Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0561/03.2BTCBR 01438/15
Data do Acordão:07/03/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:IRC
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO
Sumário:I - O IRC prevê que, em face do incumprimento pelo sujeito passivo da obrigação de apresentar declaração de rendimentos e nela proceder à autoliquidação do imposto, a AT proceda à liquidação oficiosa com base na matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada (art. 83.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, na redacção aplicável).
II - O acto tributário de liquidação oficiosa encontra-se suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática. Ponto é que a fundamentação responda, às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática.
III- Decorre do princípio de aproveitamento dos actos administrativos, que a anulação de um acto viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo acto a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o acto impugnado.
IV- No caso concreto, ainda que se devesse considerar ilegal a dispensa da audiência prévia, a preterição desta formalidade degradou-se em não essencial, perdendo-se o respectivo efeito invalidante, na medida em que a decisão tomada - determinação da matéria colectável em montante presumido, de acordo com a lei (artº 83º, nº 1, al. b) do CIRC) - seria a única concretamente possível.
Nº Convencional:JSTA000P24751
Nº do Documento:SA2201907030561/03
Data de Entrada:11/11/2015
Recorrente:A....., LDA
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – A…….., Ldª., vem recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento do recurso hierárquico que por sua vez indeferiu a reclamação graciosa em que pedia a anulação da liquidação oficiosa de IRC relativa ao exercício de 1996, no valor de € 23.797,11 €.

Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«a) A liquidação oficiosa nos termos do artigo 83.º, nº1 alínea b), do Código do IRC, prevista para os casos em que falte a declaração de rendimentos e que tem como referência a matéria colectável apurada nos exercícios mais próximos, não constitui uma liquidação definitiva, podendo ser corrigida oficiosamente ou a pedido do interessado ou ainda na sequência de reclamação graciosa que origine uma inspecção tributaria.
b) A falta de cumprimento pelo sujeito passivo impõe à administração, para além de proceder oficiosamente a tal liquidação “provisória”, o dever funcional de, dentro do prazo de caducidade de tal direito, efectuar uma acção inspectiva visando determinar qual o lucro obtido no exercício em causa e, também, a sua situação actual”.
c) No presente caso concreto, apesar da realização da acção inspectiva, as diligências nela concretamente efectuadas referiram- se exclusivamente ao apuramento da correcção dos valores entretanto declarados na modelo 22, sem que se fizesse qualquer diligência no sentido de proceder analiticamente à verificação da correcção dos valores fixados por via do artigo 83.º do CIRC e, bem assim, de aferir o valor da matéria tributável que concretamente houvesse que ser apurado por referência ao exercício em causa.
d) A invocada impossibilidade de ter em consideração os valores declarados pelo sujeito passivo, desacompanhada da realização de qualquer diligência direccionada à aferição da realidade tributária do exercício em causa, constitui uma amputação injustificada às finalidades e objectivos da própria inspecção tributária, que, nos termos dos artigos 2º e 6.º do RCPIT visa a observação das realidades tributárias e a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo.
e) In casu, visando a reclamação apresentada a anulação da liquidação efectuada com base no artigo 83.º, n.º 1, b), do CIRC, não podia bastar à AT dizer que os elementos da declaração modelo 22 apresentada não são os correctos para efeitos de liquidação definitiva do exercício de 1996, impunha-se, atenta a natureza da liquidação e o dever de investigação da realidade tributária, que a inspecção aferisse quais, então, os elementos correctos da tributação a ter em causa, ou, no mínimo, que relevasse o valor oficioso encontrado como correspondendo à realidade e à capacidade contributiva evidenciada pelo sujeito passivo no exercício em causa.
f) No âmbito de uma actuação fiscalizadora tendente à comprovação de valores determinantes do apuramento da matéria tributável na sequência de uma liquidação nos termos do artigo 83.º, n.º 1., b), do CIRC, a ausência de qualquer diligência ou esforço dirigido à quantificação da matéria tributável para o exercício em causa, seja em prejuízo ou em benefício do sujeito passivo, constitui uma violação do princípio do inquisitório, do princípio da verdade material e da imparcialidade, porquanto cabia à AT apurar, por mor da justa repartição comunitária dos encargos fiscais, se maior imposto era devido, se o imposto exigido correspondia ao que era devido por aplicação das normas que conformam a determinação do lucro tributável, ou se, na hipótese contrária, qual o valor devido.
g) A verificação daquela realidade não pode, no entanto, deixar de se reflectir ou precipitar num juízo relativo à quantificação da matéria tributável — seja esta directa ou indiciária— em termos de se aferir qual o valor — de prejuízo ou de lucro — passível de ser Imputado ao sujeito passivo, pelo que, se a AT, em sede de Inspecção, não quantifica a matéria tributável nos termos sobreditos de modo a concluir pelo ajustamento ou não da liquidação anterior, viola abertamente os referidos princípios.
h) Da mesma maneira que a AT, ao desconsiderar a declaração do sujeito passivo, não pode deixar de proferir um juízo sobre a quantificação, também não será lícito que, estando em causa uma anulação da liquidação do artigo 83.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, possa decidir sem realizar qualquer diligência dirigida à comprovação desse valor e à efectiva quantificação da matéria tributável do sujeito em causa.
i) O n.º 10 do artigo 83.º do CIRC admite que a liquidação em causa possa ser corrigida, se for caso disso, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas, sem que se faça depender essa correcção de qualquer pedido, reclamação ou acto do sujeito passivo.
j) O preenchimento da hipótese da norma implica que na sequência do procedimento próprio — que é o da Inspecção — e não bastando repudiar os elementos do contribuinte perante o carácter oficioso do procedimento em causa, se diligencie quanto a saber se a liquidação em causa é a mais ou a menos, o que pressupõe uma análise dirigida à quantificação de modo a que possa operar-se o confronto dos valores liquidados com aqueles que são devidos.
k) A decisão do tribunal ao não fazer impender sobre a administração a realização das diligências oficiosas relativas à quantificação devida e ao acerto da quantificação imputada, viola o sentido inerente ao princípio do inquisitório e ao princípio da verdade material e da imparcialidade.
I) Ao não reconhecer a violação desses princípios no caso concreto exigindo prova contrária ao contribuinte sem que a AT formule um juízo sobre a adequação da quantificação operada, o tribunal interpreta ainda indevidamente o disposto no artigo 83.º, n.º 10, do CIRC e os poderes-deveres que Impendem sobre a administração ao nível da determinação do rendimento real de acordo com o princípio da capacidade contributiva.
m) O tribunal não se pronunciou sobre a omissão da realização de diligências tendo em vista a descoberta da verdade material imputada à decisão do recurso hierárquico nos artigos 36.º e 37.º da p.i., pelo que subsiste uma omissão de pronúncia sancionada pelo artigo 125.º do CPPT, ou, sem conceder, um erro de julgamento na medida em que se considere que as diligências requeridas, que visavam denunciar a necessidade de correcção da liquidação oficiosa e, assim, comprovar a necessidade de uma quantificação diferenciada, não tinham que ser realizadas pela administração.
n) Não se vislumbrando qualquer argumentação com suficiência bastante para suportar a validade da liquidação oficiosa ao nível da correspondência dos valores aí assumidos com a realidade, ficou a recorrente sem saber o porquê subjacente ao juízo de imputação desses valores em sede de fiscalização, pelo que, contrariamente ao decidido, a decisão administrativa padece de falta de fundamentação.
o) O tribunal errou ao aplicar o princípio do aproveitamento do acto à violação do direito de audição, considerando que a preterição desta formalidade degradou-se em não essencial”
p) À questão da anulação da liquidação oficiosa nos termos do artigo 83º do CIRC está subjacente uma ponderação administrativa que não é estritamente vinculada em termos “subsuntivos”. Nesse ponto, o tribunal olvidou o disposto no artigo 83.º n.º 10, do CIRC, a natureza provisória ou precária da liquidação e os poderes administrativos cujo exercício Importa aqui uma margem de valoração/ponderação quanto à correcção da liquidação, até porque estamos perante valores não definitivos.
q) No requerimento de interposição do recurso hierárquico a recorrente, atacando a decisão de indeferimento da reclamação, não deixou de estribar a causa de pedir num conjunto de factos que apenas se levantaram com a decisão administrativa aí posta em crise, tentando a recorrente, em vão, que a Administração Fiscal, determinasse a realização de todas as diligências que se reputassem de necessárias tendo em vista o correcto e concreto apuramento da matéria colectável da recorrente.
r) A preterição do direito de audição no caso concreto não só impediu a recorrente de se pronunciar quanto à necessidade da consideração desses meios de prova, como precludiu uma defesa antecipada quanto a uma possível decisão de indeferimento que irreleva, indevidamente, toda a argumentação tendente a demonstrar o excesso da liquidação oficiosa, cuja quantificação manteve acriticamente e a respaldo de quaisquer objecções.
s) O facto de a recorrente ter solicitado, em sede de recurso hierárquico, a realização de diligências tendentes a equacionar a bondade da quantificação oficiosa e de nem sequer ter podido defender-se quanto à desnecessidade da sua realização, Impediu a recorrente de demonstrar a insubsistência da liquidação oficiosa, vendo coarctados os seus direitos procedimentais na realização desse desiderato.»

