Conclui-se assim que o tribunal criminal tem competência em razão da matéria para julgar a acção cível interposta pelo IGFSS, não havendo lugar neste tipo de processos à figura da reversão, nem se mostrando violados os artigos 212.º da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF.
Improcedem assim as conclusões VII e VIII.

Não vindo questionado o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, nem o montante indemnizatório, aliás devidamente fundamentados nas decisões do Colectivo de Póvoa de Varzim e da Relação do Porto, é de manter na íntegra a decisão recorrida.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em:
1. – No que toca à parte criminal:
1. - 1 – Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido CC, no que concerne ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, por que também foi condenado o recorrente, tendo em consideração o disposto nos artigos 105.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1 do RGIT e artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, declarando-se a respectiva descriminalização, revoga-se o acórdão recorrido quanto à condenação penal por tal crime, e nessa medida, extinta a responsabilidade criminal;
1. - 2 – Conceder parcial provimento, no que se refere ao crime de abuso de confiança fiscal, revogando-se em parte o acórdão recorrido quanto à condenação penal por tal crime, declarando-se descriminalizada parcialmente a conduta imputada, e nessa medida, extinta parcialmente a responsabilidade criminal, com excepção das condutas referentes às sete parcelas supra referidas, mantendo-se, pois, a autoria do referido crime, na parte subsistente.
1.2. - 1. - Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de nove meses de prisão.
1.2. - 2. – Suspender a execução da pena, nos termos do artigo 14.º do RGIT, pelo período de três anos, com a condição de o recorrente pagar, em igual prazo, o montante de € 81 987,22 e acréscimos legais.
2. – Julgar improcedente o recurso quanto ao pedido cível, sendo o tribunal criminal o competente para conhecer do pedido de indemnização deduzido nos autos, mantendo-se na íntegra a condenação constante da decisão recorrida.

Custas da acção criminal pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à que lhes foi dada pela Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro – Regulamento das Custas Processuais - com as alterações introduzidas pelo artigo 156º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, uma vez que de acordo com o artigo 27º daquela Lei, o novo regime de custas processuais só é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009), e artigos 87.º e 89.º, do CCJ, fixando-se a taxa de justiça em 5 unidades de conta.
Custas cíveis pelo recorrente, com taxa de justiça a fixar, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.º 1, ex vi do artigo 88.º do Código das Custas Judiciais.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Lisboa, 04 de Fevereiro de 2009

Raul Borges (Relator)
Fernando Frois