Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0118/17
Data do Acordão:01/31/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:IRS
FACTO TRIBUTÁRIO
SUJEIÇÃO A IMPOSTO
ACTO ISOLADO
Sumário:Para efeitos de IRS (Categoria B), não havendo obrigação de emissão de factura, o momento a atender para determinar a obtenção do rendimento e a consequente sujeição a imposto, corresponde ao do recebimento do valor respectivo (nº 6 do art. 3º do CIRS).
Nº Convencional:JSTA00070518
Nº do Documento:SA2201801310118
Data de Entrada:02/02/2017
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A........
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF CASTELO BRANCO
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - IRS
Legislação Nacional:CIRS2004 ART3 ART22 ART30 ART31 ART18.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0339/10 DE 2010/09/08.
Referência a Doutrina:PAULO PITTA E CUNHA - ALTERAÇÕES NA TRIBUTAÇÃO DO RENDIMENTO - REFORMA FISCAL OU SIMPLES AJUSTAMENTOS - FISCO N103/104 PÁG5.
RUI DUARTE MORAIS - SOBRE O IRS 2ED PÁG37 PÁG97-99.
JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO - IRS - INCIDÊNCIA REAL E DETERMINAÇÃO DOS RENDIMENTOS LIQUIDOS 2007 PÁG42.
ANDRÉ SALGADO MATOS - CÓDIGO DO IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS SINGULARES - ANOTADO 1ED 1999 PÁG247.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1.1. A Fazenda Pública recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco que, julgando parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por A………., com os demais sinais dos autos, anulou a liquidação de IRS nº 20085003890458, relativa ao ano de 2004, na parte em que aquela engloba um valor de rendimento de categoria B superior a 588.659,00 Euros.

1.2. Termina as alegações formulando as Conclusões seguintes:
a) A douta sentença, ora recorrida, incorreu em vício de erro de julgamento, por violação de lei, designadamente, por violação dos arts. 3º, nº 6 e 22º do CIRS e por desrespeito do princípio constitucional da não retroactividade da lei fiscal, previsto no art. 103º, nº 3 da CRP e art. 12º da LGT. Acresce ainda que a douta decisão faz uma incorrecta interpretação da lei fiscal e da matéria que considera como provada.
b) Dispõe o nº 6 do art. do CIRS que os rendimentos referidos neste artigo ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão da factura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respectivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18º do Código do IRC, sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.
c) A decisão, ora recorrida, confunde o facto tributário (facto gerador do rendimento) com o momento a partir do qual o rendimento é colocado à disposição do contribuinte. Ora, uma coisa é o facto tributário, que, no caso, é a contraprestação da transmissão onerosa do estabelecimento comercial, designado Farmácia ……….; outra coisa, totalmente distinta, é o princípio da disponibilidade do rendimento, previsto no citado nº 6 do art. 3º do CIRS, nos termos do qual só haverá tributação desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respectivos titulares.
d) O pagamento não constitui um facto tributário, é apenas uma condicionante para a exigibilidade do imposto. Para efeitos de qualificação do rendimento e subsunção do mesmo às normas aplicáveis, é o momento de verificação do facto tributário que deve relevar para a fixação da lei fiscal material aplicável, o que leva a que, no caso vertente, tenha de ser aplicado o regime legal constante do art. 3º, n.ºs 1 e 6 do CIRS na redacção em vigor para o exercício de 2004.
e) A aplicação da lei inclui não só o facto tributário, como também todos os efeitos dela decorrentes, ou seja, a mesma lei fiscal deverá fixar o tratamento fiscal de todos os rendimentos que tenham fonte no contrato de trespasse, celebrado em 10/11/2004 e referido na alínea a) do probatório, independentemente do momento em que são recebidos.
f) A entender-se de outro modo, como parece fazer a douta sentença ora recorrida, i.e., a considerar-se que os montantes recebidos em data posterior, em prestações mensais e sucessivas de 5.000 euros cada [( ) Pagas alternadamente à ora impugnante e ex-marido B……….] pagamento esse que se prolongaria por 86 meses (cerca de 7 anos), teríamos que atender à lei em vigor nesses mesmos exercícios posteriores, interpretação que não é consentânea com o princípio da não retroactividade da lei fiscal.
g) O facto tributário, entendido como uma situação concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto, ocorreu em 2004, com a transmissão do estabelecimento comercial de farmácia (trespasse) e a assunção das respectivas quer por parte dos trespassantes (entrega do estabelecimento, o que comummente se reconduz à entrega da chave) e outros activos que se estipularam transmitir, quer por parte dos trespassários ou adquirentes (pagamento do preço).
h) O facto tributário, sub judice, é de formação automática e não de formação sucessiva, como sucede numa relação jurídica laboral, com o pagamento de salários ou como, porventura, sucederá, com o arrendamento, com o recebimento das rendas.
i) Pelo que tributar rendimentos, ainda que recebidos posteriormente, pelo seu titular, segundo regras de tributação eventualmente diferentes das que estavam em vigor aquando da formação do facto tributário, salvo melhor opinião, é estar a permitir-se a aplicação de uma lei fiscal material nova a um facto tributário totalmente verificado no âmbito da lei fiscal material anterior, o que constitui uma situação de retroactividade frontal, patente e inequívoca de uma norma de direito fiscal material, violadora do princípio da segurança e do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal (cfr. art. 103º, nº 3 da CRP e 12º da LGT).