3 – Não foram apresentadas contra alegações

4 O Exmº Magistrado do Ministério Público emitiu fundamentado parecer no sentido do não provimento do recurso.


5 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

6 – No Tribunal Administrativo de Coimbra foram dados como provados e com interesse para a decisão os seguintes factos:
A) No dia 25/09/2001 foi emitida, nos termos do Art. 83º, n.º 1 do CIRC e em nome da impugnante, a liquidação oficiosa de IRC n.º 8310012790, respeitante ao exercício de 1996, de fls. 107 do processo de reclamação apenso que se dá por integralmente reproduzida, na qual foi apurado o valor a pagar de 23.797,11€.
B) Contra a liquidação identificada na alínea antecedente, em 12/11/2001, foi deduzida reclamação graciosa, conforme requerimento de fls. 106 do apenso correspondente, na qual a ora impugnante refere já ter apresentado a declaração de rendimentos em falta, relativa ao ano de 1996, e requer a anulação daquela liquidação oficiosa.
C) No dia 12/11/2001 a impugnante apresentou a declaração de rendimentos de fls. 108 a 109 do apenso de reclamação graciosa, que também se dá aqui por reproduzida, na qual apurou prejuízos para efeitos fiscais no valor de 2.584.957$00.
D) A fim de instruir o processo de reclamação graciosa, o Serviço de Finanças de Coimbra 2 requisitou à Divisão de prevenção e Inspeção Tributária informação sobre «se os elementos constantes da declaração de rendimentos modelo 22, junta ao processo, são os correctos para efeitos de liquidação definitiva do exercício de 1996» e «Quaisquer outros elementos que julgue relevantes para apreciação da reclamação».
E) Em 22.04.2002 foi elaborado o relatório de inspeção tributária de fls. 111 a 119 do apenso de reclamação graciosa, que se dá por integralmente reproduzido e do qual se destaca o seguinte:
I. Análise documental
II - 3.2.1. O SP exerce a actividade de Comércio por Grosso de Artigos alimentares e Bebidas (CAE- 51390) em instalações arrendadas de pequena dimensão situadas na rua ………. em Coimbra.
(...)
II. 3.2.2. Enquadramento do SI’
(…)
Em sede de IRC não tem cumprido com as suas obrigações fiscais, uma vez que não entregou as D.R. Mod. 22 (7994 e 7995) ou entregou-as fora de prazo, como aconteceu com a de 7996.
Este incumprimento na entrega de declarações de rendimento Mod.22 / IRC, conjugado com a inexistência dos inventários de mercadorias devidamente elaborados, conduziu-nos a solicitar ao abrigo do art.º- 75º-do RCPIT, o alargamento do âmbito da acção de inspecção aos exercícios de 7998, 7999 e 2000, tendo para o efeito sido elaborada informação autónoma.
II- 3.2.3 Análise documental propriamente dita
II - 3.2.3.1 O SP no exercício da sua actividade normal e corrente, comercializa artigos sujeitos às diversas taxas de IVA (5%, 12% e 17%).
II- 3.2.3.2 Tendo em consideração o CEVC, verificámos que os valores declarados para as existências, para as compras e para as vendas, permitem ao contribuinte apresentar margens de comercialização que julgamos estarem dentro do razoável para o sector de actividade onde se insere.
Os valores declarados são os seguintes:
Elaborámos uma amostragem sumária a alguns artigos comercializados pelo SP e os valores a que chegámos para as margens de comercialização não se afastam substancialmente destas, uma vez que apurámos uma margem média aritmética de 14% para os artigos sujeitos a 5% de IVA (...) e 14% para cada um dos dois sectores (...).
II- 3.2.3.3 De acordo com os esclarecimentos prestados pelo representante do SP as instalações de reduzida dimensão onde exerce a actividade e as próprias características dos artigos que comercializa (sujeitos o prazos de validade) inibem-no de efectuar aquisições para armazenar.
Pela análise mensal das compras e vendas (...) constatou-se que de facto, abstraindo os artigos sujeitos à taxa de 12% de IVA cujas primeiras aquisições e vendas tiveram lugar, respectivamente em Julho e em Agosto. o SP exerce actividade de forma linear e constante durante o ano.
Em face do exposto não é de fácil percepção identificarmos a origem do aumento das existências finais (4.717.290$) verificado neste exercício, assim como também é visível que se considerarmos apenas os valores declarados para as compras e as vendas (abstraindo portanto do valor das existências inventariadas), os valores declarados para as margens de comercialização são substancialmente alterados (...).
II 3.2.3.4 Deste modo, por considerarmos indispensável para a nossa análise a consulta dos inventários de mercadorias, em 31.01.2002 notificámos o SP na pessoa do seu representante legal, para apresentar os inventários de existências relativamente ao exercício em análise (na caso concreto, eram solicitados os inventários de 1995 e 1996).
Estes elementos deviam ser apresentados no dia (8.02.2002).
Nesta data e em (9.02.2002, foram lavrados dois termos de declarações onde o Sr. B……., por motivo que imputava ao responsável dos elementos de escrita, afirma que relativamente a estes dois elementos apenas lhe era possível apresentar o seguinte:
- 1995 Relação manuscrita das mercadorias em armazém em 31.12, onde se identifica o artigo a quantidade, o preço unitário e o valor global do artigo:
Nas folhas (49) que constituem a relação, não é identificado o valor global (por taxas de sujeição a IVA e/ou em conjunto) das existências em armazém, para além de nem todas as folhas terem os totais apurados.
- 1996 - Relação das mercadorias em armazém em 31.12, onde se identifico apenas o artigo e as quantidades inventariadas. Nesta relação, constituída por 72 folhas, não é identificado qualquer tipo de valorização dos artigos em armazém em 31. 12.96. Ambos os “inventários”, cujas folhas foram numeradas e rubricadas pelo representante do SP, a Notificação e os Termos de Declarações lavrados, ficam a fazer parte do processo individual do SF nos Serviços da Direcção de Finanças de Coimbra. Estas omissões, não nos permitem responder de forma clara e inequívoca aos motivos que estiveram na origem do acréscimo de existências verificado em 1996, ao desfasamento detectado nas margens de comercialização individuais (por taxas de IVA) e à forma como o SP determinou o valor declarado para as existências finais em 1996.
(…)
II-3.2.3.5 Conclusão (1999)
A matéria colectável [111. 632.765$] que esteve na origem da liquidação ora contestada foi apurada pelos Serviços da Administração Fiscal porque o SP se encontrava em falta no que diz respeito às entregas das declarações de rendimento Mod. 22 (IRC).
Da análise efectuada às margens de comercialização, conclui-se que os valores declarados para as existências em 31.12.96 tiveram por único e exclusivo objectivo a apresentação de uma margem de comercialização credível do ponto de vista fiscal. Deste modo, tudo o que foi exposto ao longo desta informação, nomeadamente a inexistência de inventários de mercadorias elaborados de acordo com o estipulado pela legislação fiscal em vigor (o inventário de 1996 não se encontra valorizado conforme referimos no ponto II-3.2.3.4), inibem-nos de reconhecer razão às pretensões do SP (prejuízo fiscal de 2.584.957$], pelo que se nos afigura que a reclamação deve ser indeferida.
(…)»
F) Notificada do projeto de indeferimento da reclamação gracioso, a impugnante exerceu o direito de audiência prévia, conforme requerimento de fls. 125 a 126, que se dá aqui por reproduzido na sua íntegra.
G) A reclamação graciosa foi parcialmente indeferida, por despacho de fla. 127 do apenso correspondente, que acolheu o teor da informação que o antecedeu no sentido de que o alegado pela contribuinte «(...) não pode obter acolhimento, já que subsistem as razões de fundo que levaram a ser projectado o indeferimento, nomeadamente no que diz respeito á documentação das existências», porém, «parece assistir razão, por inexistirem elementos de contrariem o que vem alegado, quanto às retenções na fonte no montante de 375$00 (1,57€), que não foi considerado na liquidação reclamada».
H) Inconformada, a impugnante deduziu recurso hierárquico, conforme requerimento de fls. 2 a 7 do apenso correspondente, que também se dá aqui por integralmente reproduzido.
I) No âmbito do procedimento de recurso hierárquico foi elaborada a informação de fls. 14 a 16 do apenso correspondente, que também se dá por integralmente reproduzida e da qual se destaca o seguinte:
«(...)
•Alega o recorrente, que a Administração Fiscal não procedeu às investigações necessárias com vista ao apuramento do rendimento real, com base no Princípio do Inquisitório, nos termos do artº 58º da LGT.
• Tendo o dever legal de decidir de modo a que seja atingida a verdade material ou real, a Administração efectuou uma acção de inspecção a fim, de obter os meios de prova em direito permitidos, uma vez que goza do Princípio do Inquisitório.
• O acto que indefere a reclamação graciosa é suficiente, uma vez que pela averiguação efectuada aos elementos necessários á descoberta da verdade material declarada na respectiva DM 22, não foi possível concluir a veracidade dos valores declarados pela recorrente a 31.12. 1996.
• Os valores declarados em existências não estão suportados por documentos elaborados de acordo com as normas legais, não estando o inventário valorizado, apresentando apenas valores ajustados de forma a apresentar margens de comercialização evidenciadas na contabilidade.
Deve a mesma fazer parte integrante desta informação, propondo-se que seja negado provimento ao presente Recurso Hierárquico, com os referidos fundamentos e, por conseguinte, mantido o ato recorrido.
J) Dispensada a audiência prévia, nos termos do Art. 103.º, n.º 2 do CPA, conforme proposto a fls. 16 do apenso de recurso hierárquico, foi este indeferido, por despacho 17/10/2003 — fls. 14 do mesmo apenso»

