Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0577/13.0BEAVR
Data do Acordão:02/17/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:IRS
BOLSA DE FORMAÇÃO
Sumário:I - Apesar da designação que o legislador lhe atribuiu, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, deve ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores por o seu propósito ser o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.
II - Não tendo sido decidida pela sentença recorrida a questão da violação do princípio da confiança por parte da Autoridade Tributária, impõe-se a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que sobre essa questão se pronuncie.
Nº Convencional:JSTA000P27203
Nº do Documento:SA2202102170577/13
Data de Entrada:09/06/2019
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro - que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A………… contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares e juros compensatórios, respeitante ao ano de 2011 - veio da mesma interpor recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Admitido o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, e desta admissão notificada a Recorrente, veio esta a alegar, aí formulando as seguintes conclusões:

«I. O douto Tribunal a quo anulou a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 4000066970, de 01.03.2013, respeitante ao ano de 2011, por considerar que a verba de € 9.000,00, recebida pela agora Recorrida, a título de “bolsa de formação”, não integra o conceito de remuneração acessória, para efeitos da alínea b) do n.º 3 do art. 2.º Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), e, consequentemente, não está sujeita a tributação, atenta a sua natureza não remuneratória, mas sim compensatória.

II. Aquela verba foi percebida pela Recorrida, a título de uma designada “bolsa de formação” e enquanto médica interna da especialidade de ginecologia/obstetrícia, a exercer funções no Hospital de Faro, EPE, em regime de contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, durante todo o ano de 2011.

III. O direito à designada “bolsa de formação” está previsto no n.º 8 do art. 12.º-A do DL n.º 203/2004, de 18 de agosto, diploma que, com as alterações que lhe sucederam, vem definir o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em medicina, com vista à especialização.

IV. O aludido art. 12.º-A, vem disciplinar as chamadas “vagas preferenciais”, destinadas a suprir a carência de médicos de determinadas especialidades, tendo sido introduzidas, no âmbito do internato médico, pelo DL n.º 45/2009, de 13 de fevereiro, diploma que alterou o regime jurídico daquele mesmo internato, aprovado pelo DL n.º 203/2004, de 18 de agosto.

V. A ocupação, no âmbito do internato médico, de uma vaga preferencial, nos termos do regime previsto no art. 12.º-A do DL n.º 203/2004, de 18 de agosto, tem, entre outras, as seguintes implicações: a) A obrigação dos médicos internos, após a conclusão com aproveitamento do internato e consequente obtenção do respetivo grau de especialista, de exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respetivo programa de formação médica especializada (n.º 4); b) O direito de perceção, pelos mesmos médicos, de uma bolsa de formação, sem prejuízo da atribuição de outros incentivos legalmente previstos (n.º 8).

VI. Já o n.º 8 do mesmo diploma legal, determina que “O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos”.

VII. Por sua vez, o n.º 10 fixa que “O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respetivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respetivo internato médico”.

VIII. À luz do quadro legal acabado de enunciar, o Tribunal a quo acabou por considerar que a “bolsa de formação” não cabe no conceito de remuneração acessória, sujeito a tributação nos termos da alínea b) do n.º 3 do art. 2.º da CIRS, uma vez que, para além de não ter sido auferida na decorrência de uma prestação de trabalho (ou em conexão com esta), também não constituiu uma vantagem económica para a Recorrida.

IX. Ressalvado o devido e merecido respeito pela douta posição assumida pelo Tribunal a quo, dela nos permitimos discordar, dado que não encontramos na legislação acabada de enunciar qualquer elemento que permita apoiar o entendimento por ele sufragado.

X. Pese embora o n.º 8 do art. 12.º-A prever que o preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, importa reter que o preenchimento da dita vaga, pressupõe, naturalmente, que o candidato que a venha a ocupar exerça as funções para as quais foi contratado.

XI. Da interpretação que fazemos do dispositivo legal em causa, resulta que o direito à bolsa se adquire com o preenchimento da vaga no óbvio pressuposto de que as funções venham a ser efetivamente exercidas.

XII. Ou seja, no caso em apreço, não é possível dissociar o direito à “bolsa de formação” do concreto exercício da atividade de médico interno da especialidade de ginecologia/obstetrícia.