j) A sentença recorrida incorre num erro de julgamento no que concerne ao conceito de disponibilidade dos rendimentos. Contende, de forma flagrante, com a matéria dada como provada. No probatório [alínea b)], consta que foi emitida uma declaração que instituía os mandatários da aqui impugnante e do ex-marido como fiéis depositários dos cheques correspondentes às prestações, supra referidas.
k) Portanto, parece incontornável que os meios de pagamento foram, de imediato - em 11.11.2004, dia posterior à celebração do contrato de trespasse - colocados à disposição dos titulares dos rendimentos.
l) É entendimento da Fazenda Pública que a colocação à disposição corresponde ao poder de facto do titular de receber a quantia em causa, dentro das cláusulas acordadas no contrato de trespasse. O facto de os cheques serem entregues aos mandatários dos trespassantes (representantes dos mesmos) integra o conceito relativamente indeterminado de “colocação à disposição”, a que se reportam diversas disposições do código do IRS, designadamente o já mencionado art. 3º, nº 6.
m) Conforme se pode alcançar da leitura do contrato de trespasse e reproduzido no probatório [Alínea a)], as condições da transmissão e do pagamento estão perfeitamente definidas, não se encontra prevista qualquer condição resolutiva ou de outra natureza, pelo que, nos termos do contrato, não existia qualquer possibilidade de as partes se eximirem ao cumprimento dos deveres e obrigações a que estavam vinculados, maxime, a obrigação de pagamento do preço, conforme estipulado.
n) A douta sentença confunde o critério económico, princípio da tributação, com o critério financeiro ou de efectivo recebimento o que está em flagrante contradição com os princípios em que assenta o sistema fiscal e toda a arquitectura dos impostos do ordenamento jurídico português.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida.

1.3. Contra-alegou a recorrida A……….. tendo, a final, formulado as Conclusões seguintes:
19 - Devem os autos baixar ao tribunal a quo, para se efectuar a devida prova testemunhal, cf. Art. 115º e 118º, ambos do CPPT e Art. 392º do C. Civil.
20 - Caso assim não se decida, devem os autos manter a decisão, na parte recorrida pela Fazenda Nacional;
21 - Por o tribunal a quo ter feita a interpretação devida sobre o valor a tributar, em 2004, com base no Art. 3º, nº 6 do CIRS.
Termina pedindo que a decisão recorrida seja mantida, com efeitos na anulação da liquidação recorrida.

1.4. Tendo o recurso sido interposto para o TCA Sul, ali veio a ser proferida em 29/11/2016 a decisão de fls. 332/353, declarando a incompetência desse tribunal, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso e atribuindo tal competência ao STA, por o recurso versar exclusivamente matéria de direito.

1.5. Remetidos os autos a este STA, foram com vista ao MP, que emite Parecer nos termos seguintes:
«1. Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 294 e seguintes do TAF de Castelo Branco, que julgou parcialmente procedente a ação de impugnação judicial intentada contra a liquidação de IRS relativa ao ano de 2004, no valor de € 230.662,45 euros.
Considera a Recorrente que a sentença padece do vício de erro de julgamento, por ter feito uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 3º, nº 6 e 22º do CIRS, e por violação do princípio constitucional da não retroatividade consagrado no art. 103º, nº 3, da Constituição, e art. 12º da LGT.
Entende a Recorrente que «para efeitos e qualificação do rendimento e subsunção do mesmo às normas aplicáveis é o momento de verificação do facto tributário que deve relevar para a fixação da lei fiscal material aplicável o que leva a que, no caso vertente, tenha de ser aplicado o regime legal constante do art. 3º, n.ºs 1 e 6 do CIRS, na redação em vigor para o exercício de 2004».
Acrescenta ainda a Recorrente que «... tributar rendimentos, ainda que recebidos posteriormente, segundo regras de tributação eventualmente diferentes das que estavam em vigor, aquando da formação do facto tributário, salvo melhor opinião, é estar a permitir-se a aplicação de uma lei fiscal material nova a um facto tributário totalmente verificado no âmbito da lei fiscal material anterior, o que constitui uma situação de retroatividade frontal, patente e inequívoca de uma norma de direito fiscal material, violadora do princípio da segurança e do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal».
E termina pedindo a revogação da sentença.
2. Na sentença recorrida deu-se como assente que a impugnante foi objeto de uma ação inspetiva de âmbito parcial ao IRS do ano de 2004, período em que se encontrava casada com B………., na situação de separada de facto.
Mais ficou assente que no ano de 2004 o sujeito passivo B……….. celebrou um contrato no âmbito do qual transmitiu a propriedade de um estabelecimento de farmácia pelo valor de € 1.607.318,26 euros, de cujo montante foi pago em 2004 o valor de € 588.659,00 euros a cada cônjuge, sendo o restante valor pago em prestações mensais de € 5.000,00 alternadamente a cada cônjuge, a partir de janeiro de 2005 (cláusula 21 do contrato).
