Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0384/16
Data do Acordão:11/22/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRS
EXCLUSÃO DE TRIBUTAÇÃO
HABITAÇÃO PRÓPRIA
HABITAÇÃO PERMANENTE
Sumário:I - Da letra do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS – que dispõe que “são excluídos de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar” –, resulta a necessária simultaneidade da propriedade e da permanência da habitação na titularidade do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, não se referindo a lei a qualquer limite temporal mínimo para a observância de tais requisitos, mas exigindo a destinação do imóvel a esse fim.
II - No caso dos autos, em que o imóvel foi adquirido e alienado no mesmo dia, não pode ter-se por verificada a destinação do imóvel adquirido à habitação própria e permanente do sujeito passivo, pois as necessárias menos de 24 horas que mediaram entre o momento em que o imóvel foi adquirido e em que o mesmo foi alienado são objectivamente insuficientes para se entender que o imóvel adquirido foi utilizado, com carácter de habitualidade, para habitação do sujeito passivo ou do seu agregado, antes constitui indício de que a aquisição do imóvel foi efectuada com destino à sua posterior revenda.
III - A alegada “propriedade económica do imóvel” decorrente da celebração de “contrato de comodato” com cláusula de opção de compra não é suficiente para fundamentar o carácter próprio do imóvel durante a vigência deste, pois que a norma de exclusão tributária do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS não convoca qualquer conceito extra-jurídico, devendo os conceitos a que alude - propriedade e permanência da habitação no imóvel - serem interpretados de acordo com os conceitos jurídicos que convocam e não quaisquer outros, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT.
Nº Convencional:JSTA00070416
Nº do Documento:SA2201711220384
Data de Entrada:09/19/2016
Recorrente:A....... E B.......
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL
Legislação Nacional:CIRS01 ART10 N5 ART78 E.
LGT98 ART11 N1 N2 N3.
CCIV66 ART1484 ART9 N1 N3.
Referência a Doutrina:RUI MORAIS IN SOBRE O IRS 2006 PAG114.
XAVIER DE BASTO - IRS INCIDÊNCIA REAL E DETERMINAÇÃO DOS RENDIMENTOS LÍQUIDOS COIMBRA EDITORA 2007.
SALGADO DE MATOS - CIRS ANOTADO ISG COIMBRA 1999 PAG168.
SALDANHA SANCHES IN OS LIMITES DO PLANEAMENTO FISCAL - SUBSTÂNCIA E FORMA NO DIREITO FISCAL PORTUGUÊS, COMUNITÁRIO E INTERNACIONAL COIMBRA 2006.
SALDANHA SANCHES - MANUAL DE DIREITO FISCAL 3ED 2007.
LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM RODRIGUES E JORGE DE SOUSA - LGT ANOTADA E COMENTADA 4ED 2012.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
– Relatório –

1 – A…………. e B……….., ambos com os sinais dos autos, interpuseram para este Supremo Tribunal recurso de revista excepcional do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 3 de Dezembro que concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença do TAF de Loulé que julgara procedente a impugnação judicial por eles deduzida do indeferimento de reclamação graciosa tendo por objecto liquidação de IRS do ano de 2005, no valor de €81.804,48, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente a impugnação.

Os recorrentes concluíram as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

a) Sendo pacífica a admissibilidade do recurso de revista excepcional, previsto no artigo 150.º do CPTA, no contencioso tributário, mister é que os respectivos requisitos, previstos no mesmo artigo 150.º, se verifiquem, para que este Alto Tribunal o possa conhecer;

b) No caso dos presentes autos, fica demonstrado que o presente recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito;

c) Estando-se também perante uma questão - a do preenchimento do conceito de habitação própria permanente - que, quer pela sua relevância jurídica quer pela sua relevância social, se reveste de importância fundamental, importância esta detectada pelo seu interesse prático e objectivo, medido pela utilidade da revista em face da capacidade de expansão da (presente) controvérsia ou da sua vocação para ultrapassar os limites da (presente) situação singular;

d) Como ficou demonstrado, o Douto Acórdão Recorrido padece de nulidade, por omissão de pronúncia, uma vez que estava obrigado a pronunciar-se sobre a preterição da formalidade da audição - vício concretamente invocado pelos Recorrentes, e nunca conhecido pelo TAF de Loulé, o que não fez, lançando mão de justificativa ininteligível;

e) E nessa medida, impedindo os Recorrentes de a contraditarem, com violação das suas garantias processuais;

f) Aliás, ficou também demonstrado que não foram os ora Recorrentes notificados do Parecer do MP junto ao Tribunal, em violação do princípio da igualdade de armas, tal como o mesmo é configurado pelo TEDH;

g) Há também nulidade na Douta Sentença recorrida, uma vez que, como ficou demonstrado, o Douto Acórdão Recorrido fez uma enorme confusão, errando na identificação do imóvel de partida e de chegada;

h) E errando também na identificação do facto tributário gerador da mais valia - situado erradamente pelo Douto Acórdão Recorrido na venda da ………. aos Recorrentes, quando esse facto tributário, gerador de mais valias, ocorreu na venda posterior da ………… a terceiros;

i) Partindo desta falsa premissa - que inclusivamente leva a afirmar que o imóvel de partida e de chegada é o mesmo - constrói-se uma argumentação de Direito que, como fica demonstrado, atenta a falsidade da premissa, cai por terra;

j) Sendo assim um imperativo de justiça a intervenção deste Alto Tribunal, para melhor aplicação e julgamento do direito;

k) Nos autos que sobem a este Alto Tribunal está em causa o preenchimento do conceito indeterminado de habitação própria permanente e da ratio legis da isenção de mais valias, quando as mesmas sejam reinvestidas igualmente em imóvel com o mesmo destino;