7. Do objecto do recurso
Resulta dos autos que em 25/09/2001 foi emitida pela AT uma liquidação oficiosa de IRC, no valor de €23.797,11 euros, relativa ao exercício de 1996.
A referida liquidação foi objecto de reclamação graciosa e com esta foi igualmente apresentada uma declaração de IRC relativa ao ano de 1996 por parte da Recorrente, na qual apurou prejuízos para efeitos fiscais no valor de 2.584.957$00.
Esta declaração não foi atendida pela Administração Tributária, com base no facto de os Serviços de Inspecção terem concluído que os inventários apresentados pelo sujeitos passivo referentes a 31/12/1995 e 31/12/1996 não respeitaram os requisitos legais por não conterem a valorização dos artigos em armazém e nessa medida não conferirem credibilidade aos elementos constantes da declaração apresentada.
Perante a impugnação deduzida pela recorrente em que eram imputados ao acto sindicado a violação do princípio do inquisitório, a falta de fundamentação e vício de forma, por ilegal dispensa de audiência prévia, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra considerou que, tendo a Administração Tributária concluído que o apuramento directo e exacto da matéria tributável não era viável, em virtude da contabilidade não estar organizada de acordo com a legislação em vigor, se impunha à impugnante a realização de prova em contrário, o que não logrou fazer, pelo que não foi ilidida a presunção prevista no artigo 83º nº1, alínea b) do CIRC.
Entendeu igualmente a sentença recorrida que a liquidação oficiosa havia sido efectuada por imposição legal e à luz das normas do CIRC, pelo que não padecia do vício de falta de fundamentação.
Por último considerou o Mmo. Juiz “a quo” que “não se alcança que utilidade poderia ter a audição prévia da impugnante antes do indeferimento do recurso hierárquico, pois a decisão sindicada não poderia ser outra que não a efectivamente tomada. E nessa medida a preterição dessa formalidade degradou-se em não essencial e sem efeitos invalidantes do acto”.