Na sequência da referida ação inspetiva e no que respeita à impugnante e aqui Recorrida a AT procedeu a correções à matéria tributável do ano de 2004, à qual acresceu o valor de € 803.659,13, e emitido a liquidação adicional de IRS nº 20085003890458, na qual foi apurado o rendimento tributável de € 532.744,00 euros, de que resultou imposto e juros compensatórios a pagar no montante de € 229.798,69 euros.
Nessa liquidação a AT considerou que a parte do valor recebido pela Recorrida da transmissão do estabelecimento de farmácia constituía “rendimento proveniente da prática de acto isolado enquadrado na categoria “B” de IRS e tributado nos termos dos artigos 1º, 3º nº 2 alínea h) e 30º do CIRS.
Para se decidir pela procedência parcial da impugnação considerou o/a Mmo/a. juiz “a quo” que «nos termos do estabelecido no artigo 21º do CIRS, “o rendimento coletável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos previstos nas seções seguintes”, pelo que ficam sujeitos ao regime regra em sede de IRS, que é o de em cada ano haver englobamento e tributação dos rendimentos nele recebidos ou postos à disposição do seu titular (Cfr. acórdão do STA n 043/11, de 23/11/2011». E conclui pela ilegalidade da imputação ao ano de 2004 de rendimento superior àquele que a impugnante efetivamente auferiu naquele ano, impondo-se a anulação da liquidação “na parte que considerou rendimentos da categoria “B” com origem no trespasse do estabelecimento comercial de farmácia superiores a 588.659,00 euros”.
3. A questão que se coloca consiste em saber se os rendimentos recebidos pela Recorrida posteriormente ao ano de 2004 e reportados à transmissão do estabelecimento verificada naquele ano devem ser imputados a esse exercício ou no ano em que efetivamente foram recebidos, de acordo com o plano de pagamentos acordado.
Não oferece dúvidas que os rendimentos em causa e auferidos pela Recorrida são provenientes da transmissão da titularidade do estabelecimento de farmácia, facto este que ocorreu no ano de 2004. Este elemento revela-se essencial para efeitos de qualificação dos rendimentos e a sua sujeição a tributação, que como vimos foram qualificados como rendimentos da categoria “B”. Mas não é isso que está em causa no recurso que vem dirigido a este tribunal, mas sim a sua imputação a determinado período anual.
Decorre da sentença recorrida que na liquidação impugnada a AT considerou como rendimento da categoria “B” proveniente da venda do estabelecimento de farmácia, o montante de € 803.659,13 euros, atribuído à impugnante/recorrida, ao qual foi aplicado o regime simplificado do artigo 31º do CIRS, por a AT ter considerado que não se mostravam reunidos os pressupostos legais de aplicação do regime de ato isolado (art. 30º), uma vez que estes rendimentos são de valor largamente superior aos restantes rendimentos auferidos pelo sujeito passivo (€ 10.366,16 euros) [( ) Embora se nos afigure que esta questão tenha sido abordada de forma algo confusa na sentença, devendo resultar de forma mais explícita da matéria de facto]. E nessa medida, para a determinação da matéria tributável a AT aplicou o coeficiente de 0,65 previsto no nº 2 do artigo 31º do CIRS, àqueles rendimentos no montante de € 803.659,13, obtendo assim o valor de € 522.378,43, que acresceu aos restantes rendimentos, o que perfez o montante global de € 532.744,60 (522.378,43 + 10.366,16).
A questão que se coloca consiste em saber se na aplicação deste regime simplificado, que não foi questionado, se deve ou não atender ao valor total do preço acordado pela venda do estabelecimento ou se apenas à parte do valor do preço recebido no ano de 2004.
Nos termos do artigo 1º, nº 1, do CIRS, o imposto incide sobre o valor anual dos rendimentos das diversas categorias ali discriminadas, sendo que esse valor é reportado a um período anual. Assim, nos termos do artigo 22º, nº 1, do CIRS, “o rendimento coletável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, ...”. Esta é de facto a regra geral de tributação em sede de IRS.
Segundo a doutrina [( ) Cfr. a este propósito Rui Duarte Morais, “Sobre o IRS”, Almedina, 2008, pág. 37 e segs.], o IRS «tem subjacente uma conceção ampla de rendimento, procurando, ainda que só tendencialmente, fazer coincidir rendimento tributável e rendimento acréscimo». Ora a caraterística da anualidade do IRS tem como decorrência que o imposto incide, em cada ano fiscal, sobre os rendimentos pagos ou postos à disposição dos sujeitos passivos nesse mesmo período. O que é igualmente um decorrência do princípio da capacidade contributiva, pois um rendimento devido pode nunca vir a ser disponibilizado [( ) Cfr. a este propósito André Salgado de Matos, CIRS Anotado, em anotação ao artigo 24º revogado].
