Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0371/18.2BEVIS
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:EFEITO SUSPENSIVO
DECISÃO
FIXAÇÃO DA MATÉRIA COLECTÁVEL
MÉTODOS INDIRECTOS
APROVEITAMENTO DO ACTO TRIBUTÁRIO
Sumário:I – O acto administrativo de fixação da matéria colectável por recurso a métodos indirectos que tenha sido judicialmente impugnado não produz qualquer efeito na ordem jurídica nem pode sustentar qualquer liquidação enquanto não tiver transitado o julgamento que, em última instância, aprecia a sua validade (artigo 89.º-A, n.º 7 da LGT).
II - O aproveitamento do acto administrativo ao abrigo do artigo 163.º, n.º 5 do CPA pressupõe sempre, por um lado, que a rejeição de aplicação do instituto do aproveitamento do acto não obsta à prática de novo acto, ou seja, tem sempre como pressuposto que a anulação do acto e a normal produção dos efeitos anulatórios que lhe estão associados não obsta a que a Administração Tributária produza novo acto (com respeito pelas formalidade preteridas e/ou com o mesmo ou distinto conteúdo); por outro, que o aproveitamento do acto não pode servir, em circunstância alguma, apenas para legitimar a conduta ilegal da Administração, ou seja, não pode servir apenas para sustentar a manutenção na ordem jurídica de efeitos que, não fora o aproveitamento do acto, não se podem voltar a produzir, sob pena de subversão do princípio da legalidade.
III – Resultando dos factos apurados que, nas circunstâncias concretas, o acto ilegal não poderá voltar a ser praticado com o mesmo conteúdo, por entretanto ter ocorrido a caducidade do direito à liquidação, há que concluir que não estão verificados os pressupostos previstos no artigo 163.º, n.º 5 do CPA para que sejam afastados os seus efeitos anulatórios.
Nº Convencional:JSTA000P27104
Nº do Documento:SA2202102030371/18
Data de Entrada:09/18/2020
Recorrente:A............
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A…………, inconformado com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que julgou improcedente a impugnação judicial intentada contra o acto de liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2013, no valor de € 152.559,34 euros, veio da mesma interpor recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Tendo o recurso sido admitido, o Recorrente apresentou alegações, onde conclui nos termos que infra se reproduzem:

«i) A sentença recorrida confunde o efeito jurídico substantivo de suspensão de eficácia da decisão de avaliação da matéria tributável pelo método indirecto constante do art° 89.°-A da Lei Geral Tributária (LGT), em caso de exercício do direito de recurso contencioso contra tal decisão administrativa, com o efeito jurídico atribuído ao recurso jurisdicional da sentença que conhece desse recurso contencioso, em primeiro grau de jurisdição;

ii) No n.º 7 do artº 89.°-A da LGT, o legislador da LGT procede a três estatuições jurídicas substantivas diferentes: uma, atribuindo a essa decisão de avaliação a natureza de acto destacável para efeitos de impugnação contenciosa, subtraindo-a ao âmbito do princípio normativo geral da impugnação unitária consagrado no art.º 54.º do CPPT, a outra, arredando a decisão da avaliação da matéria colectável do instituto de revisão da matéria tributável previsto nos artigos 91.º e segs. (pedido de revisão da matéria tributável a ser apreciado na comissão de revisão nos termos do artº 92.º da LGT), e, finalmente, a terceira, instituindo o efeito jurídico da suspensão automática de eficácia da decisão administrativa de avaliação da matéria colectável, no caso de exercício do direito substantivo de recurso contencioso para o tribunal tributário;

iii) Os efeitos suspensivos previstos no referido n.º 7 do artº 89.°-A da LGT versam sobre a própria decisão de avaliação da matéria tributável por métodos indirectos, impedindo a sua imediata exequibilidade, estando essa suspensão condicionada ao exercício do direito de recurso contencioso para o tribunal tributário;

iv) Trata-se de um efeito jurídico que está associado necessariamente ao exercício do direito de recurso contencioso perante o tribunal tributário, pelo que enquanto o direito de recurso contencioso não se extinguir — o que só acontece com o julgamento do recurso com trânsito em julgado — a suspensão de eficácia da decisão de avaliação persiste ou mantém-se;

v) A expressão tribunal tributário refere-se à espécie de tribunais que são materialmente competentes para conhecer do recurso contencioso, em todos os graus de jurisdição, e não apenas ao grau da jurisdição tributária que há-de conhecer desse recurso em primeiro grau;

vi) A atribuição de efeito devolutivo ao recurso interposto da sentença de 1.ª instância, que negou provimento ao recurso, para o STA, não interfere com suspensão de eficácia da decisão de fixação, pois esta persiste enquanto o recurso contencioso não se extinguir com o trânsito em julgado da decisão jurisdicional que o julgue definitivamente, pois aquele efeito respeita à exequibilidade da sentença e não à exequibilidade da decisão de avaliação da matéria tributável que tem a sua eficácia suspensa até ao julgamento definitivo do recurso contencioso;

vii) A prática do acto de liquidação, em momento em que a eficácia do acto de avaliação da matéria tributável se encontra suspensa, reconduz-se a uma violação de norma atributiva da competência material administrativa para praticar o acto de liquidação: enquanto estiver suspensa a eficácia do acto de avaliação, a autoridade administrativa não detém competência material para praticar o acto dele dependente, pelo que incorre no vício de violação de lei se o praticar;

