Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01775/15.8BELRA 01299/17
Data do Acordão:05/08/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24492
Nº do Documento:SA22019050801775/15
Data de Entrada:11/22/2017
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. A…………, S.A., com os demais sinais dos autos, interpõe recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 150.º do CPTA, do acórdão do TCA Sul que negou parcial provimento ao recurso interposto da sentença que, por sua vez, julgara parcialmente improcedente a impugnação judicial instaurada contra actos tributários relativos a IRC e IVA dos exercícios de 2009 a 2012, mantendo, assim, a decisão de improcedência da questão colocada pela impugnante sobre a ilegal desconsideração de gastos que suportou com actividade económica que não se encontrava formalmente inscrita no seu objecto social.

1.1. Formulou alegações que rematou com as seguintes conclusões:

A. O presente recurso perante o Supremo Tribunal Administrativo deve ser admitido ao abrigo do disposto no artigo 150º, nº 1, do CPTA, aplicável aos autos ex vi artigo 2º do CPPT, por se demonstrar essencial a sua intervenção para uma melhor aplicação do Direito;

B. Ademais, estamos nos presentes autos perante uma questão de grande relevância jurídica e social, que se qualifica de importância fundamental, claramente extravasando o caso concreto dos autos, sendo fundamental a intervenção desse Supremo Tribunal Administrativo em vista a uma melhor aplicação do direito.

C. Com efeito, cumpre referir que a questão objecto do presente Recurso que importa dirimir pelo Supremo Tribunal Administrativo é a de se determinar se uma empresa que desenvolva materialmente uma actividade económica conexa com a principal, mas não formalmente inscrita no seu objecto social à data da prossecução da mesma, que tenha gerado lucro sobre o qual foi pago o respectivo imposto sobre o rendimento, não pode deduzir qualquer gasto incorrido com essa actividade, porquanto se entende ser o mesmo não indispensável para efeitos do artigo 23º do CIRC.

D. Assim, como é fácil de se ver, o objecto do presente recurso reveste-se de uma enorme relevância jurídica e social para a generalidade dos operadores económicos, pois a decisão deste Supremo Tribunal terá, necessariamente, impacto em dezenas de processos em que idêntica questão venha a ser discutida.

E. Na verdade, e como circunda a matéria em crise nos presentes autos um quadro normativo que carece de uma aplicação uniforme e que carece, igualmente, de ser devidamente interpretado e aplicado, de modo a adequar-se ao princípio legal e constitucional da capacidade contributiva e ao princípio constitucional da tributação do rendimento real das empresas.

F. Bem como à liberdade de iniciativa económica privada e ao Direito de Propriedade Privada, que consubstanciam direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e protegidos nos artigos 61º e 62º da nossa Lei Fundamental.

G. O que motiva a intervenção desse Douto Supremo Tribunal Administrativo tendo em vista dissipar todas as dúvidas sobre o quadro legal que regula a questão bem identificada e delimitada no ponto C. das presentes Conclusões de Recurso, proporcionando uma melhor aplicação do direito e uma correcta administração da justiça.

H. Assim, atento o preenchimento dos pressupostos legais que estão subjacentes ao artigo 150º do CPTA, aplicável aos autos ex vi artigo 2º do CPPT, deverá esse Supremo Tribunal Administrativo admitir a presente revista, apreciando, assim, o objecto do presente recurso.

I. Considerou o douto Tribunal recorrido e citamos: "No caso, o objecto social da Recorrente à data dos factos objecto de tributação incidia sobre a produção e comércio de produtos agrícolas, pelo que os custos relativos à actividade de criação de gado não assumem uma relação casual com a fonte produtora do rendimento da sociedade, tal como este é delimitado nos seus estatutos, dado que os custos em exame são alheios à actividade da empresa, tal como esta se apresentava, à data, no tráfico jurídico-comercial".