Assim e ao contrário do que é regra no IRC, em que a imputação de um proveito ou custo a certo exercício obedece a um critério económico, ou seja, as operações nele efetuadas afetam o respetivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respetivo preço ou outra contrapartida [( ) Cfr. a este propósito Rui Duarte Morais, “Apontamentos ao IRC”, Almedina, 2007, pág. 64 e segs.], no IRS a regra, no caso dos rendimentos da categoria “B”, é a do momento em que o rendimento fica disponível para o sujeito passivo - nº 6 do artigo 3º do CIRS [( ) Embora tal regra comporte exceções, designadamente no caso das mais-valias imobiliárias, em que os ganhos se consideram obtidos no momento da realização da transmissão - art. 10º, nº 1, al. a) e nº 3 - no caso de estarmos perante rendimento da categoria “G”].
Para Rui Duarte Morais, (ob. cit. pág. 97), no regime simplificado podem ocorrer duas situações: «consoante haja ou não obrigação de emitir factura ou documento equivalente. Se tal obrigação não existir, o proveito apenas acontece no momento do pagamento ou colocação à disposição da importância em causa (ou seja, no momento em que ocorre a exigência de emissão do recibo)». No caso concreto dos autos como não havia obrigação de emissão de fatura por parte da impugnante/recorrida, o momento a atender corresponde ao momento do recebimento do valor correspondente.
Decorrendo da matéria de facto assente - ponto c) do probatório - que em novembro de 2004 a impugnante/recorrida recebeu a importância de € 588.659,00 euros, sendo a parte restante da parte que lhe cabia paga através de cheques pós-datados que ficaram nas mãos dos advogados - ponto b) do probatório - e que se venciam a partir de Janeiro de 2005, temos que concluir que só esse valor deve ser atendido para efeitos de determinação do rendimento tributável ao abrigo do regime simplificado previsto no artigo 31º do CIRS.
Por outro lado a entrega de cheques pós-datados não pode ser equiparada à disponibilidade do rendimento, pois os mesmos apenas serviam de garantia e facilidade na cobrança da importância ainda em dívida.
Do mesmo modo, a consagração do “reporte de rendimentos” prevista no artigo 24º do CIRS revogado, pretendia responder a uma preocupação perante situações de sobrecarga fiscal - devido ao aumento da taxa aplicável - alheias ao sujeito passivo e não propriamente com intuito de estabelecer qualquer regra de tributação, objetivo este que se visa colmatar igualmente no artigo 74º do mesmo Código.
Entendemos, assim, que adotando o CIRS um conceito de “rendimento acréscimo”, ou de rendimento em sentido lato, o que releva para efeitos de tributação são “os acréscimos patrimoniais líquidos que afluem a um titular num determinado período” [( ) cfr. a este propósito José Guilherme Xavier de Basto, in “IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, pág. 42].
Entendemos, assim, que a sentença recorrida não padece do vício que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação.
Afigura-se-nos, assim, que o recurso deve ser julgado improcedente.».

1.6. Corridos os vistos legais, cabe decidir.

FUNDAMENTOS
2. A sentença recorrida julgou provada a factualidade seguinte:
a) Com data de 10/11/2004 foi reduzido a escrito um contrato onde B……….. e A………… aparecem como vendedores e C………. e D………… aparecem como compradores, e onde declaram (cfr. documento de fls. 26 e ss. do PAT):











c) Em Novembro de 2004 foi emitido cheque à ordem a aqui impugnante – A………., da conta depósito nº ………. junto do BES, titulada por C…………., no valor de 588.659,00 (cfr. cópia certificada de fls. 105 do PAT e confissão, artigo 78º da PI);
d) A 13/08/1999 compareceram no Cartório Notarial da Guarda, ………… e esposa, como primeiros outorgantes, e, C………., como segunda outorgante, declarando que “pelo preço de seis milhões de escudos” os primeiros outorgantes “trespassam” o seu estabelecimento comercial de comércio a retalho de malhas e miudezas instalado no rés-do-chão e primeiro andar com os números de polícia ……….., do prédio urbano sito na Rua …………., freguesia de S. Vicente, Guarda, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 838 (cfr. cópia de contrato, a fls. 32 e ss. do PAT);
e) A 01/10/1992 compareceram no Cartório Notarial da Guarda, …………. e marido, como primeiros outorgantes, e, ………., declarando os primeiro trespassar a favor da segunda, pelo preço quatro milhões de escudos, o estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia ……….” instalado no prédio urbano sito Rua …………, Freguesia da Sé, Guarda, inscrita na respectiva matriz, sob o artigo oitocentos e trinta e oito.