viii) A falta de competência material administrativa não respeita às formalidades do procedimento, mas antes aos poderes legais para poder praticar as formalidades legais previstas no procedimento e definir/concretizar os conteúdos dos actos nele a praticar, sejam estes de carácter vinculado ou tenham alguma margem de discricionariedade ou de indeterminação de conteúdo;

ix) A natureza substantiva - e nunca de mera formalidade legal — da estatuição legal da suspensão de eficácia do acto de avaliação denota-se, claramente, na circunstância de o tempo de a suspensão poder influenciar a legalidade do exercício do direito substantivo de liquidar o imposto, por mor do instituto da caducidade do prazo de liquidação;

x) Deste modo, jamais se poderá lançar mão, nesta situação, do princípio do aproveitamento do acto administrativo que subjaz ao estipulado no n.º 5 do art.º 163.º do actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos».

1.3. A Autoridade Tributária e Aduaneira, não obstante ter sido notificada da interposição e admissão do recurso não apresentou contra-alegações.

1.4. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer que concluiu da seguinte forma:«(…) entendemos que o efeito suspensivo atribuído ao meio processual previsto no nº 7 do artigo 89º da LGT conduz a que só com o trânsito em julgado da decisão judicial nele proferida se consolida o ato de fixação da matéria tributável objeto de impugnação (caso não seja anulado).

Atento que no caso concreto, aquando da emissão do ato de liquidação tendo por base a matéria tributável do ato impugnado, ainda este não se tinha consolidado na ordem jurídica, o que só ocorreu posteriormente com o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional, configura ilegalidade que afeta a validade do ato tributário e constitui fundamento para a sua anulação.

A tal resultado não obsta o efeito devolutivo atribuído ao recurso interposto da decisão de 1ª instância, uma vez que embora esta tenha confirmado a validade do ato impugnado, não acarreta a perda dos efeitos suspensivos do meio processual, o que só ocorre com o trânsito em julgado da decisão final que nele venha a ser proferida.

Afigura-se-nos, assim, que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, tal como lhe é assacado pelo Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua revogação e em substituição deve ser proferida decisão que julgue a ação procedente e determine a anulação do ato tributário, com base em vício de violação de lei.».

1.5. Não se verificando nos autos qualquer circunstância que obste à imediata apreciação do recurso, importa, pois, agora, decidir.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a intervenção do Tribunal ad quem é especialmente delimitada pelo teor das conclusões que finalizam as alegações do recurso jurisdicional apresentado [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou, se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Na sua vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. Atento o teor da sentença proferida e as conclusões formuladas nas alegações de recurso, conclui-se que as questões a decidir são as que infra se enunciam.

2.2.1. A atribuição do efeito suspensivo ao acto de fixação da matéria tributável, prescrita no artigo 89.º-A, n.º 7 da Lei Geral Tributária (LGT), obstará a que a Administração Tributária pratique novo acto de fixação da matéria colectável até ao trânsito em julgado da sentença que apreciou a sua validade, independentemente do efeito (suspensivo ou devolutivo) que seja fixado ao recurso jurisdicional interposto dessa decisão judicial?

2.2.2. Em caso afirmativo, e na circunstância desse acto de liquidação ter sido praticado antes do referido trânsito, deverá o Tribunal lançar mão do instituto do “aproveitamento do acto», previsto no artigo 163.º, n.º 5 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), por a ilegalidade cometida se traduzir numa mera irregularidade formal?

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

A. Em 30 de Abril de 2014 foi apresentada a declaração de IRS relativa ao agregado composto por A………… e B…………, com o código 2720-2013-I0879-03 e ao ano de 2013 - [cfr. declaração Modelo 3 que faz fIs. 263 e ss. da paginação eletrónica da SITAF].

B. A declaração referida no facto precedente deu origem à Liquidação 2014.4002891474 onde foi apurado um rendimento global de EUR 28.12598 - [cfr. liquidação que faz fls. 422 da paginação eletrônica do SITAF].

C. A………… e B………… foram objeto de ação inspetiva, efetuada a coberto da OI201600196 e ao exercício de 2013, no qual foi proposta a fixação de rendimento por métodos indirectos - [cfr. relatório inspetivo que faz fls. 243 e ss. da paginação eletrónica do SITAF].

D. A fixação do rendimento teve a seguinte fundamentação:

No capítulo anterior foram descritos os factos e fundamentos para a realização da avaliação indireta do rendimento tributável em sede de IRS, aos SP A………… e B…………, que se consubstanciam no seguinte:

— A verificação simultânea do estabelecido nas alíneas d) e f) do nº 1 do artigo 87° de LGT;

— Não comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que foi outra a fonte do acréscimo do património conforme previsto no n° 3 do artigo 89°-A da LGT;

— Ausência de movimentos financeiros justificativos, no âmbito do procedimento de, investigação às contas bancárias como dispõe o n° 11 do artigo 89°-A da LGT.

Propõe-se assim apurar o rendimento tributável do ano 2013, com recurso a métodos indiretos, de acordo com o disposto no n°5 do artigo 89°-A da LGT. Deste modo, conforme dispõe a al. a) do n° 5 do artigo 89°-A da LGT considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, a diferença entre o acréscimo de património e os rendimentos declarados pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação.