XIII. Esta asserção sai reforçada, por um lado, pelo facto do n.º 10 prever que o incumprimento da obrigação de permanência na vaga preferencial implicar a devolução do montante percebido, a título de “bolsa de formação”, na proporção dos montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde.

XIV. Com efeito, ao abrigo da interpretação que fazemos da regra in quaestio, a atribuição da “bolsa de formação” está conexionada com a concreta prestação de trabalho, porque só assim se justifica a sua devolução na proporção do tempo de serviço efetivamente prestado.

XV. Cumpre ainda realçar a aparente fragilidade da componente formativa da mencionada “bolsa de formação”, dado que o n.º 3 do art. 12.º-A estabelece que as vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar.

XVI. Por sua vez, o n.º 8 do art. 12.º-A, ao estabelecer que a verba correspondente à “bolsa de formação” acresce à remuneração, acaba por afastar as dúvidas que teimassem em persistir quanto à sua manifesta vertente remuneratória.

XVII. Ou seja, o preenchimento de uma vaga preferencial confere, por si só, e independentemente de qualquer formação, o direito a uma designada “bolsa de formação”, que acresce à remuneração do interno.

XVIII. Ao contrário do que ditou a douta sentença recorrida, a designada bolsa depende da prestação de trabalho médico em vaga preferencial, pelo que configura rendimento de trabalho dependente, ainda que acessória da remuneração base, nos termos do art. 2.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3, alínea b), todos do CIRS, em conjugação com o art. 12º-A, n.ºs 4, 8 e 10 do DL n.º 203/2004, de 18 de agosto, com as alterações que lhe sobrevieram.

XIX. Neste contexto, pese embora o devido e merecido respeito que a douta sentença recorrida nos merece, afigura-se-nos que a interpretação sufragada pelo Tribunal a quo não cumpre os desígnios emanados do art. 11.º da Lei Geral Tributária (LGT): distancia-se da letra da lei, não respeita a unidade do sistema jurídico e consagra, assim, uma solução que não corresponde à melhor expressão do pensamento legislativo.

XX. Entendemos, pois, que o Tribunal a quo, ressalvado o devido respeito, incorreu numa errónea interpretação e aplicação do art. 2.º, n.º 1, alínea c), nº 2 e n.º 3, alínea b), todos do CIRS.».

1.3. A Recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado na ordem jurídica, em síntese, formulada a final, nos seguintes termos:

«1. Entendeu, e bem, o Tribunal a quo que a “bolsa de formação” em causa “não tem natureza remuneratória, mas sim compensatória e, por isso, não integra o conceito de rendimento para efeitos de IRS, estando assim afastada a sujeição a esse imposto.

2. Fundamenta essa sua decisão nos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 31-01-2018, e do Tribunal Central Administrativo do Sul de 12-01-2017, onde se conclui que os valores auferidos a título de bolsa de formação constituem um incentivo pecuniário atribuído a título compensatório pela obrigação de permanência no serviço após a conclusão do internato.

3. O caso em apreciação no âmbito do processo n° 01331/16, e que está na origem do Acórdão do STA de 31-01-2018, e em tudo idêntico aos dos presentes autos, até os mandatários dos Impugnantes são os mesmos.

4. Desse Acórdão resulta inolvidavelmente que é entendimento do STA que os valores recebidos a título de bolsa de formação não tem natureza remuneratória, mas sim compensatória, por consistirem num incentivo à fidelização do médico interno ao serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-o pela sua obrigação de permanência nesse mesmo serviço.

5. Entendimento este que era já perfilhado pelo TCA Sul, Acórdão de 12-01-2017, em que está em causa mais um processo idêntico ao dos presentes autos, e em que os mandatários dos Impugnantes são igualmente os mesmos.

6. O que sucedeu foi que, no processo n°01331/16, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, não apreciou o fundamento principal invocado pelos Impugnantes na sua petição inicial, o que levou o STA a determinar a baixa do processo novamente à primeira instância.

7. Quando proferida nova decisão pelo Tribunal de Primeira Instância (TAF Loulé), este em consonância com o entendimento vertido no Acórdão do STA e no Acórdão do TCA Sul de 12-01-2017, conclui pela procedência da impugnação, por tais valores terem natureza compensatória, e não remuneratória, em face da obrigação de permanência dos médicos internos após a conclusão do internato no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato.