J. Logo entendendo que, in casu, não se verifica o requisito da indispensabilidade, e confirmando a tese proferida pela sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

K. Ora, como acima explanado, é precisamente quanto a este ponto que se insurge o ora Recorrente, porquanto a fazer vencimento esta tese, a mesma é de uma profunda gravidade social para a generalidade dos operadores económicos que estejam numa situação similar, o que acarreta a aplicação de um tratamento fiscal profundamente injusto e ilegal face ao quadro jurídico em vigor à data dos factos tributários em causa.

L. É que o Tribunal a quo ignorou, por completo, à semelhança do que já tinha feito a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que, in casu, a Recorrente teve uma actividade comercial ipso facto, a qual gerou lucro, sendo, como foi, tributado!!!

M. Ora, se existiu uma actividade tributável, materialmente desempenhada e conexa com a actividade principal, a qual gerou lucro tributado, o facto de, à data dos gastos, a actividade não se encontrar formalmente inscrita no objecto social do Recorrente - o que, veja-se, até viria a ocorrer - não pode, por si só, ser suficiente para desconsiderar totalmente e sem mais considerações a totalidade dos gastos incorridos com a actividade prosseguida.

N. O Tribunal a quo não nega que a actividade foi desenvolvida, apenas diz que como esta não estava inserida formalmente no objecto social do Recorrente - mas veja-se que até passou a estar, embora essa não seja a questão fundamental entende e sustenta a Recorrente -, então haverá que rejeitar, tout court, a dedutibilidade dos custos havidos com esta actividade.

O. O que de modo algum se pode aceitar, porquanto, salvo o devido respeito que é muito, traduz uma solução jurídica manifestamente ilegal e em absoluta discordância com o sistema de tributação pelo lucro real das empresas que tem, de resto, proteção constitucional.

P. A interpretação restrita do conceito de indispensabilidade aparentemente ratificada pelo Tribunal recorrido está hoje totalmente ultrapassada e, de resto, nem sequer é acolhida pelo legislador fiscal, pois a versão que estava em vigor do artigo 23º do Código do IRC à data dos factos tributários em causa nos autos dizia como segue: "Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora".

Q. Não há, nem nunca houve nesta norma, qualquer referência ao objecto social de uma empresa.

R. E a versão actual do artigo 23º do Código do IRC é ainda mais clara a este respeito quando diz que: "Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.".

S. O que a lei pretendeu sempre evitar é que o contribuinte deduza custos ou gastos que não estejam relacionados com uma actividade económica por si desenvolvida, aqueles que se relacionem com uma actividade alheia e que se situe fora do interesse da sociedade, porquanto totalmente alheia ao normal escopo lucrativo que norteia a actividade de uma empresa. É este, e não outro, o espírito da norma do artigo 23º do Código do IRC.

T. Aliás a Comissão para a Reforma do IRC considerou no seu Relatório Final (páginas 128 e 129) o seguinte e citamos: "O significado do conceito de indispensabilidade tem sido um tema fortemente debatido, dele resultando um notório grau de incerteza para os sujeitos passivos quanto à dedutibilidade de certos gastos e, bem assim, um apreciável volume de litigância fiscal.".

U. A doutrina e a jurisprudência, em particular, têm desenvolvido um significativo esforço no sentido de produzir a melhor interpretação de um tal conceito.

V. Na doutrina, é hoje bastante consensual que a indispensabilidade dos gastos deve, num plano geral, ser entendida como considerando dedutíveis aqueles que sejam incorridos no interesse da empresa - o que foi o caso dos autos -, na prossecução das respetivas atividades. Tem-se afastado, pois, a interpretação do conceito de indispensabilidade como significando uma necessária ligação causal entre gastos e rendimentos. A jurisprudência tem firmado, consistentemente, uma linha interpretativa na qual se sustenta que o critério da indispensabilidade foi criado para impedir a consideração fiscal de gastos que não se inscrevem no âmbito da atividade das empresas sujeitas ao IRC, isto é, encargos que foram incorridos no âmbito da prossecução de interesses alheios, mormente dos seus sócios - o que não é aqui de todo o caso, como se demonstrou e provou ao longo do processo e nunca foi, sequer, questionado pelo Recorrido.