Não conformada com o assim decidido alega a recorrente que a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia prevista no art.º 125º do CPPT e que incorre em erro de julgamento «ao não fazer impender sobre a administração a realização das diligências oficiosas relativas à quantificação devida e ao acerto da quantificação imputada», violando «o sentido inerente ao princípio do inquisitório e ao princípio da verdade material e da imparcialidade» e «ao não reconhecer a violação desses princípios no caso concreto exigindo prova contrária ao contribuinte sem que a AT formule um juízo sobre a adequação da quantificação operada», por errada interpretação do «disposto no artigo 83.º, n.º 10, do CIRC e dos poderes-deveres que impendem sobre a administração ao nível da determinação do rendimento real de acordo com o princípio da capacidade contributiva».
Por fim alega que o tribunal errou ao aplicar o princípio do aproveitamento do acto à violação do direito de audição, considerando que a preterição desta formalidade se degradou em não essencial.

Resulta, pois, do exposto que as questões objecto do recurso se reconduzem a saber se a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra incorre:
a) em nulidade por omissão de pronúncia;
b) em erro de julgamento na apreciação dos alegados vícios de falta de fundamentação do acto tributário, de violação do principio do inquisitório e da verdade material, e por fim, ao ter aplicado o principio do aproveitamento do acto quanto à violação do direito de audição.

7.1 Da alegada nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Alega a Recorrente que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 125º do CPPT, por omissão de pronúncia sobre a falta de realização de diligências por parte da AT ao efectuar a liquidação oficiosa, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 83º do CIRC, e nessa medida ter violado os princípios do inquisitório e da verdade material, uma vez que não recolheu elementos para apurar e quantificar a matéria tributável da Recorrente.

No seu parecer o Ministério Público sustenta que a sentença recorrida se pronunciou sobre todas as questões que a Recorrente suscitou na sua impugnação judicial e que ali foram enunciadas como sendo a violação do princípio do inquisitório, a falta de fundamentação e vício de forma, por ilegal dispensa de audiência prévia.
Por sua vez a Mª Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, pronunciando-se (a fls. 184) sobre a arguida nulidade considerou que a mesma não se verificava porquanto o tribunal se pronunciou sobre a invocada omissão da realização de diligências tendo em vista a descoberta da verdade material imputada à decisão de recurso hierárquico, tendo tal questão sido elencada como questão a decidir e concretamente apreciada na sentença sob a alínea a) - violação do principio do inquisitório (fls. 111 a 113).

Também assim entendemos.
Vejamos.