O acréscimo patrimonial verificado é de 238.900,00EUR, que corresponde ao valor emprestado em numerário a C………… e D………… (respetivamente pais e sogros dos SP) e às entradas em conta bancária não justificados pelos SP;

Como no ano de 2013, o rendimento líquido declarado ascendeu apenas a 23.600,09EUR, verifica-se um acréscimo patrimonial não justificado no montante de 215.299,91EUR, correspondente à diferença entre o acréscimo de património (238.900,00EUR e o rendimento líquido declarado pelos SP (23.600,09EUR) no mesmo período de tributação, conforme o disposto nas alíneas a) a d) do n° 5 do artigo 89°-A da LGT.

Assim, propõe-se a fixação do rendimento tributável do ano 2013 no montante de 238.900,00EUR, considerando-se o valor que excede os rendimentos declarados, 215.299,91 EUR, de acordo com a al. d) do n° 1 e n° 3 do artigo 9° do CIRS, como rendimento da categoria G, ao qual será aplicada a taxa especial do nº 11 do artigo 72° do CIRS, conforme quadro seguinte:

[cfr. relatório inspetivo que faz fls. 243 e ss. da paginação eletrónica do SITAF]

E. Em 31 de março de 2017 foi fixado o rendimento em EUR 238.900,00 [cfr. nota de fixação de fls. 424 e 425 dos autos].

F. Em 13 de abril de 2017 deu entrada no TAF de Viseu recurso da decisão de fixação de rendimento interposto nos termos do art.º 89.º n.º 7 da LGT [cfr. carimbo aposto na petição de fls. 457 e ss. dos autos].

G. A petição referida no facto precedente deu origem ao proc.º 188/17.1BEVIS [cfr. consulta ao SITAF, considerando-se tal consulte abrangida polo disposto na alínea c) do n.º 2 do artº 5.º do CPC, enquanto factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções].

H. Em 30 de junho de 2017 foi proferida sentença no proc.º 188/17.1BEVIS negando provimento ao recurso [cfr. consulta ao SITAF, considerando-se tal consulta abrangida pelo disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC, enquanto factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções — fls. 289 do processo 188/17.1BEVIS]

I. Da sentença referida no facto precedente foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo [cfr. consulta ao SITAF, considerando-se tal consulta abrangida pelo disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 5. do CPC, enquanto factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções].

J. Em 27 de janeiro de 2017 foi o recurso admitido com efeito meramente devolutivo e subida imediata [cfr. consulta ao SITAF, considerando-se tal consulta abrangida pelo disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC, enquanto factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções — fls. 397 do proc.º 188/17.1BEVIS].

K. Em 6 de setembro de 2017 foi proferido acórdão pelo STA negando provimento ao recurso [cfr. acórdão que faz fls. 683 a 711 dos presentes autos].

L. Em 13 de setembro de 2017 foi emitida a liquidação de IRS n.º 2017 5005373510 e relativa ao rendimento fixado e no valor de EUR 152.559,34 [cfr. resulta do teor da informação de suporte à decisão da reclamação graciosa constante de fls. 778 a 784 dos presentes autos].

M. Em 22 de setembro de 2017 foi interposto recurso daquela decisão para o Tribunal Constitucional [cfr. requerimento que faz fls. 719 a 721 dos presentes autos].

N. O recurso referido no facto precedente foi admitido com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos [cfr. despacho que faz fls. 725 dos presentes autos].

O. Em 9 de Novembro de 2017, o Tribunal Constitucional proferiu decisão no sentido de não tomar conhecimento do objeto do recurso [cfr. decisão sumária que faz fls. 736 a 742 dos presentes autos].

P. A decisão referida no facto precedente transitou em julgado [cfr. cota que faz fls. 746 dos presentes autos]

3.1.2. Mais se consignou na sentença sob recurso que «Não se provaram outros factos com interesse para a decisão dos presentes autos» e que «o Tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos assentes tendo por base, essencialmente, a análise crítica do conjunto da prova, com referência à documentação constante dos autos (não impugnada) e do processo administrativo apenso, de harmonia com as menções constantes no fim de cada um dos factos assentes.».

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Como decorre das alegações de recurso, o Recorrente não se conforma com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que julgou que a liquidação impugnada não padecia do vício que lhe vinha assacado pelo Recorrente e que considerou que, de qualquer o modo, o aproveitamento desse acto sempre se imporia por o vício invocado se traduzir na preterição de uma mera formalidade sem reflexo no conteúdo do acto a praticar.

3.2.2. Para o Recorrente os dois fundamentos aduzidos na sentença para manter o acto na ordem jurídica estão suportados em errado julgamento de direito, mais concretamente, estão sustentados em errada interpretação dos artigos 89-A, n.º 7 da Lei Geral Tributária (LGT) e 163.º, n.º 5 do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

3.2.3. Vejamos, com detalhe, começando por identificar os factos em que o Meritíssimo Juiz a quo fundou de forma relevante o seu raciocínio e que não estão em discussão nos autos:

- O Recorrente, notificado da decisão de 31-3-2017 de fixação da matéria tributária por métodos indirectos relativa ao exercício do ano de 2013, interpôs, a 14-4-2017, recurso judicial dessa decisão ao abrigo do preceituado no n.º 7 do artigo 89.º-A da LGT;

- Tendo esse recurso judicial sido julgado improcedente, o Recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao qual foi fixado efeito devolutivo;

- Por acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, de 6-9-2017, a sentença recorrida foi confirmada, tendo então o Recorrente interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que foi admitido com efeito suspensivo;

- A Administração Tributária emitiu a liquidação ora impugnada a 13-9-2017;

- O Tribunal Constitucional, a 9-11-2017, decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto do referido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 6-9-2017.

