Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01229/09
Data do Acordão:05/12/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INTERESSE EM AGIR
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CESSIONÁRIO
Sumário:I - O disposto no art. 376º do CPC supõe que a causa está pendente e que o cessionário (ou transmissário) pretende substituir-se nela ao cedente (ou transmitente), aceitando-a no estado em que ela se encontrar. Mas, extinta a instância na causa principal pelo julgamento, é inadmissível tal incidente de habilitação.
II - Tendo sido suspensa a venda de um bem penhorado em execução fiscal, nos termos do nº 2 do art. 244º do CPPT, e posteriormente declarada em falhas a respectiva dívida exequenda, a possibilidade de vir a ser ordenado, à luz do art. 274º do mesmo código, o prosseguimento dessa execução fiscal declarada em falhas (com eventual penhora e venda de outros bens que sejam encontrados ao executado e sobre os quais não tenham sido reclamados créditos não tributários), não determina, relativamente ao cessionário de um desses créditos não tributários garantido pelo bem penhorado mas não vendido, a existência de interesse em agir para efeitos de admissão do incidente de habilitação previsto nos arts. 271º e 376º do CPC por ele deduzido por apenso ao processo de reclamação de créditos instaurada no seguimento daquela execução fiscal que veio a ser declarada em falhas, e na qual, por sentença já transitada em julgado, haviam sido admitidos e graduados os créditos ali reclamados pelo cedente.
Nº Convencional:JSTA00066427
Nº do Documento:SA22010051201229
Data de Entrada:12/15/2009
Recorrente:A...
Recorrido 1:B... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF VISEU PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Área Temática 2:DIR PROC CIV.
Legislação Nacional:CPC96 ART268 ART270 ART271 ART276 N1 ART371 ART376.
CPPTRIB99 ART244 N1 ART261 N1 ART272 A ART274.
CCIV66 ART824 N2.
CONST97 ART20.
Jurisprudência Nacional:AC STJ PROC08A2210 DE 2008/09/16.
Referência a Doutrina:LOPES CARDOSO MANUAL DOS INCIDENTES DA INSTÂNCIA EM PROCESSO CIVIL 2ED PAG355.
ANA PAULA COSTA E SILVA A TRANSMISSÃO DA COISA OU DIREITO EM LITÍGIO PAG60.
ALBERTO DOS REIS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VI PAG664.
ALBERTO DOS REIS COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VIII PAG74.
MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG78-PAG82.
ANSELMO DE CASTRO DIREITO PROCESSUAL CIVIL DECLARATÓRIO VII PAG251 PAG253.
LEBRE DE FREITAS INTRODUÇÃO AO PROCESSO CIVIL CONCEITO E PRINCÍPIOS GERAIS Á LUZ DO CÓDIGO REVISTO PAG27 NOTA 17.
ANTUNES VARELA E OUTROS MANUAL DE PROCESSO CIVIL 2ED PAG179.
JORGE DE SOUSA CPPT ANOTADO E COMENTADO VII 5ED PAG513.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1.1. A…, S.A., com os demais sinais dos autos, recorre do despacho que, proferido pelo Mmo. Juiz do TAF de Viseu, no processo de reclamação de créditos que ali corre termos, por apenso à execução fiscal nº 2640-00/100205.8 e apensos, em que são executados B… e C…, lhe indeferiu o requerimento de incidente de habilitação, ali deduzido.
1.2. A recorrente remata as alegações do recurso formulando as Conclusões seguintes:
1 - Em 20 de Setembro de 2001, o D…, S.A. instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa contra B… e mulher C…, a qual corre termos no 1° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu, sob o nº de processo 582/2001.
2 - O crédito emerge do mútuo com hipoteca, em que são mutuários os ora executados e cujo montante ascende a € 67.975,30 (sessenta e sete mil novecentos e setenta e cinco euros e trinta cêntimos) acrescido de juros vencidos e vincendos, num total de € 49.490,72 (quarenta e nove mil quatrocentos e noventa euros e setenta e dois cêntimos).
3 - Na pendência da referida acção executiva, decorreram as seguintes transmissões do crédito sub iudice:
a) Por escritura pública de 5 de Agosto de 2004, o D…, S.A., cedeu esse crédito à E…, S.A.;
b) Por escritura pública de 13 de Setembro de 2004, a E…, S.A. cedeu esse crédito à sociedade F… - Sucursal em Portugal; e
c) Por escritura pública de 16 de Maio de 2006, a sociedade F… - Sucursal em Portugal cedeu esse crédito à A…, S.A.