l) Sendo sabido que o legislador não define o que seja habitação própria permanente, nem fornece quaisquer critérios para densificação deste critério, que auxiliem os intérpretes e os aplicadores;

m) O que significa que a decisão a proferir por este Alto Tribunal tem relevância jurídica e relevância social;

n) Porque constituirá um meio auxiliar precioso para intérpretes e aplicadores do direito, na ausência de definição legal e de critérios legais de interpretação - cuja necessidade é bem patenteada no Douto Acórdão Recorrido;

o) E social porque terá utilidade noutros processos;

p) Salvo o devido respeito e melhor entendimento de Vossas Excelências, não procede o argumento da alegada impossibilidade de se verificar simultaneidade de “habitação permanente” e “habitação própria” quando o imóvel, não obstante se tratar de habitação permanente há mais de 12 meses, ter sido adquirido e alienado no mesmo dia;

q) Porque a partir da aquisição, a ……….. passou a constituir património dos ora Recorrentes, em regime de propriedade plena, verificando-se assim, inequivocamente, no momento da sua alienação, habitação própria permanente;

r) Porque a lei não determina qualquer limite temporal mínimo durante o qual uma habitação permanente tenha de ser propriedade dos alienantes para poder ser considerada também como própria;

s) Sendo indubitável que o imóvel alienado pelos Recorrentes constituía a sua habitação permanente desde a data em que o contrato “de comodato” começou a produzir os seus efeitos;

t) E sendo igualmente incontestável que com a aquisição do imóvel a habitação já permanente, pelo menos aí, passou também a própria dos Recorrentes;

u) O que significa que, entre o momento em os Recorrentes adquiriram o imóvel e o momento em que o alienaram, por mais curto que tenha sido, o imóvel foi - simultaneamente - a habitação “própria” e “permanente” dos Recorrentes;

v) Tanto quanto se alcança, para efeitos de aplicação daquela norma de exclusão não existe nenhuma previsão legal que obrigue a que o imóvel tenha de ser detido a título de propriedade plena por um determinado hiato temporal para poder ser considerado simultaneamente habitação própria e permanente;

w) E como se sabe, onde não distingue o legislador, não distinga o aplicador;

x) Salvo o devido respeito e melhor entendimento de Vossas Excelências, também não procede o argumento segundo o qual a intenção do legislador com a exclusão da tributação em apreço tem como fim a protecção do direito à habitação, e que, por via mais uma vez da alegada falta de simultaneidade entre habitação própria e habitação permanente, a situação dos autos não se subsume naquela norma de exclusão;

y) Por último, fica demonstrado que o imóvel aqui em causa, a …………, era habitação própria dos Recorrentes desde a data da celebração do contrato de comodato dos autos, uma vez que, atenta a sua natureza mista - de compra e venda e de comodato oneroso - nessa data os ora Recorrentes adquiriram a respectiva propriedade económica;

z) Tal qual como se passa com os contratos de locação financeira imobiliária, cujo conteúdo é substancialmente análogo ao contrato dos presentes autos;

aa) Ficando demonstrado que o contrato dos autos é substancialmente idêntico a um contrato de locação financeira imobiliária — quer pela previsão da opção de compra quer pela verificação de contraprestações de capital;

bb) E, por essa razão, como decorrência dos princípios da neutralidade fiscal e da substanciação económica dos factos tributários (n.º 3 do artigo 11.º da LGT), deve em consequência merecer o mesmo tratamento fiscal;

cc) E, quanto ao contrato de locação financeira imobiliária a Administração Fiscal não levanta questões - pelo contrário, dá-o como evidente - que a celebração de um contrato destes confere ao locatário a propriedade económica do imóvel, qualificando este assim, quando o mesmo se destine a habitação, como “habitação própria” do locatário;

dd) E fá-lo tendo em atenção o prescrito no n.º 3 do artigo 11.º da LGT, nos termos do qual, “persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, que se impetra, deve o presente recurso excepcional de revista ser admitido, por verificados os respectivos pressupostos, nos termos do artigo 150.º do CPTA, e julgado procedente, nos termos expostos, por provado, anulando-se o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, co todas as consequências legais, assim se fazendo JUSTIÇA.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – Por Acórdão deste STA de 13 de Julho de 2017 – a fls. 319 a 327 dos autos – foi o recurso de revista admitido.

4 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA emitiu parecer nos seguintes termos:

«Ao abrigo do disposto no art. 150.º do CPTA foi interposto Recurso Excepcional de Revista do douto Acórdão do TCASul de 03.12.2015 que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional da sentença do TAF de Loulé de 10.03.2014, revogou a sentença recorrida e julgou improcedente a impugnação.

A revista foi admitida, além do mais, por não se conhecer «pronúncia, nem relativamente à matéria da (…) exigência legal (no âmbito da simultaneidade ou de um qualquer limite temporal mínimo relativamente à propriedade do imóvel) do carácter próprio da habitação por parte do sujeito passivo, como requisito da aplicação da norma de exclusão tributária prevista na al. a) do n.º 5 do art. 10.º do CIRS (por só assim se cumprir a razão de ser de norma de protecção da aquisição de casa de habitação do agregado familiar), nem relativamente ao conceito de habitação própria nos casos de concorrência de comodato oneroso com previsão de opção de compra».

Não se afigura que mereça ser sufragada a pretensão dos ora Recorrentes.