Concretizando, para o Tribunal a quo, a Administração Tributária podia praticar o acto de liquidação desde a data em que, em 1ª instância, foi apreciada a legalidade da decisão de fixação da matéria colectável, uma vez que foi fixado efeito meramente devolutivo ao recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo. E de qualquer modo, ainda que assim não fosse, estando apenas em causa a legalidade do acto por ter sido emitido antes de a lei o permitir, ou seja, antes do trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional, e não qualquer vício substancial ou que afectasse o seu conteúdo material, sempre haveria que mantê-lo na ordem jurídica, por assim o impor o princípio do aproveitamento do acto.

3.2.5. Adiantamos desde já que são justificadas as críticas dirigidas ao julgado.

Explicitemos as razões pelas quais assim o entendemos.

3.2.5.1. Relativamente à possibilidade de a Administração Fiscal emitir a liquidação impugnada nos autos, dando execução à sua decisão de fixação da matéria colectável antes do trânsito em julgado da sentença que apreciou a sua legalidade, é manifesto que essa possibilidade se encontra imperativamente afastada pelo n.º 7 do artigo 89.º-A da LGT.

Com efeito, este artigo, que regula de forma exaustiva o procedimento de fixação da matéria colectável por recurso a métodos indirectos, determina naquele número, na parte relativa aos efeitos dessa decisão, que “Da decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento constante dos artigos 91.º e seguintes».

A letra do preceito legal que se analisa não permite que seja suscitada qualquer dúvida: o artigo 89.º-A da LGT determina que o acto de fixação da matéria colectável por recurso a métodos indirectos impugnados judicialmente não produz qualquer efeito na ordem jurídica nem pode sustentar qualquer liquidação enquanto não tiver transitado o julgamento que, em última instância, aprecia a validade do referido acto tributário. Ou seja, “O recurso é interposto para o tribunal tributário, tem efeito suspensivo da liquidação e tramita como processo urgente”. (José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, Almedina, 2015, anotação 16. ao artigo 89.º-A, págs. 949-950.)

E esta suspensão de eficácia do acto impugnado, distintamente do que decorre da sentença recorrida, em nada fica afectada pela fixação do efeito devolutivo ao recurso jurisdicional interposto da sentença que conheceu e negou provimento ao recurso judicial, já que o efeito processual do recurso não se confunde com o efeito suspensivo atribuído à decisão administrativa pelo n.º 7 do artigo 87.º-A da LGT.

É verdade que, em regra, a atribuição do efeito meramente devolutivo ao recurso jurisdicional conduz a que a decisão administrativa se torne imediatamente exequível. E que, também em regra, a mera interposição da acção (recurso, oposição ou impugnação) não determina a suspensão do procedimento nem afastam a exequibilidade do acto impugnado, salvo se acompanhada da prestação de garantia ou da sua dispensa pelo órgão de execução fiscal.

Porém, aquela regra não se verifica quando o legislador, como é o caso, atribui directa e imediatamente efeito suspensivo à decisão administrativa, ou seja, quando impõe directamente a suspensão dos seus efeitos até que seja proferida uma decisão judicial definitiva sobre a legalidade da decisão.

E foi por o legislador não querer que o efeito suspensivo fosse ultrapassado sem haver uma decisão judicial definitiva - sem uma decisão judicial que ponha definitivamente termo ao litígio relativo à legalidade da decisão de fixação da matéria colectável - que é atribuída natureza urgente ao recurso judicial em apreço, como decorre quer do já citado n.º 7 do artigo 89-A da LGT, quer dos regimes consagrados nos artigos 146º-B, n.º 2 e 5, 146-C e 146-D do CPPT e, bem assim, dos artigos 36.º e 147.º do CPTA (vide, neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6-7-2011, processo n.º 616/11, integralmente disponível em www.dgsi.pt). Ou seja, independentemente do efeito devolutivo atribuído ao recurso interposto da decisão de 1ª instância, e de neste ter sido confirmada a validade do ato impugnado, a suspensão dos efeitos da decisão administrativa, mantém-se inalterada até ao trânsito em julgado da decisão judicial que aprecie a sua validade em última instância.

Em suma, no caso sub judice, em conformidade com o n.º 7 do artigo 89.º-A da LGT, a decisão de fixação da matéria colectável por métodos indirectos deveria ter-se mantido suspensa até à decisão judicial definitiva, a qual apenas ocorreu com a decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional em 9-11-2017.

Note-se, de resto, que se fosse nuclear para a nossa decisão o efeito atribuído ao recurso, sempre se teria de atender ao facto de este Supremo Tribunal ter fixado efeito suspensivo ao recurso interposto do seu acórdão para o Tribunal Constitucional. Ora, a Administração Tributária só emitiu a liquidação ora impugnada já após a prolação desse acórdão e do efeito fixado a esse recurso.