4 - Na carteira de créditos objecto da supra descrita cessão inclui-se o ora litigado: todas as garantias e direitos acessórios do crédito, designadamente das hipotecas constituídas sobre o prédio em causa, descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Pedro do Sul sob o nº 00409/19911218, freguesia da Várzea, registada junto da referida Conservatória do Registo Predial de S. Pedro do Sul, através da inscrição C-ap. 20 de 1997/08/29 e pela inscrição C-Ap. 4 de 1998/01/09.
5 - A Recorrente procedeu ao pedido de registo da transmissão das hipotecas a seu favor, mediante Av. - Ap. 16 de 2008/06/03 da Ap. 20 de 1997/08/29 e pelo Av. - Ap. 14 de 2008/06/03 da Ap. 4 de 1998/01/09.
6 - Ora, não decorre do art. 376° do CPC, qualquer prazo peremptório ou de caducidade para a instauração do incidente de habilitação de cessionário.
7 - Termos em que carece de fundamento a alegada extemporaneidade da dedução do incidente de habilitação de cessionário, que ora se impugna veementemente para todos os efeitos legais.
8 - Igualmente desprovido de fundamento apresenta-se o despacho do Exmo. Sr. Chefe de Finanças do Serviço de Finanças de São Pedro do Sul, de 13 de Dezembro de 2007, quando determina o desentranhamento do incidente de habilitação de cessionário deduzido pela ora Recorrente, alegando a inutilidade superveniente da lide.
Com efeito,
9 - A determinação da impossibilidade da venda do imóvel penhorado nos autos de execução fiscal, com fundamento na manifesta superioridade do valor dos créditos reclamados face à quantia exequenda (arts. 244°, nº 2 CPPT) e a declaração em falhas da dívida exequenda e acrescido constante do respectivo processo executivo, com fundamento na inexistência de bens penhoráveis (arts. 272°, al. a) e nº 2 do art. 244° do CPPT), não obstam ao prosseguimento da instância executiva.
10 - Assim dispõe o art. 274° do CPPT.
11 - E essa mesma circunstância vem ressalvada no próprio despacho de 13 de Dezembro de 2007.
12 - A possibilidade de prosseguimento dos autos de execução fiscal atribui à recorrente interesse em agir na requerida habilitação, enquanto pressuposto processual inominado.
13 - A não pronúncia quanto ao incidente de habilitação de cessionário consubstancia um non liquet, inadmissível no nosso ordenamento jurídico.
14 - Pois que, apenas uma vez habilitada é que a Recorrente apresentará legitimidade e disporá de direitos processuais exercitáveis num potencial prosseguimento dos autos de execução fiscal.
15 - Em causa está o próprio acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva plasmado no art. 20° da Constituição da República Portuguesa.
16 - Donde também o fundamento de inutilidade superveniente da lide ora se impugnar veementemente para todos os efeitos legais.
17 - Face ao exposto, deve a habilitação de cessionário deduzida pela Recorrente ser admitida e julgada nos termos legais.
1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.4. O MP emite Parecer no sentido da procedência do recurso, nos termos seguintes:
«Com efeito, face ao disposto no art. 274º do CPPT, haverá de apreciar-se a possibilidade de os autos de execução fiscal prosseguirem ulteriormente e logo que sejam conhecidos outros bens penhoráveis ao executado.
Dessa possibilidade resulta, como bem salienta a recorrente, a existência de interesse em agir na requerida habilitação para salvaguarda dos seus direitos processuais.»
1.5. Colhidos os vistos legais, cabe decidir
FUNDAMENTOS
2. O despacho recorrido, datado de 25/9/2009, é do teor seguinte:
«Incidente de habilitação requerido por A…, S.A. EM 11 de Agosto de 2009:
Os autos a que é dirigido foram objecto de sentença de graduação de créditos em 12-02-2007, remetidos às Finanças em 04-11-2007.
Para além do vindo de referir atente-se na informação e despacho proferidos no processo executivo em 13-12-2007 onde se decidiu “não há possibilidade de venda” e declarou em falhas a dívida exequenda.