W. Neste contexto, entendeu a Comissão propor uma evolução normativa quanto ao princípio geral da aceitação dos gastos. Assim, o artigo 23.º do Código do IRC passa a consagrar como princípio geral que, para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis os gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados.

X. No que concerne à ligação que o douto Tribunal recorrido pretende estabelecer entre o conceito de indispensabilidade para efeitos do artigo 23º do Código do IRC e o objecto social do Recorrente, é de referir que este entendimento corresponde a uma concepção ultrapassada e hoje completamente desadequada do dinamismo da actividade económica moderna à qual a justiça e o direito não podem ignorar.

Y. A utilização pura e simples do objecto social como referencial único para a aferição da indispensabilidade tem como base a importação deste primeiro conceito do Direito Privado, mas mesmo aí os actos fora do objecto não deixam de vincular a sociedade desde que tenham sido praticados no interesse da mesma.

Z. É, assim, de se entender que o conceito de indispensabilidade deve ser aferido em função do interesse social e na medida em que o gasto foi incorrido tendo em vista a manutenção da fonte produtora, e, por conseguinte, a realização de proveitos - o que é o caso, prova disso mesmo é que o objecto da sociedade inclui hoje formalmente a actividade que vinha sendo materialmente já desenvolvida, aproveitando uma oportunidade de negócio imperdível.

AA. Como nos dizem Diogo Leite de Campos e João Costa Andrade, "cabem, e só cabem, no disposto no art.º 23º, 1, como custos não relevantes fiscalmente, os totalmente estranhos à actividade da empresa.'' (Cf. Diogo Leite de Campos/João Costa Andrade, "Autonomia Contratual e Direito Tributário", 1ª Edição, p. 26, Edições Almedina.) .

BB. Densificam estes mesmos Professores afirmando que "o carácter de estraneidade em relação à actividade da empresa tem como ingrediente, mas não se esgota, na referência ao objecto social da empresa. Assim, o acto relevando de uma actividade estranha a esse objecto não é necessariamente um acto estranho à empresa, em termos de acto anormal de gestão. A empresa não pode ser limitada às actividades que já exercia ou ser obrigada a estabelecer uma ligação entre estas e uma tentativa de diversificação.'' (Cf. Diogo Leite de Campos/João Costa Andrade, "Autonomia Contratual e Direito Tributário", 1ª Edição, p. 26, Edições Almedina.) .

CC. António Moura Portugal, in "A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa", Coimbra Editora, 2004, vem dizer a páginas 264, com o que se concorda, que "a indispensabilidade deve ser aferida a partir do objecto social da empresa, mas sem que tal signifique uma desconsideração da respectiva actividade concreta.".

DD. Este mesmo entendimento já tem vindo a ser acolhido pela Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, com especial destaque para o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 29-03-2006, que dispõe que "são custos fiscalmente dedutíveis todas as despesas que se relacionem directamente com o processo produtivo […], designadamente, com a aquisição de factores de produção, como é o caso do trabalho. E que, sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, a Administração só pode excluir gastos não directamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial, ou, ao menos, com nítido excesso, desviante, face às necessidades e capacidades objectivas da empresa." (Acessível em:http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3815a0627c533ab58025714700557219?OpenDocument&ExpandSection=#_Section1).

EE. Objectivo social, não objecto social. O objectivo social de uma empresa é a obtenção do lucro.

FF. Refira-se, ainda, que o Tribunal recorrido ao sufragar esta ligação rígida e restrita ao objecto social do Recorrente está a formular um juízo de conveniência sobre a administração da sociedade que viola a liberdade de iniciativa económica privada e o Direito de Propriedade Privada, que consubstanciam direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e protegidos nos artigos 61.º e 62.º da nossa Lei Fundamental.

GG. A circunstância de os gastos em apreço não encontrarem correspondência directa e estrita com as actividades inscritas no objecto social não poderá ditar o afastamento da indispensabilidade dos mesmos, uma vez que para além da circunstância de terem sido incorridos com vista à realização de proveitos ou réditos (Em momento algum a AT ou o Tribunal recorrido vêm dizer que a actividade não foi efectivamente desenvolvida.), deram mesmo origem, in casu, a uma actividade lucrativa, como, reitera-se, resultou da prova produzida e este ponto é absolutamente fundamental para a questão para a qual se pretende que o Tribunal ad quem se pronuncie.