De tudo o que ficou dito conclui-se que estava legalmente vedado à Administração Tributária emitir qualquer liquidação até ao trânsito em julgado da decisão judicial que em última instância tivesse apreciado a validade da decisão administrativa de fixação da matéria colectável por métodos indirectos, uma vez que esta não se tinha ainda consolidado na ordem jurídica.

Portanto, a Administração Tributária ao emitir, a 13-9-2017, a liquidação ora impugnada, violou o n.º 7 do artigo 89.º-A da LGT, padecendo este acto de vício de violação de lei.

3.2.5.2. Questão distinta é a de saber se nas concretas circunstâncias dos autos a liquidação se deve manter na ordem jurídica, isto é, se o efeito invalidante resultante do reconhecimento da ilegalidade do acto de liquidação impugnado deve ser afastado atento o regime consagrado no artigo 163.º, n.º 5 do CPA.

3.2.5.3. Antes de avançarmos, importa dizer que só apreciaremos esta apreciação por se constar da leitura da sentença recorrida que o Tribunal a quo ainda a apreciou e lhe deu resposta afirmativa.

Na verdade, não obstante a técnica utilizada na redacção da decisão possa ter suscitado alguma dificuldade aos destinatários na delimitação precisa dos fundamentos da decisão judicial impugnada - por existir uma distinção entre cumulação de fundamentos de improcedência da acção e fundamentos hipotéticos de improcedência da acção – o certo é que, no caso concreto, o Recorrente percebeu que o Tribunal a quo, ao afirmar que “mesmo que assim não fosse” sempre se imporia o “aproveitamento do acto”, também considerou um segundo fundamento que justificaria a improcedência da acção mesmo que não tivesse reconhecido, como reconheceu, a legalidade da liquidação impugnada.

Portanto.

- num primeiro momento, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu defendeu que, após ter sido fixado efeito devolutivo ao recurso jurisdicional interposto para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão de 1ª instância proferida no processo 188/17.1BEVIS, a Administração Tributária estava legitimada a emitir a liquidação, entendimento que vimos já não ser correcto, devendo o acto de liquidação ser anulado por vício de violação de lei, por violação do preceituado no artigo 89.º-A da LGT;

- num segundo momento, o Tribunal a quo, entendendo que a questão da validade do acto de liquidação sempre se reconduziria a uma hipotética violação de uma mera formalidade, e não a uma ilegalidade substancial, concluiu que, mesmo que se considerasse violada essa ilegalidade, existia fundamento para afastar o seu efeito invalidante, uma vez que a decisão do Tribunal Constitucional e a consequente consolidação na ordem jurídica da decisão da matéria colectável vinculavam a Autoridade Tributária à emissão de um acto de liquidação com o mesmo conteúdo do acto que fora emitido.

Para sustentar esta segunda conclusão, e tendo em vista afastar os argumentos aduzidos pelo Recorrente na sua petição, o Meritíssimo Juiz a quo adiantou que esse aproveitamento do acto não contende com quaisquer garantias constitucionais, como invocado pelo Recorrente, por ser precisamente no domínio tributário que esse regime deve prevalecer, uma vez que (i)os créditos tributários são indisponíveis”; (ii) não existe qualquermargem de discricionariedade administrativa, tendo os atos conteúdo vinculado; (iii) “não se pode considerar que os atos da administração tributária são atos administrativos, sujeitos ao mesmo regime destes (formação, características, vícios, etc.), aproveitando-se toda a doutrina relativa ao ato administrativo no domínio da fiscalidade e, simultaneamente, pretender que estes tenham um regime especial de invalidades, mais garantístico que aqueles, e em que não é admissível o aproveitamento do ato.”.

Tudo, como já dissemos, para concluir que “as pretensões do Impugnante devem improceder” porque “o ato não enferma do vício que lhe foi imputado pelo Impugnante (de violação do n.º 7 do art.º 89.º-A da LGT) e que, mesmo que enfermasse, tal vício não é suscetível de produzir efeitos invalidantes atendendo à indisponibilidade do crédito tributário e à vinculação da AT à matéria tributável definitivamente fixada».

3.5.2.5. Sem prejuízo da análise mais detalhada que infra se realizará, importa antes de mais sublinhar que, distintamente do que ficou consignado no julgamento de 1ª instância, do facto de os créditos tributários serem indisponíveis, como consagrado no artigo 30.º da LGT, não decorre que todos os actos administrativos em matéria tributária são susceptíveis de aproveitamento. Aliás, se assim fosse, nunca havia declaração de ilegalidade de actos administrativos em matéria tributária, uma vez que esses actos directa ou indirectamente contendem sempre com créditos tributários. Ou seja, não é a natureza de indisponibilidade do crédito tributário que dita o aproveitamento do acto em matéria tributária mas, sim, a susceptibilidade de as circunstâncias em que o acto administrativo em matéria tributária é reconhecido como ilegal imporem o seu aproveitamento nos termos do artigo 163.º, n.º 5 do Código de Procedimento Administrativo.

Também distintamente do que se afirma na sentença recorrida, não entendemos que não exista qualquer margem de discricionariedade na prática de actos administrativos em matéria tributária, ou seja, não consideramos que toda a actividade administrativa tributária seja absolutamente vinculada. Não queremos com isto dizer que a Autoridade Tributária, no desenvolvimento das suas competências e atribuições, tenha sempre o mesmo grau de discricionariedade, antes pretendemos realçar que existe discricionariedade administrativa em matéria tributária tal como existe actividade administrativa fora do âmbito tributário que é absolutamente vinculada.