Mais declarando ser o prédio onde está instalado o estabelecimento pertencente a B……….. (cfr. cópia de contrato de fls. 35 e ss. do PAT);
f) A 21/12/1998 compareceram no Cartório Notarial da Guarda, ………… e marido, como primeiros outorgantes, e C………, declarando os primeiros, que pelo preço de quarenta e dois milhões e quinhentos mil escudos trespassam um estabelecimento de Farmácia, denominado “Farmácia ………….”, instalado no prédio urbano sita na Rua …….., freguesia de São Vicente, Guarda, inscrito na matriz sob o artigo 838 (cfr. cópia de escritura pública, a fls. 38 e ss. do PAT);
g) A 20/01/1989 compareceu no Cartório Notarial da Guarda representante de ………. (...) e ……….. (...), como primeiro outorgante e B………., tendo o primeiro declarado que vende ao segundo outorgante o prédio urbano composto de um único andar, sito na Rua ………., inscrito sob o artigo oitocentos e trinta e oito (cfr. cópia de escritura a fls. 43 e ss. do PAT);
h) A 20/03/1978 compareceram no Cartório Notarial da Guarda, …………. e irmão ……….., como primeiros outorgantes, e ………….., como segundo outorgante, declarando os primeiros, que pelo preço de cento e cinquenta mil escudos (...) trespassam à segunda outorgante um estabelecimento de Farmácia, denominado “Farmácia …………”, instalado no prédio urbano sita na Rua …………, freguesia de São Vicente, Guarda, inscrito na matriz sob o artigo 838 (cfr. cópia de escritura pública, a fls. 35 e ss. dos autos);
i) A aqui impugnante foi alvo de acção de inspecção, levada a cabo pela AT, de âmbito parcial, incidindo sobre o IRS e relativa ao ano de 2004 (cfr. pt. 2. do Relatório de Inspecção Tributária, de fls. 5 e ss. do PAT);
j) Na sequência da acção a que respeita a alínea anterior foi elaborado relatório final, onde além do mais se lê (cfr. cópia de fls. 5 e ss. do PAT);






























k) A acção de inspecção resultou na conclusão de se imporem correcções de natureza meramente aritmética à matéria tributável, em relação ao ano de 2004, no valor de 803.659,13 euros (cfr. documento de fls. 2 do PAT);
l) A 22/10/2007 foi proferido despacho pelo Digníssimo Magistrado do MP do DIAP do Distrito Judicial de Coimbra no sentido de ser autorizada a passagem de certidão para efeitos de tributação de elementos extraídos do processo de inquérito nº 4/07.2IDGRD, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos seguintes (cfr. cópias certificadas de fls. 22 e ss. do PAT):






m) A 29/07/2008 foi emitida liquidação de IRS com o nº 20085003890458, relativa ao ano de 2004, dirigida à aqui impugnante, onde se apurou um rendimento global de 532.744,60 (euros) e um valor a pagar de 229.798,69 euros (cfr. nota de liquidação a fls. 23 dos autos);
n) B……….. remeteu relativamente ao exercício de 2004 declaração de IRS onde se declarou separado de facto (cfr. cópia de declaração a fls. 28 e ss. dos autos);
o) A 22/09/2008 foi emitida declaração pelo BES onde se lê “(...) a conta nº ………… titulada por B………. tinha como condições de movimentação a assinaturas de qualquer um dos seguintes intervenientes: B…………, (...), e A……….. (...)”.
p) Na determinação dos rendimentos líquidos da categoria B, tributados através da liquidação de IRS nº 5333890458, foram aplicadas as regras do regime simplificado (cfr. informação de fls. 293 do PAT).
3.1. A sentença julgou parcialmente procedente a impugnação, aduzindo a fundamentação seguinte:
— face ao disposto no art. 21º do CIRS, o rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos previstos na lei, “pelo que ficam sujeitos ao regime regra em sede de IRS, que é o de em cada ano haver englobamento e tributação dos rendimentos nele recebidos ou postos à disposição do seu titular (cfr. acórdão do STA nº 043/11, de 23/11/2011);
— verifica-se, assim, a ilegalidade da imputação ao ano de 2004 de rendimento superior àquele que a impugnante efectivamente auferiu nesse ano, impondo-se a anulação da liquidação «na parte que considerou rendimentos da categoria “B” com origem no trespasse do estabelecimento comercial de farmácia superiores a 588.659,00 euros».

3.2. A recorrente sustenta que a sentença enferma de erro de julgamento de direito, por ter feito errónea interpretação e aplicação do disposto no art. 3º, nº 6 e no art. 22º, ambos do CIRS, bem como por ter decidido em violação do princípio constitucional da não retroactividade da lei fiscal, consagrado nos arts. 100º, nº 3 da CRP e 12º da LGT.
Na alegação da recorrente, é ao momento da verificação do facto tributário que deve atender-se para definir qual a lei fiscal aplicável para efeito de qualificação do rendimento tributável e de subsunção do mesmo às normas aplicáveis e, por isso, no caso, deverá aplicar-se o regime legal constante dos nºs. 1 e 6 do art. 3º do CIRS, na redação em vigor para o exercício de 2004, e não o regime que posteriormente feio a ser definido.
Isto porque, a admitir-se o entendimento constante da sentença, estaríamos a «tributar rendimentos, ainda que recebidos posteriormente, segundo regras de tributação eventualmente diferentes das que estavam em vigor, aquando da formação do facto tributário (...) e a permitir-se a aplicação de uma lei fiscal material nova a um facto tributário totalmente verificado no âmbito da lei fiscal material anterior, o que constitui uma situação de retroatividade frontal, patente e inequívoca de uma norma de direito fiscal material, violadora do princípio da segurança e do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal».