O n.º 5 do art. 10.º do CIRS exclui da incidência de tributação em IRS os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as condições enunciadas nas suas alíneas a), b) e c). “Trata-se, (…), de não onerar fiscalmente a efectivação do direito fundamental à habitação” e de “favorecer a propriedade do imóvel destinado a habitação permanente” (cfr., respectivamente, André Salgado de Matos, Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), Anotado, 1999, pág. 168 e José Guilherme Xavier de Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, 2007, pág. 413).

Não define a norma de delimitação negativa de incidência qualquer limite temporal mínimo relativamente à propriedade do imóvel objecto de transmissão onerosa geradora dos ganhos a reinvestir. Contudo, salvo melhor entendimento, não parece que possa deixar de ser exigível para o funcionamento da regra de exclusão tributária um tempo mínimo de titularidade do direito de propriedade do imóvel, sob pena de irremediável ofensa do obectivo ínsito na norma de facilitar a troca de habitação própria por parte dos agregados familiares. A simultaneidade da compra e alienação do imóvel ou a proximidade no tempo entre uma e outra dessas operações (a aferir em termos de razoabilidade, atentas as circunstâncias do caso) é demonstrativa, na primeira hipótese, e fortemente indiciadora, na segunda, de que o imóvel adquirido não tem como destino ser a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar. E, como bem se salienta no parecer do MP junto do TCA Sul e no Acórdão recorrido, quer o “imóvel de partida” quer o “imóvel de chegada” têm ambos de ser destinados à habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar. Ora, no caso vertente, as operações de compra e venda do imóvel foram simultâneas (cfr. alíneas G) e H) dos factos provados) o que imediatamente leva a concluir que o “imóvel de partida” não preenche o requisito da norma de ser destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar. Requisito que é indispensável para fazer funcionar a regra de exclusão tributária inserta no art. 10.º n.º 5 do CIRS.

É certo, como resultou provado, que os ora Recorrentes residiram no imóvel em causa por mais de 12 meses e que fizeram a coberto do “Contrato de Comodato” a que alude a alínea A) do probatório tendo, enquanto tal, suportado as despesas a que aludem as alíneas B) a F) do probatório.

O contrato de comodato é caracterizado no art. 1129.º do Ccivil como sendo o “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”. Através do contrato de comodato é transferida a posse do bem do comodante para o comodatário mas não a propriedade sobre o mesmo. O direito do comodatário é, como esclarece António Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, 1979, um direito real de gozo.

Porém, o facto de se tratar de um contrato gratuito não significa, como parece óbvio, que determinadas despesas relacionadas com o uso, fruição e conservação do bem não possam ou não devam, em termos contratuais, ficar a cargo do comodatário, como é o caso das despesas a que aludem as alíneas B) a D) e, porventura, das alíneas E) e F) do probatório, sem que um tal clausulado altere a natureza do contrato (cfr., a propósito, Pires de Lima/Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição – págs. 660 e 661). Assim, a circunstância dos ora Recorrentes terem suportado tais despesas não transmuta a sua situação de comodatários em proprietários do bem, nem permite preencher o conceito de “habitação própria e permanente” exigido pela norma. E o mesmo se dirá relativamente à cláusula de opção de compra (clausula 6.º) constante do contrato a que se vem aludindo. É que, se porventura não repugnará admitir, em termos substantivos, que a posse de um imóvel fundada na existência de um contrato de comodato, com cláusula de opção de compra, possa preencher o conceito de habitação própria quando as condições do eventual negócio a celebrar se encontrem razoavelmente definidos e esteja na inteira disponibilidade do comodatário efectuar ou não a compra do imóvel, tal não ocorre no caso vertente pois não só não há qualquer definição dos termos do negócio como, o que parece decisivo, a efectivação da opção de compra constante da cláusula 6.ª do “contrato de Comodato” não é algo que esteja na inteira disponibilidade do comodatário, antes na dependência de acordo das partes.

Conclui-se, assim, sem embargo de melhor estúdio da questão, que a residência no imóvel titulada pelo contrato de comodato em análise não preenche o conceito de habitação própria e permanente, requisito indispensável para o funcionamento da regra de exclusão de tributação inserta no art. 10.º n.º 5 do CIRS.

Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso, deverá ser mantida a decisão recorrida.

É o meu parecer.»

5 – Notificadas as partes do parecer do Ministério Público (fls. 337 a 339 dos autos), vieram os recorrentes responder nos termos de fls. 373 a 383 dos autos, pugnando por que se entenda que o contrato de comodato oneroso com opção de compra do bem imóvel constitui propriedade económica, integrando por esse motivo o conceito de habitação própria para efeitos do disposto no artigo 10.º n.º 5 do Código do IRS, que o contrato de comodato celebrado é equivalente a um contrato de locação financeira, razão pela qual deverá merecer igual tratamento jurídico, no caso, titular habitação própria para efeitos do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS e que, mesmo que assim não fosse, a lei não obriga à verificação simultânea dos requisitos durante um período mínimo nem essa exigência resulta da ratio legis da norma de exclusão de tributação, que é a da promoção da melhoria das condições de habitabilidade, adquirindo uma segunda casa própria melhor, mais dizendo que resolver a questão como parece propor o Ministério Público, através da fixação de um limite temporal de propriedade, faria uma tal decisão, (…), padecer de inconstitucionalidade, material e orgânica, já que se traduziria não numa interpretação da norma do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, mas na criação de uma norma.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


- Fundamentação -

6 – Questões a decidir

Conforme devidamente delimitado pelo Acórdão do STA que admitiu o presente recurso de revista as questões a decidir são as de saber se, para efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, (1) a lei exige a simultaneidade ou qualquer limite temporal mínimo relativamente à propriedade do imóvel para que se tenha por verificado o carácter próprio da habitação por parte do sujeito passivo, por só assim se cumprir a razão de ser da norma de protecção da aquisição de habitação do agregado familiar e (2) se a habitação no imóvel titulada por um contrato de comodato oneroso com previsão de opção de compra preenche o conceito de habitação própria.