Em suma, a discricionariedade existe em maior ou menor grau, não em função do campo administrativo ou administrativo-tributário em que nos movamos, mas em função da regulamentação especial que o legislador consagre para cada procedimento ou para a formação da decisão da Administração.

Por fim, também não se acompanha o Juiz a quo na parte em que afirma, como fundamento da decisão, que não se pode pretenderconsiderar que os atos da administração tributária são atos administrativos, sujeitos ao mesmo regime destes (formação, características, vícios, etc.), aproveitando-se toda a doutrina relativa ao ato administrativo no domínio da fiscalidade e, simultaneamente, pretender que estes tenham um regime especial de invalidades, mais garantístico que aqueles, e em que não é admissível o aproveitamento do ato”.

Não se trata de questionar – porque nem vem questionada - a existência de actos administrativos em matéria tributária ou que estes, enquanto verdadeiros actos administrativos, não devam observar as exigências constitucionais ou infra constitucionais que condicionam a sua formação, com a consequente decisão judicial de que devam ser merecedores no que respeita à sua legalidade ou ilegalidade. Trata-se, sim, de identificar com rigor as especiais garantias que a Constituição e a lei ordinária reconhecem aos destinatários de actos administrativos em matéria tributária quando lesivos dos seus direitos e interesses legítimos, aferindo se e em que medida a disciplina contida no artigo 163.º, n.º 5 do CPA lhes é aplicável.

No caso, o Meritíssimo Juiz não identificou em que alínea do mencionado preceito fundou o aproveitamento do acto impugnado. Contudo, tendo qualificado o vício como de preterição de mera formalidade e simultaneamente utilizado os termos “vinculado” e “ vinculação”, coloca-nos a dúvida sobre se fez o aproveitamento do acto ao abrigo da alínea a) ou à alínea b) do artigo 165.º, n.º 5 do CPA.

Importa, por isso, tecer algumas considerações gerais sobre o instituto do aproveitamento do acto relativas à densificação que vem sendo feita pela jurisprudência e doutrina mais recentes sobre cada uma das regras concretas imposta pelo legislador, legitimadoras do “aproveitamento do acto”.

Neste contexto, é quase despiciente recordar que o aproveitamento do acto administrativo constitui um instituto legal de origem doutrinal e jurisprudencial que só obteve consagração no ordenamento jurídico português com o novo Código de Procedimento Administrativo (CPA - diploma que deve ser considerado infra se outro não for expressamente identificado) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro.

Constituiu a consagração do referido princípio, como unanimemente é reconhecido, uma importante inovação, tendo o legislador definido rigorosa (e generosamente), nas alíneas a), b) e c), do n.º 5 do artigo 163.º, as várias hipóteses de cuja verificação resulta para o juiz o dever de afastar os efeitos invalidantes do acto anulável.

Vejamos, pois, antes de mais, o que estabeleceu o legislador em cada uma dessas alíneas, transcrevendo o normativo na parte relevante:

«Artigo 163.º

Atos anuláveis e regime da anulabilidade

(…)

5 - Não se produz o efeito anulatório quando:

a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;

b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;

c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo».

De forma sintética, podemos afirmar que do preceito transcrito resulta que o critério adoptado pelo legislador na definição das várias hipóteses previstas foi distinto, sendo nuns casos essa definição determinada pelo conteúdo do acto ou das circunstâncias do caso [al. a)], noutros pela natureza da norma e os fins por esta prosseguidos [al. b)] noutros, ainda, pelos poderes ao abrigo dos quais o acto foi proferido [alínea c)]. (Neste sentido, Maria Madalena Torres Pereira Mendes, O princípio do aproveitamento do ato administrativo no novo Código de Procedimento Administrativo – Contributo para a interpretação da solução legal”, Revista O Direito, ano 148 (2016), III, páginas 639-673.)

Assim, o âmbito de aplicação da alínea a) circunscreve-se ao aproveitamento dos actos de conteúdo vinculado e a outros actos que, não sendo de conteúdo vinculado, não podiam no caso concreto ter outro conteúdo que não o que lhe foi atribuído pela Administração; a alínea b) tem como campo de aplicação os actos praticados ou omitidos em violação de normas que prescrevem formalidades processuais ou procedimentais, determinando que o acto é sempre aproveitado desde que, pese embora a violação da norma, o objecto prosseguido pelo legislador com a sua consagração tenha sido por outra forma alcançado; por fim, a hipótese contemplada na alínea c) dirigida aos actos anuláveis proferidos pela Administração ao abrigo de poderes discricionários, situação em que o acto anulável só é aproveitado se existir absoluta certeza que esse acto, sem o vício que o afecta, seria sempre praticado exactamente com o mesmo conteúdo.

Antes de avançarmos para o juízo de uma eventual subsunção do caso dos autos a uma das referidas alíneas importa enunciar duas premissas que, em nosso entender, o julgador não pode deixar de ter sempre presentes, independentemente da alínea que seja considerada como fundamento do aproveitamento do acto.