Saber se ocorre tal erro de julgamento é, assim, a única questão aqui a decidir.
Vejamos, pois.

3.3. Refira-se, antes de mais, que, na perspectiva considerada pelo TCAS (como acima ficou dito, esse Tribunal julgou-se incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso) também aqui se entende que o recurso tem por exclusivo objecto matéria de direito (nº 1 do art. 280º do CPPT) pois as partes não contestam os factos constantes do probatório, divergindo apenas quanto à interpretação das regras jurídicas aplicáveis.
Apreciando, pois.

4.1. Dispunha-se (na redacção à data de 2004), nos ditos nºs. 1 e 6 do art. 3º e nos n.ºs 1 e 2 do art. 22º, ambos do CIRS:
Artigo 3º - Rendimentos da categoria B
«1 - Consideram-se rendimentos empresariais e profissionais:
a) Os decorrentes do exercício de qualquer actividade comercial, industrial, agrícola, silvícola ou pecuária;
b) Os auferidos no exercício, por conta própria, de qualquer actividade de prestação de serviços, incluindo as de carácter científico, artístico ou técnico, qualquer que seja a sua natureza, ainda que conexa com actividades mencionadas na alínea anterior;
c) Os provenientes da propriedade intelectual ou industrial ou da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no sector industrial, comercial ou científico, quando auferidos pelo seu titular originário.
2 - Consideram-se ainda rendimentos desta categoria:
a) Os rendimentos prediais imputáveis a actividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais;
b) Os rendimentos de capitais imputáveis a actividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais;
c) As mais-valias apuradas no âmbito das actividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais, definidas nos termos do artigo 43.º do Código do IRC, designadamente as resultantes da transferência para o património particular dos empresários de quaisquer bens afectos ao activo da empresa e, bem assim, os outros ganhos ou perdas que, não se encontrando nessas condições, decorram das operações referidas no n.º 1 do artigo 10.º, quando imputáveis a actividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais;
d) As importâncias auferidas, a título de indemnização, conexas com a actividade exercida, nomeadamente a sua redução, suspensão e cessação, assim como pela mudança do local do respectivo exercício;
e) As importâncias relativas à cessão temporária de exploração de estabelecimento;
f) Os subsídios ou subvenções no âmbito do exercício de actividade abrangida na alínea a) do n.º 1;
g) Os subsídios ou subvenções no âmbito do exercício de actividade abrangida na alínea b) do n.º 1;
h) Os provenientes da prática de actos isolados referentes a actividade abrangida na alínea a) do n.º 1;
i) Os provenientes da prática de actos isolados referentes a actividade abrangida na alínea b) do n.º 1.
3 - Para efeitos do disposto nas alíneas h) e i) do número anterior, consideram-se rendimentos provenientes de actos isolados os que, não representando mais de 50% dos restantes rendimentos do sujeito passivo, quando os houver, não resultem de uma prática previsível ou reiterada.
(...)
6 - Os rendimentos referidos neste artigo ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão de factura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respectivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18.º do Código do IRC, sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.»
Artigo 22º - Englobamento
1 - O rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos previstos nas secções seguintes.
2 - Nas situações de contitularidade, o englobamento faz-se nos seguintes termos:
a) Tratando-se de rendimentos da categoria B, cada contitular engloba a parte do rendimento que lhe couber, na proporção das respectivas quotas;
b) Tratando-se de rendimentos das restantes categorias, cada contitular engloba os rendimentos ilíquidos e as deduções legalmente admitidas, na proporção das respectivas quotas.
(...)»

4.2. Conforme resulta do Probatório, em 2004 a recorrente estava casada com B……….., na situação de separada de facto e aquele celebrou, nesse mesmo ano, um contrato no âmbito do qual transmitiu a propriedade de um estabelecimento de farmácia pelo valor de € 1.607.318,26 euros, de cujo montante logo foi pago em 2004 o valor de € 588.659,00 euros a cada um dos cônjuges, sendo o restante valor pago, alternadamente a cada cônjuge, em prestações mensais de € 5.000,00, a partir de Janeiro de 2005.
Tendo a recorrente sido objecto de uma acção inspectiva de âmbito parcial ao IRS do ano de 2004, a AT veio a considerar, na sequência dessa acção, que a totalidade do valor recebido pela recorrente na sequência da apontada transmissão do estabelecimento de farmácia constituía “rendimento proveniente da prática de acto isolado, enquadrado na categoria “B” de IRS e tributado nos termos dos arts. 1º, 3º, nº 2 al. h) e 30º do CIRS. E neste entendimento a AT procedeu à correcção da matéria tributável do ano de 2004, acrescendo à declarada o valor de 803.659,13 euros e emitiu a liquidação adicional aqui impugnada (nº 20085003890458, referente a IRS e juros compensatórios) no montante (a pagar) de 229.798,69 euros, em resultado de ter sido apurado o rendimento tributável de 532.744,00 Euros.