7 - Matéria de facto

É do seguinte teor o probatório fixado no acórdão recorrido:

A) Em 08/01/2004 a Impugnante celebrou com C…………., um “Contrato de comodato”, pelo qual a Impugnante recebeu o prédio urbano para habitação, designado por “……….”, sito em ………., freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo 6040, que se dá aqui por reproduzido (cfr. fls. 9 e 10 dos autos).

B) Entre 27/01/2005 e 07/06/2005 foi facturado ao Impugnante o valor de € 457,00 de electricidade usada no local de consumo: “C………….., Sítio ……….., 8125-……… Quarteira, com o “código de identificação do local: 0005140369 (cfr. fls. 15 e 16 dos autos).

C) Em 16/03/2005; 13/04/2005; 12/05/2005 e 15/06/2005 foram pagas mensalidades de electricidade usada no local referido na alínea precedente (cfr. fls. 15 dos autos).

D) Em 08/06/2005 foi emitida, pela PT Comunicações, em nome do Impugnante e para o local “SI …………, ………. C………., Quarteira, 8125- Quarteira”, factura de consumo de “Comunicações” (cfr. fls. 17 a 19 dos autos).

E) Em 02/04/2003; 17/04/200317/04/2003 e 23/04/2003, foram emitidas por “D……….., Lda.”, facturas em nome do Impugnante com a descrição de materiais, que aqui se dão por reproduzidas (cfr. fls. 23 a 26 dos autos).

F) Em 23/04/2003 foi emitido pelo Impugnante à empresa “D…………, Lda., o cheque nº 7600000139, no valor de € 357,91 (cfr. fls. 27 dos autos).

G) Em 23/05/2005, os impugnantes adquiriram o prédio inscrito na matriz sob o art. 6040, pelo valor de € 170.000,00 sito em ………., Quarteira (cfr. fls. 66 do processo de reclamação graciosa).

H) Em 23/05/2005 os impugnantes alienaram pelo valor de € 500.000,00 (cfr. fls. 66 do processo de reclamação graciosa e por acordo).

I) Os Impugnantes reinvestiram o valor de € 500.000,00 na construção de habitação (cfr. fls. 66 do processo de reclamação graciosa e por acordo).

J) Em 03/10/2006 os Impugnantes apresentaram declaração Mod. 3 de IRS (cfr. fls. 32 do processo de reclamação graciosa).

K) Foi emitida em 22/06/2009 a liquidação nº 20095003196421 no valor de € 81.804,48 (cfr. fls. 21 do processo administrativo);

L) Em 03/07/2009, o Impugnante apresentou declaração de substituição para o ano de 2005, mencionando no campo “G” que pretendia reinvestir (sem recurso ao crédito) a importância de € 500.000,00 e que reinvestiu a importância de € 458.933,18, nos 12 meses anteriores (sem recurso ao crédito) e que no ano da alienação reinvestiu (sem recurso ao crédito) € 135.257,73 (cfr. fls. 45 a 50 do processo de reclamação graciosa);

M) Em 03/07/2009, o Impugnante apresentou reclamação graciosa (cfr. fls. 2 do processo de reclamação graciosa);

N) A reclamação graciosa apresentada veio a ser indeferida por despacho de 17/09/2009 proferido pelo Director de Finanças de Faro (cfr. fls. 66 e 67 do processo de reclamação graciosa);

O) Em 17/09/2009 foi enviado ofício nº 3260 ao Impugnante a informar da decisão de indeferimento da reclamação (cfr. fls. 68 do processo de reclamação graciosa);

P) Em 11/12/2009 foi emitido “Atestado” pela Junta de Freguesia de Quarteira que se dá aqui por integralmente reproduzido e onde consta, nomeadamente, que o Impugnante “(...) residiu nesta Freguesia no período compreendido entre Janeiro de 2003 e 25 de Maio de 2005, no ……….., ………C…….. – …….., em Quarteira” (cfr. fls. 44 dos autos).

Q) Em 11/12/2009 foi emitido “Atestado” pela Junta de Freguesia de Quarteira que se dá aqui por integralmente reproduzido e onde consta, nomeadamente, que a Impugnante “(...) residiu nesta Freguesia no período compreendido entre Janeiro de 2003 e 25 de Maio de 2005, no ……….., …….. C…….. – ………., em Quarteira” (cfr. fls. 44 dos autos).

R) O domicílio fiscal dos Impugnantes, à data de 31/05/2009 era ……….., lote 10, 8135-000 Almancil (cfr. fls. 51 do processo de reclamação graciosa);

S) Os Impugnantes residiram na ……….C…… - ………., mais de 12 meses (conforme documentos juntos aos autos e confronto com depoimento de testemunhas).