A primeira é a de que o aproveitamento ao abrigo do artigo 163.º, n.º 5 do CPA pressupõe sempre que a rejeição de aplicação do princípio do aproveitamento do acto não obsta à prática de novo acto. Dito de outro modo, tem sempre como pressuposto que a anulação do acto e a normal produção dos efeitos anulatórios que lhe estão associados não obsta a que a Administração Tributária produza novo acto (com respeito pelas formalidade preteridas e/ou com o mesmo ou distinto conteúdo).

É este juízo – de que uma nova actividade administrativa é ainda legalmente admissível, colmatados os vícios que afectam o acto – que justifica, de raiz, a consagração do instituto que analisamos, que esteve subjacente à construção e aplicação do princípio do aproveitamento do acto pela jurisprudência (também designado por princípio da economia dos actos públicos) e que no fundo traduz a ideia de que carece de sentido anular o acto se o resultado (repetido o procedimento) seria sempre o mesmo.

A segunda premissa é a de que o aproveitamento do acto não pode servir, em circunstância alguma, apenas para legitimar a conduta ilegal da Administração, ou seja, não pode servir apenas para sustentar a manutenção na ordem jurídica de efeitos que, não fora o aproveitamento do acto, não se podiam voltar a produzir, sob pena de subversão do princípio da legalidade.

São estas duas ordens de razões que nos permitem concluir, sem que dúvida alguma nos assista, que o acto que reconhecemos já como inválido não pode ser aproveitado e, consequentemente, que os efeitos anulatórios que lhe correspondem não devem ser afastados.

Sublinhe-se que a decisão que entendemos perfilhar no caso concreto, que infra melhor se explicitará, não significa que nos identifiquemos com o Recorrente na parte em que defende o afastamento absoluto do instituto do aproveitamento do acto da ordem jurídica, por entender que todo o regime consagrado n.º 5 do artigo 163.º viola vários princípios da nossa Lei Fundamental, especialmente o princípio da separação de poderes. E, sobremaneira, defende a impossibilidade da sua aplicação a actos administrativos em matéria tributária.

Como o Recorrente revela não desconhecer, essa aplicação, há muito admitida pela doutrina e pela jurisprudência administrativa e, de forma menos expressiva e a título excepcional, pelas doutrina e jurisprudência tributárias, tem hoje consagração no artigo 163.º n.º 5 do CPTA, norma que é indiscutivelmente de aplicação subsidiária ao processo tributário.

E embora perfilhemos o entendimento de que a especial natureza dos créditos tributários, o rigoroso recorte legal das competências da Administração Tributária e, muito especialmente, as especiais garantias que constitucional e legalmente estão reconhecidas aos destinatários dos actos administrativos em matéria tributária impõe, da parte dos Tribunais Tributários, uma apreciação muito cuidadosa no que concerne às condições em que a aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve operar em matéria tributária, - atenta a umbilical relação deste ordenamento jurídico substantivo com a Lei Fundamental, como decorre, directamente do artigo 103.ª, n.º 2 e 3, e por este contencioso não ser, ainda hoje, apesar das evoluções legais mais recentes, um contencioso de plena jurisdição, pelo menos nos termos em que tal qualificação é há alguns anos reconhecida ao contencioso administrativo - não significa, como dissemos já, que da Lei resulte a proibição dessa aplicação ou que a consagração do princípio do aproveitamento do acto substancie uma violação do princípio de separação de poderes constitucionalmente consagrado, desde logo porque o Tribunal, ao afastar os efeitos invalidantes, não se está a substituir à Administração na decisão, mas apenas a aproveitar a decisão que aquela, ao abrigo de poderes próprios, já tomou.

No caso, recordamos, o que está em causa é a emissão de uma liquidação suportada numa decisão administrativa de fixação da matéria colectável por métodos indirectos num momento em que o legislador imperativamente determinou que a mesma estava suspensa. O que está em causa é, pois, a emissão de um acto de liquidação sem que estivesse consolidado o acto de fixação da matéria tributável de que a liquidação estava dependente, o que serve para que se diga, desde já, que a infracção não se traduz numa mera formalidade, mas uma infracção que contende com o conteúdo do próprio acto de liquidação, com a sua substância, uma vez que sem matéria tributável que possa ser atendida, o ato de liquidação fica esvaziado de conteúdo, o que é, obviamente, suficiente para que se afaste qualquer aproveitamento do acto ao abrigo do preceituado na al. b) do n.º 5 do artigo 163.º

Acresce que, não tendo o acto sido proferido ao abrigo de poderes discricionários, também o seu aproveitamento no caso concreto não se podia realizar por subsunção da hipótese legal consagrada na al. c) do mesmo artigo e diploma citados.

Mas será que o acto ilegal dos autos, como nos parece ter sido entendido pelo Meritíssimo Juiz a quo, é subsumível à situação prevista na alínea a) do n.º 5 do artigo 163.º do CPA?

Reafirmamos que, para nós, a esta questão deve ser dada resposta negativa e, consequentemente, que também nesta parte o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento de direito, sendo acertadíssima a afirmação do Recorrente, vertida na conclusão IX das suas alegações de recurso sobre os efeitos que tempo da prática do acto (ilegal) pode ter no exercício do direito substantivo de liquidar, designadamente na caducidade desse direito ou, adiantamos nós, na prescrição da obrigação tributária.

Ou seja, o instituto do aproveitamento do acto administrativo em matéria tributária, nas situações em que a legalidade desse acto está dependente do “tempo” em que é emitido e validamente notificado, tem que ser aplicado de forma muito rigorosa, sob pena de, com esse aproveitamento, serem totalmente postergadas garantias constitucionais e legais dos contribuintes.