Assim remetendo cópia da informação e despacho vindos de aludir bem como do presente despacho entregue à Requerente o expediente constituído pelo requerimento de Incidente de habilitação, por extemporâneo; mesmo que não padecesse deste pressuposto verifica-se, neste caso, uma inutilidade dado o teor do despacho proferido em 13-12-2007.
Oportunamente remeta de novo os autos de reclamação de créditos ao Órgão de Execução Fiscal.»
3. Do que resulta deste despacho, o incidente de habilitação aqui em causa foi indeferido por ser extemporâneo e por, ainda que assim não se considerasse, ocorrer inutilidade superveniente da lide.
A recorrente entende, porém,
- que do art. 376° do CPC não decorre qualquer prazo peremptório ou de caducidade para a instauração do incidente de habilitação de cessionário, pelo que carece de fundamento a alegada extemporaneidade da dedução do incidente de habilitação de cessionário;
- que é desprovido de fundamento o despacho de 13/12/2007, do Chefe de Finanças, quando determina, com base em inutilidade superveniente da lide, o desentranhamento do incidente de habilitação de cessionário, pois que a determinação da impossibilidade da venda do imóvel penhorado nos autos de execução fiscal (com fundamento no nº 2 do art. 244° do CPPT) e a declaração em falhas da dívida exequenda e acrescido, com fundamento na inexistência de bens penhoráveis (arts. 272°, al. a) e nº 2 do art. 244° do CPPT), não obstam ao prosseguimento da instância executiva, de acordo com o disposto no art. 274° do CPPT; sendo esta possibilidade de prosseguimento da execução fiscal que lhe atribui interesse em agir na requerida habilitação, enquanto pressuposto processual inominado.
Estas são, pois, as questões a decidir.
Vejamos.
3.1.1. Quanto à extemporaneidade da dedução do incidente de habilitação de cessionário:
De acordo com o princípio da estabilidade da instância, o art. 268º do CPC dispõe que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
E como excepção a tal regra logo o art. 270º prevê a possibilidade de a instância se modificar quanto às pessoas, nomeadamente em consequência da substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio, quer por sucessão mortis causa quer por acto entre vivos, sendo que, quanto a esta (transmissão entre vivos da coisa ou do direito em litígio) o art. 271º determina que o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for admitido a substituí-lo, por meio de habilitação, acrescentando-se que a substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e que, na falta deste, só pode recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.
Mais adiante (nos arts. 371º e sgts.) no âmbito dos incidentes da instância, o art. 376º do mesmo CPC regula a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, referindo (no que aqui interessa, não são substancialmente diferentes a redacção anterior e a redacção actual introduzida pelo DL nº 226/2008, de 20/11) que se fará por apenso à respectiva acção, juntando-se o respectivo título de aquisição ou de cessão, sendo a parte contrária notificada para contestar, impugnando a validade do acto ou alegar que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil a sua posição no processo.
3.1.2. No caso dos autos, na sequência da instauração da execução fiscal nº 2640-00/100205.8 e apensos, contra os executados B… e C…, no âmbito da qual foi penhorado, em 27/3/2000, o imóvel (correspondente à fracção “E” do prédio em regime de propriedade horizontal sito na freguesia de Várzea, São Pedro do Sul, inscrito no artigo 1167 da respectiva matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul, sob o nº 00409/181291), foi autuada a presente reclamação de créditos, dado que foram reclamados créditos quer pela Fazenda Pública quer pelo D…, SA. [este último tem inscritas a seu favor, sobre a dita fracção, quer as hipotecas voluntárias identificadas nos autos, quer a penhora, efectuada em 17/12/2001 e registada em 20/2/2002, no âmbito de uma outra execução (no processo de execução nº 582/2001, do 1º Juízo Cível de Viseu), que veio a ser sustada nos termos do art. 871º do CPC, após a efectivação da penhora incidente sobre a mesma identificada fracção “E”, operada na presente execução fiscal].
E, dos autos se vê, ainda, que a respectiva sentença foi proferida em 12/2/2007 (fls. 115 a 119), tendo sido reconhecidos e graduados todos os créditos reclamados, pela ordem dela constante.
Esta sentença foi notificada à reclamante D…, SA., por carta de 14/2/07 (fls. 122), tendo transitado em julgado em 1/3/07 (cfr. fls. 128).