8 – Apreciando

8.1 Do conceito de habitação própria para efeitos de aplicação do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS

O Acórdão recorrido julgou procedente o recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença do TAF de Loulé que julgara procedente a impugnação judicial deduzida contra liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2005, resultante da desconsideração de exclusão tributária de mais-valias imobiliárias resultantes da alienação de um imóvel prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, no entendimento de que o imóvel alienado, pese embora tenha sido a habitação permanente dos impugnantes, não corresponde a habitação própria dos mesmos; é que a residência permanente no imóvel teve como título um contrato de comodato, pelo que os impugnantes não eram proprietários do imóvel, o que significa que o mesmo não preenche o conceito de “habitação própria e permanente da norma de exclusão de tributação em apreço. A norma em causa exige a concomitância ou simultaneidade do carácter próprio e permanente da habitação por parte do sujeito passivo, dado que só assim se cumpre a razão de ser da norma legal de protecção da aquisição de casa de habitação do agregado familiar. (…) Por outras palavras, no caso em exame, o imóvel de partida e o imóvel de chegada não assumem o mesmo destino, (…); é que o imóvel de partida, em 23.05.2005, não preenchia os requisitos para constituir na esfera jurídica dos impugnantes a dispensa de tributação, dado que não reunia, em simultâneo, os pressupostos da habitação permanente e própria do sujeito passivo. Ou seja, «um imóvel adquirido já com intenção de venda, cuja realização de ambas as operações – compra e venda, ocorridas no mesmo dia, não permite concluir que o imóvel foi adquirido para habitação própria e permanente dos impugnantes. // É que uma coisa é ser detentor de um contrato de arrendamento ou de um contrato de comodato sobre o imóvel, fazendo do mesmo a habitação própria e permanente, isto é, usando-o como arrendatário ou comodatário, outra coisa, é fazer do mesmo a habitação própria e permanente como proprietário» - cfr. acórdão recorrido, a fls. 263 dos autos.

Discordam do decidido os recorrentes, alegando que não procede o argumento da alegada impossibilidade de se verificar simultaneidade de “habitação permanente” e “habitação própria” quando o imóvel, não obstante se tratar de habitação permanente há mais de 12 meses, ter sido adquirido e alienado no mesmo dia, pois a partir da aquisição, a …………. passou a constituir património dos ora Recorrentes, em regime de propriedade plena, verificando-se assim, inequivocamente, no momento da sua alienação, habitação própria permanente e a lei não determina qualquer limite temporal mínimo durante o qual uma habitação permanente tenha de ser propriedade dos alienantes para poder ser considerada também como própria, sendo indubitável que o imóvel alienado pelos Recorrentes constituía a sua habitação permanente desde a data em que o contrato “de comodato” começou a produzir os seus efeitos e sendo igualmente incontestável que com a aquisição do imóvel a habitação já permanente, pelo menos aí, passou também a própria dos Recorrentes, daí que entre o momento em os Recorrentes adquiriram o imóvel e o momento em que o alienaram, por mais curto que tenha sido, o imóvel foi - simultaneamente - a habitação “própria” e “permanente” dos Recorrentes e para efeitos de aplicação daquela norma de exclusão não existe nenhuma previsão legal que obrigue a que o imóvel tenha de ser detido a título de propriedade plena por um determinado hiato temporal para poder ser considerado simultaneamente habitação própria e permanente, não havendo que distinguir onde o legislador não distinguiu. Mais alega que o imóvel (…) era habitação própria dos Recorrentes desde a data da celebração do contrato de comodato dos autos, uma vez que, atenta a sua natureza mista - de compra e venda e de comodato oneroso - nessa data os ora Recorrentes adquiriram a respectiva propriedade económica, tal qual como se passa com os contratos de locação financeira imobiliária, cujo conteúdo é substancialmente análogo ao contrato dos presentes autos e que 09como decorrência dos princípios da neutralidade fiscal e da substanciação económica dos factos tributários (n.º 3 do artigo 11.º da LGT), deve em consequência merecer o mesmo tratamento fiscal.

Importa na presente revista responder a duas questões, como decorre do Acórdão que a admitiu e reconhecem os recorrentes (cfr., fls. 374/375 dos autos): a de saber se lei exige a simultaneidade ou qualquer limite temporal mínimo relativamente à propriedade do imóvel para que se tenha por verificado o carácter próprio da habitação por parte do sujeito passivo, por só assim se cumprir a razão de ser da norma de protecção da aquisição de habitação do agregado familiar e a de saber se a habitação no imóvel titulada por um contrato de comodato oneroso com previsão de opção de compra preenche o conceito de habitação própria.

Vejamos, pois.

O artigo 10.º do Código do IRS define os critérios de apuramento e quantificação de mais-valias, enquanto incrementos patrimoniais tributados no âmbito da categoria G do IRS. Na redação em vigor à data dos factos (que se mantém inalterada), o artigo 10.º do Código do IRS dispunha:

Artigo 10.º

Mais-valias

1. Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…)

3. Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1 (…)

5. São excluídos de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições (…)

Importará, pois, determinar, para adequada resposta às questões decidendas, se:

a) Se a lei exige o caráter próprio da habitação para efeitos de aplicação da norma de exclusão da incidência;

b) Se o caráter próprio da habitação deve ser simultâneo ao caráter de permanência e se existe algum limite temporal mínimo para a observância do caráter próprio;

c) Se a posse de um imóvel titulada por contrato de comodato oneroso com cláusula de opção de compra constitui propriedade (económica de um imóvel.

No que à primeira (sub)questão respeita – a de saber se a lei exige o carácter próprio da habitação para efeitos de aplicação da norma de exclusão tributária – a resposta é inequivocamente no sentido de tal exigência, que decorre desde logo da letra do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, que se lhe refere explicitamente.

Mas o que deve entender-se por “habitação própria”?

Dispõe o artigo 11.º. n.º 2 da LGT, “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei”.

O conceito de “habitação” (v.g., de “direito de habitação”) é definido pelo artigo 1484.º do Código Civil, que dispõe:


Artigo 1484.º

Uso e Habitação


1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.

2. Quando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação.

Assim, e como ensina Ana Prata em “Dicionário Jurídico – Volume I”, 4.ª Edição, Almedina, p. 423, direito de habitação é o “direito real que consiste na faculdade que alguém tem de se servir de uma casa de morada alheia, na medida quer das suas necessidades (…) quer das da sua família”.