HH. A vingar a tese do Tribunal recorrido tal ditaria a consequência jurídica absurda e inaceitável de se negar, sempre, o direito de deduzir os gastos que se incorreu numa actividade económica geradora de lucro, como acima se disse, com o único argumento de que como não estavam directamente inscritos no seu objecto social não podem ser aceites, por não se revelarem indispensáveis, em violação total do disposto no artigo 23º do Código do IRC, do princípio legal e constitucional da capacidade contributiva e do princípio constitucional da tributação do rendimento real das empresas.

II. De facto, o princípio da capacidade contributiva, explanado no artigo 4º, nº 1 da Lei Geral Tributária ("LGT"), representa não só a materialização de diversos princípios constitucionais, entre os quais se destacam o princípio da igualdade fiscal, expressão específica do princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da Republica Portuguesa ("CRP") e o princípio da garantia do mínimo de existência condigna, reconhecida e desenvolvida pela jurisprudência constitucional, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, preceituado no artigo 1º da CRP, como exige uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza e fundamenta ainda a exigência da tributação pelo rendimento real das empresas, previsto no artigo 104º, nº 2, da CRP.

JJ. Pelo que por todo o supra exposto, o entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido não pode ser validado pelo Tribunal ad quem, porquanto ilegal e inconstitucional, encerrando uma questão, que constitui o objecto deste Recurso, de verdadeira e enorme relevância social e jurídica de importância fundamental (que é o caso pois estamos perante uma questão de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar - cfr. Acórdão do STA, nº 0512/16, de 13.07.2016), porquanto a vingar este entendimento, tal significa que qualquer empresa que desenvolva uma actividade económica, mas não formalmente inscrita no seu objecto social à data da prossecução da mesma, que tenha gerado lucro tributado, não pode deduzir qualquer gasto incorrido com essa actividade, porquanto se considera não indispensável, o que de modo algum se pode aceitar porquanto manifestamente ilegal, para não dizer que consagra uma visão provavelmente mais condicente com a actividade económica do século passado.

KK. É esta a questão de enormíssima relevância social, claramente transpondo os limites do caso concreto, que deve ser sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo - cuja sua intervenção é essencial para uma melhor aplicação do Direito tendo em vista tratar-se de um órgão de cúpula -, fazendo-se, no entendimento da Recorrente, a devida justiça!

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que o recurso devia ser admitido por se encontrarem preenchidos os requisitos previstos no art.º 150º do CPTA, argumentando, essencialmente, o seguinte:

«3.3 Atento o âmbito como a questão foi abordada pelo TCA, acompanhamos o entendimento da Recorrente, no sentido de que estamos perante questão pertinente e que requer a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que o entendimento sufragado nas instâncias é significativamente redutor da conceção de "gastos" prevista no artigo 23.º do CIRC, sem que se perceba os motivos de tal restrição. Com efeito, não foi sequer analisado em que termos foi exercida a atividade desenvolvida no prédio denominado "herdade da ………" e ainda que não inscrita no objeto da sociedade a mesma era ou não conexa com essa atividade e se os gastos que foram desconsiderados tinham ou não alguma relação com os proveitos declarados ou se lhe eram estranhos, de forma a aferir do requisito de "indispensabilidade".
Por outro lado a solução a dar a tal questão extravasa o caso concreto e é suscetível de expansão para outros casos, o que lhe confere relevância social.
Entendemos, assim, que a questão suscitada pela Recorrente reúne os requisitos para a sua apreciação em sede de recurso de revista, tal como vem requerido, ao abrigo do disposto no artigo 150.º do CPTA.».

1.4. Colhidos os vistos legais, cumpre proceder à apreciação liminar sumária a que se refere o nº 5 do artigo 150º do CPTA.

2. Segundo o disposto no nº 1 do artigo 150º do CPTA, «das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito», competindo a decisão sobre o preenchimento de tais pressupostos, em termos de apreciação liminar sumária, à formação prevista no nº 5 do referido preceito legal.