Nos termos do disposto nos arts. 125º, nº 1 do CPPT e 615º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil ocorre omissão de pronúncia susceptível de demandar a nulidade de sentença ou acórdão, quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questão submetida pelas partes à sua apreciação e decisão e que se não mostre prejudicada pelo conhecimento e decisão porventura dado a outras.
No mesmo sentido aponta o artº 608º, nº 2 do mesmo diploma legal que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A recorrente sustenta o tribunal não se pronunciou sobre a omissão da realização de diligências tendo em vista a descoberta da verdade material imputada à decisão do recurso hierárquico nos artigos 36.º e 37.º da p.i..
Se bem entendemos a sua argumentação, a omissão da realização de diligências que a Recorrente censura à administração tributária prende-se com o invocado vício de violação do princípio do inquisitório. Na tese da Recorrente a Administração Tributária devia ter recolhido elementos sobre a actividade desenvolvida no exercício de 1996 de forma a colmatar as insuficiências dos seus elementos contabilísticos que foram detectadas no procedimento inspectivo, que foi realizado para efeitos de apreciação dos elementos constantes da declaração de IRC que apresentou. E de acordo com a sua argumentação a omissão dessas diligências viola o princípio do inquisitório.
Ora esta argumentação conexa com uma questão suscitada — violação do princípio do inquisitório — não constitui uma questão autónoma, como bem salienta o Ministério Público no seu parecer, e foi objecto de apreciação concreta na sentença recorrida.
Ali se consignou, expressamente que no caso em apreço « a decisão a proferir era no sentido da manutenção ou anulação da liquidação oficiosa, neste último caso em virtude de, posteriormente, ter sido apresentada a declaração de rendimentos em falta, onde se apurou uma matéria coletável significativamente inferior, e, para análise deste pedido, a AT procedeu a uma inspeção à escrita da impugnante, visando apurar a correção dos elementos constantes da declaração de rendimentos modelo 22 por ela apresentada.»
Ora, tendo em conta aquilo que à AT competia apurar, para decidir pela manutenção ou anulação da liquidação oficiosa reclamada, não se vê que outras diligências probatórias poderiam ser realizadas.»
Mais se exarou, aliás com muito acerto, que «se a lei determinar que, numa situação concreta, se procede à liquidação oficiosa com base em determinados elementos, não pode a AT apurar e liquidar imposto de modo diferente, uma vez que tanto não lhe é permitido. Isto sem prejuízo de, havendo forma de apuramento direto e exato da matéria coletável (a que, nos termos do Art. 81.º/1 da LGT, a lei dá absoluto preferência, por força do princípio da tributação segundo o rendimento real), a liquidação dever ser feita com base nesta pois, como resulta do Art. 73.º da LGT, «as presunções consagradas nas normas de incidência tributário admitem sempre prova em contrário».
E que, «Tendo a AT concluído que, no caso vertente, tal apuramento direto e exato não era viável, em virtude de a contabilidade da impugnante não estar organizada de acordo com a legislação em vigor e não tendo a impugnante realizado a prova, que se lhe impunha, no sentido de contrário ao da presunção constante do Art. 83.º, n.º 1, alínea b) do CIRC, nenhuma obrigação legal impendia sobre a AT de proceder à anulação da liquidação reclamada e de determinar a matéria coletável por via».
Dúvidas não há, pois, que a sentença apreciou a questão da alegada omissão de realização de diligências tendo em vista a descoberta da verdade material imputada à decisão do recurso hierárquico, pelo que improcede a arguida nulidade por omissão de pronúncia.

7.2. Do alegado erro de julgamento na apreciação dos vícios de falta de fundamentação do acto tributário, de violação do princípio do inquisitório e da verdade material.
Alega a recorrente que no âmbito de uma actuação fiscalizadora tendente à comprovação de valores determinantes do apuramento da matéria tributável na sequência de uma liquidação nos termos do artigo 83.º, n.º 1., b), do CIRC, a ausência de qualquer diligência ou esforço dirigido à quantificação da matéria tributável para o exercício em causa, seja em prejuízo ou em benefício do sujeito passivo, constitui uma violação do princípio do inquisitório, do princípio da verdade material e da imparcialidade.
Sustenta ainda que i) o n.º 10 do artigo 83.º do CIRC admite que a liquidação em causa possa ser corrigida, se for caso disso, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas, sem que se faça depender essa correcção de qualquer pedido, reclamação ou acto do sujeito passivo.
E conclui que a decisão do tribunal ao não fazer impender sobre a administração a realização das diligências oficiosas relativas à quantificação devida e ao acerto da quantificação imputada, viola «o sentido inerente ao princípio do inquisitório e ao princípio da verdade material e da imparcialidade» e que ao não reconhecer a violação desses princípios no caso concreto, exigindo prova contrária ao contribuinte sem que a AT formule um juízo sobre a adequação da quantificação operada, o tribunal interpreta ainda indevidamente o disposto no artigo 83.º, n.º 10, do CIRC e os poderes-deveres que impendem sobre a administração ao nível da determinação do rendimento real de acordo com o princípio da capacidade contributiva.

Carece porém de razão legal
Dispunha o artº 83º nº 1, al. b) do CIRC, na redacção então em vigor (do Decreto-lei n.º 7/96, de 7 de Fevereiro) o seguinte:
«1 - A liquidação do IRC processar-se-á nos termos seguintes:
(….)
B ) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 96º, a liquidação será efectuada até 30 de Novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no nº 2 do referido artigo, até ao fim do 6º mês seguinte ao do termo do prazo para a apresentação da declaração aí mencionada e terá por base a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada;».