Retomando o julgamento que ora se avalia, podemos dizer que é certo que, com o trânsito em julgado da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, a decisão de fixação da matéria tributável por métodos indirectos se consolidou definitivamente na ordem jurídica. E que, se a Administração Tributária tivesse emitido a liquidação imediatamente após esse trânsito se ter verificado, o acto de liquidação que eventualmente emitisse não poderia ter outro conteúdo que não fosse o que decorreria do trânsito em julgado daquela decisão judicial.

Acontece porém que o não fez, sendo evidente das circunstâncias concretas dos autos, que o acto que teria que produzir, não sendo o acto ora impugnado aproveitado, também já não poderá vir a ser praticado por entretanto ter já caducado o direito à liquidação - que aqui é analisada tão só enquanto condição dos pressupostos de aplicação do regime consagrado no artigo 163.º, n.º 5 do CPA.

Na verdade, reportando-se a liquidação a rendimentos relativos ao exercício fiscal de 2013, a Administração Fiscal dispunha de 4 anos para emitir a liquidação, ou seja, nos termos do preceituado no artigo 46.º, n.º 1 e 4 da Lei Geral Tributária (LGT) tinha, em abstracto, que exercer o direito à liquidação e dela notificar validamente os contribuintes até 31-12-2017.

E embora resulte apurado que a Administração Tributária desencadeou um procedimento inspectivo externo que se iniciou a 10-5-2016, que potencialmente suspenderia o prazo de caducidade, também resultou provado que o último acto de inspecção praticado nessa acção externa só foi realizado a 6-3-2017, isto é, quando já tinha decorrido um período muito superior ao período de 6 meses que o legislador impõe para que a acção de inspecção produza efeitos suspensivos sobre o prazo de caducidade (cfr., o n.º 1 do artigo em ultimo citado).

Temos, pois, que a 13-4-2017 (data em que o Recorrido interpôs recurso judicial ao abrigo do disposto no artigo 89.º-A, n.º 7 da LGT, após terem sido notificados a 4-4-2017 do relatório final de inspecção elaborado a 31-3-2017) tinham já decorrido 3 anos, 3 meses e 12 dias do referido prazo de 4 anos de caducidade.

É nesta data, como decorre do que deixámos exposto, que o prazo de caducidade se suspende, por força do preceituado, conjugadamente, nos artigos 87.º-A, n.º 7 e 46.º, n.º 2, al. a) da LGT, só tendo recomeçado a correr com o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional proferida a 9-11-2017.

Ora, mesmo que se entenda que é a data da sentença de 1ª instância, 27-12-2019, que é relevante para aferir da verificação dos requisitos legais do aproveitamento do acto, não subsiste qualquer dúvida que nessa data já o direito à liquidação tinha caducado, por há muito terem decorrido os 8 meses e 18 dias que restavam para o prazo de caducidade se completar.

Portanto, regressando às premissas que postulamos como inultrapassáveis, o não aproveitamento do acto, nas concretas circunstâncias do caso, não permitirá que a Administração Tributária produza outro acto, por entretanto ter caducado o direito à liquidação. O aproveitamento do acto, nestas concretas circunstâncias, apenas serviria para legitimar a actuação ilegal da Administração Tributária.

Em suma, não estão verificados os pressupostos consagrados pelo legislador em qualquer uma das alíneas do n.º 5 do artigo 163.º do CPA para que seja afastado o efeito anulatório do acto ilegal impugnado.

É, pois, com os fundamentos expostos, de julgar procedente o recurso jurisdicional.

As custas da presente acção, incluindo as fixadas em 1ª instância, serão suportadas pela Fazenda Pública que ficou integralmente vencida (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).

4. Decisão

Termos em que, acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, conceder provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida, anular a liquidação impugnada.

Custas em 1ª instância e em recurso pela Fazenda Pública.

Registe e notifique.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2021

Anabela Russo – José Gomes Correia – Aníbal Ferraz (Vencido. Negaria provimento ao recurso, na medida em que entendo ser certo e adequado, às circunstâncias, factuais e jurídicas, do caso concerto, o julgamento, no sentido da improcedência da impugnação judicial, concretizado, em 1.ª instância, com base na doutrina do aproveitamento do ato (administrativo) anulável e, agora, com expressão, explícita, no artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) [aprovado, em anexo, pelo Decreto-Lei n.º 4/2015 de 7 de fevereiro]; in casu, pelo funcionamento da alínea a) do seu n.º 5. Sinteticamente, merece referência, específica, o facto de ser sensível ao cuidado que se deve ter, na operação deste mecanismo jurídico-legal, à salvaguarda, desde logo, do instituto da caducidade do direito de liquidar. Porém, na situação em apreço, como a tese vencedora identifica (o que admito, por facilidade de raciocínio), a liquidação impugnada tinha de ser, validamente, notificada aos contribuintes, até 31 de dezembro de 2017, pelo que, podendo a mesma ter sido emitida, legalmente, após 9 de novembro de 2017, de acordo com a normalidade do acontecer, seria, totalmente, viável comunicá-la, aos sujeitos passivos, com respeito pelo dia limite para tal. Não olvido, neste entendimento, a regra de que o ato anulável produz efeitos jurídicos.).