Por ser um direito real menor, o direito de habitação “pressupõe a existência de um direito mais extenso, v.g. o direito de propriedade, o direito de usufruto, etc.” (cfr., Maria João Mimoso, “Âmbito do direito de habitação; detenção precária e modos de aquisição da posse (composse) e conflitualidade entre direito de habitação e outros direitos ou estados de facto”, Portal Verbo Jurídico, Maio de 2013).

Ora, o direito de habitação na sua formulação “tradicional” refere-se, como se acaba de expor, ao direito de usar e habitar uma coisa alheia / um imóvel alheio.

Ou seja, quando se utiliza a expressão “habitação”, sem mais, esta expressão deve ser interpretada com o significado que lhe é conferido pelo Direito Civil – isto é, como o direito de habitar um imóvel cuja propriedade pertence a um terceiro.

Assim, a adição da palavra “própria” ao conceito “habitação” por parte do legislador fiscal não é desprovida de sentido; aquela palavra permite, precisamente, sublinhar a necessidade de que, nesse caso, a habitação deverá encontrar-se na titularidade jurídica do sujeito passivo.

Esta é, a nosso ver, a única interpretação que se coaduna com as regras e princípios gerais de interpretação das leis, aplicáveis por força do artigo 11.º n.º 1 da LGT - designadamente as regras que se encontram previstas no artigo 9.º do Código Civil, nos termos do qual “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo” (n.º 1) e “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º3).

A esta mesma conclusão (i.e., à conclusão de que a “habitação própria” consiste na utilização de uma casa de morada que se encontra na titularidade jurídica do sujeito passivo) chegamos pela interpretação sistemática do preceito legal em análise. Efectivamente, no Código do IRS, o legislador fiscal utiliza as expressões “habitação permanente” e “habitação própria e permanente” com significado distinto: Quando o legislador utiliza a expressão “habitação permanente”, quer referir-se ao uso de um imóvel por parte do sujeito passivo com carácter de habitualidade; Quando utiliza apenas a expressão “habitação permanente”, quer referir-se ao uso e habitação de um imóvel alheio por parte do sujeito passivo (por exemplo, no âmbito de um contrato de arrendamento) e quando se quer referir ao uso e habitação, com carácter de habitualidade, de um imóvel de que o sujeito passivo é também proprietário, é utilizada a expressão “habitação própria e permanente”.

É disso exemplo paradigmático o disposto no artigo 78.º-E do Código do IRS, referente à “dedução de encargos com imóveis”:


Artigo 78.º-E

Dedução de encargos com imóveis


1 - À coleta do IRS devido pelos sujeitos passivos é dedutível um montante correspondente a 15 % do valor suportado por qualquer membro do agregado familiar:

a) Com as importâncias, líquidas de subsídios ou comparticipações oficiais, suportadas a título de renda pelo arrendatário de prédio urbano ou da sua fração autónoma para fins de habitação permanente, quando referentes a contratos de arrendamento celebrados ao abrigo do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, ou do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, até ao limite de € 502;

b) Com juros de dívidas, por contratos celebrados até 31 de dezembro de 2011, contraídas com a aquisição, construção ou beneficiação de imóveis para habitação própria e permanente ou arrendamento devidamente comprovado para habitação permanente do arrendatário, até ao limite de € 296;

(…) [nosso sublinhado]

Entendemos, pois, que a lei exige o carácter próprio da habitação, no sentido de “propriedade jurídica” do imóvel, para efeitos de exclusão de tributação da mais valia imobiliária.

No caso dos autos, a “propriedade jurídica” do imóvel “………..”, cuja alienação gerou a mais-valia, foi adquirida em 23/05/2005 – cfr. a alínea G do probatório fixado – precisamente no mesmo dia em que o referido imóvel foi alienado – cfr. a alínea H) do probatório fixado -, havendo, pois, que responder à questão de saber se o caráter próprio da habitação deve ser simultâneo ao caráter de permanência e se existe algum limite temporal mínimo para a observância do caráter próprio.

O acórdão recorrido entendeu que o n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS exige a concomitância ou simultaneidade do carácter próprio e permanente da habitação por parte do sujeito passivo, dado que só assim se cumpre a razão de ser da norma legal de proteção da aquisição de casa de habitação do agregado familiar”.

Assim o entendemos também.

Da letra do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS – que dispõe que são excluídos de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar” –, resulta a necessária simultaneidade da propriedade e da permanência da habitação na titularidade do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, não se referindo a lei a qualquer limite temporal mínimo para a observância de tais requisitos, mas exigindo a destinação do imóvel a esse fim.

Desde logo, porque alguém só pode transmitir aquilo que é seu, sendo que esse pressuposto fica logo sublinhado na parte inicial da disposição legal – “são excluídos de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis”.

Acresce que, o legislador não se bastou em referir que são excluídas de tributação as mais-valias resultantes da transmissão onerosa de imóveis que consistam na habitação própria e permanente do sujeito passivo, antes refere, expressamente, que são excluídas de tributação as mais-valias derivadas da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar.

Ora, se legislador distingue, deve o intérprete também distinguir (uma vez que, de igual forma, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir – ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus), daí que entendamos que essa habitação que é sua (porque apenas aquilo que se encontra na sua titularidade poderá ser sujeito a alienação), esse imóvel que é seu, tem também de consistir num imóvel dirigido / determinado a consistir não apenas na sua habitação permanente, mas igualmente na sua habitação própria. Ou, por outras palavras, da alusão feita pela lei ao “destino” do imóvel, resulta a exigência legal de que o imóvel alienado tenha sido destinado à habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar em momento anterior ao da constituição do facto tributário.

Esta interpretação do preceito legal, para além de ser aquela que encontra reflexo na letra da lei, é também aquela que encontra eco na finalidade da norma.