Por sua vez resultava do nº 9 do mesmo normativo legal (redacção que se encontrava em vigor à data dos factos - do Decreto-lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro) que «a liquidação prevista no n.º 1 poderá ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 79º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas.»
Ora, como bem se assinala na sentença recorrida se a lei determinar que, numa situação concreta, se procede à liquidação oficiosa com base em determinados elementos, não pode a AT apurar e liquidar imposto de modo diferente, uma vez que tanto não lhe é permitido.
No caso em apreço, assente que a Recorrente não apresentou a declaração de IRC relativa ao ano de 1996, a lei previa na alínea b) do nº1 do artigo 83º do CIRC, na redacção então em vigor, que a Administração Tributária se socorresse da matéria tributável do exercício mais próximo que se encontrasse determinada para emitir uma liquidação oficiosa. E foi isso que fez a Administração Tributária, não decorrendo de tal actuação qualquer violação do princípio do inquisitório, da verdade material ou da imparcialidade.
É certo que prevê o nº 9 (Que passou a nº 10 na redacção posterior (Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro)). do citado preceito legal, essa liquidação pode ser corrigida no prazo de caducidade se houver fundamento para tal, ou seja, se forem obtidos elementos que devam ser tidas em consideração nessa liquidação.
Porém, como resulta do probatório, não foi isso que ocorreu. Pese embora a Recorrente tenha apresentado uma declaração de rendimentos, a mesma foi desconsiderada pela AT pelo facto dos valores não estarem suportados nos documentos contabilísticos, designadamente pela falta de valorização das existências no inventário elaborado com referência a 31/12/1996. E assim sendo, como bem nota o Ministério Público no seu parecer, pelo simples facto da apresentação dessa declaração, não recaía sobre a Administração Tributária o ónus de obter tais elementos, já que compete à Recorrente dispor de contabilidade organizada e apoiada em documentos justificativos — artigo 115º do CIRC.
Acresce que, como se evidencia na sentença e resulta do probatório, a Recorrente também não carreou quaisquer outros elementos, que pudessem ser aproveitados para efeitos de correcção daquela liquidação.
E recorde-se que, contrariamente ao que sucede nos casos em que a declaração de rendimentos é apresentada nos termos previstos na lei – aí se incluindo o prazo legal para a sua apresentação, pois que os termos previstos na lei o incluem também - a declaração de rendimentos tardia não beneficia já de tal presunção estabelecida no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, sendo livremente valorada (Neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Maio de 2016, recurso 415/15.).
Resulta do exposto que a sentença recorrida fez uma correcta apreciação nesta matéria, e não merece a censura que lhe é dirigida.
O mesmo se diga quanto ao alegado vício de falta de fundamentação,
A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.
A fundamentação do acto administrativo deverá assim obedecer a três requisitos essenciais: deverá ser clara, deverá ser suficiente e deverá também ser lógica.
Como vem afirmando a jurisprudência e a doutrina o acto encontra-se suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática.

Ponto é que a fundamentação responda, às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática.
No que concerne à decisão do procedimento tributário dispõe o artigo 77.º, nº 1 da Lei Geral Tributária que deve ser fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
No caso subjudice está em causa a invocada falta de fundamentação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pela recorrente.
Alega a Recorrente que não se vislumbra « qualquer argumentação com suficiência bastante para suportar a validade da liquidação oficiosa ao nível da correspondência dos valores aí assumidos com a realidade» e que por isso ficou « sem saber o porquê subjacente ao juízo de imputação desses valores em sede de fiscalização, pelo que, contrariamente ao decidido, a decisão administrativa padece de falta de fundamentação».
A recorrente assenta o vício de falta de fundamentação do acto tributário no facto de a AT, aquando da realização do procedimento inspectivo, não ter diligenciado pela obtenção de elementos objectivos sobre a actividade da Recorrente, de forma a poder quantificar a matéria tributável.
Mas não lhe assiste razão como se deixou expresso na sentença recorrida. Uma vez que a Recorrente não apresentou a declaração de IRC relativa ao ano de 1996, a lei prevê na alínea b) do nº1 do artigo 83º do CIRC, na redacção então em vigor, que a AT se socorresse da matéria tributável do exercício mais próximo que se encontrasse determinada para emitir uma liquidação oficiosa.
E, como vimos foi essa a actuação da Administração Tributária, de que foi dado conhecimento à recorrente.
Resulta, assim, patente dos autos que a Recorrente apreendeu as razões e motivos subjacentes à emissão de liquidação oficiosa e os termos em que foi efectuada, ou seja ao abrigo do disposto no artigo 83º do CIRC.
Questão diversa é a discordância da Recorrente com tal fundamentação, por alegadamente os valores da liquidação não terem correspondência com a realidade. Mas isso só a si lhe é imputável, uma vez que não conformou a sua conduta com as obrigações acessórias a que está sujeita por lei.