8. Sendo o caso em apreciação nos presentes autos em tudo semelhante, mudam apenas os nomes, pois até os mandatários dos Impugnantes são os mesmos, forçoso será de concluir que, tal como resulta do Acórdão do TCA Sul de 12-01-2017, e do Acórdão do STA de 31-01-2018, os valores auferidos pelos médicos internos são um incentivo à fidelização do médico interno ao serviço onde se verificou uma carência profissional, e onde vinha exercendo medicina em regime de internato, compensando-o pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.

9. Pelo que se terá de concluir que andou bem o Tribunal a quo ao decidir pela natureza compensatória, e não remuneratória, e pela sua não sujeição a imposto para efeitos de IRS.».

1.4. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto em douto parecer, defendeu, em resumo nosso, que o artigo 12.º-A/8 do DL 203/2004 estatui que o preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação que acresce à remuneração do interno e que, como é jurisprudência constante deste STA, esta bolsa de formação tem natureza remuneratória, razão pela qual a sentença recorrida não deve manter-se na ordem jurídica.

Mais promoveu que, tendo a Recorrida suscitado a questão da violação do princípio da confiança por parte da Autoridade Tributária (artigos 77.º a 79.º da PI) e não tendo essa questão apreciada na sentença recorrida, atenta a solução dada à causa, devem os autos baixar à 1.ª instância para apreciação dessa questão.

1.5. Colhidos os vistos legais, importa, agora, decidir, submetendo-se para este efeito os autos à conferência.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou, se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Na sua vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentado pela Recorrente que o objecto da presente apelação se reconduz a uma única questão: saber se a denominada “Bolsa de Formação”, a que aludia o n.º 8 do artigo 12º-A do DL n.º 203/2004, de 18 de Agosto, constitui ou não rendimento tributável.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

A sentença efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

1) A ora impugnante exerceu funções no Hospital de Faro, EPE, em regime de contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto desde 01-01-2011 e durante todo o ano de 2011, como médica interna da especialidade de ginecologia/obstetrícia, especialidade esta que tem a duração de 72 meses – cfr. resulta de fls. 15 do suporte físico dos autos;

2) Na qualidade de médica interna a ora impugnante recebeu, no ano de 2011, a quantia de € 9.000,00 a título de bolsa de formação – cfr. resulta de fls. 15 do suporte físico dos autos;

3) Em 15-04-2012 foi pela ora impugnante apresentada declaração de rendimentos, modelo 3 – IRS, relativo ao ano de 2011, no qual inscreveu no Anexo A, relativo a rendimento do trabalho dependente e/ou pensões, como rendimentos o montante de € 31.333,03; como retenções a quantia de € 6.344,00; como contribuições o montante de € 3.446,64 e retenção sobretaxa a quantia de € 386,00 – cfr. fls. 2 a 5 do processo administrativo apenso;

4) Na declaração de rendimentos aludida no ponto anterior não foram inscritos, no campo “rendimentos”, o montante de € 9.000,00 recebidos a título de bolsa de formação – cfr. resulta de fls. 15 do suporte físico dos autos e de fls. 2 a 5 do PA apenso [“a contrario”];

5) Tal declaração foi preenchida de acordo com o declarado pelo Hospital de Faro, EPE, na declaração constante de fls. 17 e com o que consta dos recibos de vencimento da ora impugnante referente àquele ano de 2011, constantes de fls. 18 a 29 do suporte físico dos autos;

6) Com base na declaração a que se alude em 3) foi elaborada a nota de liquidação n.º 2012 4001311301, de 02-05-2012, na qual foi apurado um reembolso de € 770,66, tendo da demonstração dessa liquidação de IRS sido a ora impugnante notificada – cfr. fls. 16 do suporte físico dos autos;

7) Entretanto, a Administração Tributária abriu um procedimento inspectivo por entender que o montante recebido a título de bolsa de formação, no montante de € 9.000,00 devia ter sido declarado como rendimento – cfr. resulta de fls. 30 e 32 do suporte físico dos autos;

8) Na sequência dessa acção inspectiva, a ora impugnante apresentou, em 24-02-2013, declaração de substituição relativa aos rendimentos auferidos em 2011, passando a inscrever, no campo “rendimentos” o montante de € 40.333,03 – cfr. fls. 36 a 40 do suporte físico dos autos;