Ou seja, a AT considerou o montante de € 803.659,13 euros como rendimento enquadrável na categoria “B” do ano de 2004, e recorreu ao disposto no art. 31º do CIRS (regime simplificado) para proceder à determinação do respectivo rendimento tributável (do mesmo ano de 2004): considerou que não estavam reunidos os pressupostos legais de aplicação do regime de ato isolado (art. 30º do CIRS), uma vez que este rendimento aqui em causa é de valor largamente superior aos restantes rendimentos auferidos no dito ano de 2004 pelo sujeito passivo (€ 10.366,16 euros).
Daí que, para efeito de determinação da matéria tributável, a AT tenha aplicado àquele rendimento (803.659,13 euros) o coeficiente de 0,65 previsto no nº 2 do citado art. 31º do CIRS, obtendo assim o valor de 522.378,43 euros, que acresceu aos restantes rendimentos declarados no ano (10.366,16 euros), resultando, então, o montante global de 532.744,60 euros de rendimento tributável, que originou a colecta de IRS e respectivos juros compensatórios, no montante de 229.798,69 euros, conforme a liquidação impugnada.
Ora, conforme bem sublinha o MP, o que no recurso importa decidir é se, aplicando-se este regime simplificado (matéria que não é questionada) deve atender-se ao valor total do preço acordado pela venda do referido estabelecimento ou se deve atender-se apenas à parte do valor do preço recebido no ano de 2004.
Sendo que, nos termos do nº 1 do art. 1º do CIRS, o imposto incide sobre o valor anual dos rendimentos das diversas categorias ali discriminadas, valor esse que é reportado a um período anual, segundo a regra geral de englobamento, constante do nº 1 do art. 22º do CIRS: “O rendimento coletável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, ...”.
Não se contesta que, como sustenta a recorrente, uma coisa é o facto tributário e outra é o momento em que determinado rendimento é posto à disposição do respectivo titular, não constituindo o pagamento o próprio facto tributário.
No entanto, casos há em que a própria lei especifica que certos rendimentos só ficam sujeitos a imposto após determinado momento (cfr. o supra transcrito nº 6 do art. 3º do CIRS).
Aliás, neste âmbito, com a fusão das anteriores categorias B, C e D, na actual categoria B de IRS (Referindo-se à reforma do CIRS em que se procedeu a esta fusão, Paulo de Pitta e Cunha, pondera o seguinte: «Dada a heterogeneidade das situações que agora estão abrangidas na categoria alargada, não surpreende que se estabeleçam regras diferentes, em matéria de retenção na fonte e em variados outros aspectos, para cada uma das subcategorias que resultaram desta aglutinação». («ALTERAÇÕES NA TRIBUTAÇÃO DO RENDIMENTO: REFORMA FISCAL OU SIMPLES AJUSTAMENTOS?», in Fisco, nº 103/104, p. 5).), e após as alterações introduzidas no art. 31º do CIRS, pela Lei nº 32-B/2002, de 30/12 (OE para 2003), a especialização dos exercícios terá passado a abranger (por força da remissão do art. 32º do CIRS para as regras do IRC, incluindo, portanto, o disposto no seu art. 18º) rendimentos que ficam sujeitos a imposto desde o momento em que, para efeitos de IVA, seja obrigatória a emissão de factura ou documento equivalente [antes das referidas alterações, distinguia-se, no âmbito dos rendimentos empresariais e profissionais, entre o momento da sujeição a imposto dos rendimentos respeitantes a titulares com contabilidade organizada e que fossem tributados de acordo com essa situação, e o momento da sujeição dos demais rendimentos da categoria B; e a distinção decorria do próprio regime aplicável: os sujeitos passivos com contabilidade organizada estavam abrangidos pelo princípio da especialização de exercícios e os restantes estavam abrangidos pelo princípio da caixa (recebimento)].
Daí que na tese da recorrente, sendo o rendimento referente a 2004, o momento da sujeição se deva considerar independentemente do efectivo recebimento das importâncias.
Todavia, como salienta Rui Duarte Morais (Sobre o IRS, 2ª ed., p. 37.
Sobre a matéria, cfr., igualmente, José Guilherme Xavier de Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, 2007, p. 42.), o IRS «tem subjacente uma concepção ampla de rendimento, procurando, ainda que só tendencialmente, fazer coincidir rendimento tributável e rendimento acréscimo», sendo que, por outro lado, da anualidade do IRS decorre que o imposto incide, por regra, em cada ano fiscal, sobre os rendimentos pagos ou postos à disposição dos sujeitos passivos nesse mesmo período. Aqui se manifestando, aliás, o princípio da capacidade contributiva, sendo que, como então salientava André Salgado de Matos (Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) Anotado, 1ª Ed., 1999, Coimbra Editora, p. 247 (anotação ao artigo 24º).) «[n]ão poderia estabelecer-se como regra geral a incidência do imposto sobre os rendimentos a partir do momento em que são devidos, porque este facto não é indício de qualquer capacidade contributiva: um rendimento devido pode nunca vir a ser disponibilizado, e como tal é apenas um rendimento futuro».
De referir, ainda, que a respeito do regime simplificado e da figura do acto isolado, Rui Duarte Morais (Ob. cit., pp. 97-99. ) pondera, igualmente, o seguinte:
«Essencial neste regime [simplificado] é o facto de o sujeito passivo não ser obrigado a dispor de contabilidade organizada (...)