A este respeito, importa atentar que a norma em análise não é um mero benefício à aquisição de casa própria, nem sequer ao reinvestimento de qualquer mais-valia na aquisição de habitação própria, pois que não é indiferente a origem ou natureza do bem alienado. Ao legislador interessa também a “origem” da mais-valia – isto é, interessa-lhe que a mesma tenha resultado da aquisição, e posterior alienação, de um imóvel destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo.

Assim ensina também Rui Duarte Morais in “Sobre o IRS”, Almedina, Coimbra, 2006, p. 114, referindo que “o objectivo da lei é claro: eliminar obstáculos fiscais à mudança de habitação, em casa própria, por parte das famílias” (nosso sublinhado).

Nas palavras de José Guilherme Xavier de Basto, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, refere que “o objetivo do regime de exclusão da incidência é pois, o de não embaraçar a aquisição, imediata ou mediata, de habitação própria e permanente financiada com o produto da alienação de um outro imóvel a que fora dado o mesmo destino. Usa-se uma técnica de roll-over, que torna não tributáveis essas mais-valias enquanto os valores de realização forem reinvestidos em imóveis também destinados à habitação (...). A exclusão referida só vale pois para as mais-valias de imóveis destinados à habitação própria e permanente quando o reinvestimento se opera em imóveis com o mesmo destino. O imóvel «de partida» e o «de chegada» têm de ser destinados à habitação própria e permanente»”.

Trata-se, naturalmente, de não onerar fiscalmente a efectivação do direito fundamental à habitação” (cfr. André Salgado de Matos, Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), Anotado, ISG, Coimbra, 1999, p. 168).

No caso dos autos, em que o imóvel foi adquirido e alienado no mesmo dia – cfr. as alíneas G) e H) do probatório fixado -, não pode ter-se por verificada a destinação do imóvel adquirido à habitação própria e permanente do sujeito passivo, pois as necessárias menos de 24 horas que mediaram entre o momento em que o imóvel foi adquirido e em que o mesmo foi alienado são objectivamente insuficientes para se entender que o imóvel adquirido foi utilizado, com carácter de habitualidade, para habitação do sujeito passivo ou do seu agregado, antes constitui indício de que a aquisição do imóvel foi efectuada com destino à sua posterior revenda, como aliás pugnado pelo MP desde a primeira instância.

Aqui chegados, já seria possível concluir que não merece censura o decidido pelo TCA-Sul, ao entender que, no caso dos autos, não estão preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação da norma de exclusão tributária das mais-valias imobiliárias reinvestidas prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS.

Manda, porém, o Acórdão deste STA que admitiu a revista que se decida ainda a questão de saber se a habitação no imóvel titulada por um contrato de comodato oneroso com previsão de opção de compra preenche o conceito de habitação própria para efeitos de aplicação daquela norma, o que faremos de seguida.

Importa, como ponto prévio, precisar não ser inequívoco o carácter oneroso do “contrato de comodato” a que se refere a alínea A) do probatório fixado, celebrado entre a impugnante mulher e a Sociedade de direito estrangeiro C……., com sede em …………, ………., junto como Anexo 1 da petição inicial de impugnação, a fls. 9 e 10 dos autos.

É que, nos termos da cláusula 3.º do referido contrato, diz-se que “A comodatária não paga qualquer valor pela ocupação do imóvel, mas obriga-se em contrapartida a efectuar, a expensas suas todas as obras de reparação e benfeitorias necessárias e inadiáveis de que o imóvel carece” e, nos termos da cláusula 10º que “Sem prejuízo da gratuitidade do presente contrato, a comodatária será responsável pelo pagamento de todas as despesas relacionadas com a utilização do imóvel, designadamente electricidade, gás, água, telefone, seguros, IMI, durante o período de vigência do presente contrato”.

Ora, dados os termos do clausulado, o carácter oneroso do contrato apenas podia resultar da circunstância de a comodatária ter suportado encargos com obras no imóvel objecto do contrato durante a vigência deste, o que não está provado que tenha sucedido, pois que os encargos suportados com materiais de construção a que se referem as alíneas E) e F) do probatório respeitam a Março de 2003, e o contrato de comodato apenas foi celebrado em 8 de Janeiro de 2004.

Aliás, os próprios impugnantes, na sua petição inicial de impugnação, referem o carácter gratuito do comodato - cfr. o n.º 7 da p.i., a fls. 4 dos autos -, apenas o passando a qualificar como “oneroso”, em razão da cláusula 3.º do contrato, nas alegações do recurso excepcional de revista para este STA (a fls. 299/300) e na resposta ao parecer do Ministério Público neste STA (a 375 e seguintes dos autos), para procurarem sustentar a “propriedade económica” do imóvel, com base numa analogia que pretendem existir da situação dos autos com o contrato de “locação financeira imobiliária”.

Ora, nem se descortina no caso dos autos analogia relevante com o contrato de locação financeira, legalmente definido como o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados (cfr. o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho), nem a alegada “propriedade económica do imóvel” decorrente da celebração de tal “contrato de comodato” com cláusula de opção de compra é suficiente para fundamentar o carácter próprio do imóvel durante a vigência deste, pois que concluímos já que, para efeitos do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, a propriedade do imóvel, o seu “carácter próprio”, é a “propriedade jurídica” deste, e não meramente económica (se é que a distinção pode ser feita nestes termos).