9) Tendo por base a declaração de substituição mencionada na alínea antecedente foi emitida a liquidação com o n.º 2013 4000066970, datada de 01-03-2013, da qual resultava IRS e juros compensatórios a pagar no montante global de € 2.853,55 – cfr. fls. 41 e 42 do suporte físico dos autos;

10) Em 07-03-2013 foi efectuado o acerto de contas entre o resultado das liquidações mencionadas em 5) [reembolso de € 770,66] e 9) [IRS e juros compensatórios a pagar no montante de € 2.853,55], resultando o valor a pagar até 06-05-2013 de € 3.624,21 – cfr. resulta de fls. 43 do suporte físico dos autos;

11) A ora impugnante procedeu ao pagamento do montante de € 3.624,21, referido na alínea anterior, em 02-05-2013 – cfr. resulta de fls. 44 do suporte físico dos autos e, ainda, da informação de fls. 49;

12) Em 05-07-2013, deu entrada a presente impugnação judicial – cfr. resulta de fls. 2 do suporte físico dos autos.

3.2. Fundamentação de Direito

Como resulta do que deixámos já exposto, o litígio entre as partes teve origem na emissão das liquidações adicionais de IRS e de respectivos juros compensatórios que tem subjacente o entendimento da Autoridade Tributária, não aceite pela Recorrida, de que os valores monetários que esta última recebeu a título de bolsa de formação, ao abrigo do n.º 8 do artigo 12.º-A do DL n.º 203/2004, de 18 de Agosto, deve ser objecto de tributação em sede de IRS, por força, conjugadamente, do preceituado nos n.ºs 4, 8 e 10 daquele diploma e artigos 2.º, n.º 1, alínea c), n.º 2 e n.º 3, alínea b), do CIRS.

A questão, como é sabido, tem vindo recorrentemente a ser apreciada por esta Secção, recebendo resposta coincidente com a argumentação explanada pela Recorrente.

Assim, não se vendo agora razão para se decidir de modo diferente seguir-se-á de perto o que se escreveu nos acórdãos datados de 31.01.2018 e de 08.05.2019, respectivamente recursos n.ºs. 01331/06 e 02553/14.7BELRS.

“Entendeu a sentença recorrida que a “bolsa de formação” recebida pelos recorridos está excluída de tributação em IRS por constituir uma bolsa de formação, excecionada pelo artigo 2.º nº 8 al. d) do CIRS, na redação aplicável.

Diversamente defende a recorrente FP que a bolsa de formação paga aos médicos internos, em regime de vaga preferencial, constitui um meio para obviar às carências de médicos em determinados serviços ou estabelecimentos, sem nexo direto com a formação médica e sem se encontrar exclusivamente relacionado com ela, antes constituindo uma forma de retribuição do trabalho prestado numa vaga preferencial ao abrigo do contrato de trabalho em funções públicas. Estaria, por isso, abrangida pela enumeração casuística do artigo 2.º do Código do IRS, não lhe podendo ser aplicada a al. c) do nº 8 da mesma disposição legal.

O MP entende que o recurso merece provimento nos termos do parecer transcrito.

Acompanha-se o entendimento deste STA, no acórdão de 31-01-2018, proc. 01331/16, por inexistirem motivos para do mesmo discordar e no qual se escreveu o seguinte:

“Dispunha a alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos – que a sentença recorrida julgou aplicável ao caso dos autos -, que estavam excluídas de tributação “as prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes”.

No caso dos autos, o ora recorrido exerceu funções na Unidade de Saúde Familiar do Centro de Saúde de …… durante o exercício de 2011, ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, na qualidade de médico interno em regime de vaga preferencial e entre Janeiro e Dezembro de 2011, a Administração Regional de Saúde do Algarve, I. P. emitiu recibos de vencimento ao Recorrido, onde consta o pagamento de uma bolsa de formação com uma periodicidade mensal e no valor de € 750.

Ora, nos termos do artigo 2.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto (diploma que estabelece o regime jurídico do internato médico), na redação em vigor à data dos factos, “após a licenciatura em Medicina, inicia-se o internato médico, que corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respectiva área profissional de especialização”.