7.3 Do invocado erro de julgamento por ter sido aplicado o princípio do aproveitamento do acto quanto à violação do direito de audição.
Neste segmento do recurso a recorrente alega que no requerimento de interposição do recurso hierárquico «não deixou de estribar a causa de pedir num conjunto de factos que apenas se levantaram com a decisão administrativa aí posta em crise, tentando a recorrente, em vão, que a Administração Fiscal, determinasse a realização de todas as diligências que se reputassem de necessárias tendo em vista o correcto e concreto apuramento da matéria colectável» e que o facto de ter solicitado, em sede de recurso hierárquico « a realização de diligências tendentes a equacionar a bondade da quantificação oficiosa e de nem sequer ter podido defender-se quanto à desnecessidade da sua realização, Impediu a recorrente de demonstrar a insubsistência da liquidação oficiosa, vendo coarctados os seus direitos procedimentais na realização desse desiderato.»
Mas não é essa a realidade que se surpreende dos autos.
Com efeito, quer na decisão de indeferimento da reclamação graciosa quer na decisão de indeferimento do recurso hierárquico a Administração Tributária reiterou a fundamentação aduzida na decisão pelos Serviços de Inspecção Tributária, ou seja de que, pese embora a Recorrente tenha apresentado uma (nova) declaração de rendimentos (em falta) relativa ao exercício de 1996, a mesma foi desconsiderada pela AT pelo facto dos valores não estarem suportados nos documentos contabilísticos, designadamente pela falta de valorização das existências no inventário elaborado com referência a 31/12/1996.
E a recorrente a Recorrente exerceu o direito de audição em sede do procedimento de reclamação graciosa, não tendo sido recolhidos quaisquer outros elementos ou suscitadas quaisquer outras questões no âmbito do recurso hierárquico.

Em ambos os instrumentos processuais a recorrente pretendia pôr em causa a matéria tributável, determinada em montante presumido, de acordo com a lei (artº 83º, nº 1, al.b) do CIRC) sendo idênticos os motivos invocados para indeferir tal pretensão, quer na reclamação graciosa quer no recurso hierárquico - inexistência de inventários de mercadorias elaborados de acordo com o estipulado pela legislação fiscal em vigor.

Ora como bem se sublinhou na decisão recorrida em casos excepcionais a formalidade de audiência prévia pode degradar-se em formalidade não essencial e, portanto, ser omitida sem que daí resulte ilegalidade determinante da anulação do acto. É o que sucede, por exemplo, quando está em causa uma atividade vinculada da administração em que a decisão não poderia ser outra que não a efectivamente tomada.

E de facto decorre do princípio de aproveitamento dos actos administrativos, que a anulação de um acto viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo acto a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o acto impugnado.
Tem-se entendido que a aplicação deste princípio de aproveitamento do acto envolve a violação das prescrições relativas ao procedimento e à forma, mas não de um vício de violação de lei (vício em que incorrem os actos administrativos que desrespeitem requisitos de legalidade relativos aos pressupostos de facto, ao objecto e ao conteúdo – cf. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, (Direito Administrativo Geral, edição D. Quixote, Tomo III, pag. 158),
Como ensinam aqueles autores (Ob. citada, Tomo III, pag. 49), «por vezes, a ordem jurídica comina, prima facie, a invalidade (nulidade ou anulabilidade) para um acto jurídico da administração que padece de determinado vício, mas permite que, reunidas determinadas circunstâncias, o acto em causa passe a ser considerado como simplesmente irregular.
Este fenómeno é exclusivo dos vícios formais. Situações típicas são as de degradação da forma legal e de degradação de formalidades essenciais em não essenciais (supra, 18-24): quando as finalidades que a prescrição da forma ou das formalidades exigidas para um determinado acto foram plenamente atingidos por outro meio, torna-se inútil o cumprimento daqueles requisitos formais.»
Também a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem acolhido a aplicação eventual deste princípio nos casos de actos administrativos feridos por vício de forma e de procedimento (preterição de formalidades essenciais), mas não por vício de violação de lei.
Neste sentido a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a sublinhar que a inoperacionalidade dos vícios se reporta «a irregularidades procedimentais (v.g. falta de audiência) que dada sua natureza instrumental se degradam perante o resultado final, ou vícios que se desvalorizam totalmente perante a natureza vinculada de actos praticados conforme à lei (apesar das irregularidades cometidas), ou porque subsistem fundamentos exactos bastantes para suportar a validade do acto» – cfr. Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo de 18.11.2010, recurso 855/09, e por todos o acórdão deste Supremo Tribunal de 18-11-2009, proferido no processo 0434/09, onde é feita uma sistematização dos casos admitidos pela jurisprudência e uma referência às posições doutrinárias no direito comparado.

No caso concreto, como bem se assinala na decisão recorrida, ainda que se devesse considerar ilegal a dispensa da audiência prévia, a preterição desta formalidade degradou-se em não essencial, perdendo-se o respectivo efeito invalidante, na medida em que a decisão tomada - determinação da matéria colectável em montante presumido, de acordo com a lei (artº 83º, nº 1, al. b) do CIRC) - seria a única concretamente possível.

A decisão de dispensa do direito de audição em sede de recurso hierárquico, tomada ao abrigo do nº2 do artigo 103º do CPA, mostra-se, assim, conforme à lei e não viola a Constituição, sendo que a sentença recorrida, que assim entendeu, não merece censura, também neste aspecto.
Pelo que fica dito improcede também este fundamento do recurso

8. Decisão:
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente

Lisboa, 3 de Julho de 2019. – Pedro Delgado (relator) – Aragão Seia – Isabel Marques da Silva.