Relembre-se, a propósito, o saudoso Professor J. L. Saldanha Sanches, em “Os Limites do Planeamento Fiscal – Forma e Substância no Direito Fiscal Português, Internacional e Comunitário”, Coimbra, 2006: “a criação do conceito [de propriedade económica] pela jurisprudência teve como objectivo a justificação para a forma como o Direito Fiscal e o Direito do Balanço tratavam situações de posse sem propriedade: por exemplo, quando estão em jogo situações em que alguém detém um bem com os direitos e faculdades que se aproximam da propriedade jurídica e é tratado como se tivesse a propriedade desse bem, sem juridicamente a ter” (…) “esta distinção entre dois tipos de relação entre um determinado sujeito jurídico e um determinado bem não é justificável: a expressão “propriedade jurídica” é uma redundância e a expressão “propriedade económica” só pode designar um complexo de poderes de aproveitamento de um bem, que não são senão, fundamentalmente, os poderes integrantes do direito de propriedade, tal como foi reconhecido pelo ordenamento jurídico. Por isso, a expressão “propriedade económica” – bem como, aliás, a própria expressão “perspectiva económica”, de que deriva –, cujo uso se encontra justificado pela sua força expressiva, tem que ser entendida cum grano salis”. Relembra Saldanha Sanches a que “a construção dogmática do Direito Civil foi em grande parte ocupada pela disciplina jurídica das relações económicas que constituíram as substâncias, inicialmente inovadoras e hoje tradicionais, das relações jurídicas que têm como objecto bens económicos: os conceitos de propriedade, posse, usufruto, arrendamento ou locação são formas de construção jurídica de fenómenos surgidos na economia e que, por razões de obtenção da segurança no tráfico jurídico, exigiam uma juridificação que privilegiasse uma definição tão exacta quanto possível de cada um deles. Ou seja, tais conceitos foram concebidos por razões fundamentalmente económicas, no sentido actual do termo, e é precisamente isso que reduz substancialmente a utilidade da tentativa de importação para o direito de um conceito de propriedade económica, que parece pressupor a existência de uma propriedade sem natureza económica – ainda que subjaza a tal tentativa a preocupação justa de demonstrar que o mais importante não é a criação de um instrumentário conceptual caracterizado pela nitidez e pela exactidão das fronteiras inter-conceptuais, como o existente no Direito Civil. As concepções que partem da existência de uma tal oposição entre direito e economia devem, portanto, considerar-se como viciadas por um erro de base”.

Sobre a mais ampla perspetiva económica / interpretação económica das normas fiscais, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, “Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada”, 4ª ed., 2012, Editora Encontro de Escrita, apontam que a interpretação económica é (nos termos do citado nº 3 do art. 11º da LGT) meramente residual e que o ponto de vista ali consagrado “tem sido, e continua a ser, criticado pela doutrina. Enquadra-se numa ideia geral, não presente, sublinhe-se, na lei geral tributária, de que o Direito fiscal visa a realidades económicas e não factos jurídicos. Concepção com base na qual o intérprete da norma podia contrapor uma configuração jurídica (resultante da definição jurídica de um facto económico), a um facto económico, considerado este como complemento originário da “realidade” extranormativa. Esquecendo deliberadamente o “instrumento” através do qual o facto económico se transforma em elemento do tipo legal tributário. E conduzindo ao “enquinamento” económico da pesquisa e, assim, da interpretação da norma. Esta via conduz facilmente à derrogação das normas jurídicas pelo intérprete, a pretexto, mais ou menos declarado, da sua inadequação aos resultados económicos que são erigidos, com largo subjectivismo, em sua finalidade. Contudo, estes riscos serão facilmente afastados se o intérprete tiver o cuidado de não transformar a aplicação do Direito em sua criação, com grave prejuízo da certeza e da segurança do direito fiscal e, em última análise, do próprio princípio da legalidade dos impostos. A utilização dos critérios normais da hermenêutica jurídica assentes em normas tributárias tecnicamente bem construídas permitirá, normalmente, afastar o recurso ao critério da substância económica dos factos tributários”.

Também Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2007, refere, no que respeita à interpretação das normas jurídicas fiscais, que “é de afirmar a rejeição das teorias específicas que neste domínio têm sido propostas, como as da interpretação literal, a da interpretação económica ou a da interpretação funcional», sendo «… de seguir a orientação no sentido de que as normas jurídicas fiscais se interpretam como quaisquer outras normas jurídicas. Uma orientação que não obsta a que a substância económica dos factos tributários seja tida em conta, naturalmente apenas na exacta medida em que a teoria da interpretação a convoque”.

Ora, a norma de exclusão tributária do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS não convoca qualquer conceito extra-jurídico, devendo os conceitos a que alude - propriedade e permanência da habitação no imóvel - serem interpretados de acordo com os conceitos jurídicos que convocam e não quaisquer outros, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT.

O contrato de comodato celebrado entre a impugnante e a sociedade de direito estrangeiro não transferiu para a impugnante a propriedade do imóvel, daí que esta não possa pretender-se ser proprietária do imóvel em momento anterior ao da sua compra. E o facto de nele ter habitado em momento anterior ao da compra não legitima o entendimento de que, no momento em que o comprou, o tenha destinado a habitação permanente, porque o comprou para vender no mesmo dia.

E como tal, não podem os recorrentes pretender beneficiarem da exclusão de tributação da mais-valia imobiliária obtida com a venda, em razão do seu reinvestimento na aquisição de habitação própria e permanente, pois que o “imóvel de partida” não pode ter-se como tendo sido “destinado à habitação própria e permanente” dos recorrentes.

Pelo exposto se conclui que o recurso não merece provimento, sendo de confirmar o acórdão recorrido que bem julgou.


- Decisão -

9 – Nestes termos, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em negar provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 22 de Novembro de 2017. – Isabel Marques da Silva (relatora) – Dulce Neto – Pedro Delgado.