Ou seja, o internato médico corresponde ao período de exercício da Medicina que se segue, imediatamente, à conclusão da respetiva licenciatura. Neste período de internato, e ao abrigo de um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, os médicos internos exercem a sua profissão e recebem, simultaneamente, formação especializada de cariz teórico e prático (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

Por força da aprovação do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, foi aditado ao Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto o artigo 12.º-A, com a epígrafe “vagas preferenciais”, através do qual foi criada uma distinção ao nível das vagas do internato médico, a saber: as vagas comuns e as vagas preferenciais. Nos termos do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, a introdução desta distinção foi motivada pela revogação do contrato administrativo de provimento (operada no âmbito das alterações introduzidas ao regime legal da função pública pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro e pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), o que obrigou à criação de uma nova forma de vinculação dos médicos internos através da qual pudesse ser assegurado o exercício de funções próprias do serviço público que não revestissem carácter de permanência.

Pela sua importância para a decisão do caso sub judice, transcreve-se o artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, com a epígrafe “Vagas Preferenciais” (aditado pelo Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro):

1 - No mapa de vagas previsto no n.º 6 do artigo 12.º, podem ser identificadas vagas preferenciais, destinadas a suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades, as quais não podem exceder 30 % do total de vagas estabelecidas anualmente.

(…)

3 - As vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar, podendo a formação decorrer em estabelecimento ou serviço diferente daquele, no caso de não existir idoneidade ou capacidade formativa.

4 - Os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respectivo contrato, a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.

5 - O exercício de funções nos termos do número anterior efectiva-se mediante celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o qual é precedido de um processo de recrutamento em que são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de selecção a realizar para o efeito.

(…)

8 - O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos.

(…)

10 - O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respectivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respectivo internato médico.

(…)

Importa, pois, compreender o “estatuto especial” conferido aos médicos em regime de vaga preferencial nos termos do artigo 12º-A transcrito, por oposição ao estatuto dos médicos internos em regime de vaga normal. Assim:

1. À semelhança dos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada e recebem formação especializada de cariz teórico e prático (artigos 2.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

2. Contrariamente aos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial:

a. Assumem a obrigação de, após internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto); e

b. Gozam do direito ao recebimento de uma bolsa de formação, que acresce à respetiva remuneração de médico interno (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

Em face do exposto, parece evidente que aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial.

Afigura-se-nos, pois, duvidoso que, apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS, como julgado pela sentença recorrida, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico, como, aliás, é reconhecido pelo recorrido nas suas contra-alegações de recurso.

Não pode, pois, manter-se o decidido, que julgou procedente a impugnação em razão da aplicação do disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.”.

Como refere o MP o regime jurídico da formação médica não integra um conceito normativo de bolsa de formação, designadamente definindo-a como uma comparticipação compensatória nas despesas inerentes à formação do médico interno no decurso do internato e nos termos daquele regime jurídico a bolsa de formação é considerada um incentivo pecuniário que acresce à remuneração do interno.

Acrescenta, ainda, que o auferimento da quantia a título de bolsa de formação em função da prestação de trabalho ou em conexão com a prestação de trabalho resulta claramente da circunstância de o incumprimento da obrigação de permanência do médico interno no estabelecimento onde se verificou a necessidade de provimento de vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, implicar a devolução do montante percebido a título de bolsa de formação, na proporção do período do incumprimento, pelo que a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, assumindo a natureza de incentivo pecuniário associado ao exercício da actividade profissional do médico interno provido em vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação (art. 2º n.ºs 3 al. b) e 8 al. c) CIRS em vigor à data dos factos)”.

De toda a argumentação exposta resulta evidente que o presente recurso merecer ser provido, o que determina a revogação da sentença recorrida.

Porém, considerando que a Recorrida suscitou na petição inicial a questão da violação do princípio da confiança por parte da Autoridade Tributária (artigos 77.º a 79.º da referida peça processual), questão que não foi objecto de apreciação na sentença recorrida, por então se ter entendido que essa apreciação ficara prejudicada pela decisão já dada à questão decidida, impõe-se, também, como muito bem realçou o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, determinar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que conheça desse fundamento, ampliando para tal, se necessário, o probatório fixado.

4. Decisão

Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que conheça dos demais fundamentos da presente Impugnação Judicial.

Custas pela Recorrida.

Registe e notifique.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2021 – Anabela Ferreira Alves e Russo (Relatora) – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.