Isto é, o preceito prevê, excepcionalmente, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Ora, tal como tem sido repetidamente explicado nos inúmeros acórdãos proferidos sobre a matéria, o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando a matéria vem gerando polémica ou suscitando dúvidas a nível jurisprudencial ou doutrinal.

relevância social fundamental verificar-se-á quando esteja em causa uma questão com elevada capacidade de repetição e que importa que o STA aprecie e decida para que a solução encontrada venha a constituir uma orientação para os demais casos, ou quando esteja em causa uma questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e das partes envolvidas no litígio.

Por fim, a clara necessidade da revista para uma melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias em que se verifique ser objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.

No caso vertente, o recurso restringe-se à parte do acórdão que apreciou e decidiu a questão relativa à invocada ilegalidade da desconsideração, em sede de IRC e de IVA, dos gastos incorridos com a actividade de produção agrícola e pecuária que a Recorrente desenvolveu na Herdade da ……… (gastos com aquisição de fertilizantes, aquisição de máquinas e serviços prestados por terceiros), desconsideração que se alicerçou na circunstância, invocada pela Administração Tributária, de tal actividade não se encontrar, à data dos gastos, formalmente inscrita no seu objecto social ("comércio por grosso de cereais, leguminosas e oleaginosas").

E a questão que a Recorrente coloca consiste em saber se tendo sido realmente desenvolvida essa actividade, que gerou lucro tributado, o facto de ela não se encontrar ainda, na altura dos gastos, formalmente inscrita no seu objecto social - mas conexa com a actividade inscrita - é por si só suficiente para desconsiderar a totalidade desses gastos, como se julgou no acórdão recorrido.

Ou, como deixou explicitado na conclusão C) deste recurso, «a questão objecto do presente Recurso que importa dirimir pelo Supremo Tribunal Administrativo é a de se determinar se uma empresa que desenvolva materialmente uma actividade económica conexa com a principal, mas não formalmente inscrita no seu objecto social à data da prossecução da mesma, que tenha gerado lucro sobre o qual foi pago o respectivo imposto sobre o rendimento, não pode deduzir qualquer gasto incorrido com essa actividade, porquanto se entende ser o mesmo não indispensável para efeitos do artigo 23º do CIRC.».

Segundo a Recorrente, o entendimento sufragado no acórdão recorrido ofende o conceito da indispensabilidade de custos fiscalmente relevantes à luz do disposto no art.º 23º do CIRC, coloca em causa o princípio da liberdade de gestão e de autonomia da vontade dos contribuintes, viola o princípio constitucional da tributação das empresas pelo seu lucro real, e contraria posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria.

Trata-se, efectivamente, de questão jurídica que justifica a admissibilidade da revista, dado o seu carácter geral e a sua relevância jurídica e social fundamental à luz da definição acima enunciada, tendo em conta, sobretudo, que na sua vertente estritamente jurídica a questão é suscetível de repetição e envolve ponderação jurídica que não é de fácil e imediata solução, o que justifica que se considere como de importância jurídica fundamental.

Estamos, pois, perante questão complexa e controversa, de interesse geral e importância fundamental, que claramente transcende o caso sujeito; a que acresce a utilidade (jurídica e prática) da resposta que lhe venha a ser dada, utilidade que ultrapassa os limites da situação singular face à possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros.

Em suma, é de reconhecer, no caso, a importância jurídica e o inegável relevo social e económico da questão, bem como a sua repercussão em múltiplas situações, dada a sua abrangência, com a consequente relevância excepcional com vista a uniformizar as decisões e a permitir segurança no domínio do acesso à justiça.

E tanto basta para que se considerem preenchidos os requisitos de que o nº 1 do artigo 150º faz depender a admissão do recurso de revista.

3. Termos em que acordam os juízes que integram a formação referida no nº 5 do artigo 150º do CPTA em admitir a revista.

Lisboa, 8 de Maio de 2019. – Dulce Neto (relatora) – Isabel Marques da Silva – Ascensão Lopes.