Existe, ainda, a obrigação de os sujeitos passivos emitirem factura e/ou recibo.
A obrigatoriedade de emitir factura ou documento equivalente releva, também, para a determinação do momento em que ocorre o facto gerador de imposto. Dito de forma simples, podemos considerar dois momentos: aquele em que o pagamento ocorre; aquele em que o crédito se torna líquido (pela emissão da factura ou documento equivalente).
As regras contabilísticas dão relevância ao segundo momento: registam-se créditos e dívidas e não pagamentos. Observa-se, pois, um critério económico no registo quer dos proveitos, quer dos custos. (...)
Assim sendo, nenhuma questão se coloca quanto ao momento em que o proveito se considera verificado quando o sujeito passivo vê o seu rendimento apurado com base em contabilidade organizada.
Porém, no regime simplificado, teremos duas diferentes situações, consoante haja ou não obrigação de emitir factura ou documento equivalente.
Se tal obrigação não existir, o proveito apenas acontece no momento do pagamento ou colocação à disposição da importância em causa (ou seja, no momento em que ocorre a exigência de emissão do recibo).
A obrigação de emitir factura ou documento equivalente decorre das disposições do CIVA, as quais, obviamente, não cabe aqui analisar
E no caso da obtenção de rendimento decorrente da prática de acto isolado, «compreende-se a dispensa da maior parte das obrigações acessórias a que, por regra, estão obrigados aqueles que têm rendimentos inseríveis nesta categoria. (...)
Se apenas praticarem "actos isolados" geradores de rendimentos desta categoria, os sujeitos passivos estão dispensados do cumprimento das obrigações acessórias previstas nos art. 112º e seguintes, nomeadamente de efectuar as declarações de início e cessação de actividade, de emitir facturas e recibos de modelo oficial (art. 115º nº 3) - muito embora devam emitir recibo de quitação das importâncias recebidas -, e de possuir livros de registo das operações que efectuam (art. 116º, nº 5).»
Visto que no caso concreto dos autos não havia obrigação de emissão de factura por parte da recorrida, o momento a atender para determinar a obtenção do rendimento, e a consequente sujeição a imposto, corresponde ao do recebimento do valor respectivo e independentemente, portanto, da celebração do subjacente contrato de trespasse.
Desta forma se respeitando, aliás, o mencionado princípio do rendimento acréscimo, bem como (dada a progressividade do IRS, em contraposição com o IRC) até o princípio da capacidade contributiva.
Aliás, também no acórdão desta Secção do STA, de 8/9/2010, no proc. nº 0339/10, se ponderou que «o que releva para efeito da obrigação do imposto é o momento em que nasce o rendimento ou utilização do rendimento, uma vez que só aí existe capacidade contributiva», sendo que «nos contratos de execução duradoura ou diferida, como acontece no casos em que se estabelece o pagamento em prestações de uma indemnização, o facto tributário não é constituído por essa fonte contratual geradora de fluxos financeiros, mas antes pela sucessiva concretização no tempo dos incrementos patrimoniais decorrentes do recebimento das prestações previstas.
Como também se assinala no acórdão de 29/11/06, no processo nº 827/06 – “É que nem todos os factos tributários são simples e instantâneos. O facto tributário podendo, corresponder a uma simples ocorrência instantânea da vida real, é algumas vezes complexo e não se esgota num momento temporal.
De resto, os efeitos dos contratos duradouros - e não só tributários - não acabam no momento em que as partes formalizam o negócio. Os efeitos fiscais, designadamente, os atinentes a impostos anualizados, como é o caso do IRS, produzem-se e só se produzem em cada um dos anos em que, por força da execução do contrato, o sujeito receba rendimentos. (...)
O contrato, integrando o facto tributário, não o esgota, sendo ainda necessário que ocorra a prestação nele prevista. Só quando isso acontece é que fica perfeito o facto tributário. E só então nasce a relação jurídica de imposto.»
E esta argumentação será, igualmente, de ponderar no caso presente.
Assim, tendo a AT considerado que o rendimento questionado, sujeito a IRS, foi obtido com a prática de um acto isolado e tendo apelado às regras do regime simplificado de tributação (art. 31º do CIRS), mas tendo a impugnante/recorrente recebido em 2004 apenas a importância de 588.659,00 euros (sendo a parte restante da parte que lhe cabia paga através de cheques pós-datados que ficaram nas mãos dos advogados - e que se venciam a partir de Janeiro de 2005), há-de, então, concluir-se que só a esse valor deve atender-se para efeitos de determinação, ao abrigo desse mencionado regime simplificado, do rendimento tributável do ano de 2004. Na verdade, como também sublinha o MP, a entrega de cheques pós-datados não pode ser equiparada à disponibilidade do rendimento, pois os mesmos apenas serviam de garantia e facilidade na cobrança da importância ainda em dívida.
Bem se decidiu, portanto, na sentença recorrida, que não enferma do erro de julgamento imputado pela recorrente.

DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2018. – Casimiro Gonçalves (relator) – Francisco Rothes – António Pimpão.