E remetidos os autos ao Serviço de Finanças de São Pedro do Sul, veio, todavia, no processo de execução fiscal respectivo, a ser proferido, pelo Chefe de Finanças, o despacho de 13/12/2007, que consta por cópia a fls. 148, do teor seguinte:
«Do processo de reclamação de créditos, transitado em julgado, verifica-se que o valor dos créditos reclamados e aceites é manifestamente superior ao valor da dívida exequenda e acrescido e não haver outros bens penhoráveis.
Assim, nos termos e em consequência da suspensão determinada nos termos do nº 2 do art. 244º do CPPT, não há possibilidade da venda do imóvel penhorado.
Nestes termos, ao abrigo da al. a) do art. 272º do CPPT, declaro em falhas a dívida exequenda e acrescido constante deste processo executivo, em virtude de não haver bens penhoráveis (entenda-se bens vendáveis – nº 2 do art. 244º do CPPT), sem prejuízo da execução prosseguir, sem necessidade de nova citação, logo que haja conhecimento de que o executado tenha bens penhoráveis (art. 274º do CPPT).
Oficie-se ao Tribunal Judicial de Viseu – 1º Juízo Cível, onde pende processo executivo, informando de que o bem penhorado não vai ser objecto de venda por estes serviços, pelos motivos já referidos, para que este órgão judicial proceda como lhe aprouver.»
3.1.3. Ora, retornando, então, ao disposto no nº 1 do art. 276º do CPC, vemos que esse preceito só permite a habilitação do adquirente (cessionário), nos termos do art. 376º do mesmo Código, se a transmissão ocorrer na pendência da causa e se o respectivo incidente se inserir numa mesma causa (cfr. Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 2ª ed., 1992, pág. 355 e segts. e Ana Paula Costa e Silva, A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, págs. 60 e segts.).
Como realça o Prof. Alberto dos Reis, o art. 376º supõe que a causa está pendente e que o cessionário (ou transmissário) pretende substituir-se nela ao cedente (ou transmitente). O transmitente, após a transmissão e até ser substituído pelo adquirente “passa à categoria de substituto processual” deste (CPC Anotado, I, pág. 664 e Comentário, III, pags. 74 e segs).
Daí que, como também refere Salvador da Costa (Os Incidentes da Instância, 3ª Ed. Coimbra, 2002, pags. 259 e sgts.) «A intervenção do cessionário na causa implica que ele tem que a aceitar no estado em que ela se encontrar, certo que o transmitente continuou a ter legitimidade para continuar na causa principal até o transmissário, por habilitação, ser admitido a substituí-lo (artigo 271º, nº 1)» e que «Extinta a instância na causa principal pelo julgamento, é inadmissível o incidente de habilitação do cessionário, pois já não faz qualquer sentido falar-se de modificação subjectiva da instância.»
No caso que nos ocupa, apesar de as sucessivas transmissões do crédito reclamado, mencionadas na Conclusão 3ª do recurso, terem alegadamente ocorrido em 5/8/2004, 13/9/2004 e 16/5/2006, a recorrente não promoveu a sua habilitação até ao trânsito em julgado da sentença que veio a decidir a presente reclamação de créditos.
Assim, embora se não ponha em questão a sua legitimidade para prosseguir a causa em substituição do reclamante D…, SA., resulta da conjugação do disposto nos arts. 271º e 376º do CPC que, quando em 11/8/2009, veio requerer a habilitação, estava precludida essa possibilidade, sendo certo que a sentença produziu efeitos em relação a si, apesar de não ter intervindo no processo: a graduação, operada na sentença quanto aos créditos reclamados, impõe-se-lhe nos mesmos termos em que se impõe à reclamante D…, SA.
Concluímos, portanto, que, embora do art. 376° do CPC não decorra expressamente qualquer prazo peremptório ou de caducidade para a instauração do incidente de habilitação de cessionário, pela natureza do próprio incidente e pressupondo o art. 376º que a causa está pendente e que o cessionário (ou transmissário) pretende substituir-se nela ao cedente (ou transmitente), então, se a instância já se encontra finda pelo julgamento também já não faz qualquer sentido falar-se de modificação subjectiva dessa mesma instância, sendo, nesse caso, inadmissível o incidente de habilitação.
3.2. Quanto à questão atinente à inutilidade superveniente da lide e ao invocado interesse em agir derivado da possibilidade de vir a ser ordenado, à luz do art. 274º do CPPT, o prosseguimento da execução fiscal declarada em falhas:
3.2.1. É sabido que o termo da lide por força da al. e) do art. 287º do CPC – na modalidade de inutilidade superveniente – supõe a ulterior ocorrência de uma circunstância que notoriamente retire às partes o interesse em agir, aferido em função da necessidade de tutela judicial e da adequação do meio em curso.
Ora, como ensina Manuel de Andrade, o interesse em agir substancia-se na necessidade de tutela judicial (Noções Elementares de Processo Civil, págs. 78/82), surgindo «da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação». Daí que «este pressuposto não se destina a assegurar a eficácia da sentença; o que está em jogo é antes a sua utilidade; não fora exigido o interesse, e a actividade jurisdicional exercer-se-ia em vão» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, Coimbra 1982, pag. 253). Reconduz-se, pois, este interesse em agir, a «uma inter-relação de necessidade e de adequação. De necessidade porque, para a solução do conflito deve ser indispensável a actuação jurisdicional, e adequação porque o caminho escolhido deve ser apto a corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configurou.» (ac. do STJ, de 16/9/08, processo nº 08A2210).
Na verdade, em termos de caracterização jurídica e de autonomia face aos restantes pressupostos processuais, o interesse em agir tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, sendo sobretudo no domínio da acção declarativa de simples apreciação que a questão da exigibilidade do interesse em agir, como pressuposto processual, tem sido colocada, exigindo os defensores do pressuposto, «que se verifique uma situação de incerteza objectivamente grave, de molde a justificar a intervenção judicial» (cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceito e princípios gerais à luz do código revisto, Coimbra Editora, 1996, pág. 27, nota 17).
Por outro lado, o interesse em agir também não se confunde com os restantes pressupostos processuais (tais como a capacidade judiciária ou, sobretudo, a legitimidade), pois o autor pode ser titular da relação material litigada e não ter, contudo, face às circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção (se ninguém contestou ou violou o direito não há interesse em propor acção para o reconhecer ou defender). Porém, apesar de não se configurar aqui uma necessidade estrita e absoluta, não quer dizer que se aceite um qualquer interesse vago e remoto: trata-se, antes, de algo intermédio, de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o que a ordem jurídica lhe reconhece. Constitui «um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção - mas não mais do que isso.» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed. pags. 179 e sgts.). Assim, por parte do autor, a necessidade de recorrer à via judicial embora não tenha de ser uma necessidade absoluta, também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. A incerteza deve ser objectiva e grave, não bastando a dúvida subjectiva ou o interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Deve ser uma incerteza resultante de um facto exterior e com capacidade de trazer um prejuízo sério ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria (Ibidem, págs. 181 e 186/187; cfr., igualmente, Manuel de Andrade, loc. cit., 78/79 e Anselmo de Castro, loc. cit. 251).
Portanto, se no decurso da acção ocorre alguma circunstância que retire às partes o interesse em agir ou em contradizer (quer se aceite que o mesmo se caracteriza como pressuposto processual, quer se aceite que se caracteriza como pressuposto autónomo inominado) a lide torna-se supervenientemente inútil, uma vez que, no caso do demandante, este já não irá, então, retirar da demanda qualquer utilidade económico-juridica: a eventual procedência não originará modificação alguma da situação concreta sujeita à apreciação do tribunal, quer por estar ultrapassada a fase processual em que ocorreu, quer por já ter havido uma tomada de posição sobre a questão a julgar.
3.2.2. No caso dos autos, vemos que, proferida que foi a sentença no apenso de reclamação de créditos e remetido este ao Serviço de Finanças de São Pedro do Sul, o Sr. Chefe de Finanças exarou, no processo de execução fiscal a que tal reclamação de créditos estava apensa, o despacho de 13/12/2007 onde, além do mais, declarou em falhas a dívida exequenda e acrescido constante desse processo executivo, nos termos do disposto no nº 2 do art. 244º e da al. a) do art. 272º, ambos do CPPT, sem prejuízo de a execução prosseguir, caso se verifiquem as circunstâncias referidas no art. 274º do mesmo CPPT e onde, igualmente, ordenou que se oficiasse ao Tribunal Judicial de Viseu – 1º Juízo Cível, onde pende processo executivo, informando de que o bem penhorado não ia ser objecto de venda por parte do Serviço de Finanças.
Na verdade, os arts. 242º e 272º do CPPT dispõem o seguinte:
«Artigo 244°
Realização da venda
1 - A venda realizar-se-á após o termo do prazo de reclamação de créditos.
2 - Pode ser suspensa mediante decisão fundamentada do órgão da execução fiscal a realização da venda caso o valor dos créditos reclamados pelos credores referidos nos artigos 240° e 242° for manifestamente superior ao da dívida exequenda e acrescido, podendo a execução prosseguir em outros bens.
3 - No caso previsto no número anterior, a venda só se realizará após o trânsito em julgado da decisão de verificação e graduação de créditos, caso desta resulte o valor dos créditos reclamados aí referidos ser inferior ao montante da dívida exequenda e acrescido.»
Artigo 272°
Declaração de falhas
«Será declarada em falhas pelo órgão da execução fiscal a dívida exequenda e acrescido quando, em face de auto de diligência, se verifique um dos seguintes casos:
a) Demonstrar a falta de bens penhoráveis do executado, seus sucessores e responsáveis solidários ou subsidiários;
(…)»
E, sob a epígrafe «Prosseguimento da execução da dívida declarada em falhas», o art. 274º dispõe, por sua vez, que «A execução por dívida declarada em falhas prosseguirá, sem necessidade de nova citação e a todo o tempo, salvo prescrição, logo que haja conhecimento de que o executado, seus sucessores ou outros responsáveis possuem bens penhoráveis ou, no caso previsto na alínea b) do artigo 272°, logo que se identifique o executado ou o prédio.»
3.2.3. O regime previsto nestes normativos parece explicar-se, como refere o Cons. Jorge Lopes de Sousa (CPPT anotado e comentado, II Vol., 5ª edição, 2007, pags. 513 e sgts., Anotações 5 a 8 ao art. 244º) «por um lado, na função do processo de execução fiscal, que é um processo executivo especial de natureza mais célere do que o comum justificada pelas razões de interesse público, e por outro lado, na razão de ser da convocação de credores que não tenham direito à utilização autónoma do processo de execução fiscal para cobrança dos seus créditos, que é a de permitir-lhes fazer valer os seus direitos de garantia sobre os bens penhorados, que se extinguem com a venda, nos termos do art. 824°, nº 2, do Código Civil, e não proporcionar-lhes um meio de cobrança de créditos em situação em que eles próprios não diligenciaram no sentido de os cobrarem instaurando o respectivo processo executivo.
Assim, nos casos em que, em face da reclamação de créditos não tributários, for de prever que a execução fiscal passará a assumir primacial ou exclusivamente a função de satisfazer os créditos não tributários, é compreensível que seja afastada a utilização do processo de execução fiscal para cobrança desses créditos, desde que a execução possa prosseguir com venda de outros bens, sobre os quais não tenham sido reclamados créditos não tributários, como se prevê na parte final do nº 2 do art. 244°.»
Daí que «… só se pode compreender que seja suspensa a venda, pela razão referida, se a execução puder prosseguir noutros bens. Na verdade, se não houver outros bens que possam ser vendidos, não haverá outra possibilidade de procurar cobrar os créditos fiscais e satisfazer os fins de interesse público ligados à cobrança de tributos, pelo que é preferível que a venda seja efectuada. Por isso, a expressão final do nº 2 deste artigo «podendo a execução prosseguir noutros bens» deve ser interpretada não como uma mera faculdade subsequente à decisão de suspensão da venda, mas sim como um requisito dessa suspensão. Isto é, «podendo a execução prosseguir noutros bens», é possível decidir a suspensão; se ela não puder prosseguir noutros bens, não poderá ser suspensa. (…)
Em todo o caso, é de notar que a suspensão da venda de bens prevista no nº 2 é facultativa, só se proibindo definitivamente a venda dos bens sobre que tenham sido reclamados créditos não tributários se tiver sido decidida essa suspensão e a sentença de graduação de créditos confirmar que os créditos não tributários são superiores aos créditos tributários.
Assim, é colocada ao órgão da execução fiscal a possibilidade de tomar uma decisão em que deverá aplicar o seu bom senso e experiência, sem perder de vista a finalidade primacial da execução fiscal, que é a cobrança dos créditos tributários. (…)
Isto significa que, se os créditos não tributários tiverem prioridade sobre os créditos tributários e for evidente que o valor daqueles excede largamente o valor dos bens penhorados sobre e incidem as garantias reais, de forma a poder concluir-se que não haverá qualquer possibilidade prática de efectuar a cobrança dos créditos tributários, deverá suspender-se a venda, pois será se supor que a execução não permitirá atingir aquele objectivo de cobrança destes créditos.»
E mais adiante, referindo-se ao prosseguimento da execução, escreve o mesmo autor:
«Prosseguindo a execução fiscal com venda apenas de bens sobre os quais não tenham sido reclamados créditos não tributários, nos termos da parte final do nº 2 deste art. 244°, poderá suceder que eles sejam suficientes para pagamento da dívida exequenda e acrescido. Neste caso, se não houver outros créditos tributários reclamados, a execução será extinta, em conformidade com o preceituado no nº 1 do art. 261° deste Código.
No caso de terem sido reclamados outros créditos tributários, efectuar-se-ão os pagamentos em conformidade com o decidido na sentença de graduação, e, no caso de os bens serem insuficientes para pagamento da exequenda e acrescido e desses créditos tributários a execução prosseguirá com penhora de novos bens, na medida do necessário, até integral para execução dos bens do executado, responsáveis solidários e responsáveis subsidiários (art. 262°, nº 1, deste Código).»
E na verdade é este o entendimento que resulta dos citados normativos legais.
Daí que, retornando ao caso dos autos, nos pareça clara a improcedência da alegação da recorrente no sentido de que é a possibilidade de prosseguimento da execução fiscal que lhe atribui interesse em agir na requerida habilitação e de que é, por isso, desprovido de fundamento o despacho de 13/12/07 do Chefe de Finanças, quando determina, com base em inutilidade superveniente da lide, o desentranhamento do incidente de habilitação de cessionário, pois que a determinação da impossibilidade da venda do imóvel penhorado nos autos de execução fiscal e a declaração em falhas da dívida exequenda e acrescido, com fundamento na inexistência de bens penhoráveis não obstam ao prosseguimento da instância executiva, de acordo com o disposto no art. 274° do CPPT.
Com efeito, como acima se disse, tendo sido suspensa a venda do bem penhorado na execução fiscal, nos termos do nº 2 do art. 244º do CPPT, e declarada que foi em falhas, posteriormente, a dívida ali exequenda, se ela vier a prosseguir nos termos do art. 274º do mesmo CPPT, prosseguirá com penhora e venda de outros bens que sejam encontrados ao executado e sobre os quais não tenham sido reclamados créditos não tributários (cfr. parte final do nº 2 do art. 244°). Ou seja, prosseguirá noutros bens diferentes daqueles em que a presente graduação de créditos tem aplicação, noutro bens em relação aos quais as presentes garantias (hipoteca e penhora) serão indiferentes, noutros bens em relação aos quais será indiferente a habilitação que a recorrente pretende ver apreciada. Por isso, nenhuma utilidade há para a admissão e consequente decisão do presente incidente de habilitação de cessionário deduzido pela recorrente, já que não existe qualquer incerteza objectiva e grave quanto à definição e defesa do seu direito (e como supra se referiu, não basta sequer a dúvida subjectiva ou o interesse puramente académico em recorrer à via judicial).
Por outras palavras, não existe o aludido interesse em agir, definido como necessidade de usar do processo, por parte do cessionário de crédito com garantia sobre o bem que não foi vendido, isto é, no caso, definido como necessidade de instaurar ou fazer prosseguir tal incidente de habilitação.
Pelo que também quanto a esta questão atinente à inutilidade superveniente da lide e ao invocado interesse em agir derivado da possibilidade de vir a ser ordenado, à luz do art. 274º do CPPT, o prosseguimento da execução fiscal declarada em falhas, improcedem as respectivas Conclusões do recurso.
3.3. E pelas mesmas razões, também não se vê que esteja em causa o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva plasmado no art. 20° da CRP (cfr. Conclusões 13ª a 16ª do recurso).
Acresce, aliás, que se a fracção em causa na execução fiscal a que a presente reclamação de créditos está apensa, vier a ser vendida no processo de execução nº 582/2001, do 1º Juízo Cível de Viseu (que foi sustado nos termos do art. 871º do CPC, após a efectivação da penhora feita na presente execução fiscal), sempre a recorrente ali poderá usar dos meios que entender adequados.
DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 100 Euros.
Lisboa, 12 de Maio de 2010. – Casimiro Gonçalves (relator) – Isabel Marques da SilvaBrandão